indústria brasileira e a emergente divisão internacional do trabalho

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
INDÚSTRIA BRASILEIRA E A EMERGENTE DIVISÃO
INTERNACIONAL DO TRABALHO (DIT): DESAFIOS DA INDÚSTRIA
BRASILEIRA DE CALÇADOS A LUZ DA CRISE MUNDIAL DE 1973
HELTON ROGÉRIO DA ROSA1
Resumo: A partir da crise de realização capitalista da década de 1970, a saber, fase recessiva do
4º ciclo de Kondratieff, o centro capitalista mundial tratou de reorganizar a produção aprofundando
suas relações, tanto comerciais quanto produtivas, com os países da periferia do sistema.
Aproveitando-se dessa “janela de oportunidade” criada pela reorganização produtiva encetada no
centro do capitalismo mundial, a indústria brasileira de calçados, reagindo ativamente aos impulsos
emanados a partir daquele centro, tratou de abocanhar grandes parcelas de mercados localizados
nos países desenvolvidos, condição que elevou o país a figurar entre os principais produtores e
exportadores mundiais a época.
Palavras-chave: Indústria brasileira; indústria de calçados; reorganização produtiva.
Abstract: From the capitalist realization crisis of the 1970s, namely recessive phase of the 4th
Kondratieff cycle, the world capitalist center tried to reorganize production deepening their relations,
both commercial and productive, with the countries of the periphery of the system. Taking advantage
of this "window of opportunity" created by the productive reorganization initiated at the center of world
capitalism, the Brazilian footwear industry, actively reacting to impulses emanating from that center,
tried to snatch up large portions of markets located in developed countries, a condition that raised the
country to be among the main world producers and exporters the season.
Key-words: Brazilian industry; footwear industry; productive reorganization.
1 – Introdução
Sob o invólucro da fase B do quarto ciclo de Kondratieff, desencadeado a
partir da crise capitalista da década de 1970, a economia mundial pôs em marcha
um profundo projeto de reajustamento da produção visando, sobretudo, a
objetivação do capitalismo mediante a acoplagem de novas frentes geográficas de
atuação, nítido movimento expansivo do capital como assinalou Mamigonian (1999).
Tal dinâmica foi marcada pela reestruturação de setores-chave, notadamente
aqueles de alta e média tecnologia, no seio da economia capitalista mundial e pela
expulsão de setores tecnologicamente maduros, onde a estagnação das taxas de
1
Acadêmico do curso de Pós-Graduação em Geografia, nível doutorado, pela Universidade Federal
de Santa Catarina - PPGGEO/UFSC. Contato: [email protected].
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lucros já não mais despertavam interesses para novas inversões de capitais,
marcada característica dos períodos depressivos dos ciclos longos.
Como fator resultante, a periferia capitalista formada por diversos países em
via de industrialização foi, contrariamente as fases recessivas dos ciclos pretéritos2,
chamada a aprofundar sua participação na divisão internacional do trabalho (D.I.T)
mediante nova orquestração produtiva baseada, não mais nas simples vantagens
comparativas naturais, mas também sob vantagens advindas da abundância em
fator trabalho que dispunham, equivale dizer, mão de obra numerosa e barata3.
Interessa-nos dizer que foi justamente nesse quadro de efervescência do
capitalismo mundial que a periferia passou por um induzido processo de
especialização da produção, não por acaso, em setores produtivos onde a demanda
pelo fator trabalho se configurou num significativo limitante a retomada do lucro nos
países desenvolvidos. Note-se que tal estratégia se mostrou duplamente atrativa a
reestruturação produtiva em vias de realização no centro do sistema capitalista, pois,
ao expurgar as indústrias tecnologicamente maduras e intensivas em trabalho para a
periferia do sistema, o capitalismo desenvolvido pôde: a) prolongar a vida útil do
aparato produtivo tecnologicamente obsoleto e que foram direcionados aos novos
produtores periféricos estendendo, portanto, seus lucros sob a forma de repasse de
equipamentos a países em vias de industrialização, e b) importar produtos
manufaturados, sobretudo os de consumo simples como calçados, têxteis, etc; a
preços mais convidativos produzidos na periferia e que serviram para manter
estáveis o poder de compra da massa trabalhadora sem elevação real dos salários,
notadamente, fazendo arrefecer a pressão exercida pelo capital variável sobre as
taxas de lucro.
