Cistite Intersticial: Novas Perspectivas Terapêuticas (PDF

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Urologia
Cistite Intersticial:
Novas Perspectivas Terapêuticas
Prof. Dr. Paulo Palma1 • Dr. Arlon Silveira2 • Prof. Dr. Cássio Riccetto3 • Dra. Thaís Palma2
INTRODUÇÃO
Divulgação
A
Prof. Dr. Paulo Palma
cistite intersticial é uma síndrome de etiologia desconhecida de origem multifatorial, tratável, porém raramente curável,
que provoca sintomas no trato urinário inferior,
levando a importante alteração na qualidade de
vida dos pacientes.
Apresenta-se com início insidioso e caráter
progressivo, com agravamento dos sintomas,
que normalmente são episódicos, com períodos
de agudização e remissão.
Descrita por Hunner em 1915, permanece até
recentemente como uma patologia “obscura”,
com predominância entre as mulheres.
Abrange grande parte da síndrome da bexiga
dolorosa, que inclui queixas de polaciúria, urgência miccional, noctúria e dor no hipogástrio e/ou
períneo, não associadas a quadros de infecção
urinária ou outra patologia definida.
Inicialmente é rotulada como cistite recorrente
ou síndrome uretral, nas mulheres, e como prostatite abacteriana nos homens. Por ser idiopática,
o tratamento é empírico. Recentemente grandes
progressos foram feitos, destacando-se o uso de
1 - Professor Titular de Urologia, Unicamp.
2 - Pós-Graduando em Urologia Feminina, Unicamp.
3 - Professor Livre-Docente de Urologia, Unicamp.
Divisão de Urologia Feminina, Unicamp.
114 Prática Hospitalar • Ano XII • Nº 67 • Jan-Fev/2010
ácido hialurônico, não apenas na cistite intersticial,
mas também na cistite bacteriana recorrente.(1-7)
PATOGÊNESE
Acredita-se que mecanismos múltiplos colaborem para o surgimento dos sintomas. Estudos
recentes destacam a teoria da disfunção epitelial
com perda da barreia ”hematourinária”.
O urotélio vesical é revestido de glicosaminoglicanos (GAGs) e glicoproteínas que apresentam
múltiplas funções de proteção, incluindo antiaderência de bactérias e cristalóides, bem como a
regulação da movimentação de íons transepitelial.
O urotélio em condições normais é um dos
epitélios mais impermeáveis do corpo; alterações
nessa superfície podem levar a alterações na
permeabilidade com a penetração de íons (em
particular o potássio), alérgenos, toxinas e bactérias para o interstício da parede vesical, ocorrendo
ativação mastocitária e reação inflamatória com
despolarização dos nervos sensitivos da bexiga,
lesões dos vasos sanguíneos e linfáticos subepiteliais e com a consequente sintomatologia.
Vale a pena lembrar que a concentração de
potássio na urina, que varia de 40 a 140 meq/l,
é potencialmente tóxica para qualquer célula
do organismo.
Outras teorias incluem a inflamatória, deficiência na camada de GAGs, neurológica,
vasculogênica, autoimune e psicossomática.
Figura 2. Critérios do NIDDK
Figura 1. Função das GAG
O urotélio vesical é revestido de glicosaminoglicanos (GAG), funções de
proteção, incluindo a regulação da movimentação de íons transepitelial (fig. 1).
com critérios estabelecidos pelo National
Institutes of Health/National Institute of
Arthritis, Diabetes, Digestive and Kidney
Diseases (NIDDKD) dos EUA (fig. 2).
DIAGNÓSTICO
CLÍNICA
O diagnóstico da cistite intersticial
é essencialmente clínico e de exclusão,
exames complementares podem auxiliar,
como a urodinâmica, a cistoscopia com
biópsia vesical e o teste do potássio.
O uso do diário miccional é útil na
avaliação de frequência, noctúria e na
exclusão da poliúria.
