REGULAO E CONTROLE SOCIAL NO BRASIL:

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IV Encontro Nacional da Anppas.
Brasília, 4 a 6 de junho de 2008
Regulação e Controle Social dos Serviços Urbanos no Brasil: dilemas de
implementação no saneamento brasileiro
Marcelo Coutinho Vargas
Sociólogo, urbanista
Professor associado Universidade Federal de São Carlos
[email protected]
Resumo
O texto procura discutir aspectos teóricos e conceituais da regulação dos serviços urbanos,
focalizando especificamente o saneamento brasileiro. Trata-se de examinar como estas noções,
incorporadas ao novo marco regulatório estabelecido para o setor com a aprovação da lei federal nº
11.455/2007, vêm sendo compreendidas entre os atores envolvidos no debate da política nacional de
saneamento, visando esclarecer confusões que podem prejudicar o processo de implementação
desta política.
Palavras chave
regulação – controle social – saneamento
Embora tenha raízes históricas no final do século XIX, com a criação de órgãos reguladores, nos
EUA, o debate sobre a regulação dos serviços industriais de utilidade pública assume um novo
caráter no Brasil a partir da segunda metade da década passada, no bojo das políticas de
privatização e reforma do Estado do governo Cardoso. Neste contexto, em que diversos setores
foram reestruturados, com a participação do capital e de operadores privados dentro de um novo
quadro jurídico-institucional, também foram criadas as chamadas “agências reguladoras”, visando
regular a prestação destes serviços que apresentam uma tripla particularidade: i) são suportes
essenciais à reprodução da força de trabalho e a acumulação de capital; ii) contribuem amplamente
para o bem estar da coletividade e a ampliação da cidadania; iii) são organizados como sistemas
caracterizados pela virtual ausência de concorrência e outras “falhas de mercado”.1
A criação destas agências, inspiradas na tradição reguladora anglo-americana, reflete um movimento
mais amplo de reforma do Estado que teve início nos países centrais, com a crise do Welfare State, a
partir de meados dos anos 1970, e a ascensão política do neoliberalismo, na década seguinte, tendo
aportado na América Latina, no rastro da “globalização”, na primeira metade dos anos 1990.2 Neste
processo, buscou-se absorver e aclimatar modelos de regulação dos serviços de utilidade pública
estranhos à nossa cultura político-administrativa, gerando problemas conceituais e institucionais que
dificultam a implementação da política regulatória nos diversos setores envolvidos.
1
Para uma conceituação aprofundada sobre as funções sócio-econômicas dos serviços industriais de utilidade pública, e os modelos de
regulação envolvidos, ver Silva (1999), que apresenta a situação brasileira numa perspectiva histórica.
2
Cf. Silva (1999) e Fadul (2007), entre outros.
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No caso do saneamento, em que a “privatização” permaneceu limitada a casos isolados (ao contrário
de outros serviços, como a gestão dos resíduos sólidos e o transporte coletivo)3, o setor vinha
padecendo há duas décadas da ausência de um modelo institucional para disciplinar a prestação e a
regulação dos serviços até a aprovação da Lei Federal nº 11.455, em janeiro de 2007. Concebida
como um instrumento para fortalecer a capacidade reguladora do Estado e o controle social sobre a
prestação dos serviços de saneamento, independentemente do caráter público ou privado do
operador, esta lei estabelece diretrizes nacionais e um novo marco regulatório para o setor.
No entanto, apesar de avanços inegáveis no sentido de fortalecer o planejamento, a regulação e a
transparência na prestação dos serviços, o novo marco regulatório do saneamento pode dar margem
a confusões teóricas e práticas entre as noções de “regulação” e “controle social”, que viriam a
prejudicar sua implementação. O objetivo deste artigo é justamente buscar esclarecer a relação entre
estas noções, seu respectivo significado e alcance, a partir de uma análise dos principais aspectos
teórico-conceituais e histórico-institucionais envolvidos na sua origem, tomando por base algumas
referências chave na literatura especializada. Supõe-se que um entendimento mais adequado das
respectivas funções e limites de cada uma destas noções pode contribuir para um desenho
institucional mais adequado da política regulatória do setor a ser desenvolvida nas esferas estadual,
regional e municipal, de acordo com as diretrizes nacionais.
Enfocando este objetivo, o texto a seguir está dividido em tres seções principais nas quais se
discutem, respectivamente: i) os aspectos teórico-conceituais mais gerais das noções de regulação e
controle social; ii) os aspectos históricos e socioculturais envolvidos na formação e desenvolvimento
das instituições reguladoras; e por fim, iii) os dilemas político-institucionais de implementação do novo
marco regulatório do saneamento estabelecido na lei 11.445/07. A discussão destes tópicos culmina
nas conclusões gerais do trabalho que procuram mostrar as virtudes, os vícios e os desafios do novo
marco regulatório à luz das reflexões desenvolvidas ao longo do texto.
1. Regulação e Controle Social: elementos conceituais do debate
O debate sobre a regulação dos serviços industriais de utilidade pública no Brasil ganhou novo
impulso nos anos 1990, com o programa de desestatização iniciado no governo Collor e ampliado no
governo Cardoso, que deu início à privatização da infra-estrutura e dos serviços industriais de
utilidade pública no país, após a promulgação da Lei Federal n. 8987, dita “Lei de Concessões”, em
fevereiro de 1995 (Pinheiro & Giambiagi, 2000). O governo brasileiro, com seu projeto de “Reforma
do Estado”, procurava seguir, naquele momento, políticas de desestatização e desregulamentação da
3
O que se entende aqui por “privatização” consiste na delegação plena ou parcial da prestação dos serviços de saneamento a operadores
privados mediante contrato de concessão firmado entre a empresa concessionária e o poder público que detém a titularidade sobre o setor,
normalmente o município representado pela prefeitura. Embora o número de concessões privadas em vigor seja ainda bastante limitado,
envolvendo menos de uma centena de municípios, já se observam vários contratos de grande porte em cidades importantes como Manaus,
Campo Grande, Ribeirão Preto e Niterói.
