entre a metralhadora, a queixada de burro e o lsd

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ENTRE A METRALHADORA, A QUEIXADA DE BURRO E O LSD: O ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 1970.
Victor Henrique de Resende
UFMG - [email protected]
O presente texto trata de alguns grupos de rock no Brasil e suas relações com a contracultura, nos anos 1970. Pretende-se compreender, por meio das obras musicais selecionadas, as ideias e representações que esses músicos trazem em suas composições sobre cidade e
campo, modernidade e tradição, bem como as possíveis críticas à modernização capitalista, no
período da ditadura civil-militar brasileira.
O corpus documental utilizado neste estudo compreende as bandas Casa das Máquinas, O Terço, Recordando o Vale das Maçãs, Matuskela, o trio Sá, Rodrix & Guarabyra, a
dupla Sá & Guarabyra, Novos Baianos e os músicos mineiros que deram origem ao disco e
ao movimento musical chamado Clube da Esquina.
Em linhas gerais, pode-se destacar que, no regime ditatorial estabelecido no Brasil, a
partir do golpe de 1964, havia o sentimento romântico (apropriado pela esquerda militante,
intelectuais, artistas e grupos estudantis universitários) de tentativa de mudança no cenário de
repressão e cerceamento das liberdades, imposto pelo governo e alguns setores civis da época.
Para vários intelectuais e artistas, o projeto era de mudar o homem para mudar a sociedade.
Em canções de compositores como Geraldo Vandré, Edu Lobo, Carlos Lira, entre outros; nas
manifestações cênico-musicais do show Opinião, com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale; em
romances como Quarup, de Antônio Callado; no Cinema Novo, com destaque para Glauber
Rocha; ou na ala militante da esquerda mais armada etc. (RIDENTI, 2003, p. 135-136), a
ideia era de retornar às ‘raízes’ do Brasil. Tratava-se de um olhar atento ao ‘verdadeiro’ povo
brasileiro, representado na figura do migrante, do favelado, ou do homem do campo. Marcelo
Ridenti destaca que essas manifestações estavam inseridas na ideia de um romantismo revolucionário no Brasil. Ridenti toma esse conceito dos autores Michael Löwy e Robert Sayre
(1995) para analisar a realidade brasileira. Para Löwy e Sayre, “o romantismo representa uma
crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna, em nome de valores e ideais
do passado (pré-capitalistas, pré-modernos)”, e entendem a modernidade como a “civilização
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moderna engendrada pela revolução industrial e a generalização da economia de mercado”
(LÖWY; SAYRE, 1995, p. 34-35). Os autores trabalham com a ideia de romantismos para
abarcar as contradições e diversidades do termo romântico. Estabelecem uma tipologia romântica que vai desde a crítica mais conservadora ao enfoque mais revolucionário. Segundo
Löwy e Sayre, há convergências dos vários romantismos e de sua estrutura de sentimento –
contra o desencantamento do mundo, quantificação, mecanização, abstração racionalista e
dissolução dos vínculos sociais – para a crítica à modernidade capitalista e ao autoritarismo,
além da ideia de nostalgia presente em suas várias expressões.
No caso brasileiro, Marcelo Ridenti esclarece que havia uma proposta nacionalpopular por parte de artistas e da intelectualidade, ligada a certos partidos políticos e à juventude universitária engajada, no sentido de trazer a nacionalidade brasileira por meio do povo,
conscientizando as massas de seu papel na construção e afirmação da identidade do país. Em
contraponto às ideias desse nacional-popular, o autor destaca
(...) o Tropicalismo [que] não pretendia ser porta voz da revolução social,
mas revolucionar a linguagem e o comportamento, incorporando-se à sociedade de massa e ao mercado cultural, mas sem deixar de criticar a ordem
da ditadura. O Tropicalismo articulava a seu modo elementos modernos e
arcaicos: buscava retomar criativamente a tradição cultural brasileira – o
que Caetano Veloso chamou de ‘linha evolutiva da MPB’ – e incorporar de
forma ‘antropofágica’ influências do exterior, simbolizada nos anos 1960
pela tão comentada introdução da guitarra na MPB ou pelas influências da
contracultura... (RIDENTI, 2005, p. 65)
No caso dos embates postos pelo regime autoritário do período, podem-se destacar os
movimentos representativos das lutas e resistências da época, encontrados no engajamento da
esquerda, seja armada, intelectualizada ou artística; e por outro caminho, a proposta contracultural de busca por espaços alternativos de vivência e que traziam certas críticas ao sistema
capitalista, característico da juventude de classe média nos anos 1960 e 1970. Ambos podem
ser inseridos no debate e nas ideias românticas, dentro do contexto brasileiro, sobretudo nas
discussões sobre ruptura, modernidade, tradição e indústria cultural.
Com o aumento da repressão política e social sobre a sociedade brasileira, sobretudo
com a instauração do Ato Institucional número 5, AI-5, a partir de 1968, segmentos da juventude universitária e/ou de classe média optaram pelo embate direto contra o governo, ou pela
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via da contracultura que chegou ao Brasil1. Carlos Messeder Pereira destaca que, nos anos de
1960, entre os jovens e a intelectualidade, em diversos países do globo, surge um tipo de mobilização e contestação social diferente do engajamento político das esquerdas. Os meios de
comunicação de massa começam a denominar a nova forma de contestação de contracultura.
Segundo Luís Carlos Maciel, um dos responsáveis pela atualização e divulgação das ideias da
contracultura em terras brasileiras:
O termo ‘contracultura’ foi inventado pela imprensa norte-americana, nos
anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que
floresceram, não só nos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e, embora com menos intensidade e repercussão, na
América Latina (apud PEREIRA, 1992, p. 13).
