> editorial Manoel Tosta Berlinck Platão, no diálogo denominado Timeu (2001) elabora um mito cosmológico no qual incluiu a criação do humano. Trata-se, na verdade, de uma curiosíssima reflexão em que o corpo precede a existência do humano e este só se manifesta por meio do receptáculo, órgão pertencente a essa superfície. Khôra, o receptáculo ou porta-marcas é, em suma, o órgão do afeto, que assegura a capacidade de ser afetado por forças que vêm de longe e de fora. Para Platão, o corpo é ninguém, não possui qualquer forma definida. É, como quer Freud, uma superfície de órgãos que são afetados por forças que vêm de fora e de longe (pathos). Para Freud (1998), ao contrário de Platão, a superfície de órgãos denominada corpo possui a capacidade de se afetar mutuamente, já que cada órgão almeja se reproduzir no órgão vindouro. Assim, Freud não está interessado em pathos, mas numa determinada força denominada sexualidade ou erotismo. A noção de pathos, por sua vez, é mais ampla e inespecífica. Na perspectiva de pathos, a sexualidade ou o erotismo é uma modalidade pática, porém não pode ser confundida com aquele. Para Platão, khôra, o receptáculo, o porta-marcas, entretanto, não é só condição fundamental do humano. É, também, condição para que o afeto se transforme em idéia, representação ou pensamento. O receptáculo recebe marcas que não criam marcas. A força que afeta o receptáculo é denominada pathos. A descoberta do espírito, segundo o grande filólogo alemão Bruno Snell (s/ d.), depende de pathos. Porém, há um longo e complexo trabalho no humano visando a transformação de pathos em metáfora. As mais primitivas manifestações de pathos na civilização grega dão conta de forças atribuídas à natureza, à physis. Nessa perspectiva, o humano é um ser da natureza entendida como aquilo que brota e se manifesta segundo um destino. Nesse momento, o humano é visto como autista, ou seja, uma superfície de órgãos pulsional > revista de psicanálise > editorial > p. 5-8 ano 21, n. 3, setembro/2008 Ser ninguém >5 editorial > p. 5-8 pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 >6 que é objeto de forças da natureza sem nenhuma possibilidade de representação. Bleuler (1993) diria que o autismo é um auto-erotismo sem Eros. As primeiras representações conhecidas na civilização grega são primitivas representações do corpo onde membros não se articulam: os pés são separados das pernas; estas são separadas da bacia; os braços são separados do tronco e este se justapõe à cabeça sem qualquer articulação aparente. Hoje, nem mesmo crianças que começam a desenhar, representam assim o corpo humano. Os desenhos infantis que ultrapassam os rabiscos já contêm uma integração corporal inexistente na Grécia antiga. Depois disso, no relato homérico, o humano é descrito como destino divino. São os deuses que afetam e fazem o humano agir de uma ou de outra maneira. Não há, na ação humana, qualquer implicação humana. O humano não é culpado, pois o que ele faz se deve à ordem divina. Por muito tempo, então o humano é ninguém: porta um corpo com um órgão que possui a propriedade de ser afetado. O humano é percebido, por muito tempo, como pertencente à hybris. Só mais tarde o humano consegue dar sentido a essa dinâmica afetiva, atribuindo a entidades supra humanas o poder de afetar. Portanto, a idéia de que o humano é alguém, um ser existente e relativamente independente dos outros e do ambiente, deriva-se de uma longa, complexa e interminável elaboração cujo produto é denominado de espírito, alma ou de psiquismo. Só em meados do século XIX, com Charles Darwin (2004), surge a noção acabada de alguém – o indivíduo – distinto, porém em relação com a natureza, o ambiente e os outros. Para Darwin, cada espécie (uma coletividade biológica) existente na natureza, seja ela mineral, vegetal ou animal, é composta por unidades discretas e singulares denominadas indivíduos. A noção de pessoa, tão querida por ser uma categoria psicológica, daí se deriva. A transferência, noção elaborada por Freud e seus discípulos, é fundamentalmente pática. Na situação clínica, o paciente afeta o psicanalista, ou seja, ninguém. Se o psicanalista admite ser alguém, ele reage à transferência através de um ato. Não há nenhuma possibilidade de o pathos originado no paciente atingir o psicanalista como um porta-marca, um receptáculo, khôra. Freud, escrevendo sobre “O bloco mágico” (1925) encontra criativa representação para o receptáculo, para o porta-marca. Entretanto, há uma diferença fundamental: o humano de editorial > p. 5-8 pathos e aguarda, pacientemente e com angústia, a manifestação da mnemosine. Não sendo médico, ou