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economia que vinham sendo amplamente promovidas pelo FMI, Banco Mundial, BID, PNUD e outros
organismos multilaterais de cooperação junto aos países em desenvolvimento, na década passada,
como parte de um conjunto de medidas macro-econômicas de ajuste fiscal e controle da inflação que
ficaram conhecidas sob o rótulo de “consenso de Washington”. Inspiradas na ideologia neoliberal
difundida pelas forças de apoio aos governos conservadores da primeira ministra Margareth
Thatcher, no Reino Unido, e do presidente Reagan, nos EUA, tais políticas trouxeram para o debate,
juntamente com a proposta de desregulamentação da economia (liberalização comercial e financeira,
corte de subsídios, eliminação de monopólios estatais, controle do déficit público, etc.),
recomendações de consultores internacionais menos comprometidos com o “fundamentalismo de
mercado” no sentido de se criarem organismos especializados para fiscalizar e regulamentar o novo
mercado dos serviços de utilidade pública privatizados, tomando por base o modelo anglo-americano
das comissões e agências reguladoras. É vinculado a este modelo e ao projeto de reforma gerencial
do Estado que o termo regulação reaparece no debate, dando origem a expectativas infladas e
confusões conceituais discutidas na segunda parte. 4
O debate sobre “controle social” da prestação de serviços públicos essenciais, por sua vez, tem uma
origem histórica diferente, associada ao processo de mobilização da sociedade civil em torno da
redemocratização do país, que resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988, marcada
por novos direitos de cidadania política, consubstanciados em princípios, instrumentos e instâncias de
decisão pública de caráter participativo e descentralizado. Sob o prisma teórico, a noção reflete
preocupações mais gerais dos cientistas políticos contemporâneos com a crise da democracia
representativa e a emergência de um novo modelo de democracia participativa ou deliberativa,
baseada na mobilização e co-responsabilização do cidadão e das organizações da sociedade civil.
Busca-se, a seguir, esclarecer os problemas teórico-conceituais envolvidos respectivamente nas
noções de regulação e controle social.
1.1. Regulação: definição e objetivos
No que concerne sua utilização nos campos da Economia, do Direito, da Administração e do
Urbanismo, o termo “regulação” possui uma dupla significação geral: 1) no sentido estrito, que
prevalece entre os autores de língua inglesa, o termo regulation corresponde ao estabelecimento e
implementação, por uma autoridade pública, de um conjunto de normas visando controlar, disciplinar
ou impor restrições e padrões a uma determinada atividade social ou econômica, tendo em vista a
salvaguarda dos interesses da coletividade; nesta vertente, que enfatiza o aspecto normativo, o termo
pode ser considerado sinônimo de “regulamentação”; 2) no sentido mais amplo, predominante entre
4
Uma discussão atualizada das diferentes vertentes da reforma gerencial do Estado pode ser encontrada em Silva (1999). Para uma visão
geral sobre a influência dos organismos multilaterais, agências de cooperação internacional e bancos de desenvolvimento na promoção de
políticas pró-mercado no campo do saneamento, cf. Castro (2002) e Seppala (2003).
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os teóricos franceses, o termo régulation, embora também envolva garantir os interesses mais
amplos da coletividade social e dos agentes econômicos, remete a uma noção abrangente de
controle e ajustamento global, que não se concentra exclusivamente em mãos da autoridade pública,
nem tampouco em instrumentos jurídicos e normativos, mas atua de modo difuso, através de
mecanismos diversos (legislação, instituições, práticas políticas, regras informais, hábitos de
consumo, mecanismos de mercado, etc.) em diferentes dimensões da sociedade (política,
administração, justiça, mercado, etc.). Nesta perspectiva, a noção de regulação é entendida como
uma função ou processo permanente e multifacetado que permite o ajustamento dinâmico dos
sistemas ao ambiente cambiante e instável no qual se inserem, e que não se confunde com a idéia
de regulamentação.
Esta perspectiva mais abrangente, que remete às origens do uso científico do termo, tem o mérito de
mostrar que existem diferentes tipos de regulação das atividades econômicas e sociais, mesmo sem
a presença de órgãos reguladores especializados.5 Lorrain (1995), por exemplo, distingue três formas
ou meios de regulação das redes de infraestrutura e de serviços urbanos (que se encontrariam
geralmente mescladas, sob diferentes combinações) nas instituições e práticas reguladoras dos
diferentes países e setores, a saber: i) a regulação por organismos reguladores especializados,
formalmente independentes dos governos, típica de países como o Reino Unido e os EUA; ii) a
regulação sistêmica através de “mecanismos de regulação”, predominante na França, que se
caracteriza pela variedade de atores e processos intervenientes (eleitos e eleitores do poder local,
associações intermunicipais, agências de bacia, corpo técnico e quadro normativo do Estado central,
grande empresa, acionistas, usuários), que geram processos difusos de controle global sobre os
serviços, sem fazer apelo a órgãos reguladores especializados; e iii) a regulação interna, mediante
“princípios de auto-regulação”, existente nalguns setores específicos em diversos países.
De maneira semelhante, Aragão (2007) distingue quatro modalidades de regulação da atividade
econômica: i) a “regulação estatal”, em que o Estado impõe normas e padrões aos agentes privados
produtores de bens e serviços regulados; ii) a “regulação pública não estatal”, levada a cabo por
entidades privadas do chamado terceiro setor, que exercem funções reguladoras por delegação do
Estado; iii) a “regulação privada”, conduzida por entidades associativas do setor privado, através da
formulação de códigos de ética e políticas de qualidade, sem qualquer chancela ou delegação estatal;
e por fim, iv) a “desregulação”, que corresponderia à ausência de regulação institucionalizada, seja
5
De acordo com Lemoigne (1988), o termo regulação aparece inicialmente no campo da biologia, para explicar processos difusos de
ajustamento recíproco entre os seres vivos e o meio. Posteriormente, foi transposto para a termodinâmica e a mecânica, bem como
apropriado pela nova economia política francesa, através da chamada "Escola da Regulação", que desenvolveu-e a partir de meados dos
anos 1970 e teve seu apogeu na década seguinte. Para os autores desta escola, a noção de regulação se relaciona com as tendências
estruturais de instabilidade do processo de acumulação capitalista, cuja crise só poderia ser contida e adiada através de um conjunto
relativamente articulado ou convergente de arranjos sócio-políticos, dispositivos jurídicos e econômicos de ajustamento que permitissem
crescer com estabilidade, como ocorreu sob o regime de acumulação fordista-keynesiano durante os trinta anos gloriosos, que se
a
sucederam à 2 Guerra Mundial (cf. Boyer, 1986).
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pública ou privada, deixando os agentes sujeitos apenas ao livre desenvolvimento do mercado.
Porém, o autor observa: “do conceito de regulação propriamente dita deve ser excluída a regulação
pelo mercado e pelas regras de auto-regulação provenientes de entidades e empresas privadas”,
uma vez que o conceito de regulação envolve necessariamente algum tipo de intervenção estatal
sobre a economia, tendo em vista atender ao interesse público do Estado e dos cidadãos.
