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Evidências de restauro dentário nos finais do século XIX/princípios do
século XX em Portugal
Luís Miguel Marado e Ana Maria Silva
Introdução
Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Departamento de Ciências da Vida da
Universidade de Coimbra,
3000-056 Coimbra (Portugal) ([email protected]; [email protected])
As primeiras evidências de tratamento dentário surgem na pré-história, no Neolítico Inicial (7500 a 9000 anos B.P.), traduzidos na forma de perfurações detectadas em nove molares exumados no Paquistão (Coppa et
al., 2006). Evidências de cuidados dentários foram descritas para sociedades proto-históricas não-ocidentalizadas, como nativos americanos (século XVIII e inícios do século XIX), onde o uso de perfuração dentária
tinha como objectivo o tratamento de patologias periapicais (através da drenagem de fluidos para alívio da dor) (Seidel et al., 2005). Já em período histórico, a terapêutica dentária aumenta de frequência, com o
surgimento de próteses dentárias, restauro dentário, remoção de dentes ou tratamento de abcessos, devido à progressiva alteração das dietas e o consequente aumento na frequência de patologias orais (Mower, 1999;
Bernard et al., 2009).
Os restauros dentários eram preparados através da remoção do tecido patológico, escavação das margens, preparação do dente para o preenchimento, colocado camada a camada e suavizado com uma lima ou outros
utensílios (Wols e Baker, 2004). O preenchimento destina-se a conservar a integridade e funcionalidade do dente, facilitando a mastigação do paciente (Bernard et al., 2009). A obra do dentista francês Pierre Fauchard,
considerado o “pai da medicina dentária moderna”, relata o uso de ouro, chumbo e estanho no restauro de dentes afectados por cáries (Bertrand et al., 2009). A medicina dentária contemporânea à Guerra Civil
Americana (1861-65) recomendava folha de ouro como melhor material a aplicar no restauro dentário, e a folha de estanho como material menos dispendioso a usar. Para preenchimento temporário recomendava-se o
uso da planta Palaquium ou de “Hill’s stopping”, uma mistura com Palaquium, cal, quartzo e feldspato (Glenner et al., 1996). O uso de chumbo ou de uma amálgama composta por prata, estanho e mercúrio não era
promovido por razões estéticas e da saúde do paciente, mas o seu baixo custo motivava o seu uso (Glenner et al., 1996).
O objectivo deste trabalho é a descrição de três possíveis casos de restauro dentário presentes em duas mandíbulas do Museu de História Natural (MHN) da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
Material e métodos
No contexto de um estudo de 163 mandíbulas e respectiva dentição, depositadas no MHN, foram detectados três possíveis casos de
restauro odontológico em molares provenientes de duas mandíbulas de indivíduos adultos (Marado, 2010). Esta amostra inclui
indivíduos que faleceram no Porto entre os finais do século XIX e os inícios do século XX (Santos Júnior, 1969; Marado, 2010).
Na diagnose sexual das mandíbulas foram aplicados os métodos de Giles (1964), Loth e Henneberg (1996, com alterações sugeridas
por Balci et al., 2005), Ferembach et al. (1980) e Buikstra et al. (1994).
Descrição dos casos
Mandíbula
38
(cr?)
32F
(indivíduo
do sexo
masculino; Figura 1)
O segundo molar esquerdo denota uma pequena
perfuração rudemente circular na superfície oclusal,
preenchida até perto desta superfície por uma matéria
escura, aparentemente metálica.
Figura 1 – Segundo molar esquerdo com perfuração e enchimento
(pormenor da mandíbula 38 [cr?] 32F).
Mandíbula F-104-F (indivíduo do sexo feminino; Figura 2)
As coroas dos primeiro e segundo molares direitos estão preenchidos por uma matéria escura, aparentemente metálica. Esta teria sido
introduzida nos molares por perfurações na superfície oclusal, o que não pode ser confirmado devido à destruição evidente nas facetas
lingual, mesial e distal do primeiro molar e lingual do segundo molar. As fracturas sugerem que se trata de destruição post mortem, dado
Figura 2 – Primeiro e segundo molares direitos com enchimento
(pormenor da mandíbula F-104-F).
as arestas da mesma serem aguçadas e irregulares. O preenchimento do primeiro molar terá sido igualmente fracturado post mortem,
enquanto o do segundo molar parece ter-se conservado integralmente, tendo origem oclusal.
