A LEGITIMIDADE DO ABORTO EM CASOS DE MICROCEFALIA – uma análise à luz da bioética Alice Nader Fossa1 Marta Luiza Leszczynski Salib2 RESUMO Este artigo aborda a legitimidade do aborto em casos de microcefalia fetal. O objetivo do trabalho é propor uma reflexão acerca do aborto eugênico em casos de microcefalia, considerando o embate entre ética e saúde pública e entre os princípios constitucionais de direito à vida e dignidade da pessoa humana. Discute-se a possibilidade de alteração do entendimento dos artigos 124 e 126 do Código Penal, incluindo o aborto de fetos com microcefalia no rol das possibilidades legais de interrupção da gestação. Através do conceito de bioética, atenta-se para a necessidade da discussão em âmbitos da sociedade civil e do Poder Público, por ser um tema atual, de relevância e grandes proporções, dado o rápido avanço do vírus Zika, que pode acarretar a microcefalia durante a gestação. Utiliza-se o método bibliográfico, analisando decisões judiciais, doutrinas e posicionamentos de autores dos diversos ramos relacionados com a Bioética e Direito, além de notícias provenientes dos grupos de comunicação do Brasil e do mundo. Palavras-chave: Aborto. Bioética. Direitos Fundamentais. Direito Constitucional. ABSTRACT This article discusses the legitimacy of abortion in cases of fetal microcephaly. The objective is to propose a reflection about the eugenic abortion in cases of microcephaly, considering the clash between ethics and public health and between the constitutional principles of the right to life and human dignity. We discuss the possibility of changing the understanding of articles 124 and 126 of the Penal Code, including abortion of fetuses with microcephaly in the list of legal possibilities of pregnancy interruption. Through the concept of bioethics, attentive to the need for discussion on areas of civil society and the government, to be a current topic of relevance and great proportions, given the rapid advance of Zika virus, which can lead to microcephaly during gestation. It uses the bibliographical 1 Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia. E-mail: [email protected] Docente do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia. Orientadora do trabalho. Email: [email protected] 2 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas Porto Velho/RO 29 e 30 de novembro de 2016 P. 514 a 540 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas method, analyzing court decisions, doctrines and authors of positions of the various branches related to bioethics and law, as well as news from the Brazil and the world of communication groups. Key-word: Abortion. Bioethics. Fundamental Rights. Constitutional Law. INTRODUÇÃO A microcefalia tem sido um tema presente na mídia e nas discussões dos brasileiros nos últimos meses. Com a associação deste tipo de má-formação à contaminação de gestantes pelo vírus Zika, a problema passou a ter status de temor mundial – haja vista que a repercussão do tema ultrapassou as fronteiras nacionais, atingindo 60 países, segundo informação da Organização Mundial da Saúde gerando pânico e insegurança. O Brasil, que há anos luta contra o mosquito Aedes aegypti, que, além da Zika, ainda transmite Dengue, Febre Amarela e Chikungunya, passou a reforçar campanhas de prevenção e conscientização – dando especial atenção às gestantes. Os casos que antes se resumiam à região nordeste, agora se espalham Brasil afora, aumentando dia após dia o medo de uma epidemia de grande escala. Segundo o Ministério da Saúde, até o dia 14 de maio de 2016, foram notificados 7.534 casos de contaminações pelo vírus – sendo que 1.384 casos evoluíram para fetos portadores de microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central, sugestivos de infecção congênita. Mas os dados são ainda mais preocupantes, conforme mostra o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde: Do total de casos notificados, 273 (3,6%) casos do total de 7.534 evoluíram para óbito fetal ou neonatal. Dos 273 óbitos fetais ou neonatais notificados, 177 (64,8%) permanecem em investigação, 59 (21,6%) foram confirmados para microcefalia e/ou alteração do SNC sugestivos de infecção congênita e 37 (13,6%) foram descartados3. 3 Boletim Epidemiológico do Zika nº 26/2016. Disponível http://combateaedes.saude.gov.br/images/sala-desituacao/informe_microcefalia_epidemiologico26.pdf. Acesso em 20/05/2016. 515 em: Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib Pesquisas recentes revelaram que o vírus destrói as células nervosas do cérebro em formação, favorecendo lesões irreversíveis e, claro, a microcefalia. A criança com microcefalia tem as chances de vida pós-parto reduzidas e, sobrevivendo, terá que ter acompanhamento especial e multidisciplinar para toda a vida, dadas as dificuldades de aprendizado e cognição. Além disso, a figura da mãe, principalmente, tem boa parte da sua autonomia social e profissional reduzida – quando não extinguida – em decorrência da grande dependência dos portadores de microcefalia, que apresentam sequelas graves e necessidade de constante acompanhamento. Importante destacar, ainda, que muitas dessas mães de crianças com microcefalia terão seu único suporte psicológico e de saúde voltados para a Seguridade Social, na forma do Sistema Único de Saúde e da Assistência Social. Ora, é notória a frágil situação em que se encontram estes sistemas, haja vista a sua limitação estrutural e financeira, o que torna quase inviável o tratamento multidisciplinar adequado para que esses bebês venham a se desenvolver da melhor forma possível dentro de suas limitações. A figura da mãe, por sua vez, também precisa de atenção psicológica, humanizada e que lhe garanta a estabilidade emocional necessária para lidar com as dificuldades que virão ao criar o filho com microcefalia. Em meio a essa realidade, volta à cena o debate sobre a legalização do aborto, especialmente em casos de diagnóstico de más-formações congênitas – que inviabilizem a vida independente do indivíduo. É sabido que muitas mulheres recorrem a clínicas clandestinas e outros métodos abortivos para interromper a gestação nos casos não abrangidos pela Lei, tendo em vista a negativa do Direito Brasileiro. Em 2013, os abortos clandestinos foram considerados a quinta causa de morte materna no Brasil, segundo dados do Conselho Federal de Medicina. A falta de acesso ao tratamento adequado, o alto custo de clínicas clandestinas com condições mínimas de higiene e a falta de uma política nacional de orientação e informação sobre prevenção de gestações indesejadas são alguns dos fatores que levam mulheres – em uma situação de absoluto desespero – a buscar alternativas baratas e minimamente eficientes para interromper a gravidez. É imprescindível reacender a discussão