2
Conforme a dinâmica dos ciclos de Kondratieff, nas fases B dos ciclos, os mercados, sobretudo
aqueles do centro do sistema capitalista mundial, tendem a se fechar em nítido movimento defensivo
dos mercados internos, condição que faz dificultar as trocas comerciais, dinamizadas nas fases
ascendentes, com a periferia. Segundo Rangel, “para os nossos países (periféricos), a passagem à
fase descendente do ciclo significa simplesmente certa tendência para a queda do volume e a
imposição de termos de intercâmbio menos favoráveis, vale dizer, redução de nossa participação na
divisão internacional do trabalho e agravamento das condições em que essa se faz” (RANGEL, 2005,
p. 279. Grifo nosso).
3
De acordo com Mamigonian (1999) “o período depressivo 1973-96 empurrou várias produções
industriais para fora do dentro do sistema (compressora para Singapura e Brasil) ou para novas
regiões industriais dentro do centro do sistema (Sul dos EUA, península Ibérica, etc.).”
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Como se sugere, foi justamente nessa vaga produtiva induzida a partir das
oscilações cíclicas gestadas no centro do capitalismo mundial que a estrutura de
produção brasileira voltada à fabricação de calçados buscou maior inserção
internacional, tornando-se nessa ocasião um país de grande relevância no cômputo
mundial em termos de volumes de produção4.
Vale dizer que essa inserção nos mercados mundiais não se deu por simples
coincidência, mas foi propiciada pelo ulterior desenvolvimento das forças produtivas
nacionais que, desde meados do século XIX, vinha se firmando entre o quadro
produtivo brasileiro, onde no caso da manufatura dos calçados, atrelava-se ao
desenvolvimento
de
uma
produção
artesanal
que
antecedeu
a
própria
industrialização do país.
Dessa forma posto, no presente artigo serão tecidas algumas considerações
acerca da indústria de calçados brasileira. Além da introdução que visou demarcar o
espaço conjuntural da discussão, o trabalho segue com mais três sessões. Nas
sessões seguintes serão tratados temas que abarcam desde a especialização da
produção, característica fundamentalmente geográfica, até a inserção internacional
da produção datada da década de 1970. Em tom conclusivo, o trabalho finaliza
coma uma rápida análise da conjuntura inaugurada com a reestruturação produtiva
ocorrida na década de 1990 e que, ao que tudo indica, ainda está em andamento.
2 – Uma breve história da manufatura de calçados no Brasil.
Em seu seminal trabalho acerca da origem da indústria brasileira, W. Suzigan
(2000) afirma que ao irromper o processo de industrialização no país mediado pelo
conhecido movimento de substituições de importações (S.I), a indústria de calçados
já se encontrava plenamente instalada, sugerindo que nesse caso específico tal
movimento não explicaria o surgimento do quadro produtivo industrial. Importa-nos
dizer que tal afirmação trata-se de uma meia verdade.
4
Ainda segundo Santos et al (2002), o mesmo fenômeno pôde ser observado para a indústria do
couro, onde após a década de 1970 o país passa a figurar como um dos maiores produtores e
exportadores mundiais de couro.
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De fato, a indústria de calçados antecedeu a substituição de importação do
tipo industrial aludida por Suzigan, ela se fez mediante a internalização da produção
em sua fase natural ocorrida ainda durante a fase b do 1º ciclo de Kondratieff (181548) como afirmava Rangel (2005). Aliás, cabe dizer que, através da leitura a partir
dos ciclos de longa duração é possível perceber o caráter geográfico da indústria de
calçados ao longo da história do desenvolvimento econômico brasileiro.
Temos que na fase b do 1º ciclo de Kondratieff (1815-48), dado o
arrefecimento do lado mais dinâmico de nossa economia, aquele voltado às
exportações, as fazendas redistribuíam seus fatores de produção, menos para o
mercado e mais para o autoconsumo, produzindo gêneros de toda ordem, inclusive
calçados (PAIM, 1957; RANGEL, 2005). Não é por acaso que a gênese do fabrico de
calçados se deu internamente as unidades autônomas de produção salpicadas por
vasta extensão do território brasileiro.
Eis uma característica genética marcante que persiste ainda na atualidade,
pois, ao nascer como atividade que visava o autoconsumo, não mercantil, portanto,
a estrutura manufatureira se desenvolveu em relação anárquica ao mercado
consumidor aos moldes capitalista, vale dizer, inexistente à época. Dai a produção
se manifestar por diferentes pontos do território nacional ainda em tempo presente.
