A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO INDÚSTRIA BRASILEIRA E A EMERGENTE DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (DIT): DESAFIOS DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CALÇADOS A LUZ DA CRISE MUNDIAL DE 1973 HELTON ROGÉRIO DA ROSA1 Resumo: A partir da crise de realização capitalista da década de 1970, a saber, fase recessiva do 4º ciclo de Kondratieff, o centro capitalista mundial tratou de reorganizar a produção aprofundando suas relações, tanto comerciais quanto produtivas, com os países da periferia do sistema. Aproveitando-se dessa “janela de oportunidade” criada pela reorganização produtiva encetada no centro do capitalismo mundial, a indústria brasileira de calçados, reagindo ativamente aos impulsos emanados a partir daquele centro, tratou de abocanhar grandes parcelas de mercados localizados nos países desenvolvidos, condição que elevou o país a figurar entre os principais produtores e exportadores mundiais a época. Palavras-chave: Indústria brasileira; indústria de calçados; reorganização produtiva. Abstract: From the capitalist realization crisis of the 1970s, namely recessive phase of the 4th Kondratieff cycle, the world capitalist center tried to reorganize production deepening their relations, both commercial and productive, with the countries of the periphery of the system. Taking advantage of this "window of opportunity" created by the productive reorganization initiated at the center of world capitalism, the Brazilian footwear industry, actively reacting to impulses emanating from that center, tried to snatch up large portions of markets located in developed countries, a condition that raised the country to be among the main world producers and exporters the season. Key-words: Brazilian industry; footwear industry; productive reorganization. 1 – Introdução Sob o invólucro da fase B do quarto ciclo de Kondratieff, desencadeado a partir da crise capitalista da década de 1970, a economia mundial pôs em marcha um profundo projeto de reajustamento da produção visando, sobretudo, a objetivação do capitalismo mediante a acoplagem de novas frentes geográficas de atuação, nítido movimento expansivo do capital como assinalou Mamigonian (1999). Tal dinâmica foi marcada pela reestruturação de setores-chave, notadamente aqueles de alta e média tecnologia, no seio da economia capitalista mundial e pela expulsão de setores tecnologicamente maduros, onde a estagnação das taxas de 1 Acadêmico do curso de Pós-Graduação em Geografia, nível doutorado, pela Universidade Federal de Santa Catarina - PPGGEO/UFSC. Contato: [email protected]. 6282 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO lucros já não mais despertavam interesses para novas inversões de capitais, marcada característica dos períodos depressivos dos ciclos longos. Como fator resultante, a periferia capitalista formada por diversos países em via de industrialização foi, contrariamente as fases recessivas dos ciclos pretéritos2, chamada a aprofundar sua participação na divisão internacional do trabalho (D.I.T) mediante nova orquestração produtiva baseada, não mais nas simples vantagens comparativas naturais, mas também sob vantagens advindas da abundância em fator trabalho que dispunham, equivale dizer, mão de obra numerosa e barata3. Interessa-nos dizer que foi justamente nesse quadro de efervescência do capitalismo mundial que a periferia passou por um induzido processo de especialização da produção, não por acaso, em setores produtivos onde a demanda pelo fator trabalho se configurou num significativo limitante a retomada do lucro nos países desenvolvidos. Note-se que tal estratégia se mostrou duplamente atrativa a reestruturação produtiva em vias de realização no centro do sistema capitalista, pois, ao expurgar as indústrias tecnologicamente maduras e intensivas em trabalho para a periferia do sistema, o capitalismo desenvolvido pôde: a) prolongar a vida útil do aparato produtivo tecnologicamente obsoleto e que foram direcionados aos novos produtores periféricos estendendo, portanto, seus lucros sob a forma de repasse de equipamentos a países em vias de industrialização, e b) importar produtos manufaturados, sobretudo os de consumo simples como calçados, têxteis, etc; a preços mais convidativos produzidos na periferia e que serviram para manter estáveis o poder de compra da massa trabalhadora sem elevação real dos salários, notadamente, fazendo arrefecer a pressão exercida pelo capital variável sobre as taxas de lucro. 