Nº35 Jan-Mar 2015 Pág. 14-17 Miguel Mendes Diretor do Serviço de Cardiologia do CHLO Presidente-eleito da SPC para o biénio 2015-2017 Após enfarte do miocárdio: da prevenção à reabilitação - o que temos feito em Portugal até ao presente? Palavras-chave: Reabilitação cardíaca; Prevenção secundária; Enfarte do miocárdio; Inquérito nacional Introdução Os programas de Reabilitação Cardíaca (PRC) foram lançados nos Estados Unidos da América após a II Guerra Mundial, num contexto em que ainda se preconizava um longo período de acamamento e uma lenta normalização das atividades de vida diária após enfarte do miocárdio, devido à hipervalorização do risco de rotura miocárdica, com resultados clínicos e sociais indesejáveis1. O estudo de Framingham, iniciado em 1948 e também no período pós II Grande Guerra, veio confirmar a noção pré-existente que a doença aterosclerótica é promovida por fatores de risco como a dislipidemia entre outros, cuja presença e severidade condicionam a precocidade e a extensão da doença no momento da apresentação clínica inicial bem como a progressão futura2. É neste contexto que foram lançados os PRC, que integravam dois componentes: treino físico exclusivamente aeróbio e educação. Ambos tinham o objetivo de aumentar a sobrevivência e a qualidade de vida através do controlo dos fatores de risco e da promoção de uma superior capacidade funcional, particularmente importante no caso das profissões com exigências metabólicas mais elevadas. Considerava-se que a doença coronária poderia ser controlada pela adoção voluntária de um estilo de vida, para o que contribuía uma intervenção psicológica orientada para a autonomização do 14 doente relativamente aos prestadores de cuidados, para a normalização das atividades de vida diária e a observância a longo prazo das medidas de prevenção secundária, nomeadamente as relacionadas com a alimentação e com o respeito da medicação crónica. Esta fase culmina com a publicação em 1964 por parte da OMS da definição de Reabilitação Cardíaca (RC) como «… o conjunto de atividades necessárias para fornecer ao doente com cardiopatia uma condição física, mental e social tão elevadas quanto possível, que lhe permita retomar o seu lugar na vida da comunidade, pelos seus próprios meios e de uma forma tão normal quanto possível»3. A RC, com a sua estruturação em fases progressivas e os seus diferentes componentes, associados a um acompanhamento individual de cada doente, que é preparado e estimulado para ser o construtor da sua autonomia pessoal, são o tipo de programa ideal de prevenção secundária, contemplando a adoção de um estilo de vida saudável, a observância da terapêutica farmacológica e a educação dos doentes e dos seus familiares4. Reabilitação Cardíaca em Portugal O primeiro programa de reabilitação cardíaca português foi fundado em Lisboa em 1982, na Clínica do Dr. Dídio de Aguiar por iniciativa conjunta de um fisiatra (Dr. Dídio de Aguiar), um cardiologista (Prof. Eduardo Mota) e um pneumologista (Prof. António couto) tendo adotado o modelo em voga nesse tempo, de inspiração germânica, baseado no treino físico exclusivo em cicloergómetro5. A partir de 1988 surgiram outros programas, existindo atualmente 22 centros ativos no país, dos quais 12 são públicos e 10 privados (alguns sem fins lucrativos). Mesmo no contexto da recente crise económica, observou-se um aumento do número de centros a partir de 2010, com início de atividade de quatro centros públicos e dois privados nos últimos 5 anos6. com a exceção de um centro de Faro que abriu as suas portas em 2012, todos os outros centros estão localizados nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa. não há qualquer centro no Minho, Trás-os-Montes, Beiras (Litoral e interior), Ribatejo, Alentejo e nas regiões insulares autónomas, o que cerceia a referenciação e o acesso de doentes. Os centros de Rc portugueses são todos ambulatórios. não dispomos de centros residenciais, típicos dos países da europa central, onde os doentes ficam internados por períodos de 3-4 semanas após a alta hospitalar de uma síndrome coronária aguda ou de uma cirurgia cardíaca e que são mais adequados quando o suporte social é reduzido ou quando estão presentes patologias associadas importantes. Também não dispomos de programas centrados no domicílio, vulgo home-based7, muito utilizados na Grã-Bretanha, que se desenrolam com o recurso a materiais audiovisuais, acompanhamento