Cutura e crise dos liames sociais na sociedade contemporânea – GT4

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CULTURA E CRISE DOS LIAMES SOCIAIS NA SOCIEDADE
CONTEMPORANEA
Ítalo Andrade Lima
Graduado em Filosofia pela UECE
[email protected]
Resumo
Esta pesquisa, sobre a cultura e a crise dos liames sociais orienta-se por um diagnóstico das
degenerescências da sociedade contemporânea. O capitalismo exerce seu domínio sob todas as esferas da
vida, nesses termos, a cultura, condicionada em geral, apresenta-se como expressão do metabolismo
capitalista. A homologação do novo modo de viver condiz com a expansão da massificação e da
padronização, que se estende a todas as atmosferas da vida humana. A dissolução dos liames sociais
reflete a perda de um ideal comunitário, de um agir comunitário e reflete na improvável e impensável
ideia de mudança do sistema. Ressaltamos a função decisiva que esse movimento de desrealização do
real, de aprisionamento das individualidades e do desprezo à vida comunitária exerce como mecanismo
de conservação da atual ordem. Para esta pesquisa vale-se aqui de uma orientação filosófica que tem
como primado a realidade histórico-social, em particular aquela do capitalismo contemporâneo.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa sobre a cultura e a crise dos liames sociais e seus os aspectos
políticos, tem como orientação um diagnóstico das degenerescências da sociedade
contemporânea e das relações sociais nela estabelecidas. Nesse sentido, Barcellona
demonstra que o avanço da tecnificação, em virtude da terceira revolução industrial,
aliada ao projeto moderno de desenvolvimento e as novas feições do sistema capitalista,
o metabolismo do capital passam a dominar o homem, tanto em suas ações, quanto em
suas reflexões.
A ideologia capitalista, nos termos do individualismo atomizado, do consumo
em massa, da insaciedade dos desejos e da liberdade como liberdade de consumo, passa
a ser reproduzida no cotidiano causando uma nova forma de organização da vida,
pautada pelos aspectos anteriormente descritos. Esta pesquisa vale-se da tradição crítica,
que preza pela articulação dos processos históricos como agentes de transformações
econômicas, sociais, políticas e culturais, bem como de uma crítica ao sistema
capitalista, que devasta as individualidades e, consequentemente, a possibilidade de um
ideal comunitário de individualidades emancipadas.
Desse modo, os pressupostos abordados por Barcellona serão: 1) Uma crítica à
modernidade como instrumento de padronização e massificação do homem em seus
aspectos materiais e intelectuais; 2) Uma crítica à função social cumprida pelas novas
tecnologias, precisamente em sua afirmativa que demonstra o caráter conservador da
ordem vigente; 3) A destruição das individualidades, a crise dos liames sociais e a crise
dos sentidos e; 4) A necessidade da conservação do “outro” como meio de estabelecer
laços sociais pautados num ideal comunitário. Trata-se aqui de uma orientação
filosófica que tem como primado a realidade histórico-social, em particular aquela do
capitalismo contemporâneo. Daí não priorizar aqui pressupostos relativos a primados
epistêmicos, gnosiológicos ou lógicos, pois a presente proposta de estudo se inscreve
em um horizonte prático do pensar.
DESENVOLVIMENTO
A presente pesquisa aborda a crise dos liames sociais, com base nos escritos de
Pietro Barcellona. Tal pensador trata em seus escritos qual o desafio do presente, no
momento em que o tempo atual aparenta ser o “reino da liberdade”. A crescente
tecnificação e os novos aparatos tecnológicos apresentam-se como aparelhos de
dominação da vida, tanto em um sentido objetivo, quanto subjetivo. Desse modo, a vida
humana passa a ser regida por uma lógica de reprodução de um modo de agir que tem
na repetição seriada seu ponto chave para expropriação das individualidades.