O fenômeno contracultural, ou melhor, seus sujeitos históricos, buscaram alternativas
ao modo burguês de vida, questionando a racionalidade da modernização capitalista representada pelo Estado. Dirigindo-se contra a “racionalização da vida social” (RISÉRIO, 2005, p.
39), a juventude brasileira, sobretudo das classes médias, deram ênfase à subjetividade, ao
retorno à natureza, à vida em comunidade, abrindo até mesmo a possibilidade de diálogos
extraterrenos! Encontrava-se em evidência o respeito às diferenças culturais, à liberdade sexual, numa crítica ao consumismo e ao intelectualismo vigente, além da ideia de abandono
das cidades e de retorno ao campo, trocar o asfalto quente pela estrada de chão, rumo ao mato,
ao meio natural.
E, conforme ressalta Carlos Messeder Pereira (1992), a expressão mais artística da
contracultura se deu com o rock, que também chegou ao Brasil e trouxe críticas e representações sobre a sociedade brasileira. Para Ana Maria Bahiana, o rock brasileiro, dos anos 1970,
passou por um processo de síntese e ajustes engendrado por um grupo de artistas nacionais. A
autora relata o trajeto desse gênero musical, distinguindo dois momentos: o primeiro, revela o
rock da Jovem Guarda, “de massa, em 1965, com o programa de TV Jovem Guarda e o trio
de artistas encabeçado por Roberto Carlos, que incluía Erasmo Carlos e Wanderléia” (NOVAES, 2005, p. 53); o segundo momento, conforme afirma Ana Maria Bahiana, traz, em con-
1
Importa destacar que no Brasil, dos anos 1970, não existiam apenas engajados, de um lado, e contraculturais,
de outro. Tomam-se esses dois segmentos apenas como exemplo e contraponto dentro das discussões aqui empreendidas.
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traste, um rock que repudia a sonoridade dos anos 50 e 60, mais ligado ao modelo ‘importado’
e que será diluído em formas brasileiras. Essa diluição do rock pode ser entendida no sentido
de mistura com diversos ritmos musicais do país, como o baião, o choro etc. Bahiana mostra
que os arranjos e a instrumentação elétrica do rock passam a fazer parte da música brasileira
(NOVAES, 2005, p. 56). Como Os Mutantes, expoente do movimento tropicalista (NOVAES,
2005, p. 54), surgem, nesse contexto, outras bandas que buscaram sintetizar e dar novo sentido musical ao gênero. Ana Maria Bahiana cita grupos como Novos Baianos e o trio Sá, Rodrix & Guarabyra. Mais correto, então, seria falar das apropriações e recriações do gênero
rock no país.
Por meio de alguns diálogos e aproximações com o Tropicalismo e de diversas apropriações do rock, os vários grupos, que perpetuaram o gênero pelas terras brasileiras, combinaram elementos tidos como modernos, como as guitarras elétricas – símbolo da modernidade
e, para alguns críticos e artistas ligados à bossa nova nacionalista, símbolo de alienação –,
com violões, violas e ritmos regionais, considerados como parte da ‘tradição’ musical do país.
Além de Os Mutantes, Secos & Molhados, Novos Baianos, ou o som de Raul Seixas – para
citar apenas alguns nomes mais expressivos dentro da indústria cultural, então em processo de
consolidação no país –, surgiram várias bandas no Brasil que, embora não apresentassem uma
vendagem expressiva no mercado fonográfico (VICENTE, 2008), trouxeram, em letra e/ou
música, percepções e críticas sobre a sociedade brasileira. Como exemplo do rock cantado no
Brasil, em especial nos anos 1970, podem ser destacados o trio Sá, Rodrix & Guarabyra, com
o seu rock rural, seguido pela dupla Sá & Guarabyra que, por meio da junção de guitarras
elétricas e violas sertanejas, trouxeram a ideia de retorno à estrada, ao meio rural, onde letras
e melodias expressam uma representação de cidade e campo, além de certas críticas à sociedade e ao contexto político da época; a banda O Terço, que faz diálogo entre rock progressivo
e misturas de guitarras, violas, sintetizadores e teclados, trazendo em suas canções a ideia de
comunidade, campo e meio natural; Casa das Máquinas, que apresenta um som mais ‘rock’,
mais elétrico, e também progressivo, com críticas à modernidade e defendendo um retorno à
natureza; o grupo Recordando o Vale das Maçãs, que junta violões e guitarras, trazendo representações bucólicas em suas músicas; Matuskela, banda brasiliense com uma sonoridade
folk e psicodélica, combinada com samba, baião, bossa nova, guitarras, violões, flautas e percussão, com destaque para letras que expressam bucolismo; os músicos mineiros do Clube da
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Esquina, que fundem bossa nova, elementos do jazz, do rock, música folclórica, erudita e hispânica, combinando som regional e pop em suas canções; e o grupo Novos Baianos, com suas
misturas de rock, baião, frevo, samba e suas vivências contraculturais no período. Importante
destacar que esses grupos se encontram no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, região Sudeste do
Brasil, caracterizada pelo alto processo de urbanização e modernização capitalista, com concentração do mercado de produção e distribuição fonográfica. Vale também ressaltar que existiram, no período, várias bandas que nem sempre deixaram registros de seu trabalho em discos. No caso deste artigo, tomam-se apenas alguns grupos e suas respectivas canções como
representativos do contexto e das aproximações com as críticas românticas e com a contracultura brasileira nos anos 1970.