periódico à distância por telefone ou por meios informáticos, para além de algumas visitas ao centro de Rc, nem de programas comunitários como os clubes coronários, tão difundidos na Alemanha, destinados a enquadrar os doentes na fase de manutenção. Para além da assimetria na distribuição geográfica dos centros, a ausência de convenções para PRc entre o SnS e os centros privados, que deveriam existir nas áreas em que não há resposta por parte dos hospitais públicos, são importantes barreiras à implantação e desenvolvimento da Rc nacional, que também se encontra limitada do lado dos doentes por falta de motivação para a atividade física, dificuldades de acesso relacionada com motivos financeiros, dificuldades de transportes ou conflitos de tempo pela vida familiar ou pela atividade laboral. nos últimos anos tem-se verificado um aumento significativo dos doentes incluídos nos programas, que presentemente se aproximam de 10% dos doentes com alta hospitalar após enfarte do miocárdio, muito acima do valor de 1% observado em 1998, fruto da entrada em atividade dos centros públicos, em particular dos sediados no norte do país que têm um movimento apreciável. Apesar deste aumento significativo continuamos distantes das taxas de inclusão em PRc dos países da europa central e dos estados Unidos que varia, em média, entre 30 a 50%8. Quando estudamos as indicações para PRc em Portugal, encontramos baixas taxas de referenciação e de inclusão após angioplastia coronária, insuficiência cardíaca (com ou sem dispositivos), após cirurgia cardíaca (incluindo transplantação cardíaca) e nas indicações mais recentes, como após implantação de válvula aórtica percutânea, habitualmente realizada em doentes com fragilidade. Para além das baixas taxas de referenciação e de inclusão, tal como na generalidade dos países verifica-se uma sub-representação nos PRc de idosos, mulheres, indivíduos com baixo nível socioeconómico, obesos, fumadores e os que sofrem de depressão, que se revelam como um desafio para os programas e que exigem uma abordagem específica para melhorar as 15 Nº35 Jan-Mar 2015 Pág. 14-17 taxas de não admissão ou o abandono precoce do programa. Um dos problemas da referenciação para os PRc relaciona-se com o facto de os médicos-assistentes (cardiologistas ou cirurgiões cardíacos) considerarem que os seus doentes não carecem do programa por não apresentarem limitações funcionais significativas, esquecendo que, para além da atividade física, os PRc são excelentes programas de prevenção secundária, com grande valor mesmo na ausência de limitações físicas. O nosso atraso, para além das barreiras atrás citadas relacionadas com os centros e com os doentes tem múltiplas causas, relacionadas com a diminuta cultura desportiva existente no país, a reduzida formação dos médicos e de outros profissionais de Saúde neste campo, o crónico sub-financiamento da Saúde e a dificuldade de constituição de equipas multidisciplinares. A Rc portuguesa tem-se atualizado progressivamente ao longo dos anos, fruto dos encontros científicos frequentes, em Portugal e no estrangeiro, habitualmente promovidos no âmbito das Sociedades Portuguesa e europeia de cardiologia englobando médicos com diferentes tipos de formação (nomeadamente cardiologistas, fisiatras e psiquiatras) e outros profissionais de Saúde, como fisioterapeutas, fisiologistas do esforço, psicólogos e nutricionistas. em minha opinião, de 1982 até ao presente (2015), os principais marcos da Rc em Portugal, pelas mudanças conceptuais e organizativas que introduziram, foram os seguintes: 1982 Lançamento do 1.º programa nacional de Reabilitação cardíaca - clínica do dr. dídio de Aguiar (Lisboa). 1988 introdução do treino em diferentes tipos de ergómetros com intensidade individualizada definida por uma frequência cardíaca, calculada em função de prova de esforço máxima realizada sob medicação - instituto do coração (carnaxide). 1991 Fundação do corliz, replicando o modelo dos clubes coronários alemães - Faculdade de Motricidade Humana (cruz Quebrada). 1993 início de atividade do 1.º centro do país sediado em hospital público - 16 centro Hospitalar de Vila nova de Gaia. 1994 introdução do treino específico da força muscular - corliz, Faculdade de Motricidade Humana. 2000 Treino em meio aquático - Hospital de S. Sebastião (Feira). 2006 Fundação da APRecOR (atualmente inativa) pretendendo associar todos os profissionais com atividade clínica em PRcs em Portugal. 