e n s a i o s m a r x i s t a s 25 Margem 25 Final.indd 1 21/10/2015 20:58:36 Copyright © Boitempo Editorial, 2015 Margem Esquerda – ensaios marxistas n. 25 Editora Ivana Jinkings Editora-assistente Thaisa Burani Editor de imagens Sergio Romagnolo Editor de poesia Flávio Aguiar Preparação Sara Grünhagen Revisão Thais Rimkus Capa Antonio Kehl e Sergio Romagnolo Imagens do miolo e da capa Julio Plaza, Ícones são redondos (s/d), Duchamp versus Vasarely (1975), Hexacubos (1966), Da caixa preta (com Augusto de Campos, 1975), série Placas (anos 1970), Arte é um bem que faz mal (1982), Uroborus (1990-1997), catálogo United Arts III – LUZ (1997), Mônada (1983), catálogo geral da XVII Bienal de São Paulo (1983), Arte es verba (1974), A luz azul (1982), Íclone (1998) e CUMFIGURIS (1983). Projeto gráfico e diagramação Antonio Kehl Produção Livia Campos Impressão e acabamento Intergraf ISSN 1678-7684 número 25: outubro de 2015 É vedada a reprodução de qualquer parte desta revista sem a expressa autorização da editora. Esta publicação atende às normas do acordo ortográfico em vigor desde janeiro de 2009. BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda. Rua Pereira Leite, 373 – Sumarezinho CEP 05442-000 São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 [email protected] www.boitempoeditorial.com.br | www.blogdaboitempo.com.br www.facebook.com/boitempo | www.twitter.com/editoraboitempo www.youtube.com/imprensaboitempo Margem 25 Final.indd 2 21/10/2015 20:58:44 Sumário Apresentação .........................................................................................9 IVANA JINKINGS ENTREVISTA Milton Temer .......................................................................................11 IVANA JINKINGS E GILBERTO MARINGONI DOSSIÊ: A UNIVERSIDADE EM CRISE: DILEMAS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS Crise da universidade, crise do capital ...................................................27 ROBERTO LEHER Entre duas ameaças: a burocracia e a mercantilização da universidade ...36 RUY BRAGA e ALVARO BIANCHI Universidades em crise: o contexto global ............................................43 MICHAEL BURAWOY Terceirização e degradação do trabalho nas universidades brasileiras..................................................................52 MARCO AURÉLIO SANTANA e MARIA DA GRAÇA DRUCK ARTIGOS Igualdade substantiva e democracia substantiva .....................................59 ISTVÁN MÉSZÁROS Crise brasileira e direito........................................................................66 ALYSSON LEANDRO MASCARO A alternativa ao capitalismo em Marx ....................................................92 JOÃO ALEXANDRE PESCHANSKI Margem 25 Final.indd 3 21/10/2015 20:58:44 Os limites da democracia na teoria jurídico-política de Habermas........105 MOZART SILVANO PEREIRA5 CLÁSSICO O jovem Hegel ..................................................................................119 GYÖRGY LUKÁCS HOMENAGEM Vito Giannotti, militante socialista ........................................................127 GIOVANNI ALVES MEMÓRIA O adeus em um olhar: linha final de duas vidas ..................................131 FLORESTAN FERNANDES JR. COMENTÁRIO O “homem novo” e o debate conceitual meio século depois ..............137 AURELIO ALONSO RESENHA Nem calco nem cópia: a heresia da revolução permanente ................147 DENI ALFARO RUBBO NOTAS DE LEITURA Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa ..................149 PAULO BARSOTTI O Brasil na Segunda Guerra Mundial: uma página de relações internacionais ....................................................................................151 ANGÉLICA LOVATTO POESIA Poema ...............................................................................................155 ANTÓNIO AGOSTINHO NETO António Agostinho Neto: uma introdução ..........................................159 FLÁVIO AGUIAR Margem 25 Final.indd 4 21/10/2015 20:58:44 M Margem 25 Final.indd 7 A R G E M E S Q U E R D A 25 Ã Ç I D E A T S E D S E R O D A R O B A L O C ALVARO BIANCHI é professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da