Monólogo de um cego

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Monólogo de um cego
Celso Barros Coelho“É necessário conhecer seu próprio abismoE polir sempre o candelabro que o
esclarece”(Murilo Mendes, Mundo Enigma)O notável poeta piauiense Zito Batista, um dos primeiros
integrantes desta Academia, no seu livro “Harmonia dolorosa”, tem um poema antológico, que as gerações
lêem com emoção e encanto, sobretudo pelo travo de amargura sentida em suas estrofes, tocadas de sonho,
nostalgia, dor, esperança, desespero e crença no destino humano.É o “Monólogo de um cego”.
O que o cego ouvia, quando lhe falavam do sol, maravilhoso sol, das florestas e das aves, do mar, do céu, das
flores, enfim, de um mundo todo cheio de luz, de aroma, de esplendor, fortalecia sua crença:“E eu creio! Eu
creio em tudo...Os homens têm razão! eu creio e desejaravendo sumir-se ao longe a minha noite amara.Ver o
mar, ver o sol no firmamento mudoA brilhar!... a brilhar...”A ansiedade dominava-o e a beleza do mundo que
as palavras lhe revelam produzia-lhe mais assombro do que encanto, pois o encanto passa pelos olhos,
enquanto o assombro nasce do desconhecido.
E volta-se ele para si mesmo, nesse lampejo de esperança que lhe vai dominando o mundo interior, o imenso
abismo da alma, onde as imagens adquirem o mistério das coisas invisíveis, porém sentidas e capazes de dar
um ritmo de harmonia aos anseios do espírito. É nesse ritmo que o monólogo aviva o sonho de quem se sente
oprimido pelo mal da cegueira:“Mas o meu grande sonho, o meu sonho infinitoÉ outro, um outro ainda: o que
me faz chorarE há de, em fúria, arrancar-me o derradeiro gritoQuando eu daqui me for, aos trambolhões, a
esmo,É a ânsia indefinida, o desejo profundoDe conhecer o que há de mais original no mundo,De conhecer a
mim mesmo!Porque a julgar, talvez, pelo mal que me oprimeEu devo ser, por força, um monstro
desconforme.Na eterna expiação do mais nefando crimeAtado ao poste real de minha dor
enorme!...”(Harmonia dolorosa/1924)Sempre que leio esse poema de rara beleza e de tão pungente revelação,
lembro-me da figura popular e simples do cego Biri que, em Pastos Bons de minha infância, batia de porta em
porta, na sua humildade e na sua paciência, pedindo uma “esmola pelo amor de Deus”.
Biri morava a poucos quilômetros da cidade, pelas bandas da Lagoa do Boi, e era por ali que o via passar,
rumo à cidade, conduzido pela mãe de um garoto que lhe servia de guia e que o levava às casas onde contava
como certa a esmola que pedia.
Nos festejos de São Bento, estava lá, na porta da Igreja, com a mesma crença e agradecendo ao mesmo Deus.
Uns passavam indiferentes. Outros lhe depositavam na mão a esmola suplicada. E o Santo lhe agradecia a
presença e fortalecia a fé. Era tudo o que lhe bastava.
O menino curioso, que era eu, observava tudo sem saber o que significava, sem compreender o drama daquele
pobre homem, vivendo, como diz o poeta, na “escuridão sem fim”. Talvez a ele jamais tivessem falado do sol,
das florestas e das aves, o que seria até desnecessário, pois do sol ele sentia, em suas andanças, o calor
abrasante. No seio da floresta ele nascera e ao canto das aves acordava para o trabalho de todos os dias.
Biri, sem dúvida, tinha o seu monólogo, diferente do que escreve o poeta. O seu monólogo interior era sentido
na simplicidade de sua vida, na sublime lição que nos dava em acreditar que o mal que sofria era também um
dom de Deus.Hoje a imagem de Biri está viva em minha memória.
Vejo-o aproximar-se de mãos estendidas para receber, mas também de coração aberto para dar a todos o
agradecimento sincero, projetado da riqueza do seu coração.Nesse monólogo talvez pudesse dizer como o
salmista: “Os meus anos decorrem entre gemidos”.
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Os gemidos dos que vivem na escuridão, mas interiormente iluminados pela luz da fé, a fé que Biri
testemunhava no “Deus lhe pague”, com que agradecia a esmola recebida.
Celso Barros Coelho, da Academia Piauiense de Letras
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