acerca do aborto, dados os expressivos números de casos de abortos realizados sem qualquer fiscalização e, 516 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas tampouco, auxílio e orientação das autoridades – o que faz desta realidade uma questão de saúde pública que não pode ser ignorada. Na história recente do país, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou a possibilidade de interrupção da gravidez quando o feto for diagnosticado com anencefalia, que é quando há uma ausência parcial do cérebro, resultante de uma má-formação no desenvolvimento do tubo neural – precedente que enseja discussão semelhante à que propomos. A decisão pôs fim ao sofrimento de mulheres que, antes mesmo do parto, já tinham certeza da incompatibilidade de seus filhos com a vida – drama que teve fim pelo julgamento da ADPF 54, em 13 de abril de 2012. Importante lembrar que as gestantes que têm o diagnóstico definitivo de alterações anatômicas e patologias graves se valem de tecnologia para exames pré-natais inexistente na década de 40, quando o Código Penal vigente foi criado – fato que abre precedentes para se discutir a precariedade do ordenamento penal face às mudanças sociais e tecnológicas ocorridas nas décadas seguintes. Na parte da ética, também se deve realizar um questionamento: se nos casos de estupro a mulher pode abortar um feto saudável, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e tendo respaldo da Justiça, não caberia a mesma aplicação principiológica no caso de feto sabidamente portador de máformação grave, incompatível com a vida saudável e independente, que demandará especial atenção e cuidados por toda a sua vida? Não se pode fechar os olhos para esses dilemas, haja vista a realidade atual de inúmeras mulheres que sofrem com a desesperança e a negligência do Estado na gerência de seu próprio corpo e futuro. Independentemente de crenças e ideologias, é preciso discutir o tema, avaliar o direito à vida e à dignidade da pessoa humana aplicada ao caso proposto por este trabalho. Este trabalho se mostra relevante para buscar informações e dados que possam promover uma reflexão crítica sobre a legitimidade do aborto eugênico nos casos de microcefalia, assim como nas demais más-formações graves e potencialmente incapacitantes. O tema é atual, pauta de inúmeras discussões e que reflete diretamente na vida e na dignidade de milhares de mulheres brasileiras que, frente a uma possível epidemia de proporções e consequências ainda desconhecidas, temem pelo futuro. 517 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib 1 DO DIREITO À VIDA E DO INÍCIO DA PERSONALIDADE NATURAL Consagrado pela Constituição Federal de 1988, o direito à vida é um dos mais importantes e complexos princípios fundamentais, tendo em vista que seu conceito aberto, como apresentado na Carta Magna, gera inúmeras interpretações – algumas em explícita contradição com outros princípios. O Código Civil, em seu artigo 2º, declara: “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (BRASIL, 2002). Já o conceito de pessoa natural, trazido por Carlos Roberto Gonçalves (2015, p. 100), diz: “sujeito de direitos e obrigações, dotado de todos os predicados que integram a sua individualidade, bastando, para alcançar essa condição, nascer com vida”. A Lei explicita a predileção do legislador pela teoria concepcionalista, que entende o embrião como ser titular de expectativa de direitos desde sua concepção. Sobre a proteção dos direitos do nascituro, Venosa (2015, p. 140) alerta: A questão é polêmica, ainda porque o embrião não se apresenta de per si como uma forma de vida sempre viável. A ciência ainda deve dar passos no sentido de fornecer ao jurista a exata dimensão do embrião como titular de alguns direitos. Parte da doutrina questiona a situação jurídica do nascituro, creditando a ele, apenas direitos de natureza patrimonial: “(...) a discussão em torno do enunciado leva à conclusão de que os direitos do nascituro referidos pela norma são especificamente os direitos patrimoniais, dentre os quais o de receber doações e o direito de sucessão” (NASCIMENTO FILHO, p. 82). Na contrapartida, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2012, p. 574) são categóricos ao afirmar que o direito à vida é amplamente tutelado pelo Estado, independentemente do estágio de desenvolvimento humano: O elemento decisivo para se reconhecer e se proteger o direito à vida é a verificação de que existe vida humana desde a concepção, quer ela ocorra naturalmente, que in vitro. O nascituro 518 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas é um ser humano. Trata-se, indisputavelmente, de um ser vivo distinto da mãe que o gerou, pertencente à espécie biológica do homo sapiens. Isso é bastante para que seja titular do direito à vida – apanágio de todo ser que surge do fenômeno da fecundação humana. Essa é a fundamentação que embasa a criminalização do aborto no ordenamento jurídico brasileiro: ao afirmar que o nascituro tem expectativa de direitos e, com a lei zelando por estes – entre eles o direito à vida e à dignidade da pessoa humana –, qualquer conduta que abrevie o desenvolvimento saudável do nascituro irá à contramão da Lei. 1.1 DO ABORTO Aborto pode ser definido como a prática de interrupção da gestação, que pode ocorrer de forma voluntária ou involuntária. No Brasil, até 2012, o Código Penal permitia a modalidade voluntária nas hipóteses de gestação resultante de estupro (aborto humanitário) e em casos de risco de vida à mãe (aborto necessário), criminalizando todas as demais condutas abortivas, conforme se observa nos artigos 124, 125, 126, 127 e 128 do Código Penal Brasileiro: Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém à morte. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (BRASIL, 1940). 519 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib Em 2012, no entanto, o Supremo Tribunal Federal incluiu no rol das possibilidades legais de aborto aquele praticado quando o feto é diagnosticado com anencefalia, através da ADPF nº 54, de 12 de abril de 2012. Em seu voto, o relator, Ministro Marco Aurélio Mello, alegou que, por ser a vida extrauterina inviável nestes casos, não há que se falar em crime ou lesão ao princípio constitucional de direito à vida: No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. Na expressão do Ministro Joaquim Barbosa, constante do voto que chegou a elaborar no Habeas Corpus nº 84.025/RJ, o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica. (BRASIL, 2012, p. 30). Frequentemente a legalização do aborto volta a ser pauta de discussões, devendo ser analisada pelo Poder Público pela ótica da ética, da moral e do Direito, uma vez que o Brasil é um Estado laico e, por essa razão, não deve tomar decisões dessa magnitude por embasamento religioso. Como sabiamente alegou o Ministro Marco Aurélio Mello (2012, p. 11) na ocasião do julgamento da ADPF 54: “o Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro”. No ano de 2015, com o aparecimento do vírus Zika, que pode causar microcefalia durante a gestação, o tema passa a ser discutido novamente, pois o número de casos desse tipo de má-formação neurológica, no Brasil, aumentou significativamente em um curto espaço de tempo. 