a tradução intersemiótica e o conceito de equivalência

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A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E O CONCEITO DE
EQUIVALÊNCIA1
Thaïs Flores Nogueira Diniz
Universidade Federal de Ouro Preto
Tradicionalmente, define-se tradução como o ato de transportar, transferir, supondo-se a
existência de algo inerente ao texto, um sentido, que vai ser transportado. As modernas teorias
de leitura, entretanto, defendem que um texto só existe à medida em que é lido, o que descarta a
possibilidade de um texto pronto, cheio de significados que serão, "descobertos" e, em seguida,
transferidos. Traduzir envolve um processo mais abrangente do que a via unidirecional. O texto
resultante, a tradução, não consiste da incorporação do texto anterior "transportado", e sim de
um texto que se refere a outro(s) texto(s), que o(s) afeta, que mantém com ele(s) uma determinada
relação ou que ainda o(s) representa de algum modo. É esse modo pelo qual um representa
outro(s), é esse tipo de relação que existe entre eles que é o objeto dos estudos de tradução
intersemiótica. Nos últimos anos, a semiótica, teoria dos signos, vem se ocupando da análise de
textos visuais, explorando as ramificações da distinção peirceana entre índice, ícone e símbolo,
em termos visuais, e discutindo a natureza da representação. A semiótica acrescentou ao modelo
estruturalista tanto as preocupações com o "status" social e o funcionamento do signo, como a
definição c o papel do espectador/leitor em relação ao texto.
Passou a dar maior ou menor prioridade ao social, ao psicanalítico, ou ao descritivo
(O'Toole, 1990:185). Atualmente, em toda descrição de textos, tem-se dado grande ênfase ao
papel social e às predisposições do produtor e do receptor.
Quando usamos uma linguagem, produzimos sentido. Mas podemos significar também
através de outros atos, como por exemplo, os que fazemos quando nos movimentamos, ou quando
acenamos bandeiras, ou colocamos sinais ou linhas nas estradas. Também quando construímos
um edifício, fazemos um filme, escrevemos um romance, uma peça ou poemas, quando pintamos,
esculpimos, modelamos ou bordamos. Cada uma dessas atividades semióticas tem seu próprio
sistema de sentido. Não são "como linguagens" em seu meio de expressão, mas procedimentos
que permitem especificar seus processos e práticas semióticas distintivas.
O teatro e o cinema, como "performance", também representam atividades semióticas,
pois existem para significar. Para entender a natureza artística de cada uma delas, precisamos
1.
Este trabalho é parte de uma pesquisa que resultou em minha tese de doutorado.
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conhecer os aspectos específicos de cada abordagem, isto é, que tipo de signo usam e como esses
signos são organizados. Se temos dois textos, um teatral e outro fílmico, que se apresentam como
signos icônicos um do outro, isto é, são signos numa mesma cadeia semiótica, podemos dizer
que um pode ser considerado uma transformação, ou tradução, do outro, uma tradução intersemiótica. Traduzir do teatro para o cinema significa pois ver o outro texto como um signo em um
outro sistema semiótico.
O processo de tradução entre essas duas atividades semióticas pode iniciar-se previamente
e passar por um estágio intermediário, quando o texto dramático é transformado primeiro em
texto teatral, ou seja, é encenado no palco. O texto encenado já representa, em si, uma tradução
intersemiótica, marcada por uma tensão entre a liberdade da imaginação humana propiciada pelo
texto escrito e as limitações do palco. Essa tensão talvez tenha sido o motivo pelo qual Peter
Brook uma vez tenha declarado que King Lear era irrealizável como produção teatral e conseqüentemente também como produção cinematográfica. Hoje, com os rumos que as teorias de
teatro tomaram, e com o desenvolvimento do cinema, essa afirmação seria refutada com o
argumento de que as "performances" têm o poder de ativar a imaginação, de forma diferente
embora não mais eficiente, do que o texto escrito.
Peter Brook também modificou seu ponto de vista a respeito de Lear e acabou por produzir
um filme, em 1970, traduzido da peça de Shakespeare2. Segundo Michael Mullin (1983), Brook
passou pelos dois processos e traduziu, primeiro, o texto para o palco e depois a encenação para
o cinema. Mullin aponta os recursos usados no filme, que seriam o resultado de uma tradução da
encenação de 1962. Segundo Mullin, o cineasta sabe que o cinema é capaz de criar uma
tempestade real com trovões, relâmpagos, ventos e chuva, mas seu sucesso não está no grau de
realismo que pode obter, e sim na exploração dos recursos cinematográficos para "criar uma
tempestade também na imaginação da audiência", e no uso desses recursos para criar o contexto
da ação3. O filme exemplifica o uso desses recursos especificamente cinematográficos, mas
também de estratégias genuinamente teatrais, que ilustram a ruptura das barreiras entre as formas
de expressão.