Sendo assim, avançando nas discussões de Marcelo Ridenti sobre romantismo revolucionário no Brasil, e mostrando não um rock importado, como afirma Ana Maria Bahiana,
mas sim um rock apropriado e que traz representações sobre a cultura brasileira nos anos 70,
procura-se detectar, em composições selecionadas dos grupos acima, o que se pode chamar de
romantismo contracultural. A crítica romântica, formulada a partir das considerações dos
autores Michael Löwy e Robert Sayre (1995), pode ser aplicada à sociedade brasileira do período em estudo, por meio da identificação de três características principais desse tipo de romantismo. A primeira delas, a volta à natureza, ao campo, a ideia de nostalgia e idealização
de uma vida em paz junto à natureza, longe da cidade grande, na recuperação de um tempo
perdido, em harmonia com o meio natural.
Encontra-se essa primeira característica romântico-contracultural em canções do trio
Sá, Rodrix & Guarabyra, da dupla Sá & Guarabyra e do conjunto Recordando o Vale das
Maçãs. Em Cigarro de Palha,2 do trio, temos a valorização do campo como lugar de descanso
e paz: “Só meu cigarro de palha/ meu cavalo alazão me dá/ um momento de paz na vida”. A
canção apresenta os instrumentos de viola, violão de aço e acordeom remetendo a possíveis
representações da sonoridade rural. Em Segunda Canção da Estrada,3 da dupla Sá & Guarabyra, temos a caminhada e o trânsito entre campo e cidade dos artistas:
Quero ir pra casa não vejo minhas coisas desde o começo de abril/ Um relógio velho me espera parado desde o começo de abril/ Tem uma menina
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3
LP Passado, Presente & Futuro, Odeon, 1972.
LP Nunca, Odeon, 1974.
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que eu encontrei na estrada dizendo que volta comigo/ Pra descansar um
pouco da vida que a gente escolheu/ Tuturuei, areia na varanda e conta de
vidro na mão/ Tuturuei, comida na mesa, lençol, travesseiro e colchão (e
colchão)/ Já chegou pra mim o dia em que você levanta e acha que fez/ A
primeira parte de tudo o que queria e agora chegou sua vez/ De plantar raízes na terra de onde veio/ Tirando vida nova do chão/ E logo depois você
volta pra estrada pra ver o que ainda não viu.
A instrumentação da música conta com violas, violão de aço, solos de guitarra e orquestra. Uma característica presente nas canções do trio e dupla é a utilização de naipes de
cordas e metais junto às guitarras elétricas. São contribuições importantes do arranjador Rogério Duprat, que também participou de gravações dos discos d’O Terço. Nesse caso, Duprat
trouxe a proposta de conjugar instrumentos eruditos com os sons elétricos e eletrônicos do
rock.
Em Rancho, filhos e mulher,4 o conjunto Recordando o Vale das Maçãs destaca o desejo de uma vida no campo, um anseio de quem vive no meio urbano:
Eu quero ter minha casa cheia de amigos bons/ Com bichos de toda maneira
e com muito som/ Eu quero dezenas de filhos que saibam cantar/ Você na
rede balançando, cantando prô nene naná/ Eu quero ter uma charrete como
condução/ Eu quero respirar ar puro sem poluição/ Eu quero com os passarinhos aprender cantar/ Um mundo de céu limpo e flores é a vida/ que eu
quero levar/ Aí eu posso pegar minha viola e tocar o que eu quiser/ À tarde
levantar da rede prá tomar café/ Um dia vou ter tudo isso ai se Deus quiser/
Vou encontrar a paz perfeita/ Um rancho, filhos e mulher.
Com misturas de guitarra, teclados, baixo, bateria, violão, violinos e flauta, além de
sonoplastia de pássaros ao fundo, a música mostra a proposta de vida no meio rural.
Em Raízes,5 do grupo brasiliense Matuskela, o elogio do interior, a saudade da terra
natal com seus campos e paisagens permeiam a música com um toque de baião, flautas e cordas:
Ai que saudades da minha terra/ quando o sol já sai da serra/ e é tempo de
plantação/ cantam alegre os passarinhos/ cada qual faz o seu ninho/ na gaiola o meu cancão/ eu olho para o céu e vejo (azul e branco)/ eu olho para o
chão e vejo (verde e amarelo)/ tudo isso é um paralelo/ entre a terra, o céu,
eu e o amor/ e os campos vivos de minha terra/ rio e folhas, vento leva/ mi-
4
5
LP As Crianças da Nova Floresta, GTA, 1977.
CD Matuskela, Chantecler, 1973.
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nha mãe tá na janela/ eu namorando a serra/ e ela a caminhar/ e o rio para
o mar...
Mostram, também, componentes nacionais, “eu olho para o céu e vejo (azul e branco)/
eu olho para chão e vejo (verde e amarelo)”, por meio de representações do campo.
Há, também, a crítica e a percepção da modernidade e do processo de urbanização,
onde o cantor aprecia e valoriza o campo a partir da cidade. Conforme percebemos em O brilho das Pedras/Paulo Afonso,6 do trio Sá, Rodrix & Guarabyra:
Todos os dias/ eu faço força pra lembrar/ coisas pequenas/ que eu nunca
pude reparar direito/ onde será que andava o mato do jardim/ e os bichos
da noite, que eu nunca ouvi tão alto assim?/ (ouvi tão alto assim)/ alto assim/ (tão alto assim)/ Todos os dias/ levanto cedo pra sentir/ o que eu perdia/ por não saber que tinha um outro jeito/ Preste atenção comigo e quando o sol nascer/ o brilho das pedras/ vai te doer nos olhos/ (doer nos olhos)/
olhos/ (nos olhos)/ Vapor do São Francisco/ quem não te deixa ver o mar...