Unicamp e diretor do Arquivo Edgard Leuenroth, da mesma instituição. ALYSSON LEANDRO MASCARO, jurista e filósofo do direito, é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Livre-docente em filosofia e teoria geral do direito pela USP, é autor de Estado e forma política (Boitempo, 2013), entre outros. ANGÉLICA LOVATTO é doutora em ciências sociais pela PUC-SP e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp (Marília-SP). Autora de A utopia nacionalista de Helio Jaguaribe: os anos do Iseb (Xamã, 2010). ANTÓNIO AGOSTINHO NETO (1922-1979), líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), foi o primeiro presidente do país após a Independência, em 1974, e é considerado um dos mais importantes poetas angolanos. Seu aniversário, 11 de novembro, é feriado nacional. AUGUSTO DE CAMPOS, poeta, tradutor e ensaísta, é um dos mais renomados intelectuais das letras do mundo. Ao lado de seu irmão Haroldo e de Décio Pignatari, concebeu a poesia concreta no Brasil. Tradutor de E. E. Cummings, Mallarmé e James Joyce, publicou as coletâneas Viva Vaia (1979), Despoesia (1994) e Não (2004). DENI ALFARO RUBBO é doutorando em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Párias da terra: o MST e a mundialização da luta camponesa (Alameda, 2015). FLÁVIO AGUIAR é poeta, escritor, professor de literatura brasileira e correspondente da Carta Maior e da Revista do Brasil em Berlim. É autor de vasta obra, incluindo, pela Boitempo, Anita (2009) e A Bíblia segundo Beliel (2012). FLORESTAN FERNANDES JR. é jornalista e apresentador de programas de rádio e de televisão. É um dos autores da coleção Histórias do Poder, publicada pela Editora 34. GILBERTO MARINGONI é doutor em história social pela FFLCH-USP e professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC. É autor, entre outros, de Angelo Agostini: a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal (Devir, 2011). GIOVANNI ALVES é professor de sociologia da Unesp, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e autor de vários livros, entre os quais Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011). GYÖRGY LUKÁCS (1885-1971), intelectual húngaro, é um dos mais influentes filósofos marxistas do século XX. De sua obra, foram publicados pela Boitempo Para uma ontologia do ser social (v. I e II), Lenin, O romance histórico e Prolegômenos para uma ontologia do ser social. O Colaboradores desta edição 7 21/10/2015 20:58:45 O Ã Ç I D E A T S E D S E R O D A R O B A L O C IVANA JINKINGS é editora da Boitempo e da revista Margem Esquerda. Coordenou, com Emir Sader, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile, a Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006). JOÃO ALEXANDRE PESCHANSKI é doutor em sociologia pela University of Wisconsin-Madison e professor de ciência política da Faculdade Cásper Líbero. Organizou, com Ivana Jinkings, o livro As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007). JULIO PLAZA (1938-2003) foi um artista plástico espanhol que construiu boa parte de sua carreira no Brasil, ao lado de parceiros intelectuais como Augusto de Campos, Regina Silveira e Walter Zanini. Foi professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP. Publicou Tradução intersemiótica (Perspectiva, 2000). MARCO AURÉLIO SANTANA é doutor em sociologia pela UFRJ e professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ. É autor de Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil (Boitempo, 2001). MARIA DA GRAÇA DRUCK é professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA), pesquisadora do CNPq e do Centro de Recursos Humanos (CRH-UFBA). ISTVÁN MÉSZÁROS é filósofo formado na Universidade de Budapeste, onde foi assistente de György Lukács. Autor, entre outros livros, de Para além do capital (2002) e O desafio e o fardo do tempo histórico (2007), ambos pela Boitempo. MICHAEL BURAWOY, sociólogo britânico, é professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Autor de Manufacturing Consent: Changes in the Labor Process under Monopoly Capitalism (1979), que problematiza o mercado de trabalho latino-americano. MOZART SILVANO PEREIRA é mestre em filosofia do direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do Núcleo de Pesquisa em Educação e Marxismo (NupeMarx/UFPR). NATÁLIA CINDRA é mestre em políticas de trabalho e globalização pela Global Labour University, na Alemanha, e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. NÉLIO SCHNEIDER é doutor em teologia pela Kirchliche Hochschule Wuppertal, na Alemanha, e tradutor de vasta obra, incluindo, pela Boitempo, o Anti-Dühring: a revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring, de Friedrich Engels (2015), entre outros. PAULO BARSOTTI é professor da Fundação Getulio Vargas (SP). Organizou, com Luiz Bernardo Pericás, os livros América Latina: história, ideias e revolução e América Latina: história, crise e movimento, publicados pela Xamã. SERGIO ROMAGNOLO é artista plástico, professor do Instituto de Artes da Unesp e autor de Sergio Romagnolo (Martins Fontes, 2011). ROBERTO LEHER é reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, pesquisador do CNPq e pesquisador cientista do Nosso Estado (Faperj). RUY BRAGA é professor livre-docente da USP, onde dirige o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic). É autor de A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (Boitempo, 2012), entre outros livros. 8 M Margem 25 Final.indd 8 A R G E M E S Q U E R D A 25 21/10/2015 20:58:45 CLÁSSICO O jovem Hegel1 Introdução O Margem 25 Final.indd 119 J O V E M H E G E L C Á K U L Y Ö Y Trecho da introdução do livro O jovem Hegel, de György Lukács, a ser publicado pela Boitempo em 2016. Traduzido do alemão Der junge Hegel. Über die Beziehung von Dialektik und Ökonomie (Zurique, Europa, 1949; 3. ed. Neuwied e Berlin, Hermann Luchterhand, 1967), por Nélio Schneider. G 1 R G A história da gênese e do desenvolvimento da filosofia alemã clássica constitui um problema importante, ainda não totalmente esclarecido, da história marxista da filosofia. Não obstante os clássicos do marxismo terem apontado reiteradamente para a importância extraordinária dessa questão, não obstante Engels ter incluído Kant, Fichte e Hegel no rol dos ancestrais da filosofia do movimento revolucionário dos trabalhadores, não obstante Marx, Engels e Lenin, em diversos trabalhos bastante profundos, terem lançado uma luz bem intensa sobre as questões centrais desse complexo, ainda falta muito para dar por terminada a elaboração dessa história. Nem chegamos a uma aclaração histórica concreta das problemáticas, a uma análise concreta dos fatos e dos textos disponíveis, a uma crítica radical das principais teorias burguesas falsas e equivocadas presentes nesse desenvolvimento. A interpretação do surgimento histórico e do desenvolvimento da filosofia alemã clássica foi determinada por muito tempo, na ciência burguesa, pela concepção genial, embora idealisticamente desfigurada e esquematizada em muitos aspectos, do próprio Hegel. A ideia histórica genial de Hegel consiste na constatação da conexão interior, dialética, entre os sistemas filosóficos. S GYÖRGY LUKÁCS 119 21/10/2015 20:58:48 120 M L Á S S I C O C Ele foi o primeiro a alçar a história da filosofia da condição de coletânea de anedotas e biografias, de constatações metafísicas a respeito da correção ou da falsidade das visões individuais de filósofos individuais, às alturas de uma ciência histórica efetiva. Em relação à história da filosofia alemã clássica, essa concepção significa o seguinte: Hegel identifica na “filosofia transcendental”, ou seja, na filosofia “crítica” de Kant, o ponto de partida da ascensão da filosofia dialética do idealismo, cuja culminação e finalização ele considera, com toda razão, seu próprio sistema, e com grande perspicácia e profunda capacidade de penetração nos problemas mais importantes da dialética (a coisa em si e sua cognoscibilidade, a antinomia e a teoria da contradição etc.) demonstra como das contradições e das ambiguidades do sistema kantiano se originou a problemática central de Fichte e como as contradições e as questões não resolvidas por este impeliram para Schelling e, em seguida, até ele próprio. Há muita coisa verdadeira nisso tudo e também muita coisa importante para a história marxista da filosofia. Porém, ao ver, na