2 Conforme a dinâmica dos ciclos de Kondratieff, nas fases B dos ciclos, os mercados, sobretudo aqueles do centro do sistema capitalista mundial, tendem a se fechar em nítido movimento defensivo dos mercados internos, condição que faz dificultar as trocas comerciais, dinamizadas nas fases ascendentes, com a periferia. Segundo Rangel, “para os nossos países (periféricos), a passagem à fase descendente do ciclo significa simplesmente certa tendência para a queda do volume e a imposição de termos de intercâmbio menos favoráveis, vale dizer, redução de nossa participação na divisão internacional do trabalho e agravamento das condições em que essa se faz” (RANGEL, 2005, p. 279. Grifo nosso). 3 De acordo com Mamigonian (1999) “o período depressivo 1973-96 empurrou várias produções industriais para fora do dentro do sistema (compressora para Singapura e Brasil) ou para novas regiões industriais dentro do centro do sistema (Sul dos EUA, península Ibérica, etc.).” 6283 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Como se sugere, foi justamente nessa vaga produtiva induzida a partir das oscilações cíclicas gestadas no centro do capitalismo mundial que a estrutura de produção brasileira voltada à fabricação de calçados buscou maior inserção internacional, tornando-se nessa ocasião um país de grande relevância no cômputo mundial em termos de volumes de produção4. Vale dizer que essa inserção nos mercados mundiais não se deu por simples coincidência, mas foi propiciada pelo ulterior desenvolvimento das forças produtivas nacionais que, desde meados do século XIX, vinha se firmando entre o quadro produtivo brasileiro, onde no caso da manufatura dos calçados, atrelava-se ao desenvolvimento de uma produção artesanal que antecedeu a própria industrialização do país. Dessa forma posto, no presente artigo serão tecidas algumas considerações acerca da indústria de calçados brasileira. Além da introdução que visou demarcar o espaço conjuntural da discussão, o trabalho segue com mais três sessões. Nas sessões seguintes serão tratados temas que abarcam desde a especialização da produção, característica fundamentalmente geográfica, até a inserção internacional da produção datada da década de 1970. Em tom conclusivo, o trabalho finaliza coma uma rápida análise da conjuntura inaugurada com a reestruturação produtiva ocorrida na década de 1990 e que, ao que tudo indica, ainda está em andamento. 2 – Uma breve história da manufatura de calçados no Brasil. Em seu seminal trabalho acerca da origem da indústria brasileira, W. Suzigan (2000) afirma que ao irromper o processo de industrialização no país mediado pelo conhecido movimento de substituições de importações (S.I), a indústria de calçados já se encontrava plenamente instalada, sugerindo que nesse caso específico tal movimento não explicaria o surgimento do quadro produtivo industrial. Importa-nos dizer que tal afirmação trata-se de uma meia verdade. 4 Ainda segundo Santos et al (2002), o mesmo fenômeno pôde ser observado para a indústria do couro, onde após a década de 1970 o país passa a figurar como um dos maiores produtores e exportadores mundiais de couro. 6284 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO De fato, a indústria de calçados antecedeu a substituição de importação do tipo industrial aludida por Suzigan, ela se fez mediante a internalização da produção em sua fase natural ocorrida ainda durante a fase b do 1º ciclo de Kondratieff (181548) como afirmava Rangel (2005). Aliás, cabe dizer que, através da leitura a partir dos ciclos de longa duração é possível perceber o caráter geográfico da indústria de calçados ao longo da história do desenvolvimento econômico brasileiro. Temos que na fase b do 1º ciclo de Kondratieff (1815-48), dado o arrefecimento do lado mais dinâmico de nossa economia, aquele voltado às exportações, as fazendas redistribuíam seus fatores de produção, menos para o mercado e mais para o autoconsumo, produzindo gêneros de toda ordem, inclusive calçados (PAIM, 1957; RANGEL, 2005). Não é por acaso que a gênese do fabrico de calçados se deu internamente as unidades autônomas de produção salpicadas por vasta extensão do território brasileiro. Eis uma característica genética marcante que persiste ainda na atualidade, pois, ao nascer como atividade que visava o autoconsumo, não mercantil, portanto, a estrutura manufatureira se desenvolveu em relação anárquica ao mercado consumidor aos moldes capitalista, vale dizer, inexistente à época. Dai a produção se manifestar por diferentes pontos do território nacional ainda em tempo presente. Na fase b do 2º Kondratieff (1873-96), obedecendo à sequência de nossas substituições