reflexões sobre experiências brincantes de crianças na educação

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REFLEXÕES SOBRE EXPERIÊNCIAS BRINCANTES DE CRIANÇAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Raquel Firmino Magalhães Barbosa1 - UFES
Grupo de Trabalho - Educação da Infância
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Este estudo apresenta a perspectiva da criança no cotidiano escolar como uma das dimensões
de análise e de reflexão para a formação de professores e de professores em exercício,
considerando a importante contribuição da Sociologia da Infância e dos Estudos com o
Cotidiano neste processo, trazendo como principais fontes teóricas: Sarmento (2003; 2004;
2005), Corsaro (2011) e Certeau (1994). A questão que direciona esta discussão é a seguinte:
como podemos valorizar as dimensões lúdicas das práticas brincantes infantis na escola? Para
tanto, este artigo tem como objetivo revelar a importância das brincadeiras infantis ditas e/ou
enunciadas pelas próprias crianças e, paralelo a isso, possibilitar a escuta das crianças em
relação as suas vontades brincantes. A pesquisa foi desenvolvida pelo método etnográfico,
com crianças de cinco anos de idade da Educação Infantil, em uma escola da rede municipal
de Cuiabá/MT, através de observação participante, de diálogos em grupos e de registros em
diários de campo, a fim de conhecer o que elas têm a dizer sobre suas brincadeiras, por meio
de uma análise qualitativa dos dados. Neste estudo é analisado duas experiências brincantes
na cultura de pares das crianças da Educação Infantil em aulas de Educação Física, com a
construção de jogos com elementos e personagens de desenhos animados, compartilhados no
cotidiano das práticas brincantes das crianças, sinalizando para uma fonte lúdica na prática
pedagógica dos professores. Com este trabalho, supomos incentivar professores a ouvir o
ponto de vista das crianças, suas experiências brincantes e, assim, proporcionar novos
caminhos para pensar a prática pedagógica na Educação Infantil.
Palavras-chave: Criança. Brincadeira. Protagonismo Infantil.
1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT. Aluna de Doutorado em Educação
Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro do Grupo de Pesquisa PROTERIA - UFES
- E-mail: [email protected].
ISSN 2176-1396
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Introdução
O debate sobre a mudança na forma como hoje se compreende a concepção de criança
e o seu processo de socialização se configura como um desafio diário na produção acadêmica
e no cotidiano da Educação Infantil.
Valorizar os saberes infantis e o que compõem o cotidiano infantil é uma maneira de
legitimar a presença da criança como sujeito de direitos, protagonista dos seus processos de
socialização e produtor de cultura (BRASIL, 2013).
Em oposição a visão da criança ser reconhecida como um ser que somente reproduz os
elementos da cultura, baseado nos estudos de Corsaro (2011) e de Certeau (1994), na verdade,
a criança o faz de um modo particular, construindo uma cultura própria, interpretando e
consumindo produtivamente esses elementos junto a seus pares. Conforme os estudos de
Certeau (1994) sobre a “invenção do cotidiano”, a criança opera como uma “consumidora de
práticas”, isto é, não é passiva em relação a sua realidade e a sua cultura, pelo contrário, se
mostra ativa e praticante do seu cotidiano, exibindo comportamentos ativos e autorais.
Instigar uma reflexão sobre as práticas brincantes das crianças na Educação Infantil
nos faz pensar sobre o que elas imaginam e socializam e, ao mesmo tempo, nos faz repensar
sobre as práticas pedagógicas na escola, de modo que possibilite não só dar voz às crianças
mas escutar como elas ressignificam o que está ao seu redor, isto é, abrir espaço para
experiências que circulam em sua cultura de pares2 e que despertam seus interesses.
Então, surge o questionamento central deste estudo: como podemos valorizar as
dimensões lúdicas das práticas brincantes infantis na escola? Buscando responder esta
questão, este artigo tem como objetivo indicar a importância de valorizarmos as brincadeiras
infantis ditas e/ou enunciadas pelas próprias crianças e, paralelo a isso, possibilitar a escuta
das crianças em relação as suas vontades brincantes.
Para fundamentar este estudo, foi realizado uma pesquisa etnográfica, que apresenta
duas experiências brincantes de crianças de cinco anos de idade, retratando as suas “arte de
fazer”3 brincadeira junto com seus pares. Como resultado, verificou-se que o repertório
brincante infantil se mostrou bastante influenciado pelo conteúdo dos desenhos animados e a
importância dos professores interagirem com este ambiente lúdico.
