Lógicas do reconhecimento Aula 2 Eu gostaria de começar nosso curso a partir de uma reflexão sobre a emergência do pensamento do conflito social no interior da filosofia moderna. Ou seja, para entender o que estava em jogo na constituição do problema do reconhecimento no início do século XIX, precisamos começar por nos perguntar em que condições a ideia de conflito aparece como o fundamento para a caracterização da natureza dos laços sociais no século XVII, como ela aparece e que tipo de questões tal emergência produz. Neste sentido, é inegável que a referência central é a teoria social de Thomas Hobbes. Não que Hobbes tenha uma teoria do reconhecimento. Na verdade, com Hobbes a filosofia moderna apresenta a matriz de uma teoria do conflito social claramente fundada em uma antropologia e capaz de produzir uma reflexão sobre a constituição das instituições e do Estado. No entanto, a dimensão do conflito social não será inscrita no interior de dinâmicas de reconhecimento. Ela não poderá ser inscrita, já que o conflito será expressão, na verdade, de uma antropologia da dominação, de uma antropologia que visa mostrar como laços sociais só podem ser, inicialmente, relações de dominação e servidão. Ou seja, a sociedade instaura-se a partir de relações tendencialmente assimétricas. Como estas relações assimétricas não podem, para Hobbes, desembocar em dinâmicas de reconhecimento, elas servirão para a constituição daquilo que poderíamos chamar de fundamento fantasmático para a legitimação do poder soberano. Pois como não é possível passar do conflito ao reconhecimento, o conflito fica reduzido à condição de horizonte latente de destruição potencial do laço social. Um horizonte que será continuamente mobilizado pelo poder soberano como sua estratégia de legitimação e de paralisia das transformações na estrutura de poder da vida social. Neste sentido, podemos dizer que a reflexão de Thomas Hobbes tem o interesse de mostrar o tipo de relação de poder que emerge quando a vida social é incapaz de abrir espaço a dinâmicas de reconhecimento. Hobbes coloca, a sua maneira, o problema que as teorias do reconhecimento de Hegel e teóricos posteriores tentarão resolver. O fantasma da guerra total Partamos da definição célebre de Hobbes: Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens1. Daí porque: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens teriam uns para com os outros, 1 HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109. mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”2. Esta definição determina uma das condições centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a guerra iminente. Uma guerra que não é apenas o tempo da batalha, mas a disposição contínua à violência contra o outro. É uma reflexão sobre a guerra que funda a reflexão política moderna. Ou seja, o problema político fundamental em Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade. A saída do estado de natureza e de sua guerra de todos contra todos, estado este resultante de uma igualdade natural que não implica consolidação da experiência do bem comum mas conflito perpétuo entre interesses concorrenciais, se faria pelas vias da internalização de um “temor respeitoso” constantemente reiterado e produzido pela força de lei de um poder soberano. Pois: se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais controvérsias inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais, pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar3. Proposição que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como uma força de impulso dirigido ao excesso. Não pode haver bens comuns porque há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza ter dado a cada um direito a tudo”4 sem que ninguém esteja assentado em alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 5 . Tal excesso aparece, necessariamente para Hobbes, não apenas através do egoísmo ilimitado, mas também através da cobiça em relação ao que faz o outro gozar, da ambição por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente como concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só pode acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite pelas mesmas coisas”6. A guerra será inevitável se lembrarmos que o direito natural (jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha própria natureza, ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis) prescreve a proibição de fazer e aceitar aquilo que è destrutivo à minha vida. Assim, Hobbes descreve como o aparecimento histórico de uma sociedade de indivíduos liberados de toda forma de lugar natural ou de regulação coletiva predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade da insegurança total”7. Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência necessária da expressão da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexão sobre o desejo como disposição humana fundamental que inaugura uma das bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos são miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para 2 HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28 HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7 4 Idem, p. 30 5 STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p. 10 6 HOBBES, Do cidadão, p. 30 7 CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13 3 saber como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta racionalidade mimética não se traduz em empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em rivalidade e violência direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de vida ou morte. No entanto, esta luta não pode ser regulada pelos próprios contendores. Dela, não emerge nada a não ser um impasse, já que todos os indivíduos são portadores de força relativamente igual. A força maior de um não irá muito mais além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser superada então através da introdução de um terceiro elemento, que neutraliza a rivalidade da relação dual, a saber, através da instauração