Em seu diagnóstico do presente, Pietro Barcellona aborda questões como o
individualismo atomizado, as identidades transitórias, a teoria da complexidade e sua
função social, na medida em que são expressões da conservação do atual estado de
coisas, ou seja, a crise das relações sociais pautadas nas experiências construídas
intersubjetivamente, o desejo e o consumo, a vida como espaço de manifestação do
fazer repetitivo, dentre outras temáticas que influenciam decisivamente no
esfacelamento do social como espaço de construção de individualidades plenas com
base na efetivação de um intelecto crítico coletivo.
O projeto moderno de desenvolvimento obteve seu sucesso, na medida em que
conseguiu colonizar não apenas o ato de produção, mas se enraizou nas mais diversas
esferas de sociabilidade. A dominação não se encontra, apenas, na relação de produção
estabelecida entre “as duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias” 1,
mas invade a vida humana e a condiciona em seus aspectos sociais, políticos e culturais.
Daí Barcellona escrever:
(...) à crise dos valores tradicionais opõem a força de uma incultura que está
habituada a dar folego sem indulgencia a qualquer sonho e desejo. A
liberdade é, por isso, liberdade do consumo, de atingir o supérfluo, de trocar,
não segundo a moral e a consciência, mas segundo a moda e os modelos de
opinião. Modernização e individualismo de consumo se entrelaçam na época
da terceira revolução industrial, de modo completamente peculiar 2.
A homologação do novo modo de viver condiz com a expansão da massificação
e da padronização, que se estende a todas as atmosferas da vida humana 3. A
padronização de um modo de viver baseado no consumo incessante, na insaciedade dos
desejos, no egoísmo infantil devasta a possibilidade de construção das experiências
sociais e de uma identidade coletiva com base na vida comunitária. A forma
padronizada de se viver permuta a necessidade de constituição de uma individualidade
autônoma e em consequência confere aos homens o status de homo economicus com
dois predicados básicos: o consumo e a produção. A característica do funcionamento
dos “códigos da vida”4 é atribuída à ação repetitiva, que garante a conservação da vida
como mero instrumento do organismo sistêmico.
O tempo reduz-se ao eterno presente, pois não há mais lugar para a experiência,
visto que o agir é repetitivo e o espaço reduz-se ao uniforme, o corpo não é mais tido
como potencia vital, mas reduz-se a um objeto segmentado.5 O isolamento social
encontra sua gênese no período moderno, “a massificação e a homogeneização das
ações e das posições de cada um de nós”6, a perda da capacidade de construir
identidades, da faculdade criativa, da imaginação,
1
do conceito de realidade,
Ao especificar duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias, Marx destaca que a
primeira classe, a capitalista, caracteriza-se por deter a propriedade privada, os meios de produção e o
dinheiro; já a segunda classe, os proletários, caracteriza-se por deter, exclusivamente, sua força de
trabalho, a ser vendida no mercado. (MARX, K. O capital: crítica da economia política, p. 829 – grifo
nosso).
2
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital.[1988] Trad. Sebastião José Roque.
São Paulo: Ícone, 1995, p. 7.
3
Para autores como Fredric Jamenson tal homologação implicaria no “desaparecimento do sujeito
individual ao lado de sua consequência formal, a crescente inviabilidade de um estilo pessoal, engendra a
prática quase universal em nossos dias do que pode ser chamado de pastiche” (JAMENSON, Fredric,
Pós-modernismo: a lógica do capitalismo tardio [1991] Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática,
1996, p. 43 – grifo nosso).
4
Ver aqui BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital.
5
Nesse sentido, Jamenson argumenta que o “desejo tem seu ponto de partida na fragmentação do corpo”
(JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica do capitalismo tardio, p. 262 – grifo nosso).
6
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital, p.136.
representam um risco no âmbito da vida prática e correspondem ao modo de viver da
cultura contemporânea.
O esfacelamento dos liames sociais pode ser identificado também na
tecnificação da vida.
