“TÁ DE TRELELÊ1”: QUANDO A PESQUISADORA PASSA A SER ALVO DE FOFOCAS EM CAMPO Natália Almeida Bezerra2 Resumo Ter um caso. Viver uma história íntima com um interlocutor. E se isso lhe acontecesse em campo? E se isso NÃO lhe acontecesse, mas você fosse inserido nesse contexto sem querer? Quais seriam as repercussões? Quais seriam os versos e reversos para si e para a pesquisa? Pois bem, desde já aviso que não venho contar aqui nenhuma história amorosa que vivi em campo. Isso foi só para iniciar certo tom reflexivo que o tema necessita. Vim mesmo contar uma história que criaram para mim, de paixões e fofocas, a qual experienciei em meu campo de pesquisa no ano de 2011 e, principalmente, discutir como isso afetou o minha pesquisa. A intenção dessa exposição é repensar as relações que desenvolvemos em campo, repensar a atenção que despertamos nos outros, a curiosidade sobre nossos afazeres, o possível “charme” que emanamos e nem nos damos conta. Este é o campo etnográfico: tal como se têm o poder de apreender as informações e dados oferecidos por ele, também se recebe a demanda da “contradádiva”, que é ser mais um personagem em questão. Palavras-chave: Etnografia, campo, desafios, contemporaneidade. Ter o caso. Ter o envolvimento. Viver a história com um interlocutor. E se isso lhe acontecesse em campo? Quais seriam as repercussões? Quais seriam os versos e reversos para si e para a pesquisa? Pois bem, desde já aviso que não venho contar aqui nenhuma história amorosa que vivi em campo. Não é sobre amor que venho tratar nesse texto. Isso foi só para iniciar certo tom reflexivo na escrita. Na verdade, vim contar uma história que criaram para mim, de interesses, paixões, fofocas, a qual experienciei em meu campo de pesquisa no ano de 2011. E sim, usei o artigo definido para diferenciar de quaisquer comuns casos e envolvimentos, pois trato aqui daqueles que marcaram algo. A intenção dessa exposição é repensar as relações que desenvolvemos em campo, repensar a atenção que despertamos nos outros, a curiosidade sobre nossos afazeres, o possível “charme” que emanamos e nem nos damos conta. Quase sempre temos a impressão que estamos no campo a estudar os outros, que são eles os objetos de 1 Expressão usada para definir ou diagnosticar um caso amoroso informal, ou ainda não definido ou devidamente apresentado à sociedade. Quando a pessoa está com muita “conversinha” com alguém. In <dicionarioinformal.com.br> 2 Mestranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. [email protected] 1 interesse, temos até a noção que também somos mais uma pessoa presente no cenário, mas não reparamos no modo como estamos sendo notados. Este é o campo etnográfico: tal como se têm o poder de apreender as informações e dados oferecidos por ele, também se recebe a demanda da “contradádiva”, que é ser mais um personagem em questão. E hoje não escolho outro personagem que não a mim mesma, pois acredito que a descrição e a análise destas relações podem trazer para o meio acadêmico e profissional informações e discussões tão importantes quanto os resultados da própria investigação. Para isso, apresentarei primeiro a experiência vivida e, depois, dialogo com alguns autores sobre diversos recortes suscitados por ela. Com isso, pretendo alcançar alguns pontos que tangenciam as questões sobre neutralidade, condução das regras e fazeres antropológicos quanto às relações estabelecidas por antropólogos em campo. CONTEXTUALIZANDO Minha pesquisa etnográfica, à época, pertence à área da Antropologia da Saúde e também da Tecnologia. Ela buscou conhecer as experiências dos moradores da Ceilândia Sul-DF em relação às doenças crônicas, como a Diabetes e a Hipertensão, com foco no uso de aparelhos tecnológicos biomédicos, como os medidores de glicemia capilar e os de pressão arterial. A ideia central é entender como estes aparelhos participam da vida dos doentes, entender e buscar as concepções culturais e sociais que sustentam a lógica do uso destes aparelhos. A ação de verificar/medir o nível de açúcar ou a força do sangue é uma realidade subjetiva e delineadora de comportamentos que cabe ser conhecida. (BEZERRA, 2011; FLEISCHER&BEZERRA, 2013). Dentro desse contexto, eu trabalhei junto ao mundo biomédico. Na maior parte do tempo, pesquisei dentro de um Centro de Saúde e em sua vizinhança, entre março a julho de 2011. O centro de saúde n. 04 possui especialidades como clínica médica, pediatria, gineco/obstetrícia, odontologia, serviço social e nutrição. Oferece também aos seus usuários atendimento especial para acompanhamento de doenças crônicas, esse geralmente realizado em pequenos grupos, com aproximadamente 12 pessoas. Para este contexto, me deterei apenas ao meu campo dentro do posto3. 