seja, alguém que, afetado pelo pathos, dedica-se à anamnese, se o psicanalista deixa de ser ninguém, só lhe resta a posição do psicólogo, ou seja, daquele que acredita poder, ativamente, ajudar o outro. Por muito tempo a contratransferência foi entendida como a reação da pessoa do psicanalista à transferência. Nessa perspectiva a psicanálise passou a ser uma relação pessoa a pessoa, dando uma existência concreta ao psicanalista. A contratransferência seria, assim, uma reação pessoal do psicanalista à transferência e o tratamento seria uma relação pessoal. Nessas condições, não haveria lugar nem para o sonho nem para a memória mnemônica do paciente e do psicanalista. Mas não haveria também – porque a psicanálise não é medicina – lugar para a anamnese. Restaria, então, a ajuda psicológica e suas variantes, como a instrução comportamental. Foi Pierre Fédida, em O sítio do estrangeiro (1996) que resgatou a noção de porta-marcas ( Khôra ) platônica para se referir ao psicanalista como ninguém ocupando um epos – um sítio, onde ocorre uma narrativa afetiva sobre a origem e o destino do humano (uma epopéia). Para Fédida, o pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 Freud possui memória. Assim, o portamarca freudiano, ao contrário do receptáculo platônico, é um recurso mnemônico, um recurso da memória. O humano freudiano já nasce marcado, ou seja, com traços deixados pelo pathos e herdados. É importante observar que Freud, quando fala da memória, se refere a traços mnemônicos. Segundo Paul Ricoeur (2007), na Grécia antiga havia duas expressões para a memória: mnemosine e anamnese. Mnemosine se refere a uma memória passiva, ou seja, é aquilo que surge na consciência independente da ação ativa (da vontade, diríamos hoje). O sonho é o protótipo da memória mnemônica: ele é um resto diurno que se articula com traços de memória que são resíduos do pathos (traços deixados no bloco mágico, diria Freud) . Já a anamnese é memória ativa, que atende a processo voluntário de encontrar uma representação correspondente para o pathos. É aqui que a rica e complexa tradição médica se diferencia da psicanálise. Na primeira, o médico é alguém, é um indivíduo, uma pessoa e reage voluntariamente à transferência, buscando uma representação anamnésica para o pathos. O psicanalista não é um médico, não é um filósofo, não é um sociólogo. Ele é ninguém, ou seja, nem mesmo um Sujeito Suposto Saber, que se expõe ao >7 psicanalista é menos que um Sujeito Suposto Saber, porque é ninguém. É apenas portador de um receptáculo, khôra, porta-marcas, ou seja, um bloco mágico já marcado com traços mnemônicos. Poderíamos dizer, então, parafraseando Freud, que o psicanalista é um bloco mágico filogenético e que esse é o fundamento e a condição da contratransferência. pulsional > revista de psicanálise > editorial > p. 5-8 ano 21, n. 3, setembro/2008 Referências BLEULER, E. Demência precoz. Trad. de Daniel Ricardo Wagner. Buenos Aires: Hormé, 1993. DARWIN, C. A origem das espécies. Trad. de Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. >8 FÉDIDA, P. O sítio do estrangeiro. Trad. de Eliana Borges Pereira Leite, Martha Gambini e Mônica Seincman. São Paulo: Escuta, 1996. FREUD, S. Cartas entre Freud & Pfister (19091939). Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Trad. de Karin Hellen Kepler Wondracek e Ditmar Junge. Viçosa: Ultimato, 1998. _____ . Uma nota sobre o Bloco Mágico. In: Obras Psicológicas de Freud. Trad. coordenada por Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2007. v. 3, p. 135-144. PLATÃO. Timeu. Trad. de Carlos Alberto Nunes Belém: Editora da Universidade Federal do Pará, 2001. RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. de Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. SNELL, B. A descoberta do espírito. As origens do pensamento europeu na Grécia. Trad. de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, s/d. M ANOEL T OSTA B ERLINCK ( MAIO /08) Sociólogo; psicanalista; Ph.D. pela Cornell University; professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (Campinas, SP, Brasil); professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (São Paulo, Brasil), onde dirige o Laboratório de Psicopatologia Fundamental (PUC-SP, São Paulo, Brasil); presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (2002-2004 e 2006-2008; São Paulo, SP, Brasil); editor responsável de Pulsional Revista de Psicanálise e da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, diretor da Livraria Pulsional – Centro de Psicanálise e da Editora Escuta. Rua Tupi, 397/103 01233-001 São Paulo, SP, Brasil Telefax: (11) 3825-8573 e-mail: [email protected]