Neste sentido, Melo (2001) considera a própria provisão estatal de determinados bens e serviços
como uma das quatro modalidades típicas dos diferentes “arranjos regulatórios” historicamente
existentes para disciplinar as atividades econômicas politicamente sensíveis e socialmente
estratégicas. As outras seriam a regulação da atividade privada por organismos estatais vinculados
ao poder executivo e, portanto, diretamente subordinados ao governo; a regulação do mercado por
agências estatais formalmente independentes do governo; e a auto-regulação privada. Marques Neto
(s/d), no entanto, embora reconheça que a intervenção direta do Estado no domínio econômico
enquanto produtor de bens e serviços corresponde ao exercício de funções reguladoras, relacionadas
a contratação de pessoal, licitações, cálculo e reajuste de tarifas, entre outras, defende que uma
noção mais atualizada do conceito de regulação deveria se restringir apenas à intervenção indireta do
Estado na atividade econômica (i.e.: fora do papel de produtor), que se caracterizaria por
pressupostos, objetivos e instrumentos bem distintos.
Na questão dos pressupostos, para Marques Neto (s/d), a intervenção direta do Estado na provisão
de determinados bens e serviços foi baseada no princípio da supremacia do interesse público sobre
os interesses privados, com o primeiro sendo invariavelmente confundido com os interesses políticos
do governo ou os interesses corporativos e privilégios da empresa estatal. Já no modelo das
agências ou comissões estatais independentes, a intervenção estatal (indireta) assumiria um caráter
menos assimétrico, de mediação, negociação e equilíbrio entre os interesses dos usuários, do Estado
e do operador. Com relação aos objetivos, enquanto a intervenção direta do Estado tenderia a
privilegiar os interesses estratégicos e políticos do governo, muitas vezes em detrimento dos usuários
e da sustentabilidade da própria atividade sob intervenção, no modelo de intervenção indireta,
baseado na atuação de entidades reguladoras independentes, por sua vez, os objetivos centrais da
regulação se deslocariam do Estado para a sociedade, se orientando mais pelos interesses dos
usuários e dos agentes econômicos. Por fim, o modelo de intervenção reguladora exigiria a
elaboração de novos instrumentos e competências, visando não apenas favorecer a interlocução do
órgão regulador com os diferentes agentes envolvidos no setor regulado, como também impedir que
a atividade regulatória seja capturada por interesses privados ou interesses políticos dos governos.
Com a ressalva do próprio autor de que o objetivo primordial da “intervenção regulatória” não é
suprimir a intervenção direta do Estado na ordem econômica, mesmo porque os dois tipos de
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intervenção freqüentemente convivem em diversos países e setores, é possível concordar com
Marques Neto na sua defesa de uma definição mais restritiva e atualizada da noção de regulação da
atividade econômica, especialmente no campo dos serviços industriais de utilidade pública6. Trata-se
de reconhecer a especificidade de um conceito particular de regulação, um modelo (entre outros)
cujos pressupostos e objetivos têm raízes próprias (vide 2a parte), e que se caracteriza pela
autonomização da função reguladora em relação à prestação dos serviços, através da atuação de
uma entidade pública formalmente independente do governo.
Por outro lado, sem descartar por inteiro a noção mais abrangente de regulação discutida acima, é
preciso lembrar que a atividade reguladora não se confunde com a noção de “regulamentação”, pois
envolve um processo permanente de ajustamento dinâmico dos sistemas de infraestrutura a um
ambiente sócio-econômico e político-institucional cambiante através de instrumentos e incentivos
específicos. Neste sentido, é conveniente colocar sob as rubricas de “ambiente regulatório” ou
“governança regulatória” (noção discutida na segunda parte) os demais elementos externos à
atividade própria do regulador que intervêm na regulação difusa da atividade em questão, inclusive os
mecanismos de “controle social” das políticas públicas abordados na próxima seção.
A partir das reflexões acima, que convergem para uma definição mais restrita e atualizada da noção
de regulação aplicada aos serviços industriais de utilidade pública, é possível elencar os principais
objetivos da atividade regulatória especializada como sendo:
•
Evitar ou coibir abuso de posição de mercado por parte de empresas monopolistas ou cartéis,
impedindo a cobrança de tarifas exorbitantes;
•
Evitar ou coibir práticas corporativistas (empreguismo, populismo tarifário, mordomias, etc.) entre
os operadores públicos;
•
Incentivar a eficiência produtiva e o desenvolvimento tecnológico;
•
Assegurar o equilíbrio econômico-financeiro da atividade;
•
Reduzir riscos e custos de transação, buscando manter o fluxo de investimentos públicos e
privados no setor;
•
Promover a universalização do acesso a serviços essenciais;
•
Garantir a sustentabilidade sócio-econômica e ambiental da atividade.
6
Para o autor, o que é mais relevante para o advento da atividade regulatória do Estado propriamente dita não é a supressão da
intervenção estatal direta na ordem econômica, mas antes a separação entre o operador estatal e o ente encarregado da regulação do
respectivo setor, por um lado, e a admissão no setor regulado da existência de operadores privados competindo com o operador público
(Marques Neto, s/d, pp. 11-12).
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1.2. Controle social das políticas públicas: definição e objetivos
Como vimos, a questão do “controle social” das políticas públicas tem origem nos debates sobre a
ampliação da democracia participativa, que se fortaleceram no Brasil durante o processo constituinte
e após promulgação da Constituição Federal de 1988. Embora o termo não apareça expressamente
no texto da nossa carta magna, os vários dispositivos constitucionais que asseguram o direito dos
cidadãos a uma participação ativa nos processos de tomada de decisão, de fiscalização e avaliação
de políticas públicas, entre as quais a criação de conselhos nacionais, exprimem o espírito que essa
expressão tem assumido nos anos mais recentes.7 Este impulso de descentralização e
democratização das políticas públicas que saiu fortalecido na nova ordem constitucional desdobrouse nas outras esferas de governo numa série de iniciativas legais na mesma direção, envolvendo as
áreas de saúde, educação, meio ambiente e recursos hídricos, entre outras.