O uso rotineiro de marcadores urinários ainda não está estabelecido, porém
estudos sobre o fator antiproliferativo,
fator de crescimento epidérmico ligado
a heparina e fator de crescimento epidérmico podem se tornar instrumentos
diagnósticos no futuro.
A urocultura é fundamental para descartar infecção bacteriana. A citologia
urinária pode ser solicitada para excluir
presença de neoplasia, na vigência de
hematúria ou fatores de risco.
O exame físico deve excluir a presença de massas pélvicas ou cistocele que
justificariam sintomas vesicais. Deve-se
excluir outras patologias, como cistite medicamentosa, bexiga hiperativa, obstrução
uretral, vaginites, uretrites, entre outras
que possam provocar sintomas similares
à cistite intersticial.
O diagnóstico tem sido feito de acordo
Os sintomas característicos incluem
sintomas irritativos, como noctúria,
frequência e urgência miccionais acompanhadas de dor vesical, que frequentemente é aliviada após a micção ou
esporadicamente após uso de analgesia. A dor pode ser relatada em região
inguinal, suprapúbica, no períneo, vulva
ou vagina na mulher, e pênis, testículos,
reto ou escroto no homem. Esses sintomas podem ser exacerbados no período
pré-menstrual, ingestão de bebidas ou
alimentos ácidos, café, álcool, chocolate
e alimentos condimentados.
Teste do Potássio
É um teste de fácil realização e de
grande utilidade para o diagnóstico da
cistite intersticial e baseia-se na avaliação
da permeabilidade do epitélio vesical ao
potássio, que se presente leva à despolarização das terminações nervosas e/ou
lesão muscular, causando os sintomas de
urgência e dor.
Segundo estudos clínicos, o teste é
positivo em quase 80% dos pacientes com
diagnóstico clínico de CI e é extremamente
raro em pacientes normais (menos de
3%). O teste do potássio também pode
ser utilizado como preditor de resposta ao
tratamento da cistite intersticial.
Cistoscopia
Deve ser realizada sob anestesia, pois
costuma ser dolorosa para esses pacientes. Além de ser útil para o diagnóstico
também é utilizada para hidrodistensão
como uma das opções de tratamento. A
hidrodistensão é realizada com uma coluna
de 80 cm de H2O de solução fisiológica
por cerca de 15 min. Após o processo, a
bexiga é esvaziada, enchida novamente e
reexaminada à procura de glomerulação
(hemorragia petequial difusa da mucosa
vesical), que é bastante sugestiva de cistite
intersticial ou úlceras de Hunner, que é a
forma clássica de CI, porém encontrada
em menos de 5% dos casos.
A biópsia vesical é indicada apenas
se for necessário descartar outras patologias, sugeridas pela cistoscopia, ou para
excluir carcinoma in situ. A presença de
mastócitos no material da biópsia não é
patognomônica, porém é sugestiva de
cistite intersticial e sua ausência não exclui
seu diagnóstico (fig. 3)
A cistoscopia pode evidenciar úlcera
de Hunner (imagem inferior) ou glomerulações (imagem superior).
Urodinâmica
É um exame bastante útil na investigação, já que uma cistometria normal
praticamente afasta a possibilidade de
cistite intersticial. O achado característico
Prática Hospitalar • Ano XII • Nº 67 • Jan-Fev/2010 115
Figura 3. Cistoscopia
Figura 4. Terapia multimodal da cistite intersticial
hialurônico), ou por via oral (polissulfato
de pentosano sódico-PPS), restabelecem
a camada de muco que recobre o urotélio.
A via oral, entretanto, mostrou-se igual ao
placebo, não sendo mais recomendada.
O ácido hialurônico (hialuronato de
sódio) é um GAG empregado por via
intravesical cujos bons resultados foram
TRATAMENTO
confirmados por vários trabalhos.
