Versão integral disponível em digitalis.uc.pt Mundus Novus, Novus Homo. Cartografias do imaginário e do Outro no Novo Mundo (séc. XVI-XVII) Luís Manuel Neves Costa Universidade de Coimbra – Faculdade de Ciências e Tecnologia Departamento de Ciências da Vida / Antropologia CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia Doutorando em Antropologia (especialidade de Antropologia Social e Cultural) [email protected] Texto recebido em /Text submitted on: 08/02/2013 Texto aprovado em /Text approved on: 06/10/2013 Resumo/Abstract: O Novo Mundo foi imaginado e interpretado com base em referenciais clássicos e medievais. O imaginário foi o primeiro elemento organizador e condutor para a apreensão e compreensão da nova realidade encontrada. A descoberta da América foi interpretada inicialmente como a descoberta da Utopia dos pensadores do séc. XVI, o novo espaço no qual seria possível localizar os projectos dos humanistas e renascentistas. O novo espaço já era povoado por homens com traços de monstruosidade, segundo as descrições dos primeiros exploradores e cronistas e as representações da iconografia da época. Entre os autores eruditos foi profundamente debatida a problemática da origem e da natureza do outro – o “índio do ocidente”. Toda a argumentação, assente fundamentalmente em bases teológicas e bíblicas, chegou a ser mobilizada tendo em vista proveitos políticos e estratégicos para a coroa espanhola. Este artigo aborda a construção e o entendimento do Outro, num entrecruzamento entre a Antropologia e a História. The New World was imagined and interpreted based on classical and medieval references. The imaginary was the first organizing element and the driver for the understanding and comprehension of the newly found reality. The discovery of America was initially interpreted as the discovery of the Utopia for the 16th Century thinkers, a new space where it would be possible to find renaissance and humanism projects. This new space was already inhabited by men with traits of monstrosity, according to the descriptions of the early explorers and chroniclers and the representations of the iconography of the time. Among scholars, the origin and nature of the other – the “Indian of the West” – is deeply debated. This debate, primarily based on theological and biblical bases, was mobilized in order that the Spanish crown would profit politically and strategically. This article discusses the construction and understanding of the Other, a crossing between Anthropology and History. Palavras chave/Keywords: Novo Mundo; América; Imaginário; Monstrificação do Outro. New World; America; Imaginary; The Other as a monstrosity. Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013) 205-229. ISSN: 1645-2259 Versão integral disponível em digitalis.uc.pt 206 Luís Manuel Neves Costa Introdução Chegar ao Novo Mundo foi um acaso. Cristóvão Colombo traçou um plano para atingir a Ásia, concretizando-o a 12 de Outubro de 1492. O navegador manteve-se convencido desse feito durante toda a sua vida, devido ao conhecimento inexistente na Europa sobre as costas Asiáticas. Em 1506, a designação de Novo Mundo é a que melhor caracteriza as terras que se vão desvendando e desbravando. A primeira ideia de América construiu-se com a intensidade das imagens que precederam o seu encontro. Os espaços da invenção convergiram desde múltiplos pontos. O Novo Mundo, espaço incógnito para Espanha, emergiu como um território sobre o qual foram lançados diversos olhares, que oscilaram entre o mítico e o fantástico. A noção de “Novo Mundo” como um espaço simbólico e conceptual e não, simplesmente, físico e territorial. A visão renascentista de paraíso terrestre foi materializada na América, fruto de toda a construção cultural que vinha desde a Antiguidade Clássica e atravessou a época medieval. A América emergia, então, como a desejada Utopia. Para os primeiros conquistadores e colonizadores, o modo de referen­ ciar toda a novidade encontrada foi descrevê-la e relatá-la com base na analogia com o mundo até então conhecido. Quem descreve e conta algo, fá-lo desde a sua linguagem, com as suas palavras tendo por base um quadro conceptual. Ao descreverem o que encontraram, fizeram-no partindo da esfera dos seus saberes e da sua cultura, tendo, portanto, como ponto de partida para revelar o Novo Mundo, a experiência construída e acumu­ lada no Velho Mundo. Os padrões de vida europeus (religiosos, sociais, culturais) marcaram e condicionaram o entendimento de quem aportou nos novos territórios. O imaginário europeu viajou até além-mar, promovendo a invenção de um novo mundo. A descoberta do Quarto Continente é subsequente à sua invenção, quando o europeu levantou novas questões e constatou que o seu conhecimento era desadequado, promovendo a experiência e a exploração racional do mundo. A fantasia, o fantástico, o maravilhoso cederam lugar à descoberta, à exploração, ao conhecimento. A Viagem marcava o nascimento da Modernidade. Versão integral disponível em digitalis.uc.pt