A crescente tecnificação, característica fundamental da
modernidade, influi não somente no processo produtivo, mas projeta uma nova forma
de estabelecimento de laços sociais.
o problema do sofrimento, o esvaziamento da identidade pessoal, o problema
da diferença sexual, os jovens sem futuro e sem ocupação, a infelicidade
difusa nas cidades caóticas, os rapazes que se suicidam porque no sistema do
sucesso a qualquer custo até um boletim escolar torna-se uma verificação da
própria eficiência. A técnica sistêmica torna invisível o problema de todos os
homens7.
A máquina ganha um lugar de privilegio em nossos tempos. Candidata à nova
mediadora das relações interpessoais, a máquina pensante passa a ocupar o lugar
destinado “ao outro”. As experiências, os desejos, a linguagem, os comportamentos e a
visão (compreensão) do mundo exterior passam a ser construída na relação do “eu” com
a máquina, suprimindo o espaço do “outro”. “O computador é realmente o novo
candidato a mediador geral e exclusivo entre o eu e o mundo” 8. Nesse sentido,
Barcellona afirma que é
na transparência do espelho não se encontra jamais o outro, mas só o idêntico
que retorna a si mesmo. Não há lugar para o diferente, para a
descontinuidade, não há outro lugar para o desejo individualizado que se
estrutura na relação com o outro, na dimensão intersubjetiva, em que a
identidade e a diferença se mantem reciprocamente sem confundir-se jamais9.
No entender de Barcellona: a destruição do “outro” também representa a
destruição entre o “eu” e o mundo externo, pois o isolamento social é uma característica
marcante desse novo processo de mediação10. Segundo Barcellona, o “sistema social é
um ponto de vista que interage com o conjunto, com o amontoado dos pontos de vista
que são expressos pelos atores isolados ou melhor pelos indivíduos isolados” 11. É dessa
maneira que a mediação prismática contribui não apenas para um isolamento social,
mas também traz em si a falta de uma perspectiva interpretativa da realidade, pautada
7
Ibidem, p.87.
Ibidem, p. 17.
9
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital, p. 121.
10
Nesse sentido Lukács arguementa que “com o colapso do mundo objetivo, também o sujeito torna-se
um fragmento; somente o eu permanece existente, embora também sua existência dilua-se na
insubstancialidade do mundo em ruínas criado por ele próprio.” (LUKÁCS, G. A teoria do romance: um
ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. [1965] Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p 52 – grifo nosso).
11
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital, p.20.
8
sob um horizonte comunitário, uma vez que o movimento de captação da realidade
torna-se segmentado, disperso e sempre relativo, dada à impossibilidade dos mais
diversos sujeitos em unificar um olhar sob o objeto oriundo da fragmentação dos
indivíduos.
A perda dos sentidos humanos, o definhamento das relações intersubjetivas, uma
vez que a mediação do “eu” com “os outros” da lugar ao isolamento social. Nesse
sentido, o “eu” apresenta-se como vontade de poder saciar os desejos ilimitados e
relação com “o outro” encontra-se abolida. A existência humana como atividade social
encontra-se reduzida à interação homem e máquina, já que esta se propõe a mediar às
esferas privadas da vida. O contato com “o outro” passa pelo intermédio da tela plana.
Por isso cabe à máquina a tarefa de organizar o comportamento, os impulsos, os desejos
e os sentidos dos indivíduos. A identidade construída por meio das experiências
comunitárias cede lugar a identidades poliformes e transitórias, tal como os programas
cibernéticos.
O espaço social destinado “ao outro” é substituído pela relação entre o “eu” e a
máquina pensante. O isolamento social e a solidão ganha força na medida em que o
lugar destinado “ao outro” na construção de experiências sociais e na constituição do
individuo como ser social passa por um processo de desaparecimento. Barcellona
elucida o impacto que a modernidade e as consequências do projeto moderno de
desenvolvimento
acarreta
nas
formas
de
sociabilidade,
de
constituição de
individualidades livres e de impossibilidade de um horizonte comunitário.