condição de idealista objetivo, a filosofia como automovimento do conceito, Hegel é forçado a colocar, também nesse ponto, as interconexões de cabeça para baixo. Engels mostra reiteradamente que os sistemas filosóficos individuais partem diretamente dos problemas não resolvidos de seus predecessores, mas, na condição de dialético materialista, ele demonstra repetidamente que essa interconexão puramente filosófica representa só a superfície da interconexão real, que a história da filosofia precisa descer até as razões objetivas, de origem profunda, reais, do desenvolvimento da filosofia. Quando o modo de manifestação imediato da história da filosofia é absolutizado idealisticamente como sequência “imanente” de sistemas filosóficos individuais que assume o caráter de “história dos problemas”, como ocorre com o próprio Hegel, isso leva o fundo de verdade presente na constatação de tais interconexões a se manifestar de forma desfigurada, exagerada. A consequência disso já para Hegel é que o caráter irregular e intrincado da história real da filosofia inclusive desse período tenha de ser negligenciado e que os reflexos, na realidade bastante complexos, dos processos reais da história, bem como as tentativas científicas de apreender dialeticamente os resultados do desenvolvimento da ciência natural, sejam reduzidos à interconexão “imanente” de algumas categorias – muito importantes, sem dúvida. Por essa via, surge um esquema de apreensão das interconexões histórico-filosóficas, que, no decorrer do declínio posterior da filosofia Margem 25 Final.indd 120 A R G E M E S Q U E R D A 25 21/10/2015 20:58:48 O Margem 25 Final.indd 121 J O V E M H E G E L S C Á K U L Y G R Ö Y G burguesa, levou a distorções e deturpações da história que nada tinham de científico. No período da Segunda Internacional, essa concepção da história esquematicamente “imanente” da filosofia acaba penetrando também na concepção de marxistas como Plekhanov e Mehring. As concepções histórico-filosóficas do idealismo mencheviquizador são fortemente influenciadas pelos erros e pelas debilidades da concepção hegeliana da história da filosofia. Só mediante a superação desses erros, só mediante o conhecimento do progresso filosófico representado pelo período leninista-stalinista do marxismo, só mediante o estudo principalmente das obras filosóficas de Lenin, conseguimos obter as condições para assumir um posicionamento coerentemente marxista-leninista também em relação a esses problemas. Nessa história da filosofia alemã clássica, nesse estudo crítico de seu desenvolvimento, as obras de Marx e Engels recém-descobertas e publicadas nas últimas décadas também desempenham um papel decisivo. Na filosofia burguesa, a concepção hegeliana da história da filosofia não dura muito depois da derrota da revolução burguesa em 1848. Já antes desse período, entraram em cena muitas concepções hostis à verdadeira história, situadas muito abaixo do nível de Hegel. A principal dessas concepções aistóricas, a de Arthur Schopenhauer, começou a exercer influência sobre círculos mais amplos só depois da Revolução de 1848. A ideia básica de Schopenhauer consiste em considerar como uma grande deviação as tentativas empreendidas por Fichte, Schelling e Hegel de superar as contradições de Kant. Segundo Schopenhauer, a filosofia deve retornar ao único método correto, o de Kant; tudo o mais não passaria de enganação, papo-furado, charlatanice. Portanto, Schopenhauer liquida, por um lado, todo o desenvolvimento dialético da filosofia alemã clássica e exige um retorno à concepção metafísica da realidade. Por outro lado, ele “depura” o próprio Kant de todas as oscilações na direção do materialismo, reduzindo Kant e Berkeley a um denominador comum. (Em alguns aspectos, situa-se nessa mesma linha a influência de Herbart, que de resto é de outra natureza.) Essa concepção, que no fundo representa uma anulação completa da história da filosofia alemã clássica, aparece nos neokantianos posteriores de forma ainda mais tacanha. O exemplo mais evidente disso pode ser visto nas obras de Otto Liebmann (Kant und die Epigonen [Kant e os epígonos], de 1865, etc.). Liebmann