de importações enunciadas por Rangel (2005), a fabricação dos calçados irrompe as amarras do complexo rural e vai se desenvolver de forma artesanal nos centros urbanos em formação buscando a mercantilização da produção. Sob égide do capital comercial e buscando mercados consumidores em potencial, a produção se instalou nas duas maiores cidades em formação do país, notadamente, Rio de Janeiro e São Paulo, onde assumiu caráter industrial e permaneceu de forma hegemônica até meados do século XX. Os dados confirmam que, já em 1910, num total de 37 estabelecimentos fabris com representatividade em termos de produção e operários, 21 estavam localizados no Rio de Janeiro e 13 em São Paulo, onde as fábricas com maiores dimensões físicas e melhores equipadas eram a Condor no Rio de Janeiro, empregando 300 operários e produzindo 800 pares diários e a Clark, em São Paulo, com 250 operários e produção que alcançava mil pares/dia (SUZIGAN, 2000). 6285 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Paradoxalmente, essa situação de hegemonia produtiva tenderia a ser modificada com o desenvolvimento do fenômeno industrializante nesses dois grandes centros urbanos nacionais. Intui-se que, tendo nossa industrialização iniciado pelos bens de consumo simples, condição possibilitada pela importação de tecnologia desenvolvida no centro do sistema, nosso departamento I pré-industrial caracterizava-se por ser altamente insumidor de mão-de-obra, logo, concorrente direto da indústria de calçados por braços, o que fez reverberar em custos de produção cada vez menos atrativos. Dessa forma, aos poucos a produção, em grande medida dominada pelo capital comercial, passa a perder fôlego nesses grandes centros urbanos e ganha força em formações sociais periféricas típicas de pequena produção mercantil onde , geneticamente, os investimentos estavam atrelados à produção. Não por acaso Franca (SP) imigrante e Novo Hamburgo (RS) também imigrante, ambos com longa tradição na manufatura de artigos em couro, assumirem a dianteira na produção de calçados no Brasil já em meados do século XX (CARNEIRO, 1986). 3 – Especialização da produção como fenômeno geográfico. A especialização da produção, no que concerne a indústria calçadista brasileira, tratou-se de um fenômeno de ordem geográfica que implicou num aprofundamento da divisão social do trabalho “fundada na ocupação de áreas até então periféricas” (SANTOS; SILVEIRA, 2011, p. 105) à produção desenvolvida em São Paulo e Rio de Janeiro. Temos que até os finais da década de 1960, a estrutura produtiva calçadista já assumia sua forma mais moderna e acabada em Franca (SP) e Novo Hamburgo (RS), onde o primeiro se especializou na produção de calçados masculinos, tornando-se o maior polo produtor desse tipo de calçados na América Latina (NAVARRO, 2006), e o segundo enveredou pela especialização em calçados femininos, tornando-se, por sua vez, um dos maiores polos produtores mundiais de calçados (COSTA, 2004). 6286 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Segundo L. Carneiro (1986) a especialização produtiva significou um avanço na estrutura industrial brasileira e ter-se-ia iniciado em finais da década de 1930, onde a proximidade geográfica com o fenômeno de industrialização brasileira desempenhou fator determinante frente ao estado de coisas que viria a ser inaugurado no setor de calçados no Brasil. Franca (SP), por estar geograficamente próxima ao centro irradiador da industrialização nacional, São Paulo, teria se aproveitado da crescente oferta de tecnologia, notadamente máquinas e equipamentos capazes de modernizar a produção, não por acaso aprofundado sua trajetória de desenvolvimento industrial naquele produto mais dócil, por assim dizer, ao trato mecânico, logo, dedicando-se a produção de calçados masculinos que, no geral, são mais padronizados em termos de processos produtivos5. Concorriam a favor de Franca (SP), além do crescente mercado consumidor em expansão, fruto da atração de milhares de migrantes, “a instalação no país de fabricantes americanos de máquinas para calçados, a United Shoe Machinery Co que, desde 1908, passou a operar num sistema revolucionário de arrendamento de equipamento e assistência técnica para fábricas de calçados” (SUZIGAN, 2000, p. 193). No seu oposto, Novo Hamburgo (RS), geograficamente desprivilegiado frente a sua congênere paulista, tanto na proximidade do mercado nacional quanto em possibilidade de acesso a máquinas e equipamentos mais sofisticados, especializouse quase que naturalmente na produção de calçados femininos, ainda na atualidade, arredio a mecanização e mais intensivo em processos artesanais. Foi natural, pois, impossibilitada de concorrer no mercado nacional com a produção francana com níveis de mecanização e produtividade superiores, a produção gaúcha tratou de garantir sua participação no mercado nacional em vias 5 Segundo Navarro, a maior facilidade para a obtenção de máquinas e o crescimento do mercado consumidor permitiu que algumas das fábricas de calçados de Francas se expandissem, tanto física quanto produtivamente (NAVARRO, 2006). 