Jack J. Jorgens, na década de 70, denunciava a propaganda defensiva contra as diferenças
entre teatro, literatura e cinema e a lacuna na pesquisa que explora as possibilidades criativas de
cada meio. Muitos teóricos de cinema vêm tentando romper as barreiras entre as duas formas de
expressão, reafirmando as relações entre o cinema e outras formas narrativas e artísticas. É que
nesta era de filmes centrados no ator e no diretor, segundo ele, todos os filmes de ficção são, ao
mesmo tempo, "performance", interpretação e adaptação de roteiros. Enfatizando uma completa
triangulização entre filme, roteiro e vida, ele sugere que Shakespeare, considerado como o
escritor das estruturas dramáticas intrincadas, das caracterizações ricas e da poesia cinemática,
tem muito a oferecer a uma arte obcecada com imagens e conflitos dramáticos, como é o cinema
(Jorgens, 1977:251).
O século XX é rico em manifestações que procuram maior integração entre as artes. Neste
contexto, a tradução intersemiótica do texto para o palco ou do teatro para o cinema, ou ainda do
texto para a tela, por exemplo prolifera. Em qualquer situação, o processo de tradução consiste
na procura de equivalências entre os sistemas. Isto quer dizer que um elemento x que ocupa um
determinado lugar num determinado sistema de signos, o teatro, por exemplo, seria substituído,
na tradução, por um outro elemento x' que exercesse a mesma função, porém no outro sistema
de signos, o cinema.
2. King Lear. Peter Brooks film of William Shakespearcs King Lear (GB/Dinamarca; ano de filmagem 1969-1970; primeira exibição:
1971), produzido por Filmways, Londres e Alhene/Lanlerna Films Copenhagen).
3. Aqui estou me valendo de uma citação de Maynard Mack feita por Buchman, p. 52.
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O filme de Peter Brook, considerado como tradução da peça encenada pelo mesmo diretor,
ilustra alguns procedimentos que resultaram da busca pela equivalência. Na produção de 1962,
a cena da tempestade é completamente estilizada. Mullin descreve o palco totalmente iluminado
e os atores imitando os efeitos do temporal numa coreografia, enquanto se ouvem os ruídos da
tempestade. Enquanto os sons aumentam, três enormes folhas de metal pintadas de cor ferrugem,
pendem do teto, balançando e imitando o reboar do trovão. No filme, Peter Brook também se
vale da estilização, porém esta se apresenta de modo diferente. A coreografia do palco é
substituída, na tela, por saltos de montagem, dissolvências, descontinuidade visual, sobreposição
de imagens e escurecimento da tela, recursos cinematográficos usados para simbolizar os efeitos
da tempestade, descartando-se assim a simples transposição, para o cinema, da estilização usada
no teatro. Desse modo, o filme ilustra a procura da equivalência a nível do lugar ocupado pelos
diversos elementos dentro dos respectivos sistemas semióticos.
Erika Fisher-Lichte, em seu artigo sobre tradução de textos dramáticos para teatrais,
afirma
que a equivalência não pode ser identificada como identidade de sentido nem do sentido que o texto faz surgir, nem do
sentido de seus elementos e subtextos. Equivalência significa que o texto dramático e o texto teatral podem ser
interpretados e compreendidos com referência a um sentido comum a ambos. Assim, um julgamento de equivalência
não significa uma relação existente que possa ser percebida e afirmada por qualquer um, mas o resultado de um processo
hermenêutico no qual a l e i t u r a de uma texto dramático se relaciona à "leitura" de um texto teatral - dramatização,
encenação-com referência aos sentidos que são resgatados por ambos (Fischer-Lichte, 1987: 211)4
Pode-se dizer o mesmo em relação a um texto dramático e um texto fílmico, ou à encenação
no palco e a produção cinematográfica. Nesse sentido, qualquer deles, considerados como tradução
um do outro, são obras inteiramente independentes, sui generis, mas, ao mesmo tempo, intimamente relacionadas. Como resultado do processo transformacional, surge uma estrutura totalmente
nova. E o texto tem de ser visto como uma obra autônoma que não pode ser adequadamente
compreendida e julgada, se tomada apenas como uma transformação. Não se pode, entretanto,
negar que está intimamente ligada ao outro, pois funciona como seu "interpretante".