Discussão
As descrições de tratamentos dentários em populações do passado são escassas, nomeadamente no século XIX, o que não surpreende porque os tratamentos dentários seriam dispendiosos, logo raros.
O tratamento dentário coevo em Portugal registou-se apenas numa amostra de 600 indivíduos falecidos em Coimbra entre os finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, na qual sinais de restauro dentário se observaram
em 12 indivíduos (Wasterlain et al., 2009). O restauro dentário foi observado na dentição posterior e anterior e nas superfícies oclusais e proximais (Wasterlain et al., 2009). Dois casos relatados por Wasterlain (2006)
assemelham-se aos aqui descritos. A autora identificou o material neles presente como sendo uma amálgama dentária, enchimento que conteria estanho. Num indivíduo exumado em Douai (França) do século XVIII, os
restauros dentários foram observados na superfície oclusal de seis molares, notando-se amálgamas escuras, pequenas, uniformes e bem delimitadas, além de rádio-opacas. A amálgama distinguia-se do material
envolvente por ser composto por estanho, maioritariamente (77% da amálgama). Para identificar o restauro dentário e a folha de estanho usada os autores usaram as técnicas de fluorescência de Raio-X e de difracção de
Raio-X (Bertrand et al., 2009). Outro tipo de preenchimentos de restauro dentário foram descritas em quatro indivíduos do Sul dos Estados Unidos, falecidos em batalha na Guerra Civil Americana. Estes são compostos
por tório (metal radioactivo que se confunde com o estanho), chumbo e tungsténio (uma liga natural), folha de estanho e amálgama de estanho (com mercúrio, silício, alumínio, ferro, cobre e cloro) (Glenner et al.,
1996). Mediante as comparações efectuadas, é possível sugerir que o estanho seria o principal componente do material usado no preenchimento dos restauros dentários encontrados nas mandíbulas do Porto, uma vez que
se trata do enchimento macroscopicamente mais semelhante. O estanho era a alternativa directa ao ouro segundo as práticas de Medicina dentária registadas (vide Introdução), o que corrobora esta possibilidade.
O restauro dentário é um procedimento clínico existente no período a que correspondem as mandíbulas do MHN (conforme atestado por casos coevos ou anteriores na Europa e nos Estados Unidos), ainda que raro. O
tratamento e higiene dentários seriam muito limitados nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX em Portugal, com apenas dois médicos a praticar medicina dentária em 1887, além dos elevados custos que teriam os
tratamentos, acompanhamento, e materiais como as escovas de dentes à época (Wasterlain et al., 2009). As limitações técnicas e de conhecimento etiológico e patológico eram ainda importantes, em procedimentos mais
complexos como o restauro dentário, particularmente (Wasterlain et al., 2009). Alguns tratamentos mais simples, como a extracção dentária, seriam postos em prática por indivíduos sem qualificação, quando necessário
(Wasterlain et al., 2009). A escassez de indivíduos tratados no conjunto de mandíbulas estudadas (2 em 104 mandíbulas [com dentição]: 1,9%; 3 em 404 dentes: 0,8%) tem assim justificação no contexto português.
Síntese final
Ainda que os relatos de reparos terapêuticos na dentição sejam raros, a sua importância no contexto da História da Medicina dentária é inegável. A falta de cuidados paliativos, de formação específica, de médicos
dentistas em suficiente número e de uma democratização de serviços de cirurgia dentária justificam a baixa frequência de indivíduos tratados. A presença de três molares preenchidos com um material desconhecido
permite sugerir a existência de tratamento dentário, sob a forma de restauro, na população do Porto em finais do século XIX a inícios do século XX. A comparação destes casos com outros existentes na literatura
portuguesa e internacional permite sugerir que, conforme aventado pelos manuais coetâneos, o estanho seria o metal predominante em tratamentos perpetrados em pacientes que não se incluíssem nas elites sociais. O
uso de radiografia e de métodos de determinação química dos componentes presentes é recomendado para um estudo mais aprofundado das práticas terapêuticas dentárias das populações do passado e das patologias
dentárias, constituindo um contributo importante para a História da Medicina dentária.
Agradecimentos
CIAS – Centro de Investigação em Antropologia e Saúde; MHN-FCUP – Museu de História Natural da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto; Dra. Maria José Cunha.
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