Respostas frente à AIDS no Brasil: Aprimorando o Debate II Estudo parturientes soropositivas para HIV: implicações para políticas de assistência Daniela Riva Knauth Regina Maria Barbosa Kristine Hopkins HIV e Decisões Reprodutivas Existe um razoável acúmulo de conhecimento referente aos aspectos clínicos da transmissão vertical do HIV e várias medidas implementadas (protocolo ACTG076, cesariana eletiva, aleitamento artificial, teste rápido, etc.) Pouco se conhece ainda sobre as experiências contraceptivas de mulheres HIV+ e como o estado sorológico afeta suas escolhas. (Paiva et al., 2002; Santos et al.,2002; Knauth et al., 2002). Gestantes HIV+ • • São alvo de um conjunto de intervenções – testagem do HIV na gestação, uso de antiretrovirais, realização de exames (CD4 e Carga Viral), cesariana eletiva - pois colocam em cena o problema da transmissão vertical do vírus. Confrontam-se com uma série de prescrições e práticas com as quais necessitam relacionar-se. Tipo de parto e laqueadura tubária No Brasil, em 2001 se estabeleceu um primeiro consenso com relação ao tipo de parto para mulheres HIV+, ficando a cesariana indicada em um grande número de casos (MS, 2001); A lei da esterilização foi aprovada em 1997 e regulamentada em 1999, por um conjunto de normas estabelecidas pelo Ministério da Saúde: Ter pelo menos 25 anos de idade ou dois filhos Se casados, ter o consentimento do cônjuge. Período mínimo de 60 dias entre a requisição e a cirurgia; Proibição de realização da esterilização durante o parto, depois de um aborto ou nos 41 dias seguintes ao parto. Esterilização em mulheres HIV+ Ser portadora do HIV é considerado uma exceção? Em que situações? Ou exceção é apenas a AIDS? Se a AIDS é uma exceção aceitável para a realização de esterilização pós-parto, é também para todas as pessoas com AIDS, ou somente para aquelas com o sistema imunológico mais comprometido? Objetivos • • Compreender os diferentes fatores que condicionam as escolhas e as experiências reprodutivas das gestantes HIV+, particularmente no que se refere ao tipo de parto e laqueadura tubária. Evidenciar o papel da cultura médica – conj. de idéias e práticas médicas predominantes em determinado contexto social e institucional – nas decisões reprodutivas das gestantes infectadas pelo vírus da Aids. Metodologia Combinação de duas estratégias metodológicas: Quantitativa: consulta aos prontuários de pré-natal; Qualitativa: observação etnográfica dos serviços e entrevistas em profundidade com as gestantes População estudada Gestantes que buscam pré-natal nas cidade de Porto Alegre e São Paulo captadas com base em 3 tipos de serviços de pré-natal: 1) serviço vinculado a um hospital-escola com referência para parto; 2) serviço em hospital geral com referência para parto; 3) serviço ambulatorial sem referência para parto. Dados quantitativos Para analisar a taxa de esterilização nos serviços de saúde selecionados, foram coletados dados dos prontuários clínicos de todas as mulheres HIV + que fizeram prénatal nesses serviços. Foram coletados ao total dados de 402 gestantes HIV +: 154 em São Paulo e 248 em Porto Alegre. Dados qualitativos Observações etnográficas realizadas nos serviços Entrevistas semi-estruturadas com 60 mulheres, 30 em cada cidade. Foram realizadas 2 entrevistas com cada mulher: a primeira durante a gravidez entre o terceiro e o sexto mês de gestação segunda após o parto, até 2 meses após a data prevista do parto. Tipo de parto: entre o desejo e a prescrição • Durante o pré-natal as expectativas das mulheres estão marcada por dois fatores: 1) A condição de soropositividade para o HIV, o que faz com que mais da metade das entrevistadas tenham referido a cesariana como o tipo de parto esperado, visto à redução do risco de transmissão vertical, indicação da equipe em função do HIV e possibilidade de obter uma ligadura tubária. • • 2) O tipo de serviço de pré-natal freqüentado, onde em algumas situações a cesariana é vista como a única alternativa possível, em geral nos hospitais-escolas. Nos serviços sem referência para parto, as expectativas das gestantes passam pela percepção das possibilidades concretamente disponíveis. Estas mulheres acabam por conformarem-se que esta decisão está fora de seu poder e, em grande parte dos casos, fora do poder da própria equipe de saúde que realizou o prénatal. Determinação da cultura institucional no tipo de parto • Há uma correspondência entre a expectativa da gestante e o serviço ao qual ela está vinculada: • Gestantes vinculadas os hospitais-escolas apresentam um discurso mais “técnico”, enfatizando a diminuição do risco de transmissão vertical; • Gestantes dos hospitais gerais e ambulatórios manifestam uma maior preferência pelo parto normal, utilizando como argumento as experiências prévias positivas