2 DA MICROCEFALIA A microcefalia tem sido pauta de diversas matérias jornalísticas, pesquisas e discussões da comunidade científica e da sociedade em geral nos últimos meses. O fator desencadeante desse fenômeno é o surto de Zika – vírus que, quando atinge gestantes, pode ocasionar microcefalia. O Zika é um vírus transmitido pelo contato com o mosquito Aedes aegypti, já conhecido dos brasileiros, uma vez que também transmite a Dengue e a Chikungunya. A transmissão pode se dar, ainda, pelo contato com fluidos 520 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas corporais do infectado, como sangue, saliva, sêmen, leite materno e líquido amniótico. A infecção em adultos causa sintomas considerados leves, como conjuntivite, dor de cabeça, cansaço e febre, que normalmente desaparecem alguns dias depois. No entanto, ao final de 2015, motivado por um crescente número de recémnascidos diagnosticados com más-formações cranianas, a comunidade científica descobriu que estas eram consequências de infecções maternas pelo vírus Zika. O Ministério da Saúde, em seu site oficial, traz os números do início das investigações sobre a relação do Zika com microcefalia: Até o dia 09 de janeiro, foram notificados à Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde 3.530 casos suspeitos de microcefalia, identificados em 720 municípios de 21 estados do Brasil. O estado de Pernambuco mantém-se com o maior número de casos (1.236), sendo o primeiro a identificar aumento de microcefalia em sua região e que conta com o acompanhamento de equipe do Ministério da Saúde desde o dia 22 de outubro. Em seguida, estão os estados de Paraíba (569), Bahia (450) Ceará (192), Rio Grande do Norte (181), Sergipe (155), Alagoas (149), Rio de Janeiro (122), Maranhão (119), Tocantins (75), Piauí (62), Goiás (7), Distrito Federal (5) e Mato Grosso do Sul (3)4. A predominância de casos na região nordeste do país se mantém, mas, registros de microcefalia causados pelo vírus se espalham pelo Brasil e pelo mundo, tornando este um problema de magnitude internacional. Preocupada com o avanço dos casos da doença, a comunidade científica internacional passou a investigar a doença para, em auxílio às pesquisas em desenvolvimento no Brasil, formular uma vacina em caráter de urgência. 2.1 CONCEITO, TRATAMENTO E EXPECTATIVA O site “Portal Saúde”, do Governo Federal, conceitua a microcefalia da seguinte forma: 4 Boletim Epidemiológico do Zika nº 26/2016. http://combateaedes.saude.gov.br/images/sala-desituacao/informe_microcefalia_epidemiologico26.pdf. Acesso em 20/05/2016. 521 Disponível em: Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib Trata-se de uma malformação congênita, em que o cérebro não se desenvolve de maneira adequada. Neste caso, os bebês nascem com perímetro cefálico (PC) menor que o normal, que habitualmente é superior a 32 cm5. O diagnóstico antes do nascimento é feito através de exames de imagem típicos do pré-natal, como a ultrassonografia. A eficácia do exame para este fim, no entanto, depende da fase da gestação em que a mãe é contaminada. Sabe-se, contudo, que a infecção no primeiro trimestre da gravidez causa os efeitos mais devastadores no feto, uma vez que é neste período que o sistema nervoso, incluindo crânio e tubo neural, são formados. O Ministério da Saúde enfatiza que o acompanhamento multidisciplinar é necessário para garantir uma melhora na qualidade de vida da criança, a depender das sequelas deixadas. O tratamento pode envolver serviços de atenção básica, serviços especializados de reabilitação, serviços de exame e diagnóstico e serviços hospitalares, além de órteses e próteses a serem fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Não há tratamento específico para a microcefalia. Existem ações de suporte que podem auxiliar no desenvolvimento do bebê e da criança. Como cada criança desenvolve complicações diferentes - entre elas respiratórias, neurológicas e motoras – o acompanhamento por diferentes especialistas vai depender de suas funções que ficarem comprometidas6. Em seu “Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika”, editado pelo Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, e direcionado à comunidade médica, há dados sobre a ocorrência de óbito de bebês em decorrência do vírus, além de informações sobre as sequelas possíveis, como se observa a seguir: Cerca de 90% das microcefalias estão associadas com retardo mental, exceto nas de origem familiar, que podem ter o desenvolvimento cognitivo normal. O tipo e o nível de gravidade 5 Ministério da Saúde. Portal da Saúde. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/links-de-interesse/1225-zika . Acesso em 20/09/2016. 6 Ministério da Saúde. Portal da Saúde. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/links-de-interesse/1225-zika/21856-qual-o-tratamentodisponivel-para-a-microcefalia. Acesso em 20/09/2016. 522 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas da sequela vão variar caso a caso. Já há a constatação da relação de infecção pelo vírus Zika com quadros graves e óbitos a partir da identificação de casos que evoluíram para óbito em estados diferentes e ambos com identificação do RNA viral do Zika e resultados negativos para os demais vírus conhecidos, como dengue, chikungunya entre outros7 . Além do já mencionado, a literatura ainda atribui à microcefalia sintomas recorrentes como epilepsia, paralisia cerebral, retardo no desenvolvimento cognitivo, motor e fala, além de problemas de visão e audição. No dia 20 de setembro de 2016, o Jornal Nacional exibiu uma matéria sobre as primeiras crianças nascidas com microcefalia decorrente de Zika, que estão completando um ano. Na reportagem, destaca-se que, nesses casos, o acompanhamento mais frequente deve seguir até os cinco anos de idade. Boa parte dos bebês está usando óculos especiais para corrigir os problemas da visão. Aparelhos ortopédicos, auditivos, fazem exercícios para a estimulação precoce, musicoterapia. Até o nascimento dos primeiros dentes é monitorado8. A expectativa de vida de crianças com microcefalia depende de diversos fatores, como tamanho do crânio, intensidade das sequelas e tratamento recebido, principalmente nos primeiros anos de vida. É possível que tenha uma vida longa e próxima da normalidade, mas, para isso, dependerá, além dos fatores acima mencionados, da total dedicação e proximidade da família e das equipes de saúde. 