Tais considerações revelam elementos fundamentais das degenerescências do
domínio da sociedade contemporânea, nesse sentido, podemos destacar a relevância da
presente proposta de pesquisa, seja em razão da crítica de Barcellona à crise do projeto
moderno, seja em virtude da ausência ainda no âmbito da pesquisa filosófica de
trabalhos sobre o pensamento de Barcellona. Trata-se, portanto, de se considerar um
pensador atento aos novos sintomas do presente e a atento igualmente aos rumos
tomados pela racionalidade moderna. Desse modo, destacamos, antes de qualquer coisa,
a possibilidade de se manter ainda uma orientação de pensamento vinculada a uma
tradição de crítica social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Barcellona reflete sobre os novos sintomas que afetam a individualidade na
experiência social contemporânea em que se destacam: as novas formas de narcisismo,
o autismo social e gregarismo de caserna, a crise do sentido, a reprodução da vida sem a
esfera humana, a dissolução do sujeito no sistema, a tecnificação da vida, da perda de
identidade e de subjetividade, indicando a necessidade de construção de uma alternativa
comunitária que vislumbre na relação com “o outro” um contraponto à degeneração dos
liames sociais.
A complexidade apresenta-se como a “crise de toda explicação simples do
mundo”12. Para Barcellona, a pluralidade e a multidimensão dos centros de informação,
de decisão e de ação é, nesse sentido, um “substrato da mediação prismática” 13.O
conceito de realidade decai, já que a percepção sobre o mundo e sobre a realidade é
difusa, em virtude da fragmentação dos indivíduos e do esfacelamento das relações
interpessoais. A incapacidade de construção de uma orientação coletiva provém do
isolamento social originado pela substituição do “outro”, em detrimento da relação do
“eu” com a máquina pensante. A questão é que o projeto moderno inaugura um
processo de abstração do mundo, separando completamente os indivíduos do conjunto
das relações sociais, tornando-os atomizados e difusos em um sistema complexo e
multidimensional. Nesse sentido, a “identidade humana é relacional, não é
autoreferencial. Não é possível haver uma imagem de si mesmo se não em presença do
outro”14.
A dissolução dos liames sociais reflete a perda de um ideal comunitário, de um
agir comunitário e sobretudo reflete a improvável e impensável ideia de mudança do
sistema. Ressaltamos a função decisiva que esse movimento de desrealização do real,
de aprisionamento das individualidades e do desprezo à vida comunitária exerce como
mecanismo de conservação da atual ordem15. A lógica que devasta o social como
construção com base em mediações intersubjetivas remove a possibilidade de
12
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital, p. 19.
Ibidem, p. 19.
14
BARCELLONA, Pietro. L’individuo e la comunità. Roma: Lavoro, 2000, p. 76. Tradução livre:
““L’identità umana è relazionale, non è autoreferenziale. Non è possibile avere uma imagine di se stessi
se non si è in presenza dell’altro”.
15
Nesse sentido podemos nos reportar aos escritos de Lukacs ao afirmar que “mas para a vida o peso
significa a ausência do sentido presente, o enleio inextricável em séries causais vazias de sentido, o
estiolamento na infrutífera proximidade da terra e distância do céu, a forçosa perseverança e a
incapacidade de livrar-se dos grilhões da mera materialidade brutal” (LUKÁCS, G. A teoria do romance:
um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica, p. 56 – grifo nosso).