A segunda característica importante é a crítica ao isolamento dos indivíduos. Conforme percebemos na composição Justo Momento7 da dupla Sá & Guarabyra:
Todas as pessoas tristes que a gente não vê/ Andam procurando alguém que
mate a solidão/ Você percebe que elas vão em frente, bem devagar/ Com
medo de sair sem nada de seu/ Sem nada bom de se lembrar na hora do
adeus/ Não custa querer tirar a escuridão do sol/ É fácil tentar tirar o sol da
escuridão/ Um clarão no pensamento de todos os homens/ Nesse momento/
Nesse lindo, exato e justo momento.
Com ritmo de guarânia – gênero originado da polca paraguaia e que convive na fronteira com o Mato Grosso do Sul e se firma no Brasil por volta dos anos 1940 (HIGA, 2012) –,
apropriado pela música sertaneja brasileira, e predomínio de violões e violas, a música amplifica elementos da modernidade enfatizando a solidão e a busca de contato com outras pessoas.
Na música, acima, nota-se o trabalho do “artista romântico [que] trava sua batalha
contra a modernidade” (LÖWY; SAYRE, 1995, p.48) e destaca os sentimentos de “perda,
mudança, pesar” (WILLIAMS, 1989, p. 97) em que as pessoas vivem. Não se tratando de
uma luta contra a modernidade, como destacam os autores acima – visto que os artistas não a
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LP Terra, Odeon, 1973.
LP Nunca, Odeon,1974.
7
negavam – mas, de crítica ao modo de se viver, de se relacionar com a vida moderna dos
grandes centros, agravado pela ditadura, a música, ao mesmo tempo, deixa um recado: “um
clarão no pensamento de todos os homens/ Nesse momento”. Esse justo momento seria o de
se refletir, de pensar a condição do sujeito em meio à modernidade, no contexto da ditadura,
mas, também, para além dela. Uma reflexão sobre a modernidade e o atomismo social que
esta parece intensificar.
Na terceira característica desse romantismo contracultural, percebe-se a ideia de unidade e/ou totalidade, natureza e comunidade humana. Encontramos essas referências em canções como Hey Amigo,8 do grupo O Terço:
Hey amigo/ cante a canção comigo/ Hey amigo/ cante a canção comigo/ É
nada/ é quase/ é tudo/ Hey amigo cante a canção comigo/ Hey amigo/ cante
a canção comigo/ Metade/ é parte/ de um todo/ Nesse rock estamos todos
juntos/ nesse rock estamos todos juntos/ Nesse rock estamos perto de ser/ a
unidade final.
Considerada hino do rock brasileiro da época, a música acima apresenta um estilo de
rock progressivo com guitarras, órgão e sintetizador. Percebe-se, na letra, a ideia de totalidade
humana, de comunidade.
A exaltação à natureza e a denúncia contra a destruição causada pelo homem moderno
aparecem em A natureza,9 do grupo Casa das Máquinas:
A Natureza/ a nossa terra/ a natureza/ a nossa terra/ que a chuva molhou/
que o sol purificou/ transa que Deus criou/ nasci/ A Natureza/ a nossa terra/
que a chuva molhou/ que o sol purificou/ transa que Deus criou/ nasci/ A
natureza/ a nossa terra/ que a chuva molhou/ que o sol purificou/ que o Homem destruiu/ morri.
Há, também, o elogio ao rock como uma música que liberta e que traz a paz, conforme
a letra de Casa de Rock10 do mesmo grupo:
Esta é a casa do tal rock n'roll/ é o rock que casa com a casa/ este é o ninho
do passarinho/ que já nasce voando sem asa/ este é o santo remédio pro seu
8
LP Criaturas da noite, Underground/Copacabana, 1975.
LP Casa das Máquinas, Som Livre, 1974.
10
LP Casa de Rock, Som Livre, 1976.
9
8
cansaço (rock n'roll, rock n'roll)/ é o alimento do nosso pedaço/ yeahh,
yeahh, yeahhhhh/ Esta é a casa do tal rock n'roll/ é o rock que casa com a
casa/ este é o ninho do passarinho/ que já nasce voando sem asa/ esta é a
semente que gera terra (rock n'roll, rock n'roll)/ esta é a bomba que acaba
com a guerra/ yeahh, yeahh, yeahhhhh/ Esta é a casa do tal rock n'roll/ é o
rock que casa com a casa/ é o rock que casa com a casa/ Uh Yeah! (rock
n'roll...).
Esta música rendeu um clipe exibido pelo programa jornalístico Fantástico, da rede
Globo, em 1977. A estética do grupo apresenta elementos da contracultura com artistas vestindo roupas coloridas, cabelos compridos, além do estilo andrógino do cantor Simbas que
causou certo desconforto e polêmica no período. A música, com ritmo rápido e dançante,
apresenta solos de guitarra e base harmônica em bicordes, baixo, bateria e a voz estridente –
com vocalizes em falsete – do cantor Simbas.
Na canção Hoje ainda é dia de rock,11 do trio Sá, Rodrix & Guarabyra, os cantores
enfatizam o rock e as diversas misturas musicais no país:
Eu tô doidin por uma viola/ Mãe & pai de 12 cordas e 4 cristais/ pra eu poder tocar lá cidade/ mãe & pai êsse meu blue de Minas Gerais/ E meu cateretê lá do Alabama/ mesmo que eu toque uma vezinha só/ Eu descobri e
acho que foi à tempo/ mãe & pai/ que hoje ainda é dia de rock...