No campo das políticas urbanas, este debate avançou na área da habitação e, particularmente do
saneamento. As entidades representativas deste setor se mobilizaram para debater propostas de
democratização e “controle social” desta atividade que culminaram no Projeto de Lei Federal 199/93,
aprovado pelo Congresso Nacional, mas vetado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, logo no
início de seu primeiro governo. Com isso, o debate sobre a democratização e o controle social do
setor deslocou-se para o Programa de Modernização do Setor Saneamento (PMSS), que foi criado
no governo Collor, com apoio do Banco Mundial, tendo deslanchado no governo Cardoso. No âmbito
deste programa, o controle social do setor foi concebido como um princípio geral de transparência,
responsabilização e prestação de contas que se desdobra em dois planos: de um lado, o da
participação dos usuários e de entidades representativas do setor nos órgãos colegiados normativos
e deliberativos que seriam criados juntamente com uma nova estrutura de regulação do setor; do
outro, a participação dos usuários enquanto consumidores, amparados no Código de Defesa do
Consumidor (Lei Federal nº 8.070/90), que consistiria numa linha auxiliar de apoio ao processo de
regulação (INFURB, 1995). No entanto, ainda no início governo Cardoso, que defendia a ampliação
da participação privada no saneamento, as principais entidades representativas do setor, como a
ABES, a AESBE e a ASSEMAE, foram afastadas do comitê de direção do PMSS (Costa, 1998: 61).8
Mas estas entidades articularam-se a sindicatos de trabalhadores do setor, ONGs e movimentos
sociais, criando a Frente Nacional do Saneamento Ambiental em 1998, dentro da qual foi retomado e
aprofundado o debate sobre o controle social deste setor. Formada por forças políticas que apoiaram
ativamente a eleição do presidente Lula, esta frente alçou alguns de seus líderes à direção da
Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental criada junto ao novo Ministério das Cidades. Foi no
7
Para uma visão geral sobre as garantias constitucionais de participação dos cidadãos no “controle social” das políticas públicas, vide
INFURB (1995), pp. 120-24.
8
As siglas mencionadas referem-se respectivamente à Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, a Associação das
Empresas de Saneamento Básico Estaduais e a Associação dos Serviços Municipais de Água e Esgotos.
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âmbito das inúmeras Conferências das Cidades promovidas por esta pasta em diversas cidades e
regiões do país, nos primeiros anos do governo Lula, que foram discutidas as principais propostas de
democratização do saneamento (como parte da política urbana), muitas das quais seriam
incorporadas à lei nº 11.455/07, que consagrou o “controle social” como um dos princípios basilares
do marco regulatório deste setor, como veremos na última parte.
No que concerne suas origens teóricas, a noção de “controle social” está associada aos debates
atuais sobre a emergência de um novo modelo de democracia participativa ou deliberativa, baseada
na mobilização e co-responsabilização do cidadão e ONGs para participar da formulação, fiscalização
e avaliação das políticas públicas. Abrange idéias de transparência, responsabilização e prestação de
contas, envolvidas no conceito de accountability, derivado da teoria política contemporânea, assim
como noções de “governança”e “empoderamento” dos cidadãos, associadas ao discurso e às
políticas de desenvolvimento das agências multilaterais de cooperação.9 No âmbito dos debates
contemporâneos sobre a regulação dos serviços de utilidade pública, a noção de controle social
aparece como uma tentativa de criar mecanismos que permitam à sociedade “regular o regulador”,
evitando que as agências reguladoras independentes atuem de maneira tendenciosa para favorecer
interesses particulares, inclusive os de seu corpo de dirigentes e funcionários.
Entre os principais objetivos do controle social, podemos mencionar:
•
Inibir a “captura” do regulador pelo regulado;
•
Garantir transparência e lisura no processo decisório;
•
Democratizar o processo de tomada de decisões, permitindo a participação de agentes
desfavorecidos cujos interesses não costumam ser levados em conta;
•
Informar, educar e co-responsabilizar os cidadãos;
•
Favorecer soluções adaptadas às condições sociais e à capacidade de pagamento dos
usuários de menor poder aquisitivo.
2
Fundamentos históricos e teóricos da regulação dos serviços urbanos10
Originando-se da intensificação dos processos de industrialização e urbanização, as redes de infraestrutura relacionadas ao abastecimento de água e disposição de águas servidas, energia,
transportes e comunicações surgiram no início do século XIX nos países pioneiros da revolução
industrial, tendo a dupla função de suporte à atividade econômica e serviço de utilidade pública
destinado a atender o conjunto de usuários urbanos (Silva, 1999: 264). Apesar de seu caráter
predominantemente monopólico e essencial para a sobrevivência do cidadão moderno, de início tais
9
Sobre a noção de controle social no saneamento, vide Mattos (2005) e Heller & Rezende (2007).
Esta seção incorpora a discussão desenvolvida por mim no primeiro capítulo de Vargas (2005).
10
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serviços foram fornecidos predominantemente por empresas privadas, sem qualquer tipo de controle
social. Porém, como as políticas liberais neste campo tiveram resultados insatisfatórios em termos de
alcance social e qualidade dos serviços, que geralmente excluíam as camadas mais pobres, por volta
último quartel daquele século começou a formar-se nos Estados Unidos e na Europa um amplo e
duradouro movimento social e intelectual que se opôs às políticas de livre mercado em tais
atividades, o qual resultaria na criação das instituições reguladoras, assim como no desenvolvimento
das teorias econômicas e políticas da regulação.
Com relação às teorias da regulação, a literatura especializada reconhece duas vertentes principais:
as teorias “normativa” e “positiva”. Associada à economia do bem estar social de Alfred Marshall e A.
C. Pigou, entre outros, a primeira é a mais antiga e influente na formação das instituições
reguladoras, enquanto a última, desenvolvida no início dos anos 1970, exerceu forte influência sobre
as mudanças institucionais pró-mercado nos serviços de utilidade pública (desregulamentação,
desestatização, concessões, etc.) que ocorreram posteriormente em todo o mundo.
A teoria normativa da regulação é baseada na noção de que a intervenção do Estado é necessária
para promover o bem estar social e o interesse público em atividades econômicas e sociais nas quais
se observam diferentes tipos de falhas de mercado relacionadas a limitações estruturais à
concorrência (monopólios naturais e custos irrecuperáveis11); a impactos negativos e positivos das
transações econômicas de bens e serviços sobre terceiros, gerando custos e benefícios que não
repercutem no sistema de preços (externalidades); à impossibilidade de excluir os não pagantes dos
bens e serviços indivisíveis (bens públicos); ou ainda, ao caráter especial de certos bens e serviços
considerados essenciais ao bem estar social que geralmente não são alvo das preferências do
consumidor (bens meritórios ou tutelares). Considerando que, em todos estes casos, ocorrem
limitações senão ausência completa de concorrência mercantil e/ou de interesse privado, caberia ao
Estado corrigir as falhas de mercado, seja intervindo seletivamente nas atividades em questão
através de taxação, regulamentação e/ou subsídios focalizados, mas preservando o fornecimento
privado dos respectivos bens e serviços, seja assumindo diretamente a provisão destes como parte
de suas obrigações políticas e sociais.