6287 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO de formação mediante a oferta de produtos diferenciados daqueles produzidos em Franca (SP), notadamente, calçados femininos6. Como seria de se esperar, a especialização como estratégia produtiva garantiu à produção paulista a liderança nacional, onde o estado passou de uma participação de 37,5% em 1955 para 59,9% em 1969 sob o montante total produzido no país, vale lembrar, período que antecede a inserção internacional da produção. Por outro lado, a estratégia acertada das firmas gaúchas em fugir ao embate direto com as firmas paulista, garantiu a liderança na produção de calçados femininos, onde o Rio Grande do Sul saltou de 39,8% em 1955 para 60.8% em 1969 nesse nicho específico de mercado. Ao fim e ao cabo, as vantagens advindas da especialização, superando a anarquia produtiva até então vigente nas mais diversas regiões produtoras do país, significou a estruturação planejada de um importante parque produtor nacional que passou a gravitar em torno de Franca (SP), produtor especializado em calçados masculinos, e Novo Hamburgo (RS), especializado em calçados femininos, o que serviria de base para a futura inserção internacional da produção nas décadas seguintes. 4 – Internacionalização, estrutura e desenvolvimento pós-década de 1970. A internacionalização da produção brasileira deveu-se a dois grandes fatores, um de ordem interna e outro de ordem externa. Partícipe de um plano maior encetado pelo Estado nacional visando alargar sua pauta exportadora em finais da década de 19607, a indústria de calçados foi privilegiada por uma série de incentivos fiscais que contavam com isenções progressivas sobre impostos de circulação, produção e renda, além de incentivos creditícios que possibilitavam sua inserção internacional de maneira subsidiada. De grande importância às exportações foi 6 Em 1950 foram produzidos no Rio grande do Sul 1.044.178 pares de calçados para homens, 2.249.529 pares de calçados femininos, 5.422.133 pares de alpargatas, chinelas e similares, grupo que incluía os calçados leves. (CARNEIRO, 1986). 7 Segundo Navarro (2006) o chamado “esforço exportador” surgiu como um paliativo que visava atenuar os desequilíbrios entre balança comercial e a balança de pagamentos do país, resultados da progressiva composição da dívida externa brasileira a época. 6288 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO também a política de minidesvalorizações cambiais levadas a efeito pelo governo a partir de 1968, onde as desvalorizações da moeda nacional frente ao dólar norteamericano atuavam de forma a aumentar deliberadamente o crédito recebido pelos exportadores (NAVARRO, 2006), condição que se somava as já citadas tornando o mercado externo mais atrativo que o mercado nacional. Já no plano externo, concorreram para o sucesso exportador do calçado “made in Brazil” o arrefecimento da produção no centro do sistema mundial, condição que reverberou em gigantescos e continuados pedidos de produção as firmas brasileiras que viram suas escalas saltarem a níveis nunca antes alcançados, tanto de calçados masculinos, mas principalmente, de calçados femininos. Nesse sentido, não seria exagero dizer que a década de 1970 significou para indústria calçadista nacional importante ponto de inflexão. A conjuntura inaugurada no período possibilitou as firmas brasileiras uma verdadeira válvula de escape à capacidade ociosa armazenada em sua estrutura de produção, pois, ao contrário do mercado interno que contava com severa sazonalidade em questão de vendas, o mercado externo significou vendas certas e continuadas ao longo do ano, permitindo linearidade a produção8. Posto noutros termos, as exportações de calçados brasileiros que eram da ordem de quatro mil pares e US$ 8 milhões em 1970 saltaram para os impressionantes 201 milhões de pares e US$ 1.846 em 1993, notadamente, vislumbrando no mercado norte-americano seu principal market share. Segue-se que o gradativo avanço visando aprimoramento das técnicas de produção, bem como a melhoria contínua dos