Corsaro (2011, p. 128) compreende cultura de pares como um “[...] conjunto estável de atividades ou rotinas,
artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e compartilham em interação com as demais”.
3
Certeau (1994) considera “arte de fazer” como operações astuciosas e criativas praticadas pelos sujeitos em seu
cotidiano.
2
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Nesse sentido, vemos a importância de uma reflexão que estabeleça uma relação de
envolvimento entre a criança e o professor como praticantes4 do cotidiano da Educação
Infantil, que possibilite buscar compreender o ponto de vista da criança, valorizar as suas
práticas brincantes e, assim, engrandecer as práticas pedagógicas no contexto educacional.
O envolvimento da criança na brincadeira
A área da Sociologia da Infância trata a criança como um ator social pleno. As
contribuições desse campo para a Educação Infantil propõe a desconstrução de uma imagem
social da criança como seres inacabados, em transição e dependentes dos desejos dos adultos.
Corsaro (2011) considera que a perspectiva sociológica deve considerar os processos
de apropriação, de reinvenção e de reprodução realizados pelas crianças, levando em
consideração a “reprodução interpretativa” das práticas infantis, pois elas não se limitam a
interiorizar a cultura adulta, pelo contrário, tornam-se parte, contribuem e negociam com a
mesma, produzindo, desta maneira, as suas próprias culturas infantis com seus pares. Essa
visão de socialização rompe com a ideia da criança como um ser passivo dos ensinamentos
dos adultos e valoriza o coletivo.
Para Sarmento (2005), a sociologia da infância aponta para uma construção social da
infância para além da concepção de criança como uma tábula rasa. Desta forma, o autor
entende que a Sociologia da Infância tem como objetivo mostrar um novo paradigma, de uma
infância com direitos próprios e que faz parte da sociedade.
A sociologia da infância propõe-se a constituir a infância como objeto sociológico,
resgatando-a das perspectivas biologistas, que a reduzem a um estado intermédio de
maturação e desenvolvimento humano, e psicologizantes, que tendem a interpretar
as crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção
social das suas condições de existência e das representações e imagens
historicamente construídas sobre e para eles. Porém, mais do que isso, a sociologia
da infância propõe-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto de vista que
toma as crianças como objeto de investigação sociológica por direito próprio,
fazendo acrescer o conhecimento, não apenas sobre infância, mas sobre o conjunto
da sociedade globalmente considerada. A infância é concebida como uma categoria
social do tipo geracional por meio da qual se revelam as possibilidades e os
constrangimentos da estrutura social. (SARMENTO, 2005, p. 363).
4
O termo praticante é empregado por Certeau (1994) como aqueles sujeitos que se fazem presente e se
socializam em um determinado local, neste caso, a escola. No momento em que estes indivíduos se socializam,
se tornam praticantes desse ambiente, compartilhando saberes e conhecimentos e, consequentemente,
produzindo culturas.
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Ao considerar a infância como um meio de produção simbólica, de manifestações e de
representações desse mundo infantil é possível pensar sobre o engendramento de práticas
pedagógicas que valorizem a cultura da criança. Isso pode proporcionar um contexto de
análise sobre o que as crianças vivem, interagem e significam ao brincar, oferecendo um
espaço para dar voz a essas crianças, a fim de expressarem seus pontos de vista.
Assim, esse conjunto de significados é produzido pela relação da criança com a
sociedade em que vive, disponibilizando a impressão daquela geração e de sua cultura infantil
como um elemento simbólico comum, evidenciando uma “gramática das culturas da infância”
e, ainda, que essas mesmas culturas “[...] transportam as marcas dos tempos, exprimem a
sociedade em suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade” (SARMENTO,
2003, p. 4).
Para Sarmento (2004), a criança apresenta uma “autonomia cultural”, quando as suas
representações e significações se consolidam dentro da cultura infantil, pois possuem um
aspecto relacional e mostram a sua afinidade com a cultura societal, porém, diferentemente da
cultura adulta, é construída e/ou reconstruída à sua maneira.
Buscando dialogar com os Estudos com o Cotidiano e com o que a criança interage e
interpreta do mercado de bens culturais, do mundo adulto e do que está disposto para a
mesma em seu cotidiano, Certeau (1994) nos convida a pensar a criança e as suas “maneiras
de fazer” quando estão envolvidas na atmosfera brincante. Para ele, é por meio da
inventividade e do “consumo produtivo” dos bens culturais que estão ao seu redor que a
autoria e o protagonismo infantil emergem, isto é, constroem a sua lógica no cotidiano.