Numa abordagem crítica desenvolvida no início da década de 70 do século passado, a teoria positiva
da regulação rejeita a validade analítica de categorias como “bem estar social” e “interesse público”,
11
O “monopólio natural ocorre nos setores caracterizados por forte “subaditividade de custos” (i.e.: redução no custo unitário do produto ou
serviço com aumento na escala de produção), quando o número de firmas que minimiza o custo total da indústria é igual a 1. A noção de
“custos irrecuperáveis” (sunk costs), por sua vez, refere-se ao fato de que os ativos necessários ao fornecimento da maior parte dos
serviços de utilidade pública são irrecuperáveis devido à sua especificidade locacional: o proprietário ou operador da rede não pode sair de
um mercado não rentável levando consigo a infraestrutura para fornecer os serviços noutra praça. Esta “barreira de saída” levanta o
problema do risco político a que está sujeito o investidor privado, cujos fluxo de receitas e retorno do investimento podem ser subitamente
interrompidos por atos discricionários do governo, como a expropriação de ativos. A presença de custos irrecuperáveis em determinado
setor desfavorece o investimento privado, sendo necessário criar um “marco regulatório” estável e dotado de credibilidade para não afastar
os investidores.
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concebendo qualquer esquema particular de regulação como um compromisso resultante de
negociação entre grupos de interesses conflitantes. Desenvolvendo idéias oriundas da teoria da
escolha pública, os partidários da teoria positiva argumentam que o setor público não deveria ser
visto como o guardião dos interesses coletivos da sociedade, porque os burocratas e funcionários
públicos atuam como agentes racionais de acordo com os mesmos princípios que os agentes do
setor privado, i.e.: buscando maximizar seus próprios interesses particulares (vantagens associadas
ao cargo) em detrimento dos interesses da coletividade. Este comportamento oportunista dos agentes
do setor público é a causa de muitas falhas de governo (empreguismo, descontinuidade
administrativa, corporativismo, populismo tarifário, etc.) que resultam na ineficácia e ineficiência
geralmente observadas na provisão estatal dos serviços de utilidade pública nos países menos
desenvolvidos, como também de falhas regulatórias que induzem riscos de “captura” dos
reguladores pelas empresas reguladas, de modo que a regulação favoreça a ambos em detrimento
dos contribuintes e usuários.12
No campo teórico, a abordagem normativa da regulação foi contestada desde o seu surgimento. Já
no final dos anos 30, precursores da Economia Institucional, como Robert Coase, propunham que a
maior parte das falhas de mercado decorria de situações onde se verificam “mercados incompletos”.
Geralmente associadas à assimetria de informações entre os agentes econômicos, que tendem a
adotar condutas oportunistas para maximizar os próprios benefícios em detrimento das demais partes
envolvidas, tais situações aumentam os custos de transação e levantam problemas de seleção
adversa e risco moral. Em todo caso, tais problemas não são relacionados especificamente ao
mercado ou aos governos, mas antes a falhas de organização que envolvem certas áreas de
atividade econômica e afetam tanto o setor público quanto o privado. Assim, a solução para tais
problemas não estaria na privatização ou na estatização de tais atividades, mas antes na formação
de um ambiente institucional apropriado em termos de contratos e direitos de propriedade, que
forneça incentivos adequados para que os agentes econômicos e as autoridades minimizem a
conduta oportunista, reduzindo riscos e custos de transação.13
De qualquer modo, a abordagem normativa prevaleceu na prática ao longo do século XX até final dos
anos 70, quando passou a ser atacada por políticas radicais de privatização, desregulamentação e
liberalização promovidas por governos conservadores apoiados por agências multilaterais de
cooperação, sob a crescente influência ideológica do neoliberalismo nas décadas seguintes.
Entretanto, se tais políticas pretenderam reduzir ou eliminar a regulação estatal, buscando substituí-la
por uma auto-regulação dos mercados, sua implementação revelou-se contraditória: em muitos
12
Para uma análise aprofundada das principais vertentes da teoria positiva da regulação, bem como da teoria da captura do regulador, vide
Salgado (2003).
13
Reflexões mais amplas sobre a contribuição teórica da Nova Economia Institucional para o debate sobre a regulação dos serviços de
utilidade pública podem ser encontradas em Melo (2001) e Farina, Azevedo e Picchetti (1997).
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serviços de utilidade pública privatizados, como na indústria da água britânica, a regulação dos
serviços foi antes reforçada em um movimento conhecido como re-regulação (Castro, 2002).
Considerando agora as instituições reguladoras criadas a partir do final do século XIX, deve-se
reconhecer a regulação de determinadas atividades sócio-econômicas como uma função inerente ao
Estado moderno, cujos objetivos incluem assegurar direitos sociais e bem-estar aos cidadãos, bem
como protegê-los enquanto consumidores contra abusos de posição de mercado de empresas
monopolistas ou cartéis (cf. Fadul, 2007). Tais instituições, que assumem formas variadas, em
diferentes contextos históricos e culturais, devem conciliar tais objetivos éticos e políticos com a
promoção da eficiência por parte das empresas, através de incentivos adequados, em benefício dos
usuários e consumidores.
De acordo com Silva (1999), é possível dividir os principais institutos de regulação dos serviços de
utilidade pública em dois grandes grupos: os originários do direito administrativo francês e os
vinculados a padrões britânicos e norte-americanos de regulação da oferta dos serviços. No primeiro
caso, o poder público estatal pode delegar a execução dos serviços a terceiros, através de contratos
de concessão ou arrendamento, entre outros, mas permanece como titular legal dos serviços e
responsável final pela sua prestação adequada, mantendo em sua esfera a propriedade dos ativos.
Neste caso, não existe um órgão regulador independente, mas sim uma regulação política baseada
nos contratos e nas prerrogativas do poder concedente, e a remuneração dos operadores não precisa
vincular-se diretamente à receita tarifária. No segundo caso, há maior flexibilidade na posse dos
ativos, pois inexiste a figura do poder concedente discricionário, e a remuneração dos operadores é
baseada unicamente nas receitas tarifárias.