Percebem-se, na letra, certa crítica aos discursos do nacional-popular, da música engajada. Na voz de Zé Rodrix, o trio canta as variadas sonoridades da música brasileira, utilizando-se da instrumentação do rock e da guitarra elétrica.
Nas aproximações com a contracultura nota-se, em O pó da estrada12 de Sá, Rodrix &
Guarabyra, a caminhada constante:
O pó da estrada gruda no meu rosto/ Como a distância matando as palavras/ Na minha boca sempre o mesmo assunto/ O pó da estrada/ O pó da
estrada brilha nos meus olhos/ Como as distâncias mudam as palavras/
Na minha boca sempre a mesma sede/ O pó da estrada/ (Eu) conheci um
velho vagabundo/ Que andava por aí sem querer parar/ Quando parava
ele dizia a todos/ Que o seu coração ainda rolava pelo mundo/ (E) o pó
da estrada fica em minha roupa/ O cheiro forte da poeira levantada/ Levando a gente sempre mais à frente/ Nada mais urgente que o pó da estrada, que o pó da estrada.
11
12
LP Passado, Presente & Futuro, Odeon, 1972.
LP Terra, Odeon, 1973.
9
A ideia de estrada também aparece em Nuvem Cigana,13 cantada por Milton Nascimento e presente no disco Clube da Esquina: “se você quiser eu danço com você/ no pó da
estrada/ pó, poeira, ventania/ se você soltar o pé na estrada/ pó, poeira/ eu danço com você o
que você dançar”.
Em canções como Criaturas da Noite14 e Casa Encantada,15 do grupo O Terço, as relações de amizade compartilhada, indivíduo e meio natural (característico, também, de certa
estética e experiência contracultural) estão presentes. A letra de Criaturas da Noite, trata de
elementos da natureza e também da condição do cantor, onde o eu lírico mostra sua solidão,
reflexão e percepção dos elementos da noite:
As criaturas da noite/ num vôo calmo e pequeno/ procuram luz aonde secar/
o peso de tanto sereno/ os habitantes da noite/ passam na minha varanda/
são viajantes querendo chegar/ antes dos raios de sol/ Eu te espero chegar/
vendo os bichos/ sozinho à noite/ distração de quem quer esquecer/ o seu
próprio destino/ Me sinto triste de noite/ atrás da luz que não acho/ sou viajante, querendo chegar/ antes dos raios de sol.
Em Casa Encantada, há uma atmosfera sonora que nos remete a um espaço social que
seria o rural. Temos a mesma ideia (ou mesmo tema) de encanto e de místico encontrada na
canção Criaturas da Noite. Há um convite para aqueles que queiram compartilhar do meio
natural e que desejam viver em amizade, em harmonia. Espera-se, na varanda, um amigo ou
um amor. Trata-se de um desejo de vida bucólica, longe da cidade. Na letra, percebemos algumas ideias contraculturais:
Entre os muros que me cercam/ sempre posso ver/ outras terras, outros
mundos/ sol ou mar/ entre os quartos onde moro/ passa um corredor/ onde o
teto tem estrelas/ pra me guiar/ uma luz sempre acesa/ esperando chegar/
um amor na varanda/ um amigo na mesa/ qualquer um viajante/ que se
queira encantar/ pelos quartos vazios/ pelas salas do mar.
Pode-se indagar se tais artistas e suas respectivas produções poderiam ser entendidos
como transgressores ou como parte de certa resistência ao regime autoritário. Alexandre Saggiorato, em sua dissertação de mestrado, intitulada Anos de Chumbo: rock e repressão duran-
13
LP Clube da Esquina, Odeon, 1972.
LP Criaturas da Noite, Underground/Copacabana, 1975.
15
LP Casa Encantada, Underground/Copacabana, 1976.
14
10
te o AI5 (2008), ao analisar as bandas de rock dos anos 1970, procura demonstrar o caráter
transgressor dos músicos. Para o autor,
(...) o rock brasileiro produzido nos anos 1970 encontra-se em situação de
enfrentamento à ditadura, porém não seguindo os passos da MPB engajada,
envolvida nos ideais da UNE, e sim comportamentalmente, com características subversivas de transgressão... (SAGGIORATO, 2008, p. 24)
Trabalhando os grupos Casa das Máquinas, O Terço e Novos Baianos, Saggiorato
destaca as atitudes e os comportamentos desses artistas frente à repressão do regime militar.
Para o autor, nos anos 1970, “os roqueiros produziram durante o AI-5 uma música comportamental, com crítica aos valores tradicionais. Escreviam sobre a liberdade sexual, o uso de
drogas e sobre a busca pela vivência em outro sistema” (SAGGIORATO, 2008, p. 22).