Na fase b do 2º Kondratieff (1873-96), obedecendo à sequência de nossas
substituições de importações enunciadas por Rangel (2005), a fabricação dos
calçados irrompe as amarras do complexo rural e vai se desenvolver de forma
artesanal nos centros urbanos em formação buscando a mercantilização da
produção. Sob égide do capital comercial e buscando mercados consumidores em
potencial, a produção se instalou nas duas maiores cidades em formação do país,
notadamente, Rio de Janeiro e São Paulo, onde assumiu caráter industrial e
permaneceu de forma hegemônica até meados do século XX.
Os dados confirmam que, já em 1910, num total de 37 estabelecimentos
fabris com representatividade em termos de produção e operários, 21 estavam
localizados no Rio de Janeiro e 13 em São Paulo, onde as fábricas com maiores
dimensões físicas e melhores equipadas eram a Condor no Rio de Janeiro,
empregando 300 operários e produzindo 800 pares diários e a Clark, em São Paulo,
com 250 operários e produção que alcançava mil pares/dia (SUZIGAN, 2000).
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Paradoxalmente, essa situação de hegemonia produtiva tenderia a ser
modificada com o desenvolvimento do fenômeno industrializante nesses dois
grandes centros urbanos nacionais. Intui-se que, tendo nossa industrialização
iniciado pelos bens de consumo simples, condição possibilitada pela importação de
tecnologia desenvolvida no centro do sistema, nosso departamento I pré-industrial
caracterizava-se por ser altamente insumidor de mão-de-obra, logo, concorrente
direto da indústria de calçados por braços, o que fez reverberar em custos de
produção cada vez menos atrativos.
Dessa forma, aos poucos a produção, em grande medida dominada pelo
capital comercial, passa a perder fôlego nesses grandes centros urbanos e ganha
força em formações sociais periféricas típicas de pequena produção mercantil onde ,
geneticamente, os investimentos estavam atrelados à produção. Não por acaso
Franca (SP) imigrante e Novo Hamburgo (RS) também imigrante, ambos com longa
tradição na manufatura de artigos em couro, assumirem a dianteira na produção de
calçados no Brasil já em meados do século XX (CARNEIRO, 1986).
3 – Especialização da produção como fenômeno geográfico.
A especialização da produção, no que concerne a indústria calçadista
brasileira, tratou-se de um fenômeno de ordem geográfica que implicou num
aprofundamento da divisão social do trabalho “fundada na ocupação de áreas até
então periféricas” (SANTOS; SILVEIRA, 2011, p. 105) à produção desenvolvida em
São Paulo e Rio de Janeiro.
Temos que até os finais da década de 1960, a estrutura produtiva calçadista
já assumia sua forma mais moderna e acabada em Franca (SP) e Novo Hamburgo
(RS), onde o primeiro se especializou na produção de calçados masculinos,
tornando-se o maior polo produtor desse tipo de calçados na América Latina
(NAVARRO, 2006), e o segundo enveredou pela especialização em calçados
femininos, tornando-se, por sua vez, um dos maiores polos produtores mundiais de
calçados (COSTA, 2004).
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Segundo L. Carneiro (1986) a especialização produtiva significou um avanço
na estrutura industrial brasileira e ter-se-ia iniciado em finais da década de 1930,
onde a proximidade geográfica com o fenômeno de industrialização brasileira
desempenhou fator determinante frente ao estado de coisas que viria a ser
inaugurado no setor de calçados no Brasil.
Franca (SP), por estar geograficamente próxima ao centro irradiador da
industrialização nacional, São Paulo, teria se aproveitado da crescente oferta de
tecnologia, notadamente máquinas e equipamentos capazes de modernizar a
produção, não por acaso aprofundado sua trajetória de desenvolvimento industrial
naquele produto mais dócil, por assim dizer, ao trato mecânico, logo, dedicando-se a
produção de calçados masculinos que, no geral, são mais padronizados em termos
de processos produtivos5.
Concorriam a favor de Franca (SP), além do crescente mercado consumidor
em expansão, fruto da atração de milhares de migrantes, “a instalação no país de
fabricantes americanos de máquinas para calçados, a United Shoe Machinery Co
que, desde 1908, passou a operar num sistema revolucionário de arrendamento de
equipamento e assistência técnica para fábricas de calçados” (SUZIGAN, 2000, p.