do direito e do Estado. No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele expressão da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituições? Ou é o Estado a expressão de uma coerção consentida, de uma restrição legítima como condição para a não desagregação do laço social? Qual a natureza do pacto que produz o advento do Estado? A fim de responder tal questão percebamos que é contra a destrutividade amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento, fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte violenta, que se faz necessário o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto imanente entre indivíduos é possível, como a própria figura do indivíduo portador de interesses já é a consolidação da inevitabilidade do conflito, já que luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, não haverá outra saída para a regulação social que o aparecimento de uma força externa chamada de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restrição mútua e da limitação de si. Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes dirá que os três principais motivos de conflito são: a concorrência, a desconfiança e a glória. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por Macpherson no clássico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em situação de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses, colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo sem ser exatamente um teórico liberal, já que Hobbes submete o direito da propriedade individual às condições de sobrevivência do Estado, vemos claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalização antropológica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal. O medo como afeto que funda o laço social Neste sentido, há de se estar atento para o circuito de afetos que constituirá o fundamento possível desta forma de vida social. Pois a possibilidade mesma da existência do governo e, por consequência, ao menos neste contexto, a possibilidade de estabelecer relações através de contratos que determinem lugares, obrigações, previsões de comportamento, fornecendo à sociedade sua racionalidade, estaria vinculada à circulação do medo como afeto instaurador e conservador de relações de autoridade. A emergência do indivíduo moderno é indissociável da elevação do medo à condição de afeto social central. Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os pressupostos desta passagem hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da vida em sociedade: Este contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos os vínculos e todas as comunidades são dissolvidos. Indivíduos atomizados se encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento criando um consenso dirigido à submissão geral e incondicional à potência suprema8. Notemos o sentido da elevação do medo como afeto político instaurador de laços sociais. Esse medo teria a força de estabilizar a sociedade, paralisar o movimento e bloquear o excesso das paixões, viabilizando assim a perpetuação de nossas formas sociais. Isto leva comentadores, como Remo Bodei, a insistir em uma “cumplicidade entre razão e medo”, não apenas porque a razão seria impotente sem o medo, mas principalmente porque o medo seria, em Hobbes, uma espécie de “paixão universal calculadora” por permitir o cálculo das consequências possíveis a partir da memória dos danos, fundamento para a deliberação racional e a previsibilidade da ação9. Ou ainda, como dirá Esposito, em Hobbes, o medo “não determina apenas fuga e isolamento, mas também relação e união. Não se limita a bloquear e imobilizar, mas ao contrário, leva a refletir e neutralizar o perigo: não tem parte com o irracional, mas com a razão. É uma potência produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de política”10. Por isto, o medo ligado à força coercitiva da soberania, ou seja, o medo que tenho do soberano, deve ser visto apenas como certa astúcia para defender a vida social de medo maior: porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a natureza, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não houver o medo de algum poder coercitivo – coisa impossível de supor na condição de simples natureza, em que os homens são todos iguais, e juízes do acerto dos seus próprios temores (2003, p. 119). É verdade que Hobbes também afirma: “As paixões que fazem os homens tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do trabalho”11. Ou seja, parece não haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de reforçá-la: o medo ou ainda o orgulho e a glória por não precisar faltar com a palavra. Tais considerações parecem abrir espaço à circulação de outros afetos sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-próprio ligado ao reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo, insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixões: medo e SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95. 9 BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão: Feltrinelli, 2003, p. 86. 10 ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6 11 HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111 8 esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão e atração. Mas não é possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem o contraponto da esperança”12. No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmações como: “de todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo. Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os homens a respeitá-las”13. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se afastar da força incendiária das paixões e atingir esta situação de esfriamento na qual o vínculo político não precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao amor (que, enquanto modelo para a relação com o Estado, acaba por construir a imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família14). Ou seja, o esfriamento das paixões aparece como função da autoridade soberana e condição para a perpetuação do campo político, mesmo que tal esfriamento se pague com a moeda da circulação perpétua de outras paixões que parecem nos sujeitar à contínua dependência. Por isto, mais do que expressão de uma compreensão antropológica precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da observação desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como horizonte uma lógica do poder pensada a partir de uma limitação política, no caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”15. Difícil não chegar em uma situação na qual esperamos finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual não exista realmente mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor”16. O que fica claro em afirmações como: entre os homens são muitos os que se julgam mais sábios e mais capacitados do que os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros doutra, acabando assim por levar o país à perturbação e à guerra civil17. As reformas e inovações são um convite à perturbação e à guerra civil. Pois o estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de proteção social, ou seja, Estado baseado na promessa de amparo, que se serve de todo poder possível, instaurando um domínio de legalidade própria neutro em relação a valores e verdade. Estado que precisa realizar sua tarefa sem constrangimento externo algum, ou seja, como uma máquina administrativa que desconhece coerções em sua função de assegurar a existência física daqueles que domina e protege. Um 12 RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 23 13 HOBBES, Leviatã, p. 253 14 Ver, por exemplo, RIBEIRO, op. cit., p. 53 15 SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56 16 BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56 17 HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146 Estado construído a partir da dessocialização de todo vínculo comunitário, constituindo-se como o espaço de uma “relação de não-relações”18. Não é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã. A metáfora não poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquático dotado de força descomunal que aparece no Livro de Jó. O contexto de sua aparição é sintomático. Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que sofre tanto? Jeová então lhe aparece não para lhe responder a apazigua-lo, mas para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele está diante de Jó para dizer : quem es tu que questiona meus desígnios? Neste contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquática (o Leviatã) e outra terrestre (Behemooth). “Não há nada mais tremendo sobre a terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Ou seja, fazer do Estado um Leviatã é inscrever-lhe a força de uma imagem teológica que visa anular o sofrimento e a restrição como disposição de revolta. A única limitação que Hobbes reconhece ao poder do Estado é o direito dos indivíduos à auto-defesa quando a vida está ameaçada pelo poder soberano, o que decorre do respeito ao primeiro direito natural. Se o soberano atenta contra minha vida, tenho o direito de a ele me contrapor, pois o que me liga a ele é um pacto de proteção que não existe mais. No entanto, o soberano guarda o direito de continuar sua ação contra mim já que pode tudo fazer para garantir a proteção social e a permanência do Estado. Por isto, não é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma lógica do reconhecimento. Ele opera, ao contrário, através da impossibilidade de reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma violência elevada à condição de determinação metafísica do humano. Violência que só pode aparecer como desagregação de todo e qualquer laço social. Notem que há uma decisão, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do caráter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessão do outro, de sua vida e de seus bens. Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitação de seus desejos e a restrição de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que são cidadãos e cidadãs de tal Estado. Como cidadão e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal personalidade é um afeto responsável pela restrição e repressão de meus reais impulsos. Por isto, a própria noção de personalidade será comparada por Hobbes a uma máscara, recobrando o sentido originário do termo persona entre os gregos. Máscara que não reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para que o laço social possa existir. Como se vê, não é possível dizer que lá onde o medo aparece como afeto político central o reconhecimento pode se realizar. Medo social e reconhecimento são processos contrários, como vemos facilmente em situações atuais concretas. A função do amparo 18 ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12 Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz respeito ao modelo geral de gestão social quando as exigências de reconhecimento são bloqueadas. Pois o Estado não será apenas a instância que opera a repressão. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se reprimir. Ele não será apenas o bombeiro da vida social, mas também o próprio piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relação de não-relações é a necessidade que a legitimação da soberania pela capacidade de amparo e segurança tem da perpetuação contínua da imagem da violência desagregadora à espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do Estado é a perpetuação da iminência da guerra de todos contra todos. O fundamento fantasmático deste Estado será a figura do conflito social reduzida à condição de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusão importante de Agamben: “A fundação não é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão soberana”19. Este mecanismo de fundação que necessita ser continuamente reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteração da relação do Estado ao seu fundamento. Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida através de uma força insuperável”20, ele precisa provocar continuamente o sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se como força de amparo fundada na perpetuação de nossa dependência. Na verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem sua legitimidade assegurada não apenas por instaurar uma relação baseada no medo para com o próprio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem do distanciamento possível em relação a uma fantasia social de desagregação imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da perpetuação da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade do “poder pacificador” da representação política, ou seja, do abrir mão de meu direito natural em prol da constituição de um representante cujas ações soberanas serão a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá “conformar as vontades de todos”21 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro escultor da vida social. É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla fundamentação. Por um lado, ela apela à condição presente dos homens. Não sendo uma hipótese histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a partir da análise das paixões atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a afirmar que, longe de ser uma descrição do ser humano primitivo, ou do ser humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza 19 AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115. SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un symbole politique, op. cit., p. 86 21 HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147 20 seria: “a abstração lógica esboçada do comportamento dos homens na sociedade civilizada” 22. Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilância”. Lembra ainda como os “particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado, para se defenderem, nem dormem sem fecharem – não só as portas, para proteção de seus concidadãos – mas até seus cofres e baús, por temor aos domésticos”23. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do excesso do meu próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas trancas e você verá não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso de seu próprio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais imperam a violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma universalidade implicativa. De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais sejam, de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não sendo uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que leva Hobbes a acreditar que: os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela maneira brutal que antes referi24. Ou seja, sociedades sem Estado como nós, os povos de muitos lugares da América, são mobilizadas continuamente para lembrar à sociedade europeia porque a soberania é legítima. No interior desta lógica de legitimação, esta é nossa função. Ou ainda: sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela paz e pela sociedade25. Sociedades da violência e sociedades da penúria estão à nossa espreita seja em uma diferença geográfica, seja em uma diferença histórica. Na verdade, sempre deverá haver um “povo selvagem da América” à mão, o Estado sempre deverá 22 MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford University Press, 1962, p. 26. 23 HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14. 24 Idem, p. 110. 25 HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70 criar um risco de contaminação da vida social pela violência exterior, independente de onde esse exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena originária da violência. Ao menos neste ponto, Carl Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos quando afirma que: Palavras como Estado, república, sociedade, classe e ademais soberania, Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. são incompreensíveis quando não se sabe quem deve ser, in concreto, atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra26. Já temos aqui os problemas que uma teoria do reconhecimento deverá lidar. Ela deve, inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e legitimação do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria fornecer uma outra imagem antropológica, insistindo, por exemplo, na imanência de relações de empatia a fundar campos intersubjetivos cuja primeira expressão é não-conflitual. Retira-se assim o conflito da posição de fundamento da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado devido à presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta empatia pode estar presente na vida social, sendo necessária apenas reconstruir as bases normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vários campos da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada pelos processos de modernização social, sendo necessário recuperar a força de coesão do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por exemplo, a estratégia de Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza baseado na compaixão, na expressão e na cooperação. Haverá, no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a compreensão da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja expressão não se reduza à despossessão dos bens e à morte violenta. Para tanto será necessário, por exemplo, retomar a teoria do desejo que serve de base a Hobbes e inseri-la no interior de uma noção mais ampla de “negatividade” cuja satisfação e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base antropológica da política, mas sem recusar a centralidade ontológica da noção de conflito. Dentro desta dinâmica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior de uma lógica na qual a célula elementar não são as auto-afirmações individuais, mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever a noção da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepção reguladora de luta de classes, e não mais a partir da noção de guerra de todos contra todos. Veremos cada um destes casos no decorrer de nosso curso. 26 SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32