2009 Publicação pela coordenação nacional para as doenças cardiovasculares (coordenador: Rui Ferreira) em colaboração com o Grupo de estudos de Fisiopatologia do esforço e Reabilitação cardíaca (coordenador: Ana Abreu) de um opúsculo Reabilitação Cardíaca: Realidade Nacional e Recomendações Clínicas9. 2013 Publicação pelo Grupo de estudos de Fisiopatologia do esforço e Reabilitação cardíaca (GeFeRc) da Sociedade Portuguesa de cardiologia do livro Reabilitação Cardíaca10. Palavras finais Até ao presente, a Rc portuguesa tem feito o seu caminho. Para muitos de nós, porventura impacientes, com um passo mais lento que o desejável. Talvez seja o ritmo possível num país com as nossas carências económicas, organizativas, culturais e educativas. comparando-se a cardiologia portuguesa com a dos países mais desenvolvidos constata-se que a Reabilitação cardíaca (Rc) é seguramente o setor em que temos um maior atraso, porque menos de 10% dos potenciais candidatos são envolvidos em programas, quando a percentagem média nos países do centro da europa se situa entre os 30 e os 50%. As autoridades de Saúde e administrações hospitalares têm privilegiado uma estratégia baseada na cardiologia de intervenção e numa prevenção secundária quase exclusivamente farmacológica que proporcionaram significativos ganhos em Saúde que podem ser ampliados pela disseminação de PRc de acesso generalizado e com baixo custo, o que certamente contribuiria para aumentar a longevidade e a Qualidade de Vida dos doentes, bem como re- duzir custos na Saúde e na Segurança Social, pela diminuição das hospitalizações, da duração das baixas e da precocidade das reformas. este tempo marcado por constrangimentos económicos desaconselham o desperdício de benefícios para a sociedade e para os doentes proporcionados pelos PRc que estão classificados como uma intervenção de classe i nas recomendações das sociedades científicas europeias e americanas. Bibliografia 1. certo cM. History of cardiac rehabilitation. Phys. Ther. 1985;65:1793-1795. 2. Kannel WB, dawber TR, Kagan A, et al. Factors of Risk in the development of coronary Heart disease—Six-Year Follow-up experienceThe Framingham Study. Ann. intern. Med. 1961;55:33-50. 3. World Health Organization expert committee on disability, Prevention and Rehabilitation. Rehabilitation of Patients with cardiovascular disease: Report of a WHO expert committee; 1964. 4. Piepoli MF, corrà U, Benzer W, et al. Secondary prevention through cardiac rehabilitation: from knowledge to implementation. A position paper from the cardiac Rehabilitation Section of the european Association of cardiovascular Prevention and Rehabilitation. eur. J. cardiovasc. Prev. Rehabil. 2010;17:1-17. 5. Mendes M. inquérito nacional aos Programas de Reabilitação cardíaca em Portugal. Situação em 1999. Rev. Port. cardiol. 2001;20:7-10. Agradecimento Agradeço às dras. Ana Abreu e conceição Silveira, respetivamente coordenadora e vogal do GeFeRc da SPc a cedência dos resultados ainda não publicados do inquérito à realidade nacional da Rc referente aos anos de 20132014. 6. conceição Silveira e Ana Abreu. inquérito nacional aos centros de Reabilitação cardíaca 2013-2014. comunicação oral. Reunião Anual 2015 conjunta dos Grupos de estudo de insuficiência cardíaca e de Fisiopatologia do esforço e Reabilitação cardíaca. curia, 14 de Fevereiro de 2015. 7. K Jolly, G Y H Lip, R S Taylor, et al. The Birmingham rehabilitation uptake maximisation study (BRUM): a randomised controlled trial comparing home-based with centre-based cardiac rehabilitation. Heart. 2009;95:35-42. 8. Bjarnason-Wehrens B, McGee H, Zwisler A-d, et al. cardiac rehabilitation in europe: results from the european cardiac Rehabilitation inventory Survey. eur. J. cardiovasc. Prev. Rehabil. 2010;17(cvd):410-418. 9. Rui cruz Ferreira, em colaboração com o Grupo de estudos de Fisiopatologia e Reabilitação cardíaca da Sociedade Portuguesa de cardiologia (coordenadora Ana Abreu). Reabilitação cardíaca: Realidade nacional e Recomendações clínicas. coordenação nacional Para as doenças cardiovasculares; 2009. 10. Ana Abreu, carlos Aguiar, Miguel Mendes, Helena Santaclara. Reabilitação cardíaca. Lisboa, Sociedade Portuguesa de cardiologia. 2013 Exercício no Parque Maio - Mês do Coração Dia 30, pelas 9.30h‐12h Parque das Conchas Alto do Lumiar, Lisboa Venha Reabilitar‐se e traga companhia NÃO FALTE! Atividade do GEFERC, SPC 17