13
constituição de identidades livres, uma vez que tudo passa a ser representado pelo
movimento de padronização e massificação dos hábitos de vida. A individualidade,
portanto, é regida conforme o movimento padronizado que institui uma extrema
visibilidade dos desejos, o consumo desmedido como mecanismo de realização da
felicidade e a liberdade como dissolução dos vínculos interpessoais. O diagnóstico do
nosso tempo, realizado por Barcellona, demonstra que
A mitologia do bem-estar econômico como fim em si mesmo, a mistificação
da liberdade como pura luta para o sucesso material, são a base da redução da
política a pura troca entre um voto e um favor, entre consenso e realização
imediata de um desejo extemporâneo. Essa permissividade ideológica do
sucesso econômico da realização de todo desejo, custe o que custar, da logica
dos negócios e da troca, estão na origem de uma política que se tornou pura
gestão de interesses particulares, que renunciou deliberadamente ao que foi,
no passado, a conotação da grande política: um projeto para o futuro, a
perspectiva de uma sociedade melhor, mais justa e mais livre, baseada na
emancipação do individuo das necessidades e condicionamentos sociais e
naturais. A política como negocio, como comercio, é outra face da liberdade
entendida como consumo, como satisfação instantânea do desejo 16.
Liberdade e desejo ilimitado se confundem na sociedade contemporânea. A
personalidade instantânea, fruto do êxito do universalismo jurídico e do liberalismo
econômico17 propaga a falsa sensação de liberdade. No entanto, tal liberdade encontrase em duas medidas: primeiro, na liberação dos indivíduos dos vínculos sociais, desse
modo, essa liberdade nada mais é que o individualismo por causa da incapacidade de se
estabelecer laços coletivos para se constituir uma identidade comunitária. Em segundo
lugar, a liberdade torna-se um predicado do livre acesso ao mercado e aos bens de
consumo, assim, a liberdade representa a nova cultura do consumo ilimitado. Nesse
sentido, para Barcellona, a liberdade representa a nova cultura do consumo ilimitado:
A nova cultura dos habitantes da periferia, aparentemente liberados da velha
distinção de classes, esconde ainda mais a pobreza das relações interpessoais,
a falta de perspectiva, a perda de identidade de inteiras gerações que reduzem
todas as suas necessidades de futuro à fantástica cavalgada sobre uma
motocicleta japonesa18.
A liberdade, na sociedade onde o individualismo atomizado é hegemônico,
impõe ao individuo a necessidade de “obrigar-se sobre o limite prático da necessidade
de satisfazer interesses e necessidades, até o ponto de tornar o sujeito livre e
16
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital, p.109.
Ver aqui BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital.
18
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. p.108. Ver também nesse sentido os
escritos de Pasolini quando ele afirma que “conformação a esse modelo se apresenta antes de mais nada
no vivido, no existencial e, consequentemente, no corpo e no comportamento. É aí que se vivem os
valores, ainda não expressos, da nova cultura da civilização de consumo” (PASOLINI, Pier Paolo “Os
Jovens Infelizes” In. LAHUD, M. (Org.) Os Jovens Infelizes: Antologia de Ensaios Corsários, Trad.
LAHUD, Michel.São Paulo, Editora Civilização Brasileira, 1990, p. 96 – grifo nosso).
17
independente, constrangido a obrigar-se a prestar atividade laborativa mediante
contraprestação, para obter o necessário para viver” 19. Liberdade e desejo confluem-se
sob uma mesma égide, ou seja, a do consumo. Os desejos, as paixões, a esfera líbidicoemotiva e o processo de despersonalização são as faces de um fenômeno que remove o
desejo de liberdade plena e o substitui por técnicas para satisfação do prazer. Segundo
Barcellona, o “desejo torna-se uma espécie de motor imóvel do sistema, completamente
análogo à lógica da reprodução ilimitada das mercadorias” 20. Ele afirma que “depois da
alienação do trabalho, eis a alienação dos desejos”21, pois “a massa das mercadorias
produzidas e produzíveis corresponde a massa dos desejos”22.