3 Utilizarei a expressão “posto” por ser mais usual. Também é o nome preferido por meus interlocutores. 2 No centro de saúde há uma sala especial que serve de acompanhamento/ monitoramento de pressão arterial ou glicemia, para todo tipo de pessoa, seja ela portadora de doenças como hipertensão ou diabetes ou não, que é chamada de sala de acolhimento. Os pacientes passam por esta sala para ter seus níveis de glicose e/ou pressão arterial aferidos pelos profissionais de saúde, geralmente, duas auxiliares de enfermagem. Como é uma sala perto da entrada do centro de saúde e que fica ao lado do balcão de atendimento, é procurada pelos pacientes para resolver diversos tipos de problemas, ou seja, é palco para outras situações, além da medição. Muitas pessoas batem à porta para perguntar algo, tirar uma dúvida, buscar medicamentos, para “pegar ou trocar receitas”, para confirmarem uma consulta, descobrir que horas os médicos estarão presentes. Medir é só um dos motivos. Mas também é nesta pequena sala que as conversas mais informais entre profissionais de saúde acontecem, onde eles se descontraem, lancham, fofocam, quando não há paciente por perto. Em campo, eu me ocupava dos grupos de atendimento aos pacientes crônicos, da fila de espera para as consultas e da própria sala de acolhimento, ou seja, minha presença era notada em diferentes locais. Mas era a sala de acolhimento o meu tesouro em campo. Em poucas visitas, estava me sentindo à vontade para perguntar, questionar, comentar, sorrir junto às duas auxiliares de enfermagem que ficam na sala. Toda vez que eu chegava, batia à porta e elas, prontamente, me convidavam para entrar. Tinha sempre “minha” cadeira junto à mesa. Meu lugar ficava em frente às auxiliares, e era possível observar diretamente as aferições e as conversas que aconteciam, quaisquer delas. Mas há também a contradádiva da sala de acolhimento. Nela fui “pressionada” a dar explicações, falar sobre o meu curso ou o que eu estava pesquisando exatamente, falar sobre o que tanto eu escrevia no meu caderno de campo. Natural isso, despertamos a curiosidade alheia. Alguém mais jovem, não vestindo branco ou jaleco, mas que observava o movimento, entrava e saia do interior do posto e anotava tudo em um caderninho, conversava com todos, era ou não uma situação que despertava atenção e interesse? Tanta atenção e curiosidade me renderam diferentes papéis em campo. Esta é uma reflexão importante porque, somente a partir daí, foi possível perceber como se deram os diálogos com as pessoas que conheci e encontrei [qual o tipo de status que elas viam em mim]. Fui notada como “estudante de farmácia” ou “estudante de 3 medicina”. Também achavam que eu era “pesquisadora do governo” – a maior parte das pessoas falava de política comigo, me perguntavam se eu estava ali para ver o que precisava ser melhorado. Outros achavam que eu era paciente e completavam: “Mas você é tão nova para ter pressão alta”. Quando não, eu era “representante farmacêutica de aparelhos biomédicos”, após uma pequena conversa, as pessoas quase sempre me pediam para que eu arranjasse aparelhos de glicemia. Especialmente a esse último grupo, penso que represento um pouco a ideia ou imagem que as pessoas têm dos representantes farmacêuticos. Unhas e sobrancelhas feitas, roupa ajustada, não uso do jaleco, mochila, bloco de anotações, trânsito livre pelo posto, entre outras características, afirmavam tal condição. Esses questionamentos, descreve Salem (1978) dos interlocutores sobre meu contexto pessoal é parte importante do processo de pesquisa, pois expressa a forma como os entrevistados procuram situar o entrevistador em seu universo. Quando apareciam essas questões, eu as corrigia e lembrava que estava ali para fazer uma pesquisa para minha faculdade, em Antropologia [sempre tentava explicar o termo]. Várias classificações me foram atribuídas em