193).
No seu oposto, Novo Hamburgo (RS), geograficamente desprivilegiado frente
a sua congênere paulista, tanto na proximidade do mercado nacional quanto em
possibilidade de acesso a máquinas e equipamentos mais sofisticados, especializouse quase que naturalmente na produção de calçados femininos, ainda na atualidade,
arredio a mecanização e mais intensivo em processos artesanais.
Foi natural, pois, impossibilitada de concorrer no mercado nacional com a
produção francana com níveis de mecanização e produtividade superiores, a
produção gaúcha tratou de garantir sua participação no mercado nacional em vias
5
Segundo Navarro, a maior facilidade para a obtenção de máquinas e o crescimento do mercado
consumidor permitiu que algumas das fábricas de calçados de Francas se expandissem, tanto física
quanto produtivamente (NAVARRO, 2006).
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de formação mediante a oferta de produtos diferenciados daqueles produzidos em
Franca (SP), notadamente, calçados femininos6.
Como seria de se esperar, a especialização como estratégia produtiva
garantiu à produção paulista a liderança nacional, onde o estado passou de uma
participação de 37,5% em 1955 para 59,9% em 1969 sob o montante total produzido
no país, vale lembrar, período que antecede a inserção internacional da produção.
Por outro lado, a estratégia acertada das firmas gaúchas em fugir ao embate direto
com as firmas paulista, garantiu a liderança na produção de calçados femininos,
onde o Rio Grande do Sul saltou de 39,8% em 1955 para 60.8% em 1969 nesse
nicho específico de mercado.
Ao fim e ao cabo, as vantagens advindas da especialização, superando a
anarquia produtiva até então vigente nas mais diversas regiões produtoras do país,
significou a estruturação planejada de um importante parque produtor nacional que
passou a gravitar em torno de Franca (SP), produtor especializado em calçados
masculinos, e Novo Hamburgo (RS), especializado em calçados femininos, o que
serviria de base para a futura inserção internacional da produção nas décadas
seguintes.
4 – Internacionalização, estrutura e desenvolvimento pós-década de 1970.
A internacionalização da produção brasileira deveu-se a dois grandes fatores,
um de ordem interna e outro de ordem externa. Partícipe de um plano maior
encetado pelo Estado nacional visando alargar sua pauta exportadora em finais da
década de 19607, a indústria de calçados foi privilegiada por uma série de incentivos
fiscais que contavam com isenções progressivas sobre impostos de circulação,
produção e renda, além de incentivos creditícios que possibilitavam sua inserção
internacional de maneira subsidiada. De grande importância às exportações foi
6
Em 1950 foram produzidos no Rio grande do Sul 1.044.178 pares de calçados para homens,
2.249.529 pares de calçados femininos, 5.422.133 pares de alpargatas, chinelas e similares, grupo
que incluía os calçados leves. (CARNEIRO, 1986).
7
Segundo Navarro (2006) o chamado “esforço exportador” surgiu como um paliativo que visava
atenuar os desequilíbrios entre balança comercial e a balança de pagamentos do país, resultados da
progressiva composição da dívida externa brasileira a época.
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também a política de minidesvalorizações cambiais levadas a efeito pelo governo a
partir de 1968, onde as desvalorizações da moeda nacional frente ao dólar norteamericano atuavam de forma a aumentar deliberadamente o crédito recebido pelos
exportadores (NAVARRO, 2006), condição que se somava as já citadas tornando o
mercado externo mais atrativo que o mercado nacional.
Já no plano externo, concorreram para o sucesso exportador do calçado
“made in Brazil” o arrefecimento da produção no centro do sistema mundial,
condição que reverberou em gigantescos e continuados pedidos de produção as
firmas brasileiras que viram suas escalas saltarem a níveis nunca antes alcançados,
tanto de calçados masculinos, mas principalmente, de calçados femininos.
Nesse sentido, não seria exagero dizer que a década de 1970 significou para
indústria calçadista nacional importante ponto de inflexão. A conjuntura inaugurada
no período possibilitou as firmas brasileiras uma verdadeira válvula de escape à
capacidade ociosa armazenada em sua estrutura de produção, pois, ao contrário do
mercado interno que contava com severa sazonalidade em questão de vendas, o
mercado externo significou vendas certas e continuadas ao longo do ano, permitindo
linearidade a produção8.