No Brasil e em outros países latino-americanos, o sistema de regulação dos serviços de utilidade
pública teria absorvido e combinado instrumentos de ambos os modelos, o francês e o angloamericano, inclusive na fase de prestação de serviços dominada por empresas estatais que
prevaleceu entre meados dos anos trinta até o início da década de 1990. Porém, apesar de seu
desempenho favorável, tais empresas acumularam funções executivas e reguladoras que seriam
privativas do poder concedente. Na visão de Silva (1999), essa superposição gerou problemas como
a mútua dependência entre os sistemas financeiro e institucional de cada setor e o corporativismo.
Para ele, com o crescente envolvimento privado na oferta dos serviços, será imprescindível separar
as funções reguladoras das funções executivas numa abordagem sistêmica e intersetorial.
É possível estabelecer diversos tipos de regulação, conforme diferentes princípios de classificação.
Pode-se distinguir, por exemplo, entre regulação de estruturas e regulação de conduta, de acordo
com o objeto da atividade reguladora. Aplicando-se à estrutura da indústria, a primeira lida com
questões como integração horizontal e vertical de empresas em determinado setor, partilha do
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mercado e condições de entrada para novos competidores. A regulação de conduta, por sua vez, lida
com o comportamento das empresas em relação à qualidade dos produtos e serviços, ao impacto
ambiental dos processos, à existência de práticas nocivas à concorrência, entre outros aspectos, para
assegurar que o interesse público seja preservado na atividade em questão. Também envolve
controle de preços, visando proteger os consumidores de eventuais abusos por parte de empresas
em posição monopolista e, ao mesmo tempo, assegurar à indústria uma taxa de retorno “razoável”
para incentivar novos investimentos.
Para atingir ambos os objetivos, os esquemas mais conhecidos de regulação econômica são a
regulação pelo custo do serviço (cost plus), baseada no controle da taxa de retorno sobre o
investimento, comum nos Estados Unidos e na América Latina, e a regulação por limites de preço
(price cap), baseada na fixação de um teto para as tarifas, aplicada na indústria da água da Inglaterra
após a privatização. O primeiro método permite aos operadores cobrar um preço ligeiramente
superior aos custos de produção, o que significa que as empresas (públicas ou privadas) somente
obtêm retorno sobre os investimentos efetivamente aplicados (em margens que variam usualmente
de 10 a 12%). Tal sistema tem sido criticado por supostamente induzir ao sobre-investimento, não
fornecer incentivos para que os operadores inovem processos, visando minimizar custos, bem como
por sobrecarregar os reguladores, que necessitam conhecimento detalhado da indústria para operar
de modo eficiente. Quanto ao método dos limites de preço, supõe-se inversamente que forneça
incentivos adequados ao aumento da eficiência e à inovação. O sistema leva em conta um conjunto
de variáveis, como as necessidades de investimento e o índice de preços ao consumidor, e fixa tetos
às tarifas para períodos de médio prazo, visando induzir as empresas a melhorarem sua eficiência
como meio de aumentar a rentabilidade através da apropriação de ganhos de produtividade.
Entranto, a regulação pelo teto de preço gera riscos de subinvestimento e de redução na qualidade
dos serviços prestados com o objetivo de diminuir custos e aumentar lucros.14
Também podemos falar de regulação social ou sócio-ambiental, que está relacionada ao controle
público dos riscos sanitários, dos padrões de segurança e do impacto ambiental de determinadas
atividades. Este tipo de regulação, que também envolve a questão dos subsídios diretos ou cruzados
como forma de estender os benefícios de atividades essenciais às populações de baixa renda, tem
adquirido importância crescente no mundo todo desde o início dos anos 70 do século passado.
Ambos os tipos de regulação devem ter como objetivo fundamental assegurar o caráter público dos
serviços, que vincula-se aos princípios de universalidade do acesso, continuidade, equidade e
atualidade, entre outros, independentemente da natureza jurídica (pública ou privada) do prestador.
14
Cf. Castro (2002) e Farina, Azevedo e Pichetti (1997).
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Para além dos tipos de regulação examinados até aqui, é importante considerar a noção de marco
regulatório, que abrange os conceitos de governança regulatória e incentivos regulatórios. A
governança regulatória envolve os mecanismos legais e institucionais de que se vale determinada
sociedade para restringir a ação discricionária dos governos e diminuir conflitos nas atividades de
regulação. Os incentivos regulatórios envolvem preços, subsídios e regras de controle de entrada,
entre outras, dos quais se espera que induzam os “agentes” (operadores) a se comportarem de
acordo com os objetivos fixados pelo principal (autoridade concedente ou regulador).
2.1. Especificidades do saneamento
As breves considerações acima sobre alguns aspectos teóricos da regulação dos serviços industriais
de utilidade pública nos permitem examinar agora as especificidades do setor de saneamento.
Entendido na sua acepção mais estreita, que o restringe ao abastecimento de água e ao
esgotamento sanitário, o saneamento constitui, evidentemente, um setor marcado por fortes
externalidades, tanto negativas como positivas, conforme seu estágio de desenvolvimento, por conta
dos impactos causados na saúde pública e no meio ambiente.15 O tratamento de esgotos, por
exemplo, pode ser considerado um bem meritório ou tutelar, na medida que os benefícios difusos que
promove em termos de qualidade ambiental não seriam alvo de preferências individuais espontâneas
do usuário/consumidor em termos de disposição a pagar. Por estas razões, ambos os serviços
reclamam uma intervenção direta ou indireta do Estado, através de uma regulação social, tendo em
vista assegurar a universalização do acesso. Por outro lado, no que tange aos aspectos econômicos,
além de caracterizar-se como um monopólio natural, devido aos custos decrescentes associados à
escala de produção, trata-se de um setor intensivo em investimentos de capital fixo que demandam
longo período de retorno e apresentam custos irrecuperáveis. Portanto, requer uma regulação
econômica que proteja os usuários de abusos por parte do concessionário (público ou privado),
incentivando a redução de custos e tarifas, e forneça credibilidade ao investidor privado quanto ao
respeito ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Numa perspectiva mais abrangente, não se pode esquecer das interações sistêmicas do saneamento
com outros serviços (como drenagem e limpeza urbanas) e outros usos da água no âmbito regional,
que demandariam uma regulação urbanística e ambiental supra-setorial, visando compatibilizar a
expansão dos serviços com o desenvolvimento sustentável. Do mesmo modo, considerando o caráter
diversificado das empresas transnacionais que atuam neste campo, seria preciso articular a
regulação setorial do saneamento com os sistemas de defesa da concorrência e do consumidor, para
15
O termo saneamento, no sentido mais amplo de “saneamento ambiental”, inclui também o manejo das águas pluviais, a coleta e
disposição adequada dos resíduos sólidos, o controle de vetores de doenças contagiosas, além da disciplina sanitária do uso e da
ocupação do solo.