campo, na tentativa de compreender minha presença, seja pelos pacientes ou pela equipe dirigente. As pessoas têm vontade de saber mais sobre nossas práticas pouco usuais dentro do cenário de uma instituição de saúde, sobretudo quando pegamos nosso caderno de campo e anotamos vigorosamente, ao invés de oferecer atendimento ou serviços de saúde de forma ativa. “PRAZER, ROBERTO” Ao apresentar todo esse cenário, intento deixar claro que também meu interlocutor máximo [falarei em instantes dele] tinha algumas ideias sobre mim. Todo esse movimento em torno da minha figura também despertaram a atenção dele. Bem, essa é uma hipótese minha. Eu costumava conversar muito com os pacientes na fila de espera das consultas. Eles me contavam sobre tudo: a vivência com suas doenças, problemas em casa, família, medicamentos, chás, em especial, sobre o uso dos aparelhos... E até mesmo as fofocas sobre a relação entre eles e com seus médicos eu ficava sabendo. Dentre elas, a mais comum era a reclamação, diria “velada”, sobre o Doutor Roberto. Ele era clínico geral, trabalhava pelas manhãs no posto e atendia, especialmente, os pacientes dos grupos de adoecidos crônicos. Quase todos tinham 4 medo dele. Diziam que ele era bravo, mal humorado, carrancudo e atendia em três minutos [verdade, eu contei um dia], não explicava para que eram os medicamentos, entre outros fatos. A figura dele era de um coroa alto, de uns 50 anos, pele bem branca, rosto afilado, cabelos grisalhos, mais para brancos, magro e casado. Realmente não era de sorrir muito. Pude perceber isso porque geralmente nos víamos nas “trocas” de pacientes, isso quando ele vinha à porta chamar algum paciente. Atendia uma sequência de dez pacientes em um pouco mais de meia hora. Posteriormente, descobri também que os próprios servidores do posto tinha certo receio dele, em especial, as duas auxiliares de enfermagem da sala de acolhimento, devido a diversas situações de grosserias que ele fez com elas ou que as mesmas presenciaram. Eu, sinceramente, não o tinha na minha lista de possíveis conversas em campo, afinal seu até seu apelido denotava sua pessoa, era “Dr. porco-espinho”. Certo dia, em uma visita à sala de acolhimento, já perto de findar o expediente da manhã, aproveitei a calmaria para conversar melhor com as auxiliares de enfermagem. Anotando vigorosamente as diversas informações que estava colhendo, o Dr. Roberto entra na sala. Eu não notei. Percebi que as duas se levantaram e saíram, mas não me distraí. Nisso, ele puxou a cadeira que estava a minha frente, sentou e me olhou. Quando eu percebi quem era... Fiquei toda sem jeito. Tinha em minha mente que ele seria levemente grosseiro comigo, que talvez me perguntasse sobre meus interlocutores, e eu não estava preparada para isso, alias, nem mesmo para querer compartilhar minhas ideias com ele. Então ele começou: R: Você é estudante de Farmácia? Nutrição? O que você faz? N: Não. De Antropologia. Já tem um tempo que estou fazendo minha pesquisa aqui no posto... Com pacientes crônicos... R: Isso eu sei. Vejo você sempre aqui. [Silêncio] R: Eu gosto de Antropologia. Prazer, Roberto! N: Natália. R: Queria mesmo até falar com você. Tenho uma proposta para te fazer... Bem, mas hoje já não dá mais tempo. Você vai vir quinta? Pode me procurar às 11h30? N: Hum... Tá bom. R: Então tá, até quinta. (Diário de 26 de maio de 2011) Foi uma conversa bem estranha. [Ele gostava de antropologia? Como assim?] Depois que ele se despediu, as meninas voltaram à sala e perguntaram se estava tudo bem e, lógico, sobre o que ele tinha falado. Eu disse que estava tudo bem sim e que ele 5 queria saber mais sobre minha pesquisa. Despedi-me delas e fui embora pensando no que poderia ser o assunto. A TAL PROPOSTA Dois dias depois, volto ao posto. Para pesquisar, que fique claro, mas também bem curiosa. Depois das minhas conversas na fila de espera, entro na sala de acolhimento, deixo minhas coisas e dou um pulo lá na copa. Volto e encontro as duas auxiliares de enfermagem e uma outra funcionária do administrativo, sentadas à mesa. Pergunto assim: “O Dr. Roberto tá ai? Ele queria falar comigo!”