O Pathos e a Ação Clínica na Instituição Hospitalar Érico Lemos de Souza Isabella Martins Leite Venho desenvolver essa comunicação no intuito de compartilhar algumas reflexões possíveis sobre questões essenciais ao humano, que emergem da inserção de um Serviço de Psicologia em um contexto hospitalar. Em muito sendo produzido e muito pouco sendo explorado, acredito que falar do sofrimento e seus destinos dentro da instituição que toma essa questão como paradigma de organização seja um intuito infindável. Adotamos aqui então a marca de falar de um ponto de vista de um saber que se distancia da medicina que funda essa instituição, visando um discurso que não se resuma na carne, mas que dê contorno ao ser que ali está em jogo. Com certeza é pobre dizer um ponto de vista psicológico, mas é em nome dessa disciplina que se dá nossa inserção, levando-se em conta todos os mal-entendidos que aí estão em jogo. Assumindo as conseqüências dessa determinação, sendo este trabalho fruto das reflexões instigadas pela atuação no Serviço de Psicologia da Área Cirúrgica (SPAC) localizado no Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), da Universidade Federal Fluminense (UFF), abrimos espaço para que surja alguma coisa que transborde exatamente essa determinação. Mantenhamos em suspenso as demandas e convocações intrínsecas à disciplina e nos utilizemos de seu intuito de esquadrinhar um funcionamento psíquico, para ouvir o discurso constituído por um ser dotado de, entre outras coisas, um psiquismo. Partimos então de um Serviço de Psicologia que adentra a questão da instituição hospitalar como tal e lá se insere para um trabalho em nome do saber psicológico, encontrando sua especificidade em diversos lugares desse organismo. Portanto, penso aqui algumas conseqüências dos choques entre saber médico e psicológico enquanto ambos se debruçam sobre o mesmo campo, buscando coisas diferentes. Não pretendo fazer um tratado sobre os muitos pormenores dessa relação que hoje já possui bibliografia própria e extensa, transformando a Psicologia Hospitalar numa disciplina específica dentro da Psicologia, mas fazer algumas considerações que trazem luz ao que encontram em comum psicologia e medicina, quando objetivando tratar o humano, sem resumirem a questão ou mesmo darem desfecho definitivo. Utilizo-me do termo grego pathos para designar o caótico campo excessivo que produz os excrementos que o hospital tenta higienizar, me aproveitando da escuta produzida para denunciar a incompetência dessa limpeza, sem que se permita olhar, mesmo que de soslaio, o lugar de onde se produz o excremento. E assim, envolto na sujeira intrínseca ao humano, apontar a pertinência desse dedo investigativo e questionador da atenção ao sujeito na produção dos destinos em jogo. O hospital se apresenta como o campo de excelência do saber médico, um discurso engendrado por questões higiênicas e normatizadoras, balizado pelo ideal da cura. Para recortar do humano seu objeto de estudo, a medicina faz uma cirurgia primordial que arranca do corpo queixoso e sintomático o órgão doente. Dessa forma o saber se funda, com sua proposta de cura específica e sua limitação e campo de atuação, tal qual qualquer outra disciplina. O que no caso específico do saber médico se configura como entrave, como impasse, é a confusão irremediável da complexidade do campo de onde este extrai seu objeto. Em se tratando o órgão doente, este adéqua-se e submete-se às mais diversas intervenções, mas não consegue plenamente atender a demanda imaginária de resumir-se. Mesmo em sendo bem sucedida qualquer medida técnica, o órgão que adoece não tem condições de responder diretamente ao apelo higienista do médico por estar intimamente ligado a diversas outras relações alheias ao saber da medicina. E é nesse momento que a medicina peca num silogismo técnico: para dar conta do que escapa no que ela trata assumidamente de maneira limitada, convoca uma outra técnica paralela a sua, freqüentemente, a da psicologia. Não é necessário muito rebuscamento intelectual para deduzir que outra ciência que de um campo recorte seu objeto, mantém incompleta a abordagem de um campo. A violência que se dá nesse sentido, é a solidez com que se colocam os saberes em questão, não abrindo espaço para a essencial limitação que lhes toca. Nessa carnificina sufocada, as vozes que gritam contra as intempéries de um manejo externo do corpo com que o sujeito tem relação tão