Para Certeau (1994, p. 118), o consumo produtivo está justamente na forma como os
praticantes do cotidiano, neste caso, as crianças, invertem a forma como significam e
atribuem um outro sentido aos elementos que fazem parte da cultura contemporânea. As
crianças supostamente seriam passivas na relação com esses bens culturais, entretanto,
evidenciam uma “arte de fazer” junto com seus pares, como “[...] uma criação anônima,
nascida da prática, do desvio dos usos desses produtos”.
Indo nessa direção, percebemos que a brincadeira apresenta uma lógica particular de
acordo com o sujeito, contexto e objeto brincante, e, da mesma maneira, seguindo a teoria
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certeauniana, a criança transforma a cultura onde está inserida, oferecendo significações e
apropriações de acordo com o seu weltanschauung5 particular.
Brougère (2008, p. 77) compartilha desse mesmo viés quando trata sobre o quanto a
criança se apropria do que está ao seu redor para fazer parte do seu repertório brincante. Para
esse autor, “[...] a apropriação do mundo exterior passa por transformações, por modificações,
por adaptações, para se transformar numa brincadeira: é a liberdade de iniciativa e de
desdobramento daquele que brinca, sem a qual não existe a verdadeira brincadeira”.
Assim, a analogia entre o aspecto relacional e a autonomia cultural pode ser expressa
principalmente pela interatividade, ludicidade, fantasia do real e a reiteração. É nesse
momento que as crianças interagem com o mundo e com o que está a sua volta: imitando,
criando, transformando e repetindo seus devaneios. Além de compartilharem vivências,
principalmente, as brincantes com seus pares, estas se tornam uma forma de contribuir para
estruturar futuramente a sua vida social, ou seja, capacitando essas crianças para se tornarem
atores sociais.
Assim, devemos considerar as brincadeiras de faz-de-conta, representando as
múltiplas dimensões simbólicas que a criança constrói com a sua atmosfera brincante e com
os objetos que dela fazem parte. O que pode ocorrer neste momento é sempre um mistério.
Entretanto, a enunciação, compreendida pelo viés certeauniano, como um processo de
apropriação da realidade por meio da prática no movimento, do discurso como um ato e da
relação com o espaço, este último significado pela criança, pode nos encaminhar para
acreditar que as crianças tem o que dizer sobre as suas práticas brincantes.
O modo como brincam pode revelar suas vontades e seus desejos, mostrando a força
do imaginário em suas brincadeiras e as suas relações particulares com o seu mundo lúdico.
Isso nos ajudar a refletir sobre a trívia relação entre a criança, a brincadeira e a cultura, a fim
de perceber como a criança se relaciona com os elementos do seu cotidiano bem como o
sentido e a força dos mesmos nas brincadeiras infantis.
5
De acordo com o dicionário Houaiss (2007), o termo weltanschauung, na primeira acepção da palavra, significa
um conjunto ordenado de valores, impressões, sentimentos e concepções de natureza intuitiva, anteriores à
reflexão, a respeito da época ou do mundo em que se vive; cosmovisão, mundividência,Visão de mundo.
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Para as crianças, no âmbito do jogo simbólico, o objeto referenciado não perde a sua
identidade própria e é, ao mesmo tempo, transmutado pelo imaginário: a criança
“veste” a personagem da mãe, do bebê, do médico ou do cientista maluco sem
perder a noção de quem é e transforma os objetos mais vulgares nos mais
inverossímeis artefatos – a caixa de cartão no automóvel, o lápis de cera no batom,
uma caixa de bolachas no tesouro escondido dos piratas… Do mesmo modo, a
criança funde os tempos presente, passado e futuro, numa recursividade temporal e
numa reiteração de oportunidades que é muito própria da sua capacidade de
transposição no espaço-tempo e de fusão do real com o imaginário (SARMENTO,
2005, p. 375).
Isso faz parte do simbolismo infantil, pois permite que a criança explore contradições
e possibilidades. É a frivolidade da brincadeira em ação, aparentemente sem nexo à etologia
do mundo adulto, fútil, “sem preço”, mas com muito sentido e lógica para a criança e também
para quem consegue entrar nesse mundo e interpretar sua cultura.
E, é nesse momento que as crianças se afirmam como atores sociais com a
multiplicidade de ações e representações. Os professores, por sua vez, seguindo a lógica de
valorizar as experiências infantis, é a ocasião essencial para direcionar e desnaturalizar o olhar
para a realidade das práticas brincantes infantis, como uma maneira de aprender mais sobre a
cultura lúdica da criança e o que elas tem a dizer.