. As meninas respondem: “Tá hoje não!”, a outra funcionária completa: “Você tem certeza que ele queria falar com você?!” [usando um tom esquisito] e as meninas replicam: “Queria sim, eles estão de “TRELELÊ”. Eu sorri um pouco sem graça, peguei minhas coisas e fui saindo, dizendo que o encontrava na outra semana. Naquele instante eu percebi que estava em uma situação delicada. Eu não me senti bem com aquele comentário, virei fofoca do posto. As meninas me olharam diferente, foram simpáticas, mas olharam diferente, a gente sente. Nesse momento percebi que algo não estava como antes. Esse é o cerne desta escrita. Bem, na semana seguinte, quando nós dois conseguimos nos encontrar, foi mais complicado ainda. Dessa vez ele apareceu na porta da sala em que se realizava o grupo dos hipertensos. Cumprimentou-me em voz alta e disse que ao final da manhã me aguardava para conversar. Foi tenso porque senti que também entre meus interlocutores pacientes ele criou uma situação complicada, distanciadora, pois acredito que muitos deles não entenderam aquele gesto vindo do Dr. Roberto. Deviam pensar: o que será que ele queria contar? Ou descobrir? Será que o que ela ouve aqui, ela conta para ele? São apenas algumas suposições, para quais, somente bem depois, eu me atentei. Mais tarde, já na sala de acolhimento, mais uma vez na frente das meninas, ele perguntou se eu poderia acompanhá-lo a sua sala. Elas ficaram se olhando e eu imaginei o teor do olhar, agora que elas já tinham traçado a história do “Trelelê”. Mas o que fazer? Segui com Roberto. Poderia deixar no ar a dúvida do que realmente o Dr. Roberto queria, isso poderia aguçar sentidos. Mas não serei cruel assim. Para você leitor(a) que chegou até aqui, contarei tudo o que ele me propôs. O que não consigo evitar é se você será 6 “inocente” como eu fui à época ou esboçará a expressão no rosto igual a de todos que já ouviram essa história. É uma escolha. Ele sentou em sua cadeira e me convidou a sentar na outra (paciente). Começou dizendo o seguinte: “O segredo do sucesso é o silêncio, por isso estamos conversando aqui!”. Entendi que ele queria manter certa discrição. Começou a me falar sobre uma ideia que queria desenvolver em seu mestrado, a qual era trabalhar com terapias alternativas em grupos de adoecidos crônicos. E divagou. Para ser sincera, eu não entendi muito bem o que ele queria realizar. Usava uma linguagem técnica, não biomédica, mas de gestão de negócios. Ele me propôs que eu pensasse, enquanto antropóloga, como determinar que tipos de terapias melhor atenderiam as necessidades de certo tipo de perfil de paciente, para que gerasse sucesso no tratamento dos mesmos. Eu achei isso bem difícil de mensurar, visto que cada grupo, cada pessoa, responde de uma maneira diferente aos tipos de tratamento ou estímulo, e acima de tudo, não é só uma questão de “corpo x tratamento x resposta”, o meio também influencia os resultados, a família, as amizades, as interações sociais. Enfim, “detalhes” que eu achava que o mundo biomédico não se ocupava tanto e a antropologia sim. Expliquei tudo a ele. Disse que poderíamos até tentar traçar um perfil, acompanhar um grupo “piloto”, mas nada generalista. Sugeri, de forma bem pretensiosa, que ele começasse a olhar diferente para os seus próprios pacientes no posto, pois muitas vezes eles querem contar histórias de vida, experiências que estão ajudando a encarar o tratamento, detalhes que poderiam ajudar a pensar essas terapias. Mas, infelizmente, ele não me deixou terminar de falar. Não é bom ouvinte. Tivemos algumas outras conversas parecidas, sempre com discrição [fico pensando que discrição se todos sabiam]. Mas para quem, como as meninas, pensou outra coisa, foi só isso. Não houve caso algum, envolvimento algum. Nem ao menos intenção concreta da parte dele. O projeto não foi para frente devido à impossibilidade antropológica para atender ao convite. Como fazer uma etnografia com mais de dois mil pacientes?! A alguns olhos essa história pode parecer sem muita importância, até mesmo por não ter gerado nenhum envolvimento, mas ela repercutiu dentro do meu campo e entre meus interlocutores, de uma forma que, para mim, foi reflexiva e reconstruiu algumas de minhas relações. 