Como podemos pensar uma grande política se os indivíduos não conseguem
constituir laços de identidades coletivas, ou seja, como podemos construir um grande
processo de libertação comunitária se o isolamento social e o individualismo atomizado,
por causa da exclusão do “outro” nas relações sociais e na construção de um projeto de
comunidade, visto que a máquina aparece como novo social? A política, portanto,
resume-se na possibilidade de realização das vontades individuais que se manifestam no
consumo e na realização imediata dos desejos. Nesse sentido, “a política torna-se a
grande administradora do existente”23. O desafio do presente, portanto, concentra-se na
necessidade de garantir a conversão do espaço destinado “ao outro” como determinante
na construção de novas experiências sociais, já que “o outro”, na sociedade
contemporânea apresenta-se como
o jovem prisioneiro da linguagem bloqueada dos vídeo-cassetes, o qualquer
habitante da cidade sem rosto; o operário que perde a cabeça na
insignificância dos gestos repetitivos do teclado; o profissional usado como
terminal do programa computadorizado; a mulher que a mortificação da
diferença na violência da lógica possessiva 24.
Para Barcellona, novas relações interpessoais constituídas por mediações
humanas encontram seu fundamento na relação com “o outro”, pois é nessa relação que
o individuo encontra seu específico e se faz como ser social que se projeta não como um
átomo, mas como comunidade.
O outro é a irreduzibilidade, historicamente dada; é a polaridade que se
institui através da abertura da criticidade sobre a fechada circularidade do
sistema. O outro é a abertura do olhar sobre a contraditoriedade de todo
19
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. p. 72.
Ibidem, p. 120.
21
Ibidem, p. 119.
22
Ibidem, p. 121.
23
Ibidem, p. 96.
24
BARCELLONA, P. O egoísmo maduro e a insensatez do capital, p. 137.
20
sistema que, para incluir todos, deve reduzir a vida individual a esquemas de
ações disponíveis em uma série infinita, porém sempre igual. o outro é a
recusa de toda objetivação definitiva que permita fechar a vida na gaiola de
uma forma lógica ou matemática 25.
A projeção, do “outro” além do horizonte histórico presente, é o caminho que os
indivíduos possuem como possibilidade de se distanciarem do peso de se viver uma
vida seriada e mecanizada, que tem no isolamento social e na solidão a face mais cruel
de uma ordem que adestra o homem à lógica da repetição vazia de reflexão e sentidos26.
A necessidade da (re)fundação de espaços que permitam uma verdadeira
interação dos homens, ou seja, uma interação que possibilite a constituição de
individualidades autônomas se faz necessária. Não obstante a (re)construção de uma
vida coletiva – comunitária – torna-se essencial para o desenvolvimento de um espirito
que fuja do atual patamar de dissolução dos liames sociais. A inviabilidade do homem
massa encontra-se justamente na insensatez da reprodução da vida como simples ato
produtivo e consumista, pois despossuída de qualquer sentido. Desse modo, Barcellona
defende:
Os liames sociais, todavia, não podem ser negados, o liame social deve ser
transformado, deve ser liberado da necessidade, da coação, mas não pode ser
eliminado porque se suprimirmos, nós destruímos também o espaço do eu e
do tu. O desaparecimento do liame social é resultante da relação do eu e do tu
uma relação tênue, uma relação frágil relacionamento frígida, indiferente,
reificada, objetivada, anulado abstração no direito27.
25
Ibidem, p. 136.
Nesse sentido podemos, novamente aqui nos reportarmos a Lukacs ao afirmar que “essa solidão não é
simplesmente a embriaguez da alma aprisionada pelo destino e convertida em canto, mas também o
tormento da criatura condenada ao isolamento e que anseia pela comunidade” (LUKÁCS, G. A teoria do
romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica, p. 43 – grifo nosso).
27
BARCELLONA, Pietro. L’individuo sociale. Genova: Costa&Nolan, 1996. Tradução livre: il legame
sociale, tuttavia, non può essere negato. Il legame sociale deve essere transformato, deve essere liberato
dalla necessità, dalla coazione, ma non può essere eliminato perche se soppromiamo ilnoi distruggiamo
anche lo spazzio dell'io e del tu. La scomparsa del legame sociale ha resto il rapporto fra "l"io e o il tu un
rapporto labile, un rapporto fragile, un rapporto frigido, indifferente, reificato, oggettivato, annullato
nell'astrattezza del diritto.
26
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