A nossa experiência advém de um esO principal objetivo do tratamento é
tudo prospectivo, randomizado e controlaneutralizar os fatores etiológicos. Por ainda
do com placebo, que incluiu 20 pacientes
não ter etiologia definida, o tratamento é
com diagnóstico de CI. O protocolo incluiu
empírico e individualizado. O paciente deve
o estudo urodinâmico sensibilizado por
estar ciente de que o objetivo é o alívio dos
KCL, que mostrou melhora significativa
sintomas, que não existe um tratamento
Controle da Disfunção Epitelial
da capacidade cistométrica, que passou
curativo específico e que a doença tende
É representado pelas drogas citoprode 200 ml para 420 ml (gráfico 1). Além
a tornar-se crônica, com períodos de exatetoras, com o objetivo de reverter a evodisso, houve melhora dos sintomas de
cerbações e remissões.
lução da doença e corrigir a fisiopatologia
dor de acordo com o questionário “Pelvic
Alguns pacientes obtêm melhora com
de base. Administrados por via intravesical
Pain and Urgency/Frequency” (PUF-Q),
uso de monoterapia e aqueles com doença
(heparina, sulfato de condroitina e ácido
com consequente melhora na qualidade
severa necessitam de terapia multimodal,
de vida após tratamento
que pode incluir mediações,
Gráfico
1.
Capacidade
cistométrica
pré
e
pós.
com instilações intravesitratamento comportamental e
cais de acido hialurônico
procedimentos cirúrgicos.
Ácido Hialurônico
600
semanalmente por oito
O tratamento atual baseiasemanas (gráfico 2).
se em três princípios: controle
500
V
Em outro estudo prosda disfunção epitelial, conO
400
pectivo
com 20 pacientes
trole da hiperatividade neural
L
U
portadoras de cistite ine bloqueio da degranulação
300
M
tersticial, houve melhomastocitária.
200
E
ra significativa da dor e
A doença severa pode
(ml)
redução da frequência
necessitar de terapia multi100
urinária após receberem
modal, incluindo mediações,
0
instilações semanais por
tratamento comportamental
PACIENTES
um mês e após mensais
e procedimentos cirúrgicos
NACL PRE CYSTISTAT
NACL POS CYSTISTAT
por mais dois meses.
(fig. 4).
é a urgência sensitiva, que normalmente
ocorre com pequeno enchimento vesical
(antes da infusão de 150 ml de solução
fisiológica). A capacidade cistométrica máxima encontra-se reduzida em decorrência
da hipersensibilidade vesical.
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O paciente deve estar
ciente de que o objetivo
é o alívio dos sintomas,
que não existe um
tratamento curativo
específico e que a
doença tende a
tornar-se crônica
Urologia
Bloqueio da Degranulação
Estudos experimentais
Gráfico 2. Dor pélvica
Mastocitária
demonstraram que o uso
Urgência e frequência
O anti-histamínico mais
de hialuronato de sódio inutilizado é a hidroxizina, que
travesical restaura a mucosa
35
I 30
tem como objetivo principal
danificada, protegendo conN 25
suprimir a degranulação dos
tra microrganismos e outros
D
20
mastócitos em pacientes
agentes na urina.
I
C 15
com história de alergia.
O policitrato de potásE 10
sio, que é um alcalinizante
5
Outros Tratamentos
urinário, é um quelante do
0
Destacam-se também
potássio urinário e tem pro1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
as técnicas citodestrutivas
priedade de alcalinizar a
PACIENTES
com o objetivo de destruição
urina, efeito que parece ser
do urotélio e regeneração
benéfico nesses pacientes,
puf pre CYSTISTAT
PUF PLACEBO
PUF POS CYSTISTAT
de toda a superfície vesical,
podendo ser usado isoladacom melhora na função de impermeabilimente ou associado a outras drogas orais
da serotonina (ISRS), como a fluoxetina ou
dade. São representadas pela instilação inou a terapia intravesical.
a sertralina, quer como monoterapia, quer
travesical de DMSO (dimetil-sulfóxido), que
como tratamento adjuvante, e os médicos
é um solvente orgânico com propriedades
Controle da Hiperatividade Neural
devem ser muito claros e assertivos ao
anti-inflamatórias, pela hidrodistensão vesiPara reversão da ativação neural podeprescreverem tais drogas, desfazendo
cal com solução fisiológica de NaCl 0,9%
se usar antidepressivos como a amitriptilipreconceitos que acompanham estas
e pelo uso do bacilo de Calmette-Guérin
na e os inibidores seletivos de recaptação
pacientes.