Posto noutros termos, as exportações de calçados brasileiros que eram da
ordem de quatro mil pares e US$ 8 milhões em 1970 saltaram para os
impressionantes 201 milhões de pares e US$ 1.846 em 1993, notadamente,
vislumbrando no mercado norte-americano seu principal market share. Segue-se
que o gradativo avanço visando aprimoramento das técnicas de produção, bem
como a melhoria contínua dos produtos, alçou o Brasil ao posto de um dos maiores
produtores e exportadores mundiais de calçados, condição que ainda se apresenta
mesmo diante as adversidades enfrentadas pelo setor na atualidade.
A inserção internacional revelou outro ponto tangencial à produção nacional
de calçados, pois, os calçados femininos que haviam relegado a produção gaúcha a
posto subalterno em relação à produção paulista desde 1930, passaram a liderar as
exportações nacionais a partir da década de 1970 graças ao apelo do quesito “moda”
8
É interessante dizer que, enquanto o mercado nacional concentra suas vendas sobre o quarto
trimestre do ano, condição avalizada pelas vendas de natal, o mercado norte americano, pela longa
tradição consumista daquela sociedade, mantém-se atrativo o ano todo.
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sobre os produtos. Essa inversão significou nova mudança no centro geográfico da
produção passando a hegemonia nacional ao estado do Rio Grande do Sul que,
entre o período que se estende entre 1972 e 1984, participou com média superior a
70% dos valores exportados pelo país. (CARNEIRO, 1986).
Por seu turno, a mudança no compasso hegemônico produtivo findou na
formação de uma região produtora muito mais completa em termos de estrutura que
sua congênere paulista, pois, a mudança estrutural suscitou novos investimentos
que se espraiaram para novas indústrias adjacentes à produção principal como a
fabricação de máquinas e equipamentos, matéria-prima de toda ordem e serviços.
No que se refere ao fator estrutural, interessa-nos assinalar que a década de
1970, e sua consequente orientação aos mercados internacionais, findaram em
cindir a estrutura industrial em dois segmentos bastante particulares.
O primeiro segmento de firmas, voltado primordialmente às exportações, foi
liderado pelas empresas mais capacitadas do setor que passaram a atuar
estrategicamente voltada a grande escala de produção, sendo encabeçadas pelas
regiões produtoras de Franca (SP) e Novo Hamburgo (RS). O segundo segmento foi
aquele em que, tanto firmas menos capacitadas de Franca (SP) e Novo Hamburgo
(RS) quanto regiões produtoras menos dinâmicas como, por exemplo, São João
Batista (SC), souberam aproveitar as oportunidades geradas no mercado nacional
com a atenção das grandes firmas do setor voltadas ao mercado internacional.
Eis uma característica que viria a se revelar como ponto nodal no processo de
desenvolvimento futuro do setor de calçados no Brasil. Por estar atrelada a
produção em grandes escalas, as firmas que se voltaram às exportações reduziram
gradativamente suas linhas de produção bem como, seus esforços voltados ao
desenvolvimento dos produtos como aqueles ligados ao design e marketing, pois,
nesse tipo de negócio, marcado pelo que se convencionou chamar de private label,
ou seja, calçados fabricados com etiquetas dos contratantes, as firmas recebem
todas as especificações produtivas de acordo com o gosto do cliente.
No seu extremo, as firmas que recorreram ao mercado interno, vale dizer,
muito mais dinâmico que aquele ligado ao exterior, foram obrigadas a empreender
em constantes mudanças na concepção do produto. Por seu turno, como
trabalhavam em estratégia diferenciada daquela vigente nas exportações, já que
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deveriam alcançar nichos de mercados variados, as firmas desse segmento eram
especializadas na produção em escopo, vale dizer, múltiplas linhas de produtos e
volumes reduzidos.
De acordo com H. Rosa (2014), em São João Batista (SC) a produção voltouse ao calçado feminino “tipo modinha”. Nesse tipo de produção os calçados são
produzidos em pequenas quantidades e com grades de numeração abertas, o que
possibilita ao varejista adquirir apenas aqueles números com maior rotatividade nas
vendas, inibindo capitais ociosos em produtos encalhados. No entanto, a principal
característica do calçado “tipo modinha” diz respeito à validade dos modelos, pois,
como o próprio nome sugere, os adereços que enfeitam os calçados mudam com
frequência que variam entre dois e três meses de produção, quando são
substituídos por novos adereços que caracterizam, portanto, nova modinha.