e o medo da cesariana. Risco é vinculado à cirurgia e não à transmissão vertical. A frustração do desejo • • Considerando as expectativas iniciais e o tipo de parto realizado, cerca de metade das entrevistadas conseguiu ter o parto que previam. Mas mesmo aquelas que conseguiram isto, avaliam negativamente esta experiência, visto que na grande maioria dos casos a expectativa inicial foi definida em razão da condição de HIV+ ou de uma prescrição médica. Laqueadura Do total de 402 mulheres atendidas no prénatal no período estudado, 22% foram esterilizadas depois do parto; Há diferenças entre as duas cidades: 4,4% em Porto Alegre 50,6% em São Paulo Quem são as mulheres esterilizadas Residem em São Paulo; Têm 25 anos ou mais de idade; Menor escolaridade; Dois ou mais filhos; Fizeram cesariana; Foram atendidas no prénatal com hospital de referência para o parto. Desejo pela laqueadura A intenção de não ter mais filhos foi quase uma unanimidade entre as sessenta entrevistadas Razões apresentadas pelas mulheres: infecção pelo HIV, dificuldades econômicas e já ter o número desejado de filhos. A infecção pelo HIV aparece como o principal motivo para a grande maioria das mulheres de Porto Alegre, enquanto é alegada apenas por cerca da metade das entrevistadas de São Paulo. Oferta da laqueadura – São Paulo Em um dos serviços investigados a oferta de esterilização pós-parto ocorria já na primeira visita ao serviço, antes mesmo da consulta médica, e nas visitas subseqüentes ao serviço as mulheres eram relembradas da opção de esterilização. Foi relatada até uma certa indução da equipe, mesmo contrariando a vontade da paciente, para a escolha da laqueadura como método contraceptivo. “a doutora falou assim: ‘olha, a laqueadura é fácil. Você faz a laqueadura’. (...) Eu ia fazer lá, né? (...) É... Mas eu não falei que eu não queria ter mais filhos. Eu não lembro o assunto direito, como que entrou nesse assunto, mas eu lembro que ela falou: ‘não, eu faço a sua laqueadura’ (...) Ai, eu não sei o que eu vou fazer. Ela perguntou assim,como que eu tinha engravidado. Eu falei: ‘foi a camisinha’. Eu conversei com o médico que eu queria... um anticoncepcional e ele não me aconselhou. Aí ela falou: ‘eu faço a sua laqueadura’. Que aí eu não iria ter mais problemas. Entende? (...) O que todo mundo fala para mim, tanto é que quando eu me recusei a assinar a laqueadura, nenhum médico fala se eu quero ter mais filhos no futuro: ‘você tem duas patologias graves, eu não aconselho você a ter mais filhos’. Aí, eu falei pra doutora: ‘mas eu não quero ter mais filhos, eu só não quero perar’” (Entrevistada de São Paulo, 30 anos, primeiro filho). Empecilhos à laqueadura – Porto Alegre Os serviços tendem a desestimular a laqueadura, seja não oferecendo explicitamente essa possibilidade, seja colocando uma série de empecilhos às mulheres que solicitavam ou perguntavam sobre a laqueadura tubária; Mesmo quando o médico atestava a vontade da mulher de ser esterilizada, no serviço sem referência para parto, este desejo passava pela negociação com a equipe médica responsável pelo parto, Cultura médica e esterilização Porto Alegre: cultura médica resistente à realização da laqueadura, tanto que desconhece a nova legislação sobre o assunto e muitas mulheres nem chegam a explicitar o desejo de laqueadura por perceberem que a equipe médica se posicionará contrariamente. A esperança de obter uma ligadura tubária em Porto Alegre se dá mediante a também esperança de fazer uma cesariana, mesmo que isso implique o medo e a angústia São Paulo: a infecção pelo vírus HIV é um elemento facilitador da esterilização. Serviços de saúde e políticas públicas A cultura médica local e a posição do serviço de saúde com relação à esterilização, que sustenta diferentes interpretações da lei no Brasil, são reforçadas por préconcepções com relação à Aids, que agem como facilitador ou dificultador do acesso à laqueadura. Serviços de saúde com estruturas mais “fechadas” tendem a limitar as possibilidades de escolha das mulheres, tanto em relação à cesariana quanto em relação à laqueadura, com justificativas consideradas científicas. Aconselhamento, apoio para planejamento familiar e uma compreensão ampla da complexidade envolvida nas escolhas reprodutivas por parte dos serviços e profissionais de saúde devem ser aprimorados, para que as mulheres possam tomar sua própria decisão. Para que isso seja possível, não é suficiente simplesmente atender (ou não) os desejos de esterilização das mulheres, mas compreender as circunstâncias complexas nas quais essas decisões são tomadas e apoiadas (ou não) pelos serviços de saúde, o que implica focar não apenas as características e desejos individuais das mulheres HIV+, mas também as políticas e as práticas dos profissionais e serviços de saúde.