7 O “FARDO” DO “TRELÊLE” A questão aqui está longe de ser definir as reais intenções dele nessa história ou julgar se a proposta tinha coerência ou aplicação, mas é pensar como essa aproximação revelou e transformou minhas relações dentro do campo. E como muitas relações que você leitor vive hoje em seu campo podem redefinir seus rumos. Decidi colocar aspas na palavra “fardo”, porque bem na semana de escrita deste texto, me levaram a pensar que a fofoca às vezes pode fazer parte integral de um cenário, ser ela a responsável por conduzir ou equilibrar as relações, nesse sentido se tornando positiva. No meu caso, os impactos diretos para a pesquisa, de certo modo, foram ruins, mas levando em consideração que geralmente fofocamos sobre quem conhecemos, acho que me senti pertencente/íntima ao meu campo de vez. É exatamente isso que aponta Claúdia Fonseca em seu livro Família, Fofoca e Honra (2000): A literatura antropológica nos fornece diversas pistas para compreender a força da fofoca. Por exemplo, pode reforçar o sentimento de identidade comunitária ao criar uma história social do grupo (Gluckman, 1963). (...) A fofoca seria instrumental da definição dos limites do grupo — não se faz fofoca sobre estranhos, pois a estes não se impõem as mesmas normas; ser objeto, sujeito da fofoca, representa a integração no grupo. A fofoca pode ter uma função educativa. Em vez de adultos explicarem as normas morais a seus filhos, estes, ao ouvir as histórias de comadres, aprenderiam as nuances práticas dos princípios morais do grupo (ver Handman, 1983). A fofoca também pode ter grande importância em termos de comunicação, sobretudo entre analfabetos; é assim que se descobre o novo endereço de um parente e o paradeiro de velhos amigos (ver Hannerz, 1969, sobre uma comunidade negra em Washington, EUA). Finalmente, a fofoca serve para informar sobre a reputação dos moradores de um local, consolidando ou prejudicando sua imagem pública. (p. 23) Ao levar-se em consideração que a fofoca tem uma função social, percebi que ser sujeito da fofoca atesta a integração ao grupo, o que é ótimo quando pesquisamos. Mas, por outro lado, revela qual a reputação que está contribuindo para a formação da nossa imagem pública. Na minha experiência, trouxe instabilidade à minha imagem [desconfiança], atestou-me certo receio das minhas interlocutoras da sala de atendimento e também de alguns pacientes. Receios delas de continuarem conversando tão abertamente comigo, pois antes, havia presenciado algumas vezes comentários negativos sobre Dr. Roberto. Elas sempre 8 mudavam de assunto ou se calavam quando ele adentrava a sala. Tinham receio de seu comportamento. Era compreensível. Mas agora, ter alguém “próxima” a ele, presenciando as conversas, seria bom? Por isso digo que senti uma mudança de comportamento por parte delas. Assuntos sobre aparelhos, medições, doenças, ainda eram contados, mas aquela naturalidade de antes, não havia mais. Quanto aos pacientes - aqueles que estavam presentes no grupo dos hipertensos, no dia que ele falou comigo - também ficaram receosos. Alguns me perguntaram: “Você é amiga do Dr. Roberto?”. Como disse antes, suspeitei que era algo como: “ela é amiga dele, será que conta nossas coisas? Nossas reclamações?”. Afinal, muitos deles já haviam me contado sobre as consultas rápidas [leia-se ruins] do doutor. *** Um espaço que eu busquei conquistar por meses, estava agora na berlinda. A entrada em campo e o início do contato com informantes merecem atenção especial por caracterizar o início de uma relação que pretende ser de confiança. E eu sentia que essa tinha sido abalada. Ainda conseguia meus dados, mas em maior quantidade com interlocutores novos. Antes eu não imaginava que uma simples aproximação seria, de certa forma, negativa para minha pesquisa. Mas o campo nos surpreende. Após a conversa com Roberto, voltei ao posto umas três vezes ainda e tive essa mesma sensação. Pensando melhor, acho que minha inexperiência na época me atrapalhou um pouco na condução dessa história. Eu poderia ter explorado melhor o fato de ter me tornado protagonista de uma fofoca. Quero dizer que naquele momento eu já estava findando meu campo para começar a escrever. Não tive tempo e oportunidade para avaliar a situação posteriormente. Mas a pergunta que ficou é: e se a pesquisa não tivesse acabado, como seria dar continuidade a este “jogo”? Como seria voltar a campo hoje? Será que evitar essas situações se resguardando ao máximo é ideal ou devemos viver o campo em sua intensidade e surpresas? Entre as duas, fico