3 DA BIOÉTICA A Bioética é a ciência que estuda a aplicação da ética aos recentes avanços das ciências da vida (medicina, veterinária, genética, psicologia, etc.) e 7 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/09/Microcefalia---Protocolo-de-vigil-ncia-e-resposta---vers--o-1----09dez2015-8h.pdf. Acesso em: 20/09/2016. 8 JORNAL NACIONAL, veiculado em 20/09/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/jornalnacional/noticia/2016/09/primeira-geracao-de-criancas-com-microcefalia-completa-1-ano.html. Acesso em 20/05/2016. 523 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib seus impactos na sociedade. Joaquim Clotet (2006, p. 22) conceitua a Bioética da seguinte forma: A Bioética é a resposta da ética aos novos casos e situações originadas da ciência no âmbito da saúde. Poder-se-ia definir a Bioética como a expressão crítica do nosso interesse em usar convenientemente os poderes da medicina para conseguir um atendimento eficaz dos problemas referentes à vida, saúde e morte do ser humano. Em sua obra, os organizadores Irani de Lima Argimon, Gabriel Chittó Gauer e Margareth da Silva Oliveira (2009, p. 17), por sua vez, trazem definição diversa: A bioética surgiu como preocupação pelas incidências das intervenções tecnológicas sobre o ambiente natural e como resposta aos dilemas éticos da saúde humana provocados pelas novas descobertas biológicas e pelos avanços tecnológicos da medicina. Com relação ao campo de atuação da Bioética, Clotet (2006, p. 22) exemplifica aplicações atuais e polêmicas da ciência: A bioética ocupa-se, principalmente, dos problemas éticos referentes ao início e fim da vida humana, dos novos métodos de fecundação, da seleção de sexo, da engenharia genética, da maternidade substitutiva, das pesquisas em seres humanos, do transplante de órgãos, dos pacientes terminais, das formas de eutanásia, entre outros temas atuais. Os estudos de Bioética tiveram início na década de 70, nos Estados Unidos, motivados por inovações tecnológicas relacionadas à Medicina e, desde então, vem ganhando destaque no universo acadêmico. No Brasil, centros universitários e complexos hospitalares investem em institutos com o objetivo de discutir a Bioética. Novas pesquisas, produções acadêmicas e bibliográficas abordam o Bioética, vinculando-a com os mais diversos assuntos e tornando a área fundamental como complemento às demais que estudam a vida, a morte e as novas tecnologias relacionadas à saúde. 524 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas A Bioética possui princípios próprios que devem ser avaliados na análise dos casos concretos, sendo desejável a harmonização entre eles, descritos sucintamente da seguinte forma: Trata-se de um discurso ético orientado por princípios que pretendem oferecer um esquema teórico de moral para identificação, análise e solução dos problemas morais enfrentados pela medicina atual. Os princípios englobam certas considerações morais: obrigações de respeitar os desejos de pessoas competentes (respeito pelas pessoas ou pela sua autonomia); obrigações de não provocar dano aos outros (não maleficência); obrigações de produzir benefícios (beneficência); obrigações de ponderar danos e benefícios (utilidade); obrigações de distribuir, com equidade, danos e benefícios (justiça); obrigações de dizer a verdade (veracidade); obrigações de não revelar informações, de respeita a privacidade e de proteger informações confidenciais (confidencialidade) (ARGIMON 2009; GAUER 2009; OLIVEIRA 2009, p. 19). Em relação ao Direito, se faz necessária a correlação com a Bioética, uma vez que a legislação não pode – nem deve – se manter engessada frente ao dinamismo da sociedade e ao avanço da ciência. O estudo da ética confere ao estudioso do Direito sensibilidade para compreender os fatos, analisar suas motivações e consequências, tornando-o mais capaz de tomar decisões corretas e, desejavelmente, neutras com relação aos mais variados temas. 4. DO EMBATE ÉTICO-JURÍDICO O aborto é pauta de discussões das mais variadas magnitudes: desde conversas informais entre amigos até impasses entre candidatos a cargos políticos, juristas e membros do legislativo. Não frequente, o assunto se inicia no âmbito da sociedade civil para, posteriormente, chegar ao legislativo, como se observou no caso da legalização de aborto em casos de fetos anencefálicos em 2012. À época, muito se foi falado sobre essa situação, gerando precedentes para que, nos anos seguintes, a legalização do aborto fosse novamente questionada. Ocorre, agora, situação semelhante, com a temática do aborto novamente em ebulição na sociedade. Os frequentes casos de microcefalia, associada à infecção por Zika, trazem o questionamento acerca da legitimidade da interrupção gestacional em casos 525 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib que, assim como a microcefalia, os fetos, apesar da viabilidade da vida, demandarão cuidados intensos e constantes por toda a sua existência pósnascimento, com baixíssima autonomia e independência – mesmo após atingir a vida adulta. Diante disso, torna-se de grande relevância refletir a respeito dos diversos aspectos que circundam o tema aborto. 4.1 DO CONFLITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS No âmbito do Direito, discute-se o conflito de princípios constitucionais, uma vez que, a partir da ótica do jurista, pode-se chegar a diferentes interpretações do texto constitucional, cabendo tão somente ao Supremo Tribunal Federal pacificar determinado entendimento. Todavia, é sabido que não há soberania de um princípio sobre outro, sendo desejável a harmonização destes instrumentos jurídicos nas mesmas proporções em aplicações práticas. Os que condenam o aborto alegam que o princípio de direito à vida se sobrepõe ao da dignidade da pessoa humana da mãe ou da família, pouco importando o contexto social, financeiro ou de integridade físiconeurológica das partes. Não raro, a formação ético-cristã, muito presente na cultura do brasileiro, se apresenta como fator decisivo para essa concepção. Por outro lado, os que defendem a legitimação do aborto possuem um perfil mais dinâmico, uma vez que suas opiniões podem variar de acordo com o caso em questão: uns defendem indefinidamente; outros apenas em um ou outro determinado caso. Os que assim pensam priorizam o princípio da dignidade da pessoa humana da mãe/família, sugerindo maior autonomia sobre o corpo feminino – que ganha força com o avanço dos movimentos de valorização da mulher e empoderamento feminino. Compreende-se que, para uma maior efetividade dos direitos sexuais e reprodutivos, vistos como direitos humanos, devem ocorrer ações de parceria entre a família, a sociedade e o Estado, fazendo com que a criação de novas políticas continue assegurando-os livres de preconceitos e dando prioridade para a autonomia dos indivíduos, principalmente no que diz respeito a sua capacidade de decidir sobre o seu corpo (LOCH, 2014, p. 129). 