Portanto, o que queremos retratar, seguindo a lógica da Sociologia da Infância, é
possibilitar a visibilidade das contribuições das práticas brincantes das crianças como um
direito e um reconhecimento das experiências infantis que podem engrandecer o cotidiano dos
professores, desafiando-os a interagir com os pontos de vista infantis.
Aspectos Metodológicos
Neste estudo é analisado duas experiências brincantes na cultura de pares das crianças
da Educação Infantil em aulas de Educação Física, com a construção de jogos com elementos
e personagens de desenhos animados, compartilhados no cotidiano das práticas brincantes das
crianças que podem contribuir como uma fonte lúdica para a prática pedagógica dos
professores.
Este artigo se baseia em uma pesquisa etnográfica, com enfoque qualitativo, produzido
através de um recorte de uma dissertação de Mestrado. A etnografia foi adotada,
especialmente, pelo fato de “[...] documentar e apreciar relacionamentos e culturas de pares
das crianças e para demonstrar como elas constroem sentido e contribuem para os processos
de reprodução e mudanças sociais” (CORSARO, 2011, p. 61).
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O lócus da pesquisa foi uma escola de Educação Infantil da rede municipal de
Cuiabá/MT, na qual a investigação se deu com crianças de cinco anos de idade, em aulas de
Educação Física e em diferentes espaços que pudessem ocorrer eventos lúdicos. As crianças
foram observadas em suas diferentes interações: sozinhas, em grupos, com os professores ou
em contato com o pesquisador.
As informações, as narrativas e as experiências infantis foram registradas em um
diário de campo, trazendo diálogos com as crianças e notas sobre as suas brincadeiras. Com
base em uma análise qualitativa dos dados, consideramos evidenciar a triangulação entre
discussão teórica, as vozes das crianças e a reflexão suscitada pela pesquisadora como uma
maneira de expressar a inventividade e a dimensão lúdica das brincadeiras infantis, expressas
pelas próprias crianças.
A construção da brincadeira na cultura de pares infantil
Por meio da pesquisa de Barbosa (2011), a autora conseguiu observar a relação da
criança com os jogos e brincadeiras produzidos na sua “cultura de pares”, a partir da
influência dos desenhos animados.
A autora destaca a importância dos educadores estarem atentos aos elementos que
revelam a cultura dos infantis, que auxiliam na produção de sentidos e significados para
aquilo que se quer ensinar. Para isso, ela sugere que a criança tenha incentivos para falar e se
expressar por meio de diferentes linguagens.
O trecho abaixo, extraído do diário de campo, indica o estímulo à fala, fundamental
para a aproximação adulto-criança e para a captação de elementos que revelam suas
identidades.
Durante uma aula de Educação Física, um grupo de crianças se aproximou da
pesquisadora e iniciaram uma conversa sobre suas brincadeiras. Em uma pequena
roda, foi perguntado sobre o que elas mais gostavam de brincar na escola. Duas das
meninas do grupo narraram suas experiências brincantes, denominando-as de
“pique-bicho” e “pega-pega de Pica-Pau”. Esses dois momentos retrataram a
inventividade infantil na elaboração das brincadeiras (DIÁRIO DE CAMPO, MAIO
DE 2011)
Nos fragmentos abaixo, extraídos do estudo de Barbosa (2011), é possível perceber
como as crianças operam com seu imaginário para tornar a brincadeira mais atraente e atender
aos seus interesses e expectativas.
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Percebemos a autoria infantil na criação das brincadeiras e captamos elementos de sua
cultura, retratadas pelo gosto por atividades enérgicas e relacionais como o pique, a influência
de elementos fantasmagóricos como monstros e personagens de desenhos animados e a
interação com seus pares.
Eu gosto de brincar correndo... É, eu e as outras meninas, a gente faz o D. pegar a
gente. Ele é um bicho. A gente fica correndo. Aí, a gente pega a pedra e finge que tá
jogando nele. A gente que inventou! - “D., você quer brincar com a gente de bicho?”
Aí, ele fala: - “quero!” - “A gente vai jogar a pedra em você e você vem correndo
atrás da gente, tá?” O J.V. sempre entra na brincadeira. Ele corre atrás da gente e
avisa o D. onde a gente está. (HRC, F, 5 ANOS, DIÁRIO DE CAMPO, MAIO DE
2011).