intimamente delicada, reverberam nas alvas paredes do hospital, e causam um mal-estar que não encontra continente por ser completamente indesejado, mas sem deixar de produzir suas conseqüências. Pensar em tratar um órgão para que este restabeleça seu funcionamento normal, supondo que o sujeito que ali se trata se resuma ao paciente doente, implica na conseqüência errônea de que o caminho natural para aquele sujeito seria também o do restabelecimento de seu funcionamento normal. Engano crasso que, não encontrando espaço para se expressar, eclode suas manifestações nas brechas da instituição. Do paciente que sabota o tratamento de sua doença, àquele que sempre apresenta novos e inusitados padecimentos, a repressão dessas exclamações se alojam em lugares que intercedem no curso da vida sem possibilidade de dialetização. Citando Mattos (2008): “o grau de desconhecimento da condição de sujeito de seu paciente é diretamente proporcional aos riscos do médico não conseguir alcançar seu objetivo terapêutico, mesmo quando aquele porta uma doença passível de ser bem assistida pela tecnologia médica”. Mas então, o que seria esse material reivindicativo que surge daquele corpo que problematiza uma relação puramente fisiológica? Que objeto problemático e dispersivo é esse que coloca sempre um intervalo intransponível em qualquer delimitação objetiva que se recorte? O que é isso que sempre escapa e não se submete a apreensão das mais variadas disciplinas que se debruçam sobre o emaranhado complexo denominado de humano que reconhecemos num semelhante? Que resposta única essas perguntas pedem, que insiste em não sanar a angústia do não-saber? Calejado pelas frustrações de oferecer uma escuta que nunca ouve um todo, o salto qualitativo introduzido pela psicanálise e aqui aproveitado é exatamente de tirar um pouco o peso dessas indagações, se esquivar um pouco de suas urgências, manter em suspenso a resposta. A psicanálise de Freud, que prima pela escuta, delega ao segundo plano o script do que é escutado, o que Lacan arremata ao debruçar-se ainda mais sobre a questão da falta, propor o objeto a, construir seu legado sempre em torno e nunca centralizadamente. Apostando nessa proposta, não procuro então um objeto que defina a irredutibilidade do humano, mas sim um lugar onde isso possa ser produtivo. Para tal, me utilizo aqui do conceito de pathos, que diz das paixões que movem o homem. O que nos interessa nisso é a característica inegavelmente externa das paixões, por denunciarem um movimento do qual o sujeito é vítima, que lhe gera movimento e denuncia sua incompletude. Como definido por Berlinck (2008) “além de sofrimento, de pathos deriva-se, também, as palavras “paixão” e “passividade”.(...) Nesse sentido, quando pathos acontece, algo da ordem do excesso, da desmesura se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorar desse acontecimento, a não ser como paciente, como ator.”. Pathos é essa quebra que o novo instaura, o sem-palavra que o inédito causa, o insondável. E na submissão à total ignorância frente esse evento avassalador, a saída da elaboração se mostra possível. Voltando a Berlinck (2008) “pathos , então desgina o que é pático, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência.“Psicopatologia” literalmente quer dizer: um sofrimento, uma paixão, uma passividade que posta em si mesmos a possibilidade de um ensinamento interno que não ocorre a não ser pela presença de um médico (pois a razão e insuficiente para proporcionar experiência).” É acompanhando esse raciocínio que se desvela uma possibilidade de solução para o impasse da inserção de uma subjetividade no contexto hospitalar. Transformar pathos em psicopatologia, se utilizando da regra fundamental da psicanálise de livre associar, possibilita um contorno ao que se expressa de maneira alheia ao sujeito. Possibilitar um assenhoramento que respeite a enormidade e sutileza de uma intercorrência no corpo que porta o sujeito indica o sentido de uma prática que não implique em uma alienação dogmática. Bibliografia: Mattos, Paulo R. – O Ato Médico e a Subjetividade. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., SP, v 11, n 1, p. 69-81, março 2008 Berlinck, Manoel T. – O que é Psicopatologia Fundamental – in Psicopatologia Fundamental. SP: Escuta, maio de 2008 Lebrun, Gérard - “O Conceito de Paixão” in Novaes, Adauto, Os Sentidos da Paixão. São Paulo: FUNARTE/Companhia das Letras, 1987, pp. 17-33