526 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas Com uma rápida análise sobre as duas correntes torna-se possível obter uma certeza: o assunto deve voltar à pauta dos Poderes Legislativo e Judiciário, dada à relevância social. A Constituição, Lei Maior de nosso ordenamento, deve manter suas bases morais e principiológicas, preservando sua essência democrática. Todavia, deve-se atentar para o fato de que uma lei que data de 1988 (assim como ocorre com demais leis, como o Código Penal, de 1940) está sujeita às incompatibilidades normativas em relação à atualidade. Carlos Ayres Britto (2016, p. 99) enfatiza a importância de a Carta Magna preservar o passado, respeitar o presente e pensar no futuro: Mais do que ser a Lei Fundamental do Estado é de todo o povo brasileiro, a Constituição é a Lei Fundamental de toda a nação brasileira. Sabido que a nação, por ser a linha invisível que faz a costura da unidade entre o passado, o presente e o futuro, é instituição que engloba o povo de hoje como o povo de ontem e o povo de amanhã. Logo, à semelhança de cada família em particular, nação é um misto de ideia e sentimento que faz a contemporaneidade não perder de vista a ancestralidade nem deixar de se antenar com a posteridade. Mas a apreciação do tema na esfera jurídica deve se dar com mais cautela, combinando informações da realidade social, delimitação da pauta, avaliação do texto constitucional e a sua eficácia e correta aplicação para a sociedade atual, eliminando qualquer influência religiosa, em respeito à laicidade do Estado, e ao próprio conceito de justiça que é algo "essencialmente humano", como já preconizava Aristóteles (2009, p. 136). Ao negar a legitimidade do aborto em todo e qualquer caso, nega-se também o conceito de justiça, que é a aplicação do justo, do correto, do adequado ao caso concreto. A fragilidade do assunto demanda que o Direito não se mantenha engessado, permitindo a constante atualização da promoção da justiça, frente às mudanças sociais. Por isso, a discussão do aborto deve ser realizada para que se conceitue o que é justo para cada caso, gerando precedentes coerentes e condizentes com o tempo em que vivemos. 527 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib 4.2 DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O princípio da dignidade da pessoa humana está sedimentado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, III, como um dos cinco fundamentos do Estado Democrático e de Direito. Magalhães (2012, p. 97) traz o conceito de dignidade da pessoa humana: O princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento filosófico e jurídico dos direitos humanos e se expressa nestes direitos, funciona também como metanorma, indicando como devem ser interpretadas e aplicadas as outras normas e princípios, em especial as normas definidoras de direitos fundamentais, ampliando o seu sentido, reduzindo-os ou auxiliando em conflitos entre direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é a chave de interpretação material das demais normas. Complementando o conceito do princípio, o Ministro do STF Luis Roberto Barroso (2010, p. 10) explica a origem e a natureza jurídica da dignidade da pessoa humana: A dignidade da pessoa humana tem seu berço secular na filosofia. Constitui, assim, em primeiro lugar, um valor, que é um conceito axiológico, ligado à ideia de bom, justo, virtuoso. Nessa condição, ela se situa ao lado de outros valores centrais para o Direito, como justiça, segurança e solidariedade. (...) Ao viajar da filosofia para o Direito, a dignidade humana, sem deixar de ser um valor moral fundamental, ganha também o status de princípio jurídico. Não restam dúvidas sobre a relevância da dignidade humana enquanto fundamento basilar do Estado Democrático de Direito, tampouco se deve questionar a necessidade de sua aplicação e constante proteção nas normas editadas pelo legislador, assim como nas decisões tomadas pelo Poder Público. Nos temas relacionados à Bioética e aos Direitos Humanos, a dignidade passa a ser o princípio que conduz as discussões, como observa Magalhães (2012, p. 72): “A dignidade da pessoa humana é a pedra angular de toda teoria dos direitos humanos e das questões bioéticas referentes ao direito à vida“. Ingo Sarlet (CANOTILHO [et al.] 2013, p.343) traz, por sua vez, o porquê da dignidade ocupar um lugar de destaque na Constituição Federal de 1988: 528 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático (e social) de Direito (art. 1º, III), a CF de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do próprio Estado e do exercício do poder estatal, reconheceu categoricamente que o Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário. Da mesma forma, não foi por acidente que a dignidade não constou no rol dos direitos e garantias fundamentais, tendo sido consagrada em primeira linha como princípio (e valor) fundamental, que, como tal, deve servir de norte ao intérprete, ao qual incumbe a missão de assegurar-lhe a necessária força normativa. Quando falamos em aborto nos casos de microcefalia, falamos em preservar a dignidade da mãe e dos demais membros da família diretamente afetados pelo prosseguimento da gestação. Ao obrigar a mulher a levar a termo a gravidez de uma criança com tamanho comprometimento neurológico e motor, fazendo-a abrir mão de sua vida profissional, social e, não raro, da sua estabilidade emocional, o Estado fere uma de suas mais importantes prerrogativas constitucionais. A dignidade deve ser compreendida, neste caso, como a possibilidade de ter uma vida plena, feliz, de acordo com as suas decisões pessoais e familiares – conceito que não condiz com a atuação opressora do Poder Público ao negar o aborto nessas circunstâncias, conduzindo mulheres que se encontram nessa situação a uma potencial infelicidade, tristeza constante e frustração pessoal e familiar. Sendo assim, a dignidade da pessoa humana deve ser vista como o fim em todas as normas e decisões que envolvam indivíduos, buscando sempre o bemestar pessoal e coletivo, a realização e a felicidade plena. 4.3 DA REALIDADE SOCIAL Com a negativa do legislador em relação ao aborto eletivo fora das hipóteses permitidas no Código Penal, um número expressivo de brasileiras recorre a medidas alternativas para efetivar o aborto. Os motivos vão desde a insuficiência financeira para sustentar dignamente uma criança até vergonha por uma gestação precoce e/ou não desejada. 