Analisando as letras das composições, algumas performances e capas dos discos dos
grupos acima, Alexandre Saggiorato procura traçar o perfil contestador dessas bandas. Mostra
o posicionamento político desses músicos e também tenta situá-los entre a esquerda militante
e a direita conservadora:
(...) colocar-se à margem tornava-se também opção de alguns jovens para
com os acontecimentos que marcavam o país e o mundo no período. Tornarse livre e não atuante dos princípios sociais vigentes, era uma espécie de resistência ao regime, bem como de fuga e também de legitimação da própria
cultura underground. (SAGGIORATO, 2008, p. 36)
Concorda-se com o autor sobre os valores e experiências contraculturais desses grupos, a fuga para o campo ou a fuga do espaço público e do regime repressor. Porém, procurase aqui avançar em tais questões, mostrando que, no caso desses artistas, não se tratou principalmente e/ou apenas de um rock transgressor. Alexandre Saggiorato define, em sua pesquisa,
o ato de transgredir. Conforme aponta em nota de rodapé, seria “um ato de desobediência,
infração e violação às normas e condutas sociais do período em questão” (SAGGIORATO,
2008, p. 14). Contudo, busca-se mostrar que, para além e apesar da ditadura militar no Brasil,
esses artistas não procuraram transgredir as normas sociais, ou se opor diretamente contra o
regime. Conforme notamos numa fala de Flávio Venturini do grupo O Terço:
11
Eu não me lembro de censura a nossa música. A gente sentiu o peso da ditadura sim, morando em São Paulo de 1974 a 1978. A barra era muito pesada, a gente era muito parado na rua, eu com cabelos imensos e aquela cara
de hippie (risos). (...) Eu acho que a música era uma válvula de escape, é só
ver a riqueza da música brasileira dessa época. (VENTURINI, entrevista ao
Museu do Clube da Esquina)
É claro que não faltaram as críticas, mesmo que sutis, desses grupos para com o regime autoritário. Como exemplo, em Nuvens d’agua16 da dupla Sá & Guarabyra, os artistas
usam metáforas para mostrar que os tempos são difíceis e que percorrer o espaço público pode
ser perigoso. Existe confusão, incertezas, mas o trânsito entre campo e cidade continua:
Quando esse tempo muda/ e eu me sinto assim confuso/ É perigoso chegar à
janela/ pra olhar o asfalto secando/ E quando as nuvens d’água no asfalto/
São figuras mudando na tela/ É perigoso chegar à janela/ ainda mais, quando se está tão longe/ ainda mais, quando se está tão longe/ E a tela muda de
imagem/ E mostra a minha cidade/ É um canteiro, uma pedra/ uma frase na
moita de capim/ E a tela muda de imagem/ E mostra a minha estrada/ O tabuleiro, uma cerca/ O gosto de gergelim/ Tudo bem, muito bem/ Está tudo
bem/ Tudo bem!/ Mas quando as nuvens d’água no asfalto/ São figuras mudando na tela/ É perigoso olhar à janela ainda mais, quando se está tão
longe/ Ainda mais, ainda mais quando se está tão longe/ Ainda mais (tudo
bem!) quando se está tão longe.
Em Mudança de Tempo17, do grupo O Terço, encontramos também as críticas com relação ao regime autoritário brasileiro:
Acordar/ que o tempo parou por aqui/ espalhar/ as nuvens que cobrem o
céu/ acordar/ que o tempo parou por aqui/ espalhar/ as nuvens que cobrem
o céu/ tomara que um pé de vento/ passe por cá/ tomara que a correnteza/
teime em passar/ quem dera que a maré suba/ invadindo o cais/ pois quando
amanhecer de novo/ haverá lugar/ tomara que um pé de vento/ passe por cá/
tomara que a correnteza/ teime em passar/ quem dera que a maré suba/ invadindo o cais/ pois quando amanhecer de novo/ haverá lugar para o sol.
Há, aqui, a crítica e os apontamentos para se pensar numa mudança de rumos para o
país. Uma ideia de esperança, de libertação e de mudanças que precisam acontecer urgentemente.
16
17
LP Nunca, Odeon, 1974.
LP Mudança de Tempo, Underground/Copacabana, 1978.
12
Pode-se entender as composições mostradas acima e as vivências dos referidos músicos como parte de uma visão romântica nos anos 1970. Testando a hipótese fundamental deste
trabalho, pode-se afirmar que, nesse romantismo, pregava-se a vida em comunidade, o retorno
à natureza, a ênfase na estrada, e criticava-se o isolamento social dos sujeitos, estabelecendo
diálogo com a contracultura. Dessa forma, entende-se tal vertente como um romantismo contracultural.
No diálogo com a contracultura dos anos 1970, no Brasil, o rock apropriado e executado pelos artistas em destaque apresenta três características fundamentais em que se pode
afirmar seu caráter de crítica romântica contracultural: primeiro, a volta à natureza, ao campo.
O bucolismo encontrado nas letras e nos arranjos das composições faz parte da ideia de nostalgia e idealização de uma vida em paz, longe da cidade grande, na recuperação de um tempo
perdido, em harmonia com o meio natural. Tais ideias são compartilhadas pelo pensamento
romântico, na crítica à sociedade moderna, capitalista. Segunda característica importante é a
crítica ao isolamento dos indivíduos. Löwy e Sayre enfatizam que:
O capitalismo suscita indivíduos independentes para preencher funções socioeconômicas; mas quando esses indivíduos agem como individualidades
subjetivas – explorando e desenvolvendo seu mundo interior, seus sentimentos particulares – entram em contradição com um universo baseado na padronização e reificação. (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 45)
A crítica romântica dos autores, também encontrada nas canções analisadas, é contra o
individualismo do liberalismo. Para as representações contraculturais, para seus sujeitos históricos – na maioria a juventude de classe média –, a individualidade estaria acima de convenções sociais ou restrições do governo. Uma individualidade, contudo, compartilhada
(GOFFMAN; JOY, 2007, p. 50). Como afirma Paulo Chacon, ao tratar da contracultura e especificamente do rock, como crítica social: o crescimento do poder do Estado leva ao questionamento da subjetividade e como consequência, a formas de resistência contra a opressão
(CHACON, s/d.). O autor destaca que:
Para contestar era necessário dar espaço ao homem enquanto indivíduo,
enquanto ser criador. No limite se poderia imaginar um socialismo mais
humano, mais democrático (...) buscava-se uma solução mais ampla (porque
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generalizada) e, paradoxalmente, mais particular (porque vinda do interior
de cada um). (CHACON, s/d, p. 106-107)
O que explica a questão da subjetividade e ao mesmo tempo o ideal comunitário no
pensamento e nas práticas românticas contraculturais, entre os anos 1960-1970.