Eis uma estratégia que surge como embrionário processo de formação de
uma moda abrasileirada, condição que possibilita certa blindagem ao mercado
interno já que calçados estrangeiros não conseguem acompanhar as rápidas
mudanças observadas na produção “tipo modinha” endereçadas ao mercado interno
(ROSA, 2014).
Tais características seriam vitais ao desenvolvimento do setor na década de
1990, pois, diante do pareamento cambial levado a efeito pelo Plano Real, em
novembro de 1994, as grandes firmas voltadas as exportações foram duramente
afetadas. Já aquelas firmas que estavam acostumadas com a dinâmica do mercado
interno souberam assimilar melhor os efeitos recessivos intrínsecos a crise que se
seguiu. Enquanto as firmas exportadoras padeciam com ajustes estruturais visando
retorno ao atendimento do mercado interno9, vale lembrar, muito mais dinâmico do
que aquele ambiente que estavam acostumadas a operar, as firmas menores já
haviam se preparado pela própria contingencia produtiva a que foram expostas nas
décadas anteriores, vale dizer, produção mais flexível e capaz de ajustes rápidos as
oscilações do mercado.
Segundo assinalou Antônio Barros de Castro (2011, p. 89) “uma interessante ilustração pode ser
encontrada no ocorrido com a empresa Alpargatas. Entre 1991 e 1992, a empresa enfrentou um
grave período de sua história, amargando um prejuízo de US$ 121 milhões” Ainda segundo o autor,
em virtude da queda significativa no faturamento a empresa foi obrigada e enxugar o quadro de
funcionários passando de 32.000 em 1991 para 17.000 em 1992.
9
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Queremos com isso dizer que, numa análise mais aprofundada sobre a
dinâmica setorial, a afirmação de que “a crise atingiu as empresas a partir do mesmo
ano e mesma direção, tanto para as empresas localizadas no cluster do Vale dos
Sinos quanto para as demais regiões brasileiras” (COSTA, 2004, p.19) é facilmente
refutada. Fugindo a homogeneização quanto ao efeito da crise, H. Rosa (2014)
demonstrou que foi justamente na década de 1990, período de intensos
constrangimentos ao segmento exportador, que a principal região produtora de
Santa Catarina viu nascer as principais firmas do setor de calçados.
Conclusão
O Brasil fechou o ano de 2014 com uma produção de 876 milhões de pares
de calçados, variação negativa em relação ao ano anterior em aproximadamente 2,5
pontos percentuais. Desse montante, ficaram no mercado interno, maior diferencial
geográfico da indústria calçadista brasileira, 747 milhões de pares, equivale dizer, 85%
de tudo que produzimos. Um notável avanço que foi possibilitado pela profunda
evolução social e econômica do país nos últimos anos.
Por seu turno, no cenário internacional passamos de quarto maior exportador
em meados da década de 1980, quando contribuímos com 7,4% do comercio
mundial de calçados, para a décima quinta posição em 2014, quando representamos
1,3% do total comercializado no planeta. Como chegamos a essa situação?
De fato, a reestruturação produtiva ocorrida na
década de 1990,
diferentemente daquela posta em andamento na década de 1970, deu start a uma
reestruturação de caráter defensivo. No fundamental, o deslocamento de linhas de
produção para o Nordeste do país tratou-se de tentar reproduzir as condições
favoráveis observadas na década de 1970 baseadas no baixo custo do fator trabalho,
notadamente, estratégia que buscou sobre fôlego frente à produção asiática.
Em síntese, o que se pode observar pós-década de 1990 é que, enquanto
países como Itália, Portugal e Espanha buscaram avançar no trato produtivo
diferenciando produtos e agregando valor mediante desenvolvimento de marketing e
design, a produção brasileira enveredou na tentativa de resgatar sua posição entre
os maiores exportadores mundiais mediante aprofundamento da estratégia
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deflagrada na década de 1970.
Frente ao exposto, não seria exagero dizer que na atualidade a indústria
calçadista brasileira encontra-se num limbo produtivo frente suas congêneres
mundiais. Com preços médios que giram em torno de US$ 11 por par, ficamos
aquém da concorrência direta com a China, cujo preço médio é US$ 3,87 por par, e
mais distantes ainda do nicho superior, onde Portugal e Espanha, nossos maiores
concorrentes dada nossa especialidade produtiva, atingem preços médios que
variam entre US$ 20 e US$ 35 por par.
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