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evitar a extração de rendas de monopólio no mercado cativo pelo superfaturamento de materiais ou
serviços de terceiros fornecidos por companhias coligadas (Silva, 1999 e 2002).
Tendo visto algumas das características estruturais do saneamento, vejamos agora como tais
características foram levadas em conta no desenho do novo marco regulatório do setor, destacando a
questão do controle social.
3. Marco regulatório do saneamento: características e dilemas de implementação
Podemos dizer que o chamado “marco regulatório” do saneamento, formulado e aprovado no governo
Lula, ao longo de um amplo processo de debates e consulta a organizações da sociedade civil e
entidades representativas do setor, sob liderança do Ministério das Cidades, compreende
essencialmente duas leis federais, a saber: 1) a lei no 11.107, promulgada em abril de 2005, que
regulamenta o artigo 241 da Constituição Federal e disciplina a criação dos Consóricos Públicos e
Convênios de Cooperação entre entes federados, introduzindo o conceito de “gestão associada de
serviços públicos”16; e 2) a lei no 11.445, promulgada em janeiro de 2007, que estabelece diretrizes
nacionais para o saneamento e a política federal do setor. Ambas representam um esforço
considerável para superar entraves político-institucionais que têm dificultado a ampliação de
investimentos e a obtenção de ganhos de eficiência no setor, como se discute a seguir.
Com relação à lei 11.445/07, é possível observar que a mesma promove diversos avanços na política
nacional de saneamento. Em primeiro lugar, estabelece diretrizes fundamentais como universalização
do acesso, “integralidade”, articulação intersetorial e “controle social”, a serem observadas
indistintamente por todos os prestadores de serviços (sejam operadores públicos ou privados) e todos
os reguladores (sejam municipais, estaduais ou regionais). Visando a implementação destas
diretrizes, a lei inova ao estabelecer mecanismos de indução ao planejamento, regulação e controle
social do setor: a formulação de “planos de saneamento básico”, elaborados pelos titulares dos
serviços com participação da sociedade, e a fixação de normas mínimas de regulação e controle
social foram estabelecidas não como fatores condicionantes da validade dos contratos a que está
sujeita, em qualquer hipótese, a delegação da prestação de serviços públicos (art. 11), mas também
como condição sine qua non para que qualquer prestador de serviços obtenha acesso aos recursos
da União destinados ao setor (cap. IX).
Por outro lado, a própria definição de “saneamento básico” foi ampliada pela lei 11.445, passando a
incluir não apenas o abastecimento de água potável e o esgotamento sanitário, mas também os
serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, a drenagem e manejo de águas pluviais,
16
o
O referido artigo foi previamente alterado pela Emenda Constitucional n 19, aprovada em 1998, a qual determina que os consórcios
públicos e convênios de cooperação entre os entes federados (municípios, Estados, União e Distrito Federal devem ser disciplinados por lei
dos entes envolvidos, prevendo a possibilidade de transferência total ou parcial de encargos, bens, serviços e pessoal entre os respectivos
entes consorciados ou conveniados.
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seguindo o princípio de integralidade das ações destinadas a garantir a salubridade ambiental como
direito social. Além disso, cabe destacar a previsão e o estabelecimento de regras para a prestação
regionalizada (aquela em que um mesmo prestador atende a dois ou mais titulares) e a gestão
associada dos serviços (i.e.: que envolve cooperação voluntária entre os entes federados via
consórcio ou convênio), entre as quais a necessidade de regulação e planejamento sob
rsponsabilidade de um único órgão e a trasparência na contabilidade de custos e subsídios cruzados
entre os municípios envolvidos. Finalmente, no que tange aos aspectos sociais do setor, cabe
mencionar o estabelecimento de restrições ao corte no fornecimento dos serviços em caso de
inadimplência e a previsão da possibilidade de que os titulares instituam fundos de universalização
para garantir o acesso das camadas de baixa renda.
No que tange à regulação, objeto de seu quarto capítulo, a lei 11.445 estabelece, no artigo 21, que
seu exercício deve atender aos princípios de: i) “independência decisória, incluindo autonomia
administrativa, orçamentária e financeira da entidade reguladora”, e ii) “transparência, tecnicidade,
celeridade e objetividade nas decisões”. Por outro lado, os principais objetivos da regulação são
fixados neste artigo: i) estabelecer padrões e normas para a prestação adequada dos serviços e a
satisfação dos usuários; ii) garantir o cumprimento destas normas e das metas contratuais; iii)
prevenir e reprimir o abuso do poder econômico, em articulação com os órgãos do sistema nacional
de defesa da concorrência, e iv) definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e
financeiro do contrato como a modicidade tarifária, através de mecanismos que induzam ganhos de
eficiência e produtividade. Por fim, a lei permite aos titulares dos serviços delegarem a sua regulação
a “qualquer entidade reguladora constituída dentro dos limites do respectivo Estado” (art. 23, § 1o).
Com relação à presença do “controle social” como um dos princípios fundamentais da lei 11.445,
cabe comentar a sua definição e abrangência. A expressão é definida na lei como sendo o “conjunto
de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e
participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados
aos serviços públicos de saneamento básico” (art. 3, inciso IV). Em conformidade a este princípio, a
própria validade dos contratos de concessão de serviços de saneamento ficou condicionada à
realização de audiências e consultas públicas sobre o edital de licitação e a minuta do contrato (art.
11, inciso IV), as quais devem preceder igualmente a aprovação dos planos de saneamento básico
elaborados pelos titulares dos serviços. Além disso, a lei determina que seja assegurada publicidade
e acesso aos relatórios, estudos e decisões referentes à fiscalização e regulação dos serviços a
qualquer cidadão interessado, “independentemente de interesse direto”(art. 26), além de obrigar os
prestadores de serviços a elaborar e divulgar “manual de prestação de serviços e atendimento”,
preparado pelo prestador e aprovado pela respectiva entidade de regulação (artigo 27, inciso III).