A gente faz assim: ‘baixa’ o Pica-Pau e brinca com ele! O Pica-Pau corre, não corre?
Aí, o homem não vai atrás do “Pica-Pau”? Então, esse que é o pega-pega de PicaPau! Quando o Pica-Pau faz ‘lelelê’ (o riso do personagem) para o bicho, aí o bicho
corre atrás do Pica-Pau e todo mundo corre! (NVC, F, 5 anos, DIÁRIO DE
CAMPO, MAIO DE 2011).
A partir de Certeau (1994), percebemos as bricolagens6 nos usos e apropriações
empreendidos pela criança, ao experimentar uma brincadeira popular (pique) e inserir na
atividade elementos que agregam sentidos e significados à brincadeira, revelando a sua
cultura lúdica. Podemos perceber esses elementos traduzidos por: personagens monstruosos e
de desenho animado; o convite e a provocação para iniciar a brincadeira; o desenrolar da
atividade brincante com construções e aceitação das regras; a transformação da criança no
personagem; e, o ápice da brincadeira, com corridas intensas, expressões agitadas e
transformações notórias.
Através do ato de correr, de pegar e de se esconder, as crianças produziram novas
formas de brincar, ou seja, operaram um “consumo produtivo” e uma “reprodução
interpretativa” da atividade de pique-pega, inserindo elementos que tornaram a brincadeira
mais significativa e prazerosa para elas. Essa ação das crianças evidenciam seus “modos de
fazer” e ressignificam a sua cultura (CERTEAU, 1994; CORSARO, 2011).
Ressaltamos que, quando o professor considera a autoria e o compartilhamento
brincante das crianças ao construir suas brincadeiras, reunir e convidar meninos e meninas
para “mergulhar na ação lúdica” (KISHIMOTO, 1993; 1999) é uma maneira de contribuir
para legitimar as ações infantis como agentes ativos, sociais, inventivos e produtores de
6
O termo bricolagem é entendido por Certeau (1994) como a junção de diferentes bens culturais que resultam
em algo novo.
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cultura. Ou seja, é dada visibilidade à suas ações como protagonistas e participantes ativos de
seus processos de socialização.
Indo nesta mesma direção, os professores ao aproveitar toda a riqueza das
espontaneidades infantis criam uma via de mão dupla para trocar experiências e potencializar
as suas aulas, retirando o jogo infantil da margem do processo pedagógico.
[...] o sentido do jogo, veiculado nos tempos atuais, como um meio de expressão de
qualidades espontâneas ou naturais da criança, como recriação, momento adequado
para observar a criança, que expressa através dele sua natureza psicológica e
inclinações. Tal concepção mantém o jogo à margem da atividade educativa, mas
sublinha sua espontaneidade. (KISHIMOTO, 1999, p. 29)
Desse modo, o professor ao escutar as vozes infantis proporcionam um espaço lúdico
para a criança ser um sujeito participativo e criativo no cotidiano escolar. Nesse sentido,
Corsaro (2011, p. 31) ressalta a importância do processo de socialização nesse ambiente,
principalmente, no que concerne a reinvenção das brincadeiras por parte da criança, isto é, a
valorização do “[...] reconhecimento da importância da atividade coletiva e conjunta – como
as crianças negociam, compartilham e criam cultura com adultos e entre si”.
Na mesma direção, percebemos que os sujeitos desenvolvem suas práticas, maneiras
de fazer e de operar em seu cotidiano como algo estabelecido coletivamente, nos quais o
“fazer com” os levam a interagir e influenciar uns aos outros em construções sociais
permanentes e dinâmicas. Essas construções ou invenções do cotidiano, mostram a pouca
passividade infantil e a relevância da produção de suas práticas e da atribuição de sentidos na
socialização e no compartilhamento de seus produtos brincantes.
Desta forma, o poder de imaginação e de inventividade infantil demonstra o modo que
a criança tem de manifestar seus desejos e suas subjetividades, funcionando como uma
espécie de aprendizado e troca social para construir a sua identidade e assimilar a realidade da
forma que elas desejam. Incrementam os seus jogos de pique com figuras fantásticas infantis
― bichos, monstros, ogros, desenhos animados ―, evidenciando que “[...] a esfera do jogo é
a esfera das imagens e, com isso, a esfera das possibilidades e da fantasia” (BUYTENDIJK,
1974, p. 68 apud FREIRE, 2005, p. 66).