A idéia de equivalência provém do fato de que toda linguagem tem uma ordenação básica,
isto é, os signos não se amontoam, mas existem como sistemas, semântica e sintaticamente,
organizados. A equivalência estilística aponta para elementos com funções equivalentes. Este é
o nível da tradução intersemiótica. Assim, a equivalência não se define como busca pela igualdade que não pode ser encontrada nem dentro da mesma língua - mas como processo. A
percepção da equivalência é como uma dialética entre os signos dos textos em questão e o objetivo
da tradução passa a ser esclarecer a questão da equivalência e examinar o que constitui o sentido
dentro desse processo. Porém, em momento algum, essa questão é normativa.
A tradução se define, pois, como um processo de transformação de um texto construído
através de um determinado sistema semiótico em um outro texto, de outro sistema. Isso implica
em que, ao decodificar uma informação dada em uma "linguagem" e codificá-la através de um
outro sistema semiótico, é necessário mudá-la, nem que seja ligeiramente, pois todo sistema
semiótico é caracterizado por qualidades e restrições próprias, e nenhum conteúdo existe
independentemente do meio que o incorpora. Esse conteúdo não pode, por isso, ser transmitido,
ou traduzido, ou transposto, independentemente de seu sistema semiótico. Numa análise de
tradução, não podemos, portanto, restringir-nos aos sistemas como produtores de signos - de que
ambos, o cinema e o teatro são capazes - e à sua equivalência. É preciso levar em conta também
os aspectos que, em ambos os sistemas, moldam a experiência do espectador e sua equivalência.
4.
A tradução deste trecho é de responsabilidade da autora.
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O espectador, como parte efetiva no processo de significação, aquele ''para quem" algo está no
lugar de "outra coisa'", vai adicionar ao que vê, sente, percebe e ouve, o que ele sabe: idéias
socialmente controladas e estabelecidas sobre um mundo objetivo, seus objetos e procedimentos
neutros (Uexküll, 1984:191).
Assim, consideramos a tradução Intersemiótica como "via de acesso mais interior ao
próprio miolo da tradição", tradução como "prática crítico-criativa na historicidade dos meios
de produção e reprodução, como leitura, como meta-criação, como ação sobre estruturas, eventos
como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história" (Barbosa, 1979:90). Quer dizer
''como pensamento cm signos, como trânsito dos sentidos, como transcriação de formas na
historicidade" (Plaza, 1987:14).
O tradutor, já definido como leitor antes de ser produtor, também tem sua experiência
moldada. Ele tem em vista o espectador com todos os seus condicionadores sociais, mas,
simultaneamente, como o criador do interpretante, sofre, também, a influência desses mesmos
condicionantes. A tradução situa-se, pois, na interseção, no entrecruzar desse social partilhado
pelo emissor e pelo receptor do novo signo constituído pela tradução.
Existem, pois, condições ligadas ao próprio caráter do sistema semiótico, mas outras que
se ligam ao contexto. Torna-se necessário, então, estudar as condições que tornaram possível a
transformação ou tradução. Os estudos na área não podem, portanto, limitar-se à descrição de
semelhanças e diferenças entre textos-fonte e textos-alvo. Precisam tentar mostrar quais os
mecanismos de canonização, integração, exclusão e manipulação que, subjacentes à produção
do texto traduzido, operam nele continuamente, em vários níveis. Para cumprir esse objetivo,
esses mecanismos tornam-se muito mais abrangentes do que meros estudos lingüísticos, e não
mais se desassociam dos estudos literários e culturais. Daí o destaque atribuído atualmente ao
elemento cultural, c a avaliação da tradução como um processo eminentemente transcultural.
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, João Alexandre. "As Ilusões da modernidade". Revista Através 3. São Paulo, 1979.
BUCHMAN, Lorne M. Still in Movement: Shakespeare on Screen. New York/Oxford: Oxford U.P., 1991.
FlSCHER-LICHTE, Erica. "The Performance as an 'interpretant' of the drama". Semiótica 64:197-212 (1978)
JORGENS, Jack. Shakespeare on film. Bloomington & London: Indiana University Press, 1977. MULLIN.
Michael. "Peter Brooks King Lear: Stage and Screen". Literature/Film Quarterly 11 (3): 190-196,
1983.
O'TOOLE Michael. "A Sysiemic-functional semiotics of Art". Semiótica 82: 185-209, 1990. PLAZA,
Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. UEXKULI., Thure Von. "Semiotics
and the problem of the Observer". Semiótica 48: 187-195, 1984.
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