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Quanto à Lei dos Consórcios Públicos, aprovada quase dois anos antes da lei 11.445, seu aspecto
mais relevante para o saneamento diz respeito à criação da figura do “contrato de programa”, que
deve necessariamente disciplinar as obrigações mútuas dos entes federativos consorciados em caso
de gestão associada. Concebido como um mecanismo para resolver ou contornar o difícil problema
da gestão de serviços públicos integrados em infra-estuturas supramunicipais, face à controvérsia
jurídica sobre a titularidade dos serviços de saneamento nas regiões metropolitanas e noutros
aglomerados urbanos, o contrato de programa acabou sendo concebido como um meio de freiar a
privatização e inibir o possível colapso das companhias estaduais, ante à possibilidade de uma
crescente participação de concessionários privados no setor resultante de processos de
“municipalização” (encerramento dos contratos firmados no âmbito do antigo PLANASA). Afinal, a lei
11.107/05 permite que o titular dos serviços celebre contrato de programa com empresa controlada
por outro ente da federação sem a necessidade prévia de licitação, desde que haja um consórcio
público legalmente estabelecido entre ambos. Neste caso, a lei determina que deve ser criada
entidade reguladora independente do operador. Prevê ainda que os contratos de programa serão
automaticamente extintos se a empresa pública ou sociedade de economia mista for privatizada.
Percebe-se, portanto, que o contrato de programa, criado por pressão das companhias estaduais de
saneamento e de outras entidades representativas dos operadores públicos do setor, contradiz a
noção de que o marco regulatório do saneamento teria estabelecido condições e regras idênticas
para os serviços, fossem estes prestados por autarquias municipais, consórcios públicos, empresas
estaduais ou empresas privadas.
Quanto aos dilemas de implementação do novo marco regulatório do saneamento, entre as principais
dificuldades a serem enfrentadas, cabe destacar:
•
Institucionalização precária das agências;
•
Carência de pessoal qualificado e recursos para implantação de sistemas de informação
visando a regulação paramétrica;
•
Confusão relativa entre regulação e controle social;
•
Obstáculos à participação efetiva da sociedade no controle social;
•
Dificuldades de articulação e cooperação intersetorial com áreas afins.
As três primeiras dificuldades indicadas acima são relacionadas à ausência de uma cultura de
regulação autônoma consolidada entre nós, dada a criação muito recente das instituições
correspondentes. Assim, a maioria das agências que vêm sendo criadas, sobretudo nas esferas
estadual e municipal, não dispõem de quadro próprio de pessoal devidamente qualificado, tampouco
de autonomia decisória e recursos financeiros para implantar sistemas de contabilidade regulatória e,
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menos ainda, sistemas de informação e indicadores padronizados que pudessem servir de base para
a desejável regulação paramétrica (benchmarking), que permitiria contrabalançar a assimetria de
informações entre operadores e reguladores. Trata-se de um problema a ser paulatinamente
superado com o reforço da cooperação nacional e internacional entre as agências reguladoras, e
destas com pesquisadores universitários, juristas, economistas e outros profissionais especializados.
A criação da Associação Brasileira de Agências de Regulação (ABAR) em 1999, que vem realizando
congressos nacionais de regulação e outros eventos relevantes voltados para os profissionais do
setor, foi um passo decisivo nesta direção.
Sobre a confusão entre regulação e controle social, cabe dizer que esteve presente nos debates em
torno da elaboração e aprovação do marco regulatório do setor. De fato, as propostas de entidades
como ASSEMAE, Frente Nacional de Saneamento e Fórum Nacional de Reforma Urbana, entre
outras, tendiam a subordinar a política setorial e as próprias agências reguladoras a conselhos
deliberativos que atuariam em todos os níveis na elaboração e aprovação dos planos de saneamento.
A associação das companhias estaduais de saneamento (AESBE), juntamente com os sindicatos de
trabalhadores destas empresas e a associação das concessionárias privadas do setor (ABCON) se
opuseram fortemente a tais propostas, vistas como contrárias a seus interesses. O fato é que tal
modelo de controle social tenderia a inviabilizar o papel da regulação como atividade técnica e
mediadora de interesses em posição eqüidistante do poder concedente, dos usuários e operadores.
Felizmente, essa interpretação prevaleceu na lei 11.445/07, cujo artigo 47 estabelece que “o controle
social dos serviços públicos de saneamento básico poderá incluir a participação de órgãos colegiados
de caráter consultivo”, sendo assegurada a participação dos titulares dos serviços, órgãos
governamentais e ONGs o setor, operadores, usuários e entidades de defesa do consumidor.
Entre os obstáculos a uma participação efetiva da sociedade no controle social do setor, cabe
mencionar: i) baixo nível de escolaridade e acesso a internet por parte da maioria dos usuários; ii)
baixa densidade do capital social existente no país (i.e.: cidadãos mobilizados em associações e
redes na defesa do interesse público); iii) forte resistência ideológica ao tema entre entidades
representativas do setor. Neste último aspecto, cabe ressaltar que boa parte das entidades que se
opõem à participação da iniciativa privada nos serviços de saneamento vê a questão da regulação
com desconfiança, na medida que a intervenção regulatória nos serviços, visando garantir sua
eficiência econômica e eficácia social, não faz distinção entre operadores públicos e privados.
Finalmente, na questão da articulação intersetorial com as áreas de meio ambiente, recursos
hídricos, saúde e urbanismo, faltam incentivos para vencer a inércia institucional que conduz os
diferentes órgãos envolvidos a trabalharem isoladamente uns dos outros.
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Conclusões
Como vimos, o debate sobre a questão da regulação dos serviços industriais de utilidade pública em
nosso país, apesar de revigorado desde meados dos anos 1990, continua incipiente e marcado por
confusões conceituais e preconceitos ideológicos.
No aspecto conceitual, boa parte dos atores envolvidos no debate confundem a noção de regulação
autônoma, que se caracteriza como uma atividade técnica especializada, com a idéia de controle
social, baseada na criação de mecanismos de informação e participação visando democratizar o
processo de formulação e avaliação de políticas públicas, derivada da noção difusa de regulação.
Obviamente, é possível e até desejável internalizar mecanismos de controle social nas agências
reguladoras, via criação de ouvidorias, consultas e audiências públicas sobre matérias sensíveis, etc.
Mas não se pode subordinar a regulação aos interesses particulares de grupos políticos ou usuários,
sem ferir a necessária independência das agências e ameaçar suas funções.
Quanto aos preconceitos, é preciso que os atores envolvidos no debate da política de saneamento
busquem, ao mesmo tempo, politizar e “desideologizar” a questão da regulação, reconhecendo seu
papel fundamental na busca de maior eficiência e eficácia social neste setor.
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