(BCG) intravesical.
Tabela 1. Cistite Intersticial: tratamento clínico
Analgésicos opióides de curta duração
Droga
Via de administração e dose
Categoria
podem ser necessários em pacientes com
Drogas
dor crônica e intratável.
Ácido hialurônico
Instilação vesical
Proteoglicanos
Citoprotetoras
O uso de anticolinérgicos (oxibutinina e
Amitriptilina
VO, 25 a 75 mg / dia
Antidepressivos
tolterodina) com a finalidade de aumentar
Toxina botulínica
Injeção parede detrusora
a capacidade vesical, sendo úteis quando
Drogas
Policitrato de potássio
VO, 20 a 30 mEq / dia
Alcalinizantes
predominam a urgência e a polaciúria.
Neurotrópicas
Hidroxizina
VO, 25 a 75 mg / dia
Anti-histamínicos
Outras formas de tratamento farmacológico via oral podem ser utilizadas,
Pentosan polissulfato
VO, 300 mg/dia
Proteoglicanos
como bioflavonoides, gabapentina, fator
Dimetil-sulfóxido 50 %
Instilação vesical
Solventes
Técnicas
de crescimento de nervo humano recomCitodestrutivas BCG
Instilação vesical
binante (NGF), bloqueadores de canais de
VO: via oral; IV: instilação vesical - IV: Instilação vesical
cálcio, montelucaste e cimetidina, porém
Tabela 2. Cistite intersticial – graus de recomendação dos principais tratamentos
mais estudos necessitam ser feitos para
Droga
Grau Recomendação*
Eficácia
Via
comprovar seus benefícios.
Muitos pacientes podem apresentar
DMSO
B
70%
intravesical
melhora clínica com a restrição dietética de
Amitriptilina
B
42%
oral
alguns elementos, principalmente os ricos
Ciclosporina
C
92%
oral
em potássio, tais como frutas cítricas, toLidocaína
C
65%
intravesical
mate, chocolate e café, além de alimentos
BCG
C
60%
intravesical
condimentados, referidos por alguns como
Nifedipina
D
90%
oral
agravantes dos sintomas.
Ác. hialurônico
D
60%
intravesical
A terapia comportamental também
Toxina botulínica
D
50%
intravesical
pode ser adicionada aos regimes de traHidroxizina
D
31%
oral
tamento, de forma adjuvante e pode incluir
Pentosan polissulfato
-C
33%
oral
terapia de relaxamento miofascial ou bio* Segundo a International Continence Society – International consultation on Incontinence, 2005.
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Urologia
feedback diretamente no assoalho pélvico
e, ainda, a neuromodulação periférica, por
estimulação unilateral do nervo sacral S3
ou pela estimulação transcutânea do nervo
tibial posterior.
O tratamento cirúrgico corresponde
a tratamento de exceção e deve ser
empregado após criteriosa avaliação
psicológica, quando todas as alternativas descritas anteriormente falharam.
Para pacientes com capacidade vesical
diminuída, recomendam-se cistoplastias
supratrigonais de aumento. Entretanto,
para pacientes em que a terapia e cirurgias mais conservadoras tenham falhado,
deve ser considerada a realização de
cistectomia total com derivação urinária
ortotópica (tabela 1).
A tabela 2 mostra o grau de recomendação e eficácia de alternativas de
tratamentos para CI. As recomendações
negativas significam que não há nenhuma
indicação para o uso clínico. t
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Endereço para correspondência:
Hospital das Clínicas da Unicamp. Rua Vital
Brasil, 251 - CEP 13084-882 - Campinas - SP.
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