confere a supremacia filosófica ao neokantismo alemão que transforma Kant num filósofo cem por cento subjetivista e agnóstico, que rejeita como “metafísica 121 21/10/2015 20:58:48 122 M L Á S S I C O C não científica” toda busca por conhecer a realidade objetiva como ela é, independentemente da consciência. Desse modo, é desenvolvida no neokantismo, de forma coerente, mais prosaico e sem os xingamentos pitorescos de Schopenhauer, a linha schopenhaueriana da história da filosofia, a saber, a concepção da filosofia pós-kantiana como uma grande deviação da linha subjetivista de Kant, a única correta. Hegel é tratado como “cachorro morto”. Essa concepção determina a maioria das exposições da história da filosofia alemã clássica, especialmente a de Hegel, escritas em meados do século XIX. No entanto, existem nesse período alguns resquícios do hegelianismo liberal-nacionalista raso. Sua concepção ganha expressão nas conhecidas histórias da filosofia de Kuno Fischer e J. E. Erdmann. Contudo, o escrito mais importante publicado nesse período sobre Hegel, o de Rudolf Haym, no fundo não passa de um grande panfleto contra a “não cientificidade” do objetivismo e da dialética em Hegel. Só no período imperialista seria retomado o estudo da filosofia alemã clássica. O neokantismo liberal satisfaz cada vez menos as necessidades ideológicas da burguesia imperialista da Alemanha. Surgem tendências cada vez mais fortes que, mesmo deixando intocados os fundamentos agnósticos do neokantismo, buscam uma renovação reacionária do idealismo objetivo (renovação do romantismo, “filosofia da vida”, “fenomenologia” husserliana, “psicologia realista” de Dilthey etc.). Em íntimo contato com essas correntes reacionárias, ocorre uma renovação da filosofia alemã clássica, em primeira linha da de Hegel, e, em estreita conexão com ela, é levantado o problema de sua história, com a tendência de ir além tanto do esquematismo dos hegelianos tardios quanto de sua rejeição completa por parte dos neokantianos ortodoxos. A “renascença” da filosofia clássica no período imperialista não é, por conseguinte, uma renovação nem um aprofundamento da dialética hegeliana, não é nenhuma concretização do historicismo hegeliano, mas uma tentativa de colocar a filosofia hegeliana a serviço da reconstrução reacionária imperialista do neokantismo. Por essa razão, a polêmica dos teóricos e dos historiadores dos primórdios do neo-hegelianismo voltou-se principalmente contra os argumentos do período em que Hegel foi desacreditado, os quais contrapuseram Kant e Hegel de modo excludente. O neo-hegelianismo imperialista ignora completamente a crítica profunda e aniquiladora que Hegel fez do subjetivismo e do agnosticismo kantianos. Sua tese fundamental é esta: a unidade da filosofia alemã clássica, sobretudo a unidade de Kant e Hegel. Todos esses filósofos (Windelband, J. Ebbinghaus, Margem 25 Final.indd 122 A R G E M E S Q U E R D A 25 21/10/2015 20:58:48 O Margem 25 Final.indd 123 J O V E M H E G E L S C Á K U L Y G R Ö Y G Brunstäd etc.) empenham-se em provar que todos os problemas da filosofia de Hegel já estariam presentes em Kant, que Hegel teria apenas tornado consciente e explícito o que em Kant já existia de modo inconsciente e implícito. Assim, surge uma concepção da história que só aparentemente constitui uma reiteração e uma renovação do esquema hegeliano do desenvolvimento da filosofia alemã clássica, uma concepção que contém uma versão intensificada de todos os erros idealistas e dos erros decorrentes da construção esquemática. Na realidade, porém, essa concepção é totalmente contrária à de Hegel. O próprio Hegel criticou duramente todos os seus predecessores pelos erros em que ficavam aquém do ponto de vista do idealismo objetivo e da dialética; ao mesmo tempo, ressaltou enfaticamente os traços em que havia pontos de partida de formulação e solução dos problemas dialéticos, submetendo-os à apreciação de sua importância histórica; os neo-hegelianos imperialistas, em contrapartida, tomaram o caminho inverso. Eles derivam Hegel de Kant, isto é, eles reconhecem em Hegel somente aquilo que pode ser coadunado sem esforço com o agnosticismo