Nota-se que os elementos dos desenhos animados permeiam as brincadeiras das
crianças, principalmente, quando falam no gosto por brincar com esses personagens, na
criação e no incremento de situações imaginadas, aumentando, assim, o nível de ludicidade na
brincadeira.
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A influência do desenho animado nas práticas brincantes evidencia a pouca
passividade das crianças. De fato, as crianças passam horas na frente da TV, porém, quando
vão brincar, usam essas imagens, o movimento e a imaginação como recurso brincante, a fim
de dar forma às suas ideias, pois há uma lógica nas práticas: uma estrutura e uma organização;
um início, um meio e um fim; um enredo; funções a desempenhar; regras a seguir; e, alegria a
compartilhar.
Verificamos o quanto que as crianças ficam empolgadas ao falar sobre os desenhos, o
que os personagens fazem, o que mais lhe atraem e como brincam. Ao narrar as suas
brincadeiras, demonstram o envolvimento e o fascínio com as suas experiências brincantes,
fazendo com que essa fantasia passe a habitar a sua realidade toda vez que elas desejam,
constituindo, junto aos seus pares, diferentes brincadeiras.
Outro ponto relevante é a agressividade sucumbida na ação lúdica de ‘pegar’ e de
‘fingir jogar pedra’. Podemos considerar esta enunciação como uma linguagem astuciosa das
crianças, uma manifestação simbólica e um exercício do “não-poder” (CERTEAU, 1994). Ao
propor algo que no ato concreto da ação não poderiam concretizar (jogar pedra), as crianças
afloram uma dimensão subjetiva para tornar a brincadeira mais interessante. E o fazem
ancoradas na realidade objetiva, ou seja, têm consciência de que essa ação poderia machucar
os seus pares. Entretanto, usam a intenção agressiva como subterfúgio para simular e
conseguir que o ‘bicho’ as persigam. Isso evidencia os elementos da sua cultura, revelados
para tornar mais significativo o ato de pegar e de correr.
Portanto, Barbosa (2011) indica que tanto a aproximação com o universo lúdico da
criança como a escuta de suas vozes são possibilidades para compreendê-las como sujeitos
ativos, participantes da sociedade e produtores de cultura. A visibilidade do cotidiano e da
cultura infantil sugerem que esses elementos deveriam ser valorizados como um grande
potencial educativo nas escolas.
Considerações Finais
A perspectiva teórica que orienta nossas análises e discussões proporcionaram outros
sentidos que podem ser dados à prática das brincadeiras com crianças na Educação Infantil,
de modo a possibilitar a escuta de suas vozes e de suas experiências brincantes como uma
maneira de valorizarmos as dimensões lúdicas das práticas no cotidiano da criança na escola.
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Neste percurso, reforçamos o reconhecimento da criança como produtora de cultura e
participante ativa do seu processo de produção de conhecimentos. Para isso, sugerimos que é
preciso que se considere as singularidades e os direitos das crianças, que implica reconhecer
suas culturas infantis e considerar suas artes de fazer para a produção de sentidos e
significados daquilo que se vivencia.
De posse de elementos das experiências brincantes infantis, concretizadas neste
estudo, é possível aproximar-se desse universo, compreendê-lo e implementar ações
pedagógicas que produzam sentidos para as crianças e favoreçam a sua inventividade,
revelando suas culturas, vontades e fantasias em aulas da Educação Infantil.
Assim, compreendemos a necessidade de se ampliar o reconhecimento do potencial
educativo do jogo e também perceber a escola como local privilegiado para que essa
formação social, cultural e humana dos sujeitos aconteçam. Por isso, a necessidade de
valorizarmos as experiências infantis e trazê-las como mais um recurso pedagógico para as
aulas na Educação Infantil, construindo a aula amparada em uma perspectiva compartilhada e
fundamentada nos interesses infantis.
Portanto, escutando as vozes das crianças podemos contribuir com a articulação de
suas brincadeiras em novas possibilidades de práticas pedagógicas, evidenciando a sua
inventividade. Parafraseando Certeau (1994), é preciso que os professores se interessem não
pelos produtos culturais oferecidos pelo mercado de bens de consumo (no que tange à
passividade e ao interesse dos adultos), mas pelas operações dos seus usuários (arte de fazer
com esses produtos) e ocupar-se com as maneiras diferentes de ‘marcar’ socialmente o desvio
operado pela ação inventiva na prática (invenções do cotidiano criado pela criança), junto à
cultura de pares infantil (o que é produzido na coletividade).
REFERÊNCIAS
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