com a última e com Geertz (2001) que diz: A característica mais marcante do trabalho de campo antropológico como forma de conduta é que ele não permite qualquer separação significativa das esferas ocupacional e extraocupacional da vida. Ao contrário, ele obriga a essa fusão. (in Rojo, 2004) 9 Se ele obriga essa fusão, pesquisador e pessoa, a neutralidade ainda estaria resguardada? De que forma? Schuch e Fleicher (2010) revelam uma reflexão um pouco diferente quando dizem: O que parece estar em jogo aqui são questões que relacionam a Ética com autorreflexões sobre os domínios da autoridade e posicionalidade do antropólogo, num contexto em que suas responsabilidades sociais são imensas, na medida em que seu trabalho pode ter muitos desdobramentos políticos e sociais para a vida das comunidades em questão. (p. 186) Pareceu-me essa ser a outra face da questão. Há que se lembrar das nossas responsabilidades em campo. Apenas como uma ideia bem superficial, se devo lidar também com o lado emocional na pesquisa [extraocupacional], tenho que ter cuidado para não sobrecarregá-lo, pois há uma ética de pesquisa e uma posição em campo para com os desdobramentos políticos e sociais que a pesquisa oferece, as quais não podem trabalhar com algo tão subjetivo como as emoções. Aqui entra a ideia de limite, o qual o status de Ciência da Antropologia clama por objetividade e razão. O equilíbrio é fundamental entre as duas esferas. E há mais. Dentre essas, outras suposições surgiram posteriormente. Há específicos recortes para se pensar sobre a vulnerabilidade da mulher em campo; pensar numa hierarquia social do poder biomédico; questões quanto aos limites da convivência; a conquista da liberdade com os outros e dos outros conosco. Isso só para ter uma imagem do que essa vivência me fez pensar. Mas preciso me deter ao meu objetivo central. Pena que o espaço aqui é pequeno para tantos desdobramentos interessantes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao descrever essa situação de fofoca no campo, não tive nenhuma intenção de estipular regras de conduta ou comportamento em campo, apenas de trazer uma fonte de reflexão sobre nossas práticas antropológicas e nosso envolvimento emocional com a pesquisa e os resultados disso. Penso que os objetivos propostos foram atingidos, pois apresentei o contexto da situação de “tensão” em campo, a qual acabou por se transformar, de modo geral, em um “dificultador” das conversas para com meus interlocutores. Ao me tornar um personagem do texto, o que não é tarefa fácil, busquei expor uma parte da pesquisa que nem sempre é incluída nos textos etnográficos, pelo limite 10 imposto pela razão e neutralidade de nosso fazer. Aproximo-me muito do que conclui Rojo (2004) em sua pesquisa: (...) futuros pesquisadores podem se relacionar tanto com sua afetividade em campo, o que alguns poucos já o fazem, quanto com os reflexos desta afetividade em seus trabalhos, que até agora têm estado restrito ao que um colega chamou de “seção de fofocas” da Antropologia. Retirando esse contexto da “seção de fofocas”, espero ter contribuído para algum tipo de liberdade que ainda há de se tornar comum nos diálogos intradisciplinares. BIBLIOGRAFIA BEZERRA, Natalia. Bombinha, reloginho ou pera: O uso de equipamentos biomédicos no cuidado da saúde de pessoas vivendo com hipertensão e diabetes na Guariroba, Ceilândia, DF. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Bacharelado em Antropologia). Brasília, 2011. FLEISCHER & SCHUCH, Soraya e Patrice (orgs.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Rosana Castro, Bruna Seixas, Daniel Simões (Colaboradores) – Brasília: LetrasLivres : Editora Universidade de Brasília, 2010. FLEISCHER & BEZERRA. A popularização de esfigmomanômetros e glicosímetros no bairro da Guariroba/DF. Revista Sociedade e Cultura. UFG. V. 16. 2013. FONSECA, Cláudia. Família, fofoca e honra: etnografia das relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: UFGRS. 2010 GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. SALEM, T. Entrevistando famílias: notas sobre o trabalho de campo. In: NUNES, E. O. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 47-64. ROJO, Luiz Fernando. Rompendo Tabus: a subjetividade erótica no trabalho de campo. Revista Cadernos de campo, n. 12. 2004. 11