kantiano. Eles rebaixam toda a história do desenvolvimento da filosofia alemã clássica a um nível kantiano. Essa tendência pode ser vista com clareza no neo-hegelianismo do período pós-guerra – que opera de muitas maneiras com outros motivos ainda mais abertamente reacionários. Hermann Glockner, o editor responsável pela nova edição das obras de Hegel, um dos líderes do neo-hegelianismo do pós-guerra, disse isto no primeiro congresso sobre Hegel: “A questão hegeliana é hoje, na Alemanha, em primeira linha, uma questão kantiana”. Só podemos apontar aqui sucintamente para os fundamentos gerais de cunho classista e os bastidores políticos dessa mudança da concepção de Hegel. Um cotejo é capaz de lançar luz sobre essa situação modificada. Quando Haym, na época, combateu o objetivismo e a dialética da filosofia de Hegel, a principal tendência que o levou a fazer isso era liberal, ainda que já pendesse para o liberalismo nacionalista. Em todo caso, ele rejeitou como reacionárias as ideias de Hegel, ignorando totalmente seu caráter dialético, e, ao fazer isso, pensou que a eliminação da filosofia de Hegel facilitaria a formação de uma ideologia liberal. Em contraposição, para o conhecido historiador do período imperialista, Friedrich Meinecke, estreitamente ligado aos neokantianos do sudoeste da Alemanha (Windelband, Rickert), a filosofia hegeliana é uma precursora da política e da concepção de Estado bismarckianas. A renovação do hegelianismo está, portanto, estreitamente ligada ao 123 21/10/2015 20:58:49 124 M L Á S S I C O C fato de já terem se extinguido por completo no seio da burguesia alemã as resistências contra a forma bismarckiana da fundação do império, contra o caráter reacionário pseudoconstitucionalista da constituição alemã, resistências que na época de Haym ainda estavam vivas e ativas, mesmo que com a vacilação e a inconsequência próprias dos liberais. A intenção do neo-hegelianismo é promover ideologicamente a visão de mundo de uma “reconciliação” completa, positiva e concreta com a forma de Estado chamada Alemanha. Está claro, portanto, que, para isso, ocuparão o primeiro plano justamente os motivos reacionários do pensamento filosófico de Hegel em todos os aspectos. Mas é óbvio que esses motivos reacionários do pensamento hegeliano não provêm só do âmbito histórico-político imediato. Os neo-hegelianos de que tratamos até agora almejaram uma ampliação e uma modernização do neokantismo, expandindo sua esfera de validade para toda a história da filosofia alemã clássica. Isso nem de longe satisfez todas as necessidades ideológicas reacionárias do período imperialista. Já falamos da importância crescente das correntes irracionalistas, “da filosofia vitalista”. A grande popularidade da forma dilthiana de renovação do hegelianismo está associada ao fato de que nela a dialética hegeliana foi falsificada no sentido da recepção filosófica do irracionalismo. Nesse aspecto, a monografia de Dilthey sobre o jovem Hegel (1906) representou uma reviravolta na concepção alemã de Hegel. Nesse tocante, o essencial do ponto de vista da história da filosofia é que Dilthey vem ao encontro das tendências reacionárias imperialistas de renovação do romantismo pelo fato de situar Hegel no contexto mais próximo possível do romantismo filosófico – desconsiderando ou distorcendo os fatos históricos mais importantes. O neo-hegelianismo do período pós-guerra trilha essencialmente os caminhos sinalizados por Dilthey, embora aproveite os resultados filosóficos das demais correntes do neo-hegelianismo. Em seu livro Von Kant zu Hegel [De Kant a Hegel], decisivo para a fase posterior de desenvolvimento do neo-hegelianismo, Richard Kroner diz o seguinte: “A dialética é o irracionalismo transformado em método, o irracionalismo racionalizado”. E a aspiração geral desses neo-hegelianos – como nas falas de Kroner, Glockner etc. em diversos congressos sobre Hegel – é efetuar, com o auxílio da “reconciliação” hegeliana e a aparente aplicação do método hegeliano da história da filosofia, uma “síntese” de todas as correntes filosóficas atuais em seu tempo (incluindo a do fascismo). Não é por acaso que no início de todo