produtos, alçou o Brasil ao posto de um dos maiores produtores e exportadores mundiais de calçados, condição que ainda se apresenta mesmo diante as adversidades enfrentadas pelo setor na atualidade. A inserção internacional revelou outro ponto tangencial à produção nacional de calçados, pois, os calçados femininos que haviam relegado a produção gaúcha a posto subalterno em relação à produção paulista desde 1930, passaram a liderar as exportações nacionais a partir da década de 1970 graças ao apelo do quesito “moda” 8 É interessante dizer que, enquanto o mercado nacional concentra suas vendas sobre o quarto trimestre do ano, condição avalizada pelas vendas de natal, o mercado norte americano, pela longa tradição consumista daquela sociedade, mantém-se atrativo o ano todo. 6289 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO sobre os produtos. Essa inversão significou nova mudança no centro geográfico da produção passando a hegemonia nacional ao estado do Rio Grande do Sul que, entre o período que se estende entre 1972 e 1984, participou com média superior a 70% dos valores exportados pelo país. (CARNEIRO, 1986). Por seu turno, a mudança no compasso hegemônico produtivo findou na formação de uma região produtora muito mais completa em termos de estrutura que sua congênere paulista, pois, a mudança estrutural suscitou novos investimentos que se espraiaram para novas indústrias adjacentes à produção principal como a fabricação de máquinas e equipamentos, matéria-prima de toda ordem e serviços. No que se refere ao fator estrutural, interessa-nos assinalar que a década de 1970, e sua consequente orientação aos mercados internacionais, findaram em cindir a estrutura industrial em dois segmentos bastante particulares. O primeiro segmento de firmas, voltado primordialmente às exportações, foi liderado pelas empresas mais capacitadas do setor que passaram a atuar estrategicamente voltada a grande escala de produção, sendo encabeçadas pelas regiões produtoras de Franca (SP) e Novo Hamburgo (RS). O segundo segmento foi aquele em que, tanto firmas menos capacitadas de Franca (SP) e Novo Hamburgo (RS) quanto regiões produtoras menos dinâmicas como, por exemplo, São João Batista (SC), souberam aproveitar as oportunidades geradas no mercado nacional com a atenção das grandes firmas do setor voltadas ao mercado internacional. Eis uma característica que viria a se revelar como ponto nodal no processo de desenvolvimento futuro do setor de calçados no Brasil. Por estar atrelada a produção em grandes escalas, as firmas que se voltaram às exportações reduziram gradativamente suas linhas de produção bem como, seus esforços voltados ao desenvolvimento dos produtos como aqueles ligados ao design e marketing, pois, nesse tipo de negócio, marcado pelo que se convencionou chamar de private label, ou seja, calçados fabricados com etiquetas dos contratantes, as firmas recebem todas as especificações produtivas de acordo com o gosto do cliente. No seu extremo, as firmas que recorreram ao mercado interno, vale dizer, muito mais dinâmico que aquele ligado ao exterior, foram obrigadas a empreender em constantes mudanças na concepção do produto. Por seu turno, como trabalhavam em estratégia diferenciada daquela vigente nas exportações, já que 6290 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO deveriam alcançar nichos de mercados variados, as firmas desse segmento eram especializadas na produção em escopo, vale dizer, múltiplas linhas de produtos e volumes reduzidos. De acordo com H. Rosa (2014), em São João Batista (SC) a produção voltouse ao calçado feminino “tipo modinha”. Nesse tipo de produção os calçados são produzidos em pequenas quantidades e com grades de numeração abertas, o que possibilita ao varejista adquirir apenas aqueles números com maior rotatividade nas vendas, inibindo capitais ociosos em produtos encalhados. No entanto, a principal característica do calçado “tipo modinha” diz respeito à validade dos modelos, pois, como o próprio nome sugere, os adereços que enfeitam os calçados mudam com frequência que variam entre dois e três meses de produção, quando são substituídos por novos adereços que caracterizam, portanto, nova modinha. Eis uma estratégia que surge como embrionário processo de formação de uma moda abrasileirada, condição que possibilita certa blindagem ao mercado interno já que calçados estrangeiros não conseguem acompanhar as rápidas mudanças observadas na produção “tipo modinha” endereçadas ao mercado interno (ROSA, 2014). Tais características seriam vitais ao desenvolvimento do setor na década de 