Por fim, como terceiro elemento importante desse romantismo contracultural, estaria a
ideia de unidade ou totalidade, natureza e coletividade humana. O individualismo compartilhado nas vivências contraculturais requer a ideia de comunidade. Daí, as tentativas de uma
sociabilidade mais orgânica, as comunidades hippies, no campo, ou mesmo nos centros urbanos. Segundo Maria Rita Kehl, na São Paulo dos anos 1970, havia:
Uma cidade de jovens morando em comunidades, ocupando em bandos sobradinhos e sobradões no Butantã, em Pinheiros e na Vila Madalena (bairros preferenciais, por serem vizinhos da Cidade Universitária e ainda oferecer aluguéis baratos), e que se reuniam com frequência em grandes festas
armadas de uma hora para outra... (KEHL, 2005, p. 34)
Como exemplo, destaca-se a carreira e o rock rural de Sá, Rodrix e Guarabyra, que se
inicia num apartamento, onde vários artistas e intelectuais se encontravam. Segundo o relato
do maestro Júlio Hungria, em 1976, relembrando o encontro dos músicos que formariam o
trio:
Em 71, eu me lembro, havia uma comunidade – mais era um ensaio de máfia. No apartamento 1 da Rua Alberto de Campos, 11, em Ipanema. Trajano, Toninho, Guarabira. E, logo depois, chegou o Sá. E apareciam o Zé
Rodrix, o Gonzaguinha. Vivia-se o último alento da fase dos festivais, que
terminaria melancolicamente, no Maracanãzinho, um ano mais tarde, logo
em seguida ao antifestival de Juiz de Fora (agosto, 72). Ali, quando faltava
dinheiro para a conta da luz, o toca-discos emudecia, as vozes se juntavam,
primeiro em uníssono, depois contra-cantos, sobre violões e guitarras (....)
Ali as vozes foram se entendendo, se cruzando, se casando, e quando a luz
acendeu – a conta paga – foi como se estivesse iluminado um palco, comandando o início do espetáculo: “Senhoras e senhores – o rock rural”!
(HUNGRIA, 1976, p. 3)
Tem-se, aqui, a ideia de vida em grupo, em comunidade, mesmo que num apartamento, na zona urbana, como traços da contracultura. Também os integrantes do grupo Novos
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Baianos viveram em comunidade. Conforme aponta Herom Vargas (2011), em sua pesquisa
sobre o grupo:
Com algumas variações, os quatro membros iniciais do grupo e outros músicos e amigos moraram sob o mesmo teto em três oportunidades: um apartamento no Jardim Botânico, Rio de Janeiro; uma casa no bairro do Imirim,
em São Paulo; depois de uma passagem por Arembepe, famosa praia hippie
na Bahia, em 1970, viveram em um apartamento em Botafogo, no Rio. Essas
experiências comunitárias urbanas foram fundamentais para a ida para o
Cantinho do Vovô, sítio situado no bairro Boca do Mato, em Jacarepaguá
(RJ), e para a criação da famosa comunidade dos Novos Baianos... (VARGAS, 2011, p. 469)
Por sua vez, os músicos d’O Terço foram para uma casa num sítio, em São Paulo, para
compor o LP Casa Encantada. Percebem-se, então, certas representações, mesmo que sutis,
de propostas diferentes dentro da sociedade burguesa, moderna e conservadora do período.
Importante, também, o elemento estrada que aparece em canções do trio Sá, Rodrix &
Guarabyra, da dupla Sá & Guarabyra, do Clube da Esquina, articulando e completando esses
três eixos principais de entendimento romântico e contracultural do fazer musical desses artistas.
Portanto, a partir do conceito de romantismo contracultural, é possível destacar algumas representações que os músicos fazem do Brasil, nos anos 70. Em primeiro lugar, podemse pensar os diferentes grupos e as realidades contraditoriamente construídas no período de
regime autoritário, no país: intelectuais de esquerda, integrantes da luta armada, juventude
universitária engajada ou ligada às ideias da contracultura; a música nacionalista de protesto,
o rock, além de diversas manifestações artísticas que não cabem no presente artigo, por delimitação de espaço e tempo. Em segundo, a maneira de estar e de se posicionar no mundo desses artistas, no contexto brasileiro dos anos 1970. Nesse caso, as significações simbólicas do
rock brasileiro, desses grupos, demonstram as práticas que fazem reconhecer determinada
identidade social (CHARTIER, 2002, p. 73). O conceito de apropriação torna-se viável para
entender os diversos usos da música brasileira, sobretudo do rock, que os artistas fazem para a
compreensão e as vivências no cotidiano e no contexto brasileiro em questão. Tomado de empréstimo do historiador Roger Chartier, o conceito de apropriação diz respeito aos usos e
interpretações – de diferentes grupos, indivíduos, instituições etc. – inscritos nas práticas que
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os produzem. Chartier enfatiza as diferentes apropriações culturais pelos grupos sociais – que
também compreendem construções culturais – nos processos e vivências históricas, dando
dinamismo às realidades socialmente contraditórias (CHARTIER, 1995; 2002). Nas diversas
manifestações do rock no país, é possível perceber tais práticas identitárias e suas construções
(...) como resultado sempre de uma relação de força entre as representações
impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma.