esse desenvolvimento se encontra a monografia de Dilthey sobre Hegel, que tem o jovem Margem 25 Final.indd 124 A R G E M E S Q U E R D A 25 21/10/2015 20:58:49 S C G Y Ö R G Y L U K Á Hegel como tema central. O autor supôs descobrir nos períodos de transição do desenvolvimento de Hegel, nos momentos de crise dessa transição, certos motivos de seu pensamento que julgou aproveitáveis para realizar uma interpretação místico-irracionalista da filosofia de Hegel. Muito tempo antes disso, ele já havia falsificado de modo correspondente a figura de Hölderlin, amigo de juventude e companheiro de Hegel exatamente nesse período. (Fiz uma crítica detalhada dessa falsificação reacionária de Hölderlin em meu tratado sobre seu Hyperion intitulado Goethe und seine Zeit [Goethe e sua época] [Berlim, Aufbau-Verlag, 1950]). A concepção irracionalista que Dilthey tem da filosofia de Hegel introduz retroativamente na interpretação de Hegel certas tendências da dissolução alemã do hegelianismo. Em seu período tardio, o famoso esteticista hegeliano F. T. Vischer voltou-se contra suas próprias origens hegelianas e contrapôs à dialética hegeliana uma teoria mítica irracionalista. Dilthey então introduziu essa teoria retroativamente na interpretação da filosofia de Hegel. (Sobre essas interconexões, confira meu ensaio “Karl Marx und Friedrich Theodor Vischer”, no livro Beiträge zur Geschichte der Ästhetik [Contribuições à história da estética] [Berlim, Aufbau-Verlag, 1953]). A concepção diltheyana de Hegel tornou-se – como vimos – determinante para o desenvolvimento posterior do neo-hegelianismo. Isso levou a figura do jovem Hegel, que para Kuno Fischer ou Haym desempenha um papel episódico, a ocupar cada vez mais o centro do interesse da pesquisa sobre o hegelianismo. De modo cada vez mais enfático, os esboços e as anotações de Hegel, que em geral não eram destinados à publicação, passaram a ser interpretados de maneira que pudesse surgir o vulto de um filósofo “autenticamente alemão”, isto é, irracionalista-místico, conveniente ao fascismo. O ponto alto desse desenvolvimento é representado pela monografia de T. Haering sobre Hegel (volume 1, 1929). O Margem 25 Final.indd 125 J O V E M H E G E L 125 21/10/2015 20:58:49 e n s a i o s m a r x i s t a s 25 Comitê de redação deste número Alysson Leandro Mascaro • Flávio Aguiar • Ivana Jinkings • Luiz Bernardo Pericas • Marco Aurélio Santana • Paulo Barsotti • Sergio Romagnolo Conselho editorial Afrânio Mendes Catani • Boaventura de Sousa Santos • Carlos Nelson Coutinho (in memoriam) • Emília Viotti da Costa • Emir Sader • Francisco de Oliveira • Heloísa Fernandes • István Mészáros • Jacob Gorender (in memoriam) • João Alexandre Peschanski • José Paulo Netto • Leandro Konder (in memoriam) • Maria Lygia Quartim de Moraes • Maria Orlanda Pinassi • Michael Löwy • Miguel Urbano Rodrigues • Paulo Arantes • Ricardo Antunes • Roberto Schwarz • Slavoj Žižek Conselho de colaboradores Alexandre Linares • Angélica Lovatto • Antonino Infranca • Antonio Carlos Mazzeo • Antônio Ozaí da Silva • Antonio Rago • Artur Renzo • Bibiana Leme • Caio Antunes • Canrobert Costa Neto • Carla Ferreira • Carlos Eduardo Martins • Carlos Serrano Ferreira • Clarisse Castilhos • Claudia Mazzei Nogueira • Edilson Graciolli • Fabio Mascaro Querido • Fernando Coltro Antunes • Fernando Marcelino • Gaudêncio Frigotto • Geraldo Augusto Pinto • Gilberto Maringoni • Henrique Amorim • Isabella Jinkings • Isabella Marcatti • Isleide Fontenelle • Jair Pinheiro • Jesus Ranieri • João dos Reis Silva Jr. • João Sette Whitaker • Jorge Grespan • José Luís Fiori • Kim Doria • Liliana Segnini • Lincoln Secco • Luciano Vasapollo • Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida • Marcelo Ridenti • Maria Lúcia Barroco • Mario Duayer • Mathias Luce • Milton Pinheiro • Nélio Schneider • Otília Arantes • Paula Marcelino • Paulo Denisar Fraga • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Roberto Leher • Rodrigo Castelo • Ronaldo Gaspar • Ruy Braga • Silvio Almeida • Sofia Manzano • Thaisa Burani • Virgínia Fontes • Wolfgang Leo Maar contato: [email protected] Margem 25 Final.indd 5 21/10/2015 20:58:44