529 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib Não obstante a criminalização do aborto na legislação brasileira, aliada à forte campanha da Igreja Católica e de organizações conservadoras, tem-se verificado um alto índice de interrupção voluntária de gravidez, que leva milhares, todos os anos, a procurarem o sistema público de saúde, na busca do tratamento das complicações pela prática de aborto inseguro. A conclusão é óbvia: temos uma lei que, por não impedir aquilo a que se propõe, é inócua, mas que leva um número considerável de mulheres - notadamente mulheres das camadas mais pobres da população - à morte, justamente pela prática insegura a que são submetidas (NASCIMENTO FILHO, p. 133). Os métodos variam de acordo com a condição socioeconômica da gestante, uma vez que existem desde clínicas clandestinas com o devido conforto e assistência médica necessária até medicamentos para a autoindução. Evidente que o alto custo da primeira opção a torna inviável para a maior parte das mulheres, o que as leva a buscar meios alternativos e baratos que, não raramente, causam complicações ou deixam sequelas irreversíveis, tornando o aborto clandestino um problema social e de saúde pública. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde 9 , mais de 65 mil mulheres morreram no Brasil durante ou após o parto em decorrência de práticas abortivas no ano de 2013. Se considerássemos os abortos ilegais que foram bemsucedidos e guardados em segredo e que, por essa razão, dificilmente aparecem em dados oficiais, o número seria ainda mais assustador. Em agosto de 2015, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou uma ampla pesquisa sobre o aborto no país10, concluindo que mais de um milhão de brasileiras, entre 18 e 49 anos, recorreram ao aborto ao menos uma vez na vida. Só em 2013 foram mais de 150 mil casos de internações motivadas por complicações decorrentes de abortos. No estudo, fica claro que se trata de um problema social, uma vez que predomina entre as mulheres pardas e negras, com baixa ou nenhuma instrução e que habitam as regiões mais pobres do país: os casos avaliados pelo IBGE 9 Centro Regional de Informações das Nações Unidas. OMS - segundo um novo estudo, o panorama em termos de saúde sexual e reprodutiva é muito sombrio. Disponível em: http://www.unric.org/pt/actualidade/7120http://www.unric.org/pt/actualidade/7120. Acesso em: 18/10/2016. 10 IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Disponível em: http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/pesquisas/pns/default.asp?o=23&i=P. Acesso em: 20/09/2016. 530 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas ocorrem em maior número na região nordeste (39,2%), contra menos de 7% na região sul, por exemplo. Quanto ao nível de instrução, apenas 10% das entrevistadas possui curso superior completo, sendo 33% delas sem instrução alguma. Antes de integrar as estatísticas do aborto feito às escuras, muitas gestantes tentam uma autorização judicial para realizar a interrupção da gravidez com a tutela do Estado e a segurança necessária para este tipo de procedimento. Debora Diniz (2003, p. 02) acredita que, com o advento de novas tecnologias para exames pré-natais, como a ecografia, a discussão sobre o aborto se fortaleceu em decorrência da certeza de más-formações fetais. Por consequência, o número de ações judiciais pleiteando o direito de abortar aumentou: “Estima-se que mais de dois mil pedidos judiciais já foram feitos para autorizar interrupções seletivas da gestação no país, a grande maioria realizada em hospitais públicos” (DINIZ, 2003, p. 02). As frequentes judicializações do aborto, aliás, levaram à legalização do procedimento nos casos de anencefalia. Agora, observamos, novamente, essas condutas de grávidas recorrendo ao Poder Judiciário para buscar uma autorização para o aborto em casos de más formações congênitas graves – como é o caso da microcefalia. 4.4 DA LEGITIMIDADE DO ABORTO NOS CASOS DE MICROCEFALIA A discussão acerca da legitimidade do aborto nos casos de microcefalia tem como objeto a promoção e manutenção da dignidade da mãe. A gestante com diagnóstico de feto microencefálico tem perante si um prognóstico que gera inúmeras consequências. Embora a vida seja potencialmente viável, a criança nascida com essa condição neurológica terá um desenvolvimento limitado, necessitando de acompanhamento multidisciplinar, medicamentos de alto custo, além de eventuais próteses e órteses. Evidente que, com o adequado tratamento, a sobrevida é possível, podendo, inclusive, proporcionar desenvolvimento satisfatório, dada à gravidade da condição. Contudo, o alto custo do tratamento e a precariedade do Sistema Único de Saúde (SUS), torna difícil atingir este nível de tratamento, na sua integralidade. A situação do SUS é tão crítica, que, em junho de 2016, o déficit do 531 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib sistema já alcançava R$ 50 bilhões11. Já em agosto do mesmo ano, foi anunciado que, desde 2012, o Governo Federal deixou de repassar R$ 3,5 bilhões ao SUS por causa da difícil situação fiscal que assola a União12, sobrecarregando estados e municípios, que também se encontram em complicada situação financeira. Em setembro deste ano, o Procurador-geral da República, Rodrigo Janot, defendeu o aborto para grávidas infectadas pelo Zika através de um parecer enviado ao STF13. No documento, caracteriza a situação atual como justificação genérica de estado de necessidade e traça um paralelo com a decisão tomada pelo Supremo em 2012, autorizando a interrupção gestacional em casos de fetos anencéfalos. Segundo Janot, a decisão da ADPF 54 também deve valer em casos de diagnóstico de infecção do Zika, visando tutelar a saúde física e mental da mulher e sua autonomia reprodutiva. O Procurador-geral classifica como constitucional esse tipo de aborto. Em seu parecer, ele afirma que, nos casos de gravidez decorrente de estupro, há um estado de evidente e excepcional sofrimento e desamparo – idêntico nível, afirma, de sofrimento e desamparo gerado nos casos de microcefalia decorrentes da infecção pelo Zika. Este sofrimento, alega Janot, seria em grande parte por causa da omissão do Estado que falha ao proteger as mulheres nessas condições e que não pode ser responsável pelo sofrimento das mulheres. Por razões semelhantes, a Tailândia decidiu, em outubro de 2016, pela legalização do aborto em casos de más-formações congênitas decorrentes da infecção por Zika14. 11 SUS já amarga déficit de R$ 50 bilhões e pode perder mais. JC Online. Publicado em 05/06/2016. Disponível em: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/nacional/noticia/2016/06/05/sus-ja-amarga-deficitde-r-50-bilhoes-e-pode-perder-mais-238755.php. Acesso em: 23/09/2016. 12 Governo deixou de repassar R$ 3,5 bi para o SUS desde 2012, diz Geddel. Globo. Publicado em 23/08/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/08/governoacumula-deficit-de-r-35-bi-em-repasses-do-sus-diz-geddel.html. Acesso em 23/09/2016. 