(CHARTIER, 2002, p. 73)
Em suas produções musicais pode-se afirmar que os músicos, aqui discutidos, se encontravam entre o engajamento do nacional-popular e a aceitação da ditadura. Suas canções
não se trataram, sobretudo, de uma resistência ao regime militar brasileiro. Suas obras e vivências, por outro lado, constituíram-se como vozes dissonantes, ou destoantes, do contexto
em questão. Por meio de suas composições, em letra e arranjo, os artistas trataram do cotidiano das relações entre campo e cidade. Suas músicas, de forma sutil, retrataram o processo de
urbanização do país, as aproximações com a contracultura, a ideia de ‘fuga’, medo e ‘desilusão’ para com o regime político de exceção e, por fim, da condição dos indivíduos na modernidade brasileira. Portanto, apropriando-se do gênero rock, os artistas trouxeram um tipo de
representação diferente do engajamento político/cultural preconizado pela intelligentsia de
esquerda ou pela música nacionalista de protesto. Encontravam-se, também, inseridos na modernidade autoritária do país e utilizaram do instrumental moderno, ‘eletrificado’, para criticar
a própria condição moderna. Fizeram, também, diálogo com algumas ideias contraculturais,
sobretudo, a volta ao campo e a vida no sossego do meio rural. Ao enfatizarem tal alternativa
no cenário brasileiro, não significou que os artistas comungaram unilateralmente com os ideais da contracultura: trataram do campo a partir da cidade e enfatizaram a caminhada constante entre um e outro. Não tão distantes, contudo, os músicos também se apropriaram das ideias
românticas contraculturais do período, principalmente a valorização do campo e da natureza,
mas pela ênfase à estrada, o que também não se afasta da contracultura. Utilizaram-se de vários estilos e gêneros musicais executados no Brasil – o rock, a guarânia, a conga, o baião, o
xote etc. – e uma diversidade de instrumentos – violas, craviola, alaúde, baixo, guitarras elétricas, sintetizadores, ocarinas, violões, entre outros, para sua produção musical.
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No panorama em que se insere o ritmo rock, Paulo Chacon cita, de um lado, os hippies, os adeptos da não violência, criticando a sociedade e o Estado, representando uma forma
de sociedade não-consumista, igualitária e pacífica. De outro, o autor destaca os guerrilheiros,
a esquerda armada. Para Chacon: “ambos lutavam contra o mesmo inimigo e tinham, no fundo, pelo menos um objetivo comum: a extinção da sociedade capitalista e do padrão burguês
de comportamento” (CHACON, s/d, p. 111).
Nem engajados, nem hippies pacifistas. Embora Luiz Carlos Sá do trio Sá, Rodrix &
Guarabyra afirme, por exemplo, ter sido “cantor de protesto anos antes do trio”, e que tudo o
que fizeram de “político na ditadura foi censurado”18, os artistas aqui em destaque não pretendiam ‘extinguir’ a sociedade capitalista com suas violas e guitarras elétricas (!). Transitaram
pelas diversas vertentes da música brasileira, combinando guitarras, folk, rock, progressivo,
sons ‘regionais’ e comportamento contracultural, conforme destacados acima. Apropriaram-se
de diversos gêneros e instrumentos, e trouxeram críticas e alternativas ao modo de vida na
sociedade brasileira dos anos 1970. Construíram – por meio do rock que propuseram e executaram – uma ideia de identidade para o Brasil.
REFERÊNCIAS
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Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
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Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, 1995, pp.179-192.
GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital RJ: Ediouro, 2007.
HIGA, Evandro Rodrigues. “A assimilação dos gêneros polca paraguaia, guarânia e chamamé
no Brasil e suas transformações estruturais”. Disponível em: http://www.iaspmal.net/wpcontent/uploads/2012/01/EvandroHiga.pdf. Acesso em 24 mar. 2012.
18
Entrevista concedida ao autor deste artigo, em meio eletrônico, nos meses de maio e junho de 2010.
17
HUNGRIA, Júlio. Sá e Guarabira: resistência à colonização. In: Jornal de música e som. RJ:
Editora Vozes, 1976, p. 2-3.
KEHL, Maria Rita. “As duas décadas dos anos70”. In: RISÉRIO, Antônio (org.). Anos 70:
trajetórias. SP: Iluminuras – Itaú Cultural. 2005, p. 31-37.
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da
modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.
NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. RJ: Aeroplano. Editora Senac
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Discografia
CASA DAS MÁQUINAS. Casa das Máquinas, Som Livre, 1974 (disco vinil).
____. Casa de Rock, Som Livre, 1976 (disco vinil).
MATUSKELA. Matuskela, Chantecler, 1973 (CD).
18
MILTON NASCIMENTO e LÔ BORGES. Clube da Esquina, Odeon, 1972 (disco vinil).
NOVOS BAIANOS. Acabou Chorare, Som Livre, 1972 (CD).
O TERÇO. Criaturas da Noite, Underground/Copacabana, 1975 (disco vinil).
____. Casa Encantada, Underground/Copacabana, 1976 (disco vinil).
____. Mudança de Tempo, Underground/Copacabana, 1978 (disco vinil).
RECORDANDO O VALE DAS MAÇÃS. As Crianças da Nova Floresta, GTA, 1977 (disco
vinil.
SÁ & GUARABYRA. Nunca, Odeon, 1974 (disco vinil).
SÁ, RODRIX & GUARABYRA. Passado, Presente & Futuro, Odeon, 1972 (disco vinil).
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VENTURINI, Flávio. Entrevista ao Museu do Clube da Esquina. Disponível em:
http://www.museuclubedaesquina.org.br/museu/depoimentos/flavio -venturi
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Acesso em: 04 mar.2015.
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