1990, pois, diante do pareamento cambial levado a efeito pelo Plano Real, em novembro de 1994, as grandes firmas voltadas as exportações foram duramente afetadas. Já aquelas firmas que estavam acostumadas com a dinâmica do mercado interno souberam assimilar melhor os efeitos recessivos intrínsecos a crise que se seguiu. Enquanto as firmas exportadoras padeciam com ajustes estruturais visando retorno ao atendimento do mercado interno9, vale lembrar, muito mais dinâmico do que aquele ambiente que estavam acostumadas a operar, as firmas menores já haviam se preparado pela própria contingencia produtiva a que foram expostas nas décadas anteriores, vale dizer, produção mais flexível e capaz de ajustes rápidos as oscilações do mercado. Segundo assinalou Antônio Barros de Castro (2011, p. 89) “uma interessante ilustração pode ser encontrada no ocorrido com a empresa Alpargatas. Entre 1991 e 1992, a empresa enfrentou um grave período de sua história, amargando um prejuízo de US$ 121 milhões” Ainda segundo o autor, em virtude da queda significativa no faturamento a empresa foi obrigada e enxugar o quadro de funcionários passando de 32.000 em 1991 para 17.000 em 1992. 9 6291 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Queremos com isso dizer que, numa análise mais aprofundada sobre a dinâmica setorial, a afirmação de que “a crise atingiu as empresas a partir do mesmo ano e mesma direção, tanto para as empresas localizadas no cluster do Vale dos Sinos quanto para as demais regiões brasileiras” (COSTA, 2004, p.19) é facilmente refutada. Fugindo a homogeneização quanto ao efeito da crise, H. Rosa (2014) demonstrou que foi justamente na década de 1990, período de intensos constrangimentos ao segmento exportador, que a principal região produtora de Santa Catarina viu nascer as principais firmas do setor de calçados. Conclusão O Brasil fechou o ano de 2014 com uma produção de 876 milhões de pares de calçados, variação negativa em relação ao ano anterior em aproximadamente 2,5 pontos percentuais. Desse montante, ficaram no mercado interno, maior diferencial geográfico da indústria calçadista brasileira, 747 milhões de pares, equivale dizer, 85% de tudo que produzimos. Um notável avanço que foi possibilitado pela profunda evolução social e econômica do país nos últimos anos. Por seu turno, no cenário internacional passamos de quarto maior exportador em meados da década de 1980, quando contribuímos com 7,4% do comercio mundial de calçados, para a décima quinta posição em 2014, quando representamos 1,3% do total comercializado no planeta. Como chegamos a essa situação? De fato, a reestruturação produtiva ocorrida na década de 1990, diferentemente daquela posta em andamento na década de 1970, deu start a uma reestruturação de caráter defensivo. No fundamental, o deslocamento de linhas de produção para o Nordeste do país tratou-se de tentar reproduzir as condições favoráveis observadas na década de 1970 baseadas no baixo custo do fator trabalho, notadamente, estratégia que buscou sobre fôlego frente à produção asiática. Em síntese, o que se pode observar pós-década de 1990 é que, enquanto países como Itália, Portugal e Espanha buscaram avançar no trato produtivo diferenciando produtos e agregando valor mediante desenvolvimento de marketing e design, a produção brasileira enveredou na tentativa de resgatar sua posição entre os maiores exportadores mundiais mediante aprofundamento da estratégia 6292 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO deflagrada na década de 1970. Frente ao exposto, não seria exagero dizer que na atualidade a indústria calçadista brasileira encontra-se num limbo produtivo frente suas congêneres mundiais. Com preços médios que giram em torno de US$ 11 por par, ficamos aquém da concorrência direta com a China, cujo preço médio é US$ 3,87 por par, e mais distantes ainda do nicho superior, onde Portugal e Espanha, nossos maiores concorrentes dada nossa especialidade produtiva, atingem preços médios que variam entre US$ 20 e US$ 35 por par. REFERENCIAS CARNEIRO, L. G. Trabalhando o couro: do serigote ao calçado “made in Brazil”. Porto Alegre: JePM/CIERGS, 1986. CASTRO, A. B. de. O desenvolvimento brasileiro: da era Geisel ao nosso tempo. Rio de Janeiro: INAE, 2011. COSTA, Achiles. B. da, PASSOS, M. Cristina. (Org.). A indústria calçadista no Rio Grande do Sul. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2004. MAMIGONIAN, Armen. Kondratieff, ciclos médios e organização do espaço. Geosul, Florianópolis, v. 14, n. 28, p.152-157, 1999. 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