13 Janot defende aborto para grávidas infectadas pelo vírus do zika. Globo. Disponível em: http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/09/janot-defende-aborto-para-gravidas-infectadas-pelozika-virus.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=g1. Publicado em 07/09/2016. Acesso em: 09/09/2016 14 Tailândia permitirá aborto em casos de microcefalia ligada ao zika. O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/tailandia-permitira-aborto-em-casos-de-microcefalia-ligada-ao-zika20248418. Publicado em 06/10/2016. Acesso em: 07/10/2016. 532 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas Assim como no Brasil, o aborto na Tailândia é ilegal, salvo em casos específicos, como em decorrência de estupro. A decisão deve servir de opção às mulheres do país, que já contabilizou 392 casos confirmados da doença somente neste ano. A temática do aborto também tem gerado polêmicas na Irlanda, onde, em junho de 2016, o Comitê de Direitos Humanos da ONU classificou como “desumana” a lei local que não permite a interrupção da gestação em casos de más-formações fetais 15 . Esta foi a primeira manifestação de um organismo internacional de direitos humanos no sentido de condenar um Estado pela criminalização do aborto, sob os argumentos de que a norma violaria os direitos humanos, classificando-a, ainda, como “discriminatória e responsável pela submissão de mulheres a tratamento cruel, desumano e degradante”. A condição socioeconômica da família, nesse caso, é um fator determinante do impacto que a microcefalia causará nesse núcleo, uma vez que, dificilmente a mãe poderá retornar ao mercado de trabalho com a dedicação e a disponibilidade necessárias à realização profissional. Os resultados podem ser dois: frustração pelo afastamento da vida profissional; e/ou comprometimento do orçamento familiar, prejudicando os demais membros da família. (...) proibir toda interrupção de gravidez é obrigar muitas mulheres a gerar, mesmo que elas vivam essa gravidez como gravemente contraindicada, ou mais, como comprometendo importantes valores de vida. E o que representa para a criança esta primeira oposição? O que permite pensar que forçando a mulher a levar a termo uma gravidez, a aceitação e o acolhimento ausentes no início irão nela desabrochar? (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 350) Importante salientar que o surto de microcefalia que ocorre no Brasil, como consequência do vírus Zika, é uma situação nova, e, como tal, deve o Estado ser provocado a tomar atitudes em relação às consequências que estão surgindo, sob pena de negligenciar uma situação de grande relevância social. Mister lembrar que o Direito, na sua função de promover a justiça, tem de adequar suas normas 15 Proibição da Irlanda sobre o aborto viola os direitos humanos – uma decisão inovadora das Nações Unidas. Anistia Internacional Brasil. Disponível em: https://anistia.org.br/noticias/proibicaoda-irlanda-sobre-o-aborto-viola-os-direitos-humanos-uma-decisao-inovadora-das-nacoes-unidas. Publicado em 09/06/2016. Acesso em: 18/10/2016. 533 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib para a correta aplicação aos casos concretos, permitindo uma "oxigenação" da Lei e evitando que está se torne engessada e pouco efetiva frente à realidade social. Norberto Bobbio (2014, p. 18) explica a possibilidade de uma eventual arcaicidade normativa: “O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e culturas”. Em "Ética a Nicômaco”, Aristóteles traz o conceito do caráter equitativo e destaca a importância de sua incorporação à justiça, na forma de retificações na Lei, de modo a preencher lacunas que surgem por omissão do legislador ou mudança dos tempos e da sociedade. O fundamento para tal função retificadora resulta de, embora toda a lei seja universal, haver, contudo, casos a respeito dos quais não é possível aplicá-los na sua totalidade de modo correto, a lei tem em consideração apenas o que se passa o mais das vezes, não ignorando, por isso, à margem para o erro, mas não deixando, contudo, por outro lado, de atuar menos corretamente (ARISTÓTELES, 2009, p. 125). A situação em tela diferencia-se do aborto eletivo de feto saudável, quando a gestação indesejada poderia ter sido evitada por meio dos diversos e eficazes métodos anticoncepcionais e, por quaisquer razões, não foi feita. Tampouco se assemelha ao conceito de eugenia abordado na Alemanha nazista (1933-1945), que objetivava a aniquilação de qualquer forma de anomalia para promover a "pureza" da raça ariana. Trata-se aqui de uma situação específica, de grandes proporções, início súbito, consequências particularmente graves para o indivíduo e a família, além da notável fragilidade estatal para prover os tratamentos de saúde a que se propôs na Constituição Federal, conforme se observa no artigo 196: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988). Apesar da redação aparentemente simples do legislador constitucional, a aplicação prática do dispositivo deve ter o maior alcance possível, com 534 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas características de proteção e manutenção da saúde, com atenção às mudanças sociais e tecnológicas que venham a ocorrer. O direito à saúde encontra-se, portanto, relacionado a inúmeros fatores que muitas vezes não são previamente identificáveis, como avanços tecnológicos que redundam em novos e mais eficientes tratamentos, surtos epidêmicos que demandam imediata reação por parte do Poder Público, modificações estruturais da sociedade que exijam o repensar do planejamento sanitário. Desse modo, a relativamente baixa densidade normativa do conteúdo constitucional não pode ser compreendida como baixo nível de vinculação jurídica: pelo contrário, a natureza principiológica da norma é condição para que sua realização e proteção alcancem níveis adequados, de acordo com as peculiaridades as especificidades de cada região e a partir das ações e serviços de saúde existentes em dado momento histórico (PIVETTA, 2014, p. 58). Outro fator a ser considerado no tocante ao aborto nos casos de microcefalia é que em 1940, época da promulgação do Código Penal vigente, não dispúnhamos da tecnologia de diagnósticos que hoje é rotineiramente utilizada nos exames pré-natais, como a ultrassonografia, por exemplo, que permite avaliar o desenvolvimento e a morfologia do feto por meio de imagens. A ausência do recurso tornava esse tipo de interrupção da gestação inviável, uma vez que era impossível saber se a criança tinha microcefalia até o momento do nascimento. A ultrassonografia é fornecida pelo SUS desde 2010 e integra a relação de exames necessários durante a gestação, por orientação do Ministério da Saúde. Hoje, com o correto acompanhamento médico e a realização dos exames pré-natais, é possível diagnosticar a microcefalia com precisão ainda na gravidez, o que viabilizaria materialmente a interrupção sem assumir o risco de prejudicar um feto saudável. Cumpre destacar, ainda, que a Lei permite o aborto nos casos de estupro (art. 128, II do Código Penal). Está prerrogativa visa preservar a dignidade da mãe que, outrora violentada, sofreria em demasia por ter de conviver com o fruto deste crime. Vê-se aqui que o legislador optou por priorizar um princípio a outro: dignidade ante a vida. Note-se, ainda, que o feto a ser abortado não precisa de nenhum diagnóstico comprovando a inviabilidade da vida, pelo contrário, pode ser absolutamente saudável e com potencial para nascer e crescer normalmente, com toda expectativa de direito que lhe é inerente. A análise dessa situação comprova que o legislador não hierarquiza os princípios constitucionais, devendo 535 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib valorá-los à luz do caso concreto, objetivando, sempre que possível, a sua harmonização. O prognóstico da disseminação do vírus Zika não parece bom, uma vez que o mosquito transmissor, Aedes aegypti, há anos atormenta o país com doenças como a Dengue e a Febre Amarela. Embora a repercussão internacional tenha estimulado inúmeros estudos por todo mundo com objetivo de formular uma imunização, o procedimento de aprovação de vacinas é longo e burocrático, podendo levar anos até que chegue efetivamente à população. O clima do Brasil, especialmente nas regiões norte e nordeste, é adequado à reprodução do mosquito transmissor, por ser quente e úmido - não à toa, essas são as regiões com maiores índices de microcefalia associada à contaminação por Zika. Diante de todos esses fatos, o aborto nestes casos especificamente passa a ser uma alternativa a ser discutida pela sociedade e pelas autoridades. CONSIDERAÇÕES FINAIS O aborto deve ser tratado com a atenção e o cuidado que o assunto necessita, dada à fragilidade do tema e o impacto prático na vida das pessoas. No entanto, é certo que o Poder Público deve discutir e deliberar sobre essa situação o quanto antes, uma vez que a realidade do Brasil demanda, cada vez mais, uma postura do Estado. O Direito deve, quando necessário, renovar o entendimento legal e as normas que balizam a vida das pessoas, proporcionando, assim, atualização e adequação à realidade social. As retificações legais são a essência da prerrogativa de promoção da justiça, inerente ao Direito. No caso do aborto, deve-se tratar do tema focando na gestação de feto com microcefalia, uma vez que a legalização de toda forma de aborto, tornando-o eletivo para todos os casos, é uma discussão diversa, com outros objetivos e que implica em outras consequências. No caso em tela, temos um cenário inédito, preocupante e com grandes repercussões, e que, ao contrário do aborto eletivo de feto saudável, não foi resultado de uma ação impensada dos pais, gerando consequências por eles inimagináveis. A interrupção de uma gestação sempre é algo complicado, seja pelo procedimento em si, seja pelo abalo emocional de privar uma vida em potencial. 536 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas No entanto, é admissível, neste caso específico, que se pesem as consequências de levar adiante uma gravidez nessas condições para fazer a escolha. A mulher que decide prosseguir ou interromper uma gravidez não o faz ou não deveria fazê-lo, a não ser em nome da possibilidade ou impossibilidade de suscitar humanamente a vida, isto é, a decisão de ter um filho deverá ser devidamente pesada em todos os seus riscos e responsabilidades (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 350). Ciente dos riscos, do desenvolvimento de uma criança com microcefalia, da taxa de mortalidade e dos cuidados vitalícios a serem dispensados ao portador de microcefalia, os genitores terão condições necessárias de decidirem o melhor rumo a ser dado para o seu núcleo familiar. Zelar pela vida é por demasia simples, devendo ser compreendido da seguinte forma: zelar por uma vida digna. O aborto nos casos de microcefalia não se trata de uma irresponsabilidade, mas de uma casualidade associada à falência do Estado no combate de uma endemia de grandes consequências. Deve este mesmo Estado prover a atenção necessária às famílias atingidas, respeitando suas escolhas e fornecendo as informações necessárias e as condições seguras para a realização do procedimento, salvando, dessa forma, inúmeras mulheres dos perigos da clandestinidade. Mais do que defender a legalização do aborto nos casos de microcefalia, devemos defender a discussão da legitimidade do aborto. A principal ferramenta da Bioética é, exatamente, a discussão, que permite buscar alternativas justas e adequadas às novas situações que surgem com o avanço dos tempos e das tecnologias, em especial, da medicina: A bioética não é um código jurídico de deveres e muito menos um receituário de soluções morais. Ela é um fórum de discussão de cunho pluralista e multidisciplinar, pautado pela argumentação ética e pelo diálogo crítico entre os diferentes posicionamentos morais, participantes da solução de um problema, do equacionamento de um dilema ou da resposta a um desafio que tenham como base a vida e a saúde. Portanto, ela não se pauta pela perspectiva jurídica de um código de leis, mas pela sabedoria prudencial do discernimento ético (ARGIMON; GAUER; OLIVEIRA, 2009, p. 18). 537 Alice Nader Fossa e Marta Luiza Leszczynski Salib Não deve o Estado ignorar o alto número de procedimentos clandestinos; o expressivo número de mortes maternas em consequência de interrupções de gestação ilegais; a própria falência na promoção e manutenção da saúde, especialmente no que se refere a um tratamento particularmente caro, longo e complexo. Nas palavras do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto (2016, p. 66), é importante que os operadores do Direito atuem associando o "senso de justiça real, material. Que não é senão sensibilidade social à flor da pele (...) sem, contudo perder de vistas as coordenadas mentais do Direito legislado". Pelas razões supracitadas, entende-se que deve ser alterado o entendimento da norma penal, ampliando seus efeitos para que permita a interrupção da gestação nos casos de feto com microcefalia. Discorrer acerta do assunto com legisladores, doutrinadores e brasileiros em geral é a chave para a atualização da Lei de acordo com as demandas populares, mantendo a coerência e a adequação do nosso ordenamento jurídico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANISTIA INTERNACIONAL. Proibição da Irlanda sobre o aborto viola os direitos humanos – uma decisão inovadora das Nações Unidas. 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