Planck e a Emergência da Quantização da Energia Mário J. de Oliveira Instituto de Fı́sica Universidade de São Paulo 8 de março de 2006 A Fı́sica do Século XX Instituto de Fı́sica Teórica Universidade Estadual Paulista 2006 – p. 1 Max Planck (1858-1947) – p. 2 Sumário 1. Introdução 2. Termodinâmica 3. Planck e a radiação de corpo negro 4. Perrin e o movimento browniano 5. Teoria atômico-molecular 6. Teoria cinética e mecânica estatística 7. Conclusão – p. 3 Introdução – p. 4 Kirchhoff e leis universais A origem da quantização da energia está intimamente ligada ao fenômeno da radiação de corpo negro. Kirchoff foi quem introduziu a idéia de corpo negro e estabeleceu a universalidade do espectro de radiação. De acordo com Kirchoff, a densidade espectral de energia de um corpo negro é independente das características particulares do objeto de estudo, dependendo apenas da frequência da radiação e da temperatura. Leis universais são aquelas que independem das propriedades particulares do objeto de estudo. Em geral elas conduzem a constantes universais. Exemplos: 1) Lei das quedas dos corpos de Galileu. 2) Lei da gravitação universal de Newton. 3) Princípio de Carnot. 4) Leis de Maxwell do eletromagnetismo. 5) Invariância da velocidade da luz em referenciais inerciais. 6) Equipartição da energia em sistemas a altas temperaturas. Planck se interessou pelo estuda da radiação de corpo negro devido ao caráter universal do fenômeno, pois considerava a busca das leis universais como a mais elevada meta da atividade científica. – p. 5 Espectro do carvão incandescente lâmpada incandescente – p. 6 3 ρ (Js/m ) Espectro de corpo negro 10 8πhν 3 1 ρ= c3 ehν/kT − 1 −15 T=6000 K 0 0 luz visivel 10 15 ν (Hz) – p. 7 Fórmula de Planck (1900) Três aspectos da fórmula de Planck devem ser considerados: 1) A abordagem termodinâmica, 2) A dedução estatística, 3) A interpretação quantizada. Tanto em (1) quanto em (2), o foco de Planck é a entropia contida na radiação. Em (1), utiliza a relação dU = T dS entre a energia U e a entropia S introduzida por Clausius. Em (2), utiliza a relação devida a Boltzmann S = k ln W entre a entropia e o número de estados acessiveis W . Essa última fórmula corresponde à intepretação estatística da entropia. – p. 8 Termodinâmica – p. 9 Bifurcações da idéia de calor 1850 calor 1750 calor3 1650 calor2 calor1 entropia temperatura pressao – p. 10 O instrumento de Galileu e o termômetro Durante o período medieval, o calor e o frio eram interpretados como qualidades aristotélicas fundamentais, não passíveis de mensuração. Isso não impediu que se especulasse sobre a possibilidade de haver distintos graus de uma qualidade. Galeno adotava uma escala com quatro graus de calor e quatro graus de frio. Entretanto, tornou-se evidente que o frio é decorrência da ausência de calor e que bastava uma única escala para os graus de calor, como aquela introduzida por Newton. Com a revolução científica do século 17, surgiram os instrumentos para medida dos diversos graus de calor de um corpo, entre eles o instrumento inventado por Galileu. Tal instrumento, entretanto, era afetado pelas variações da pressão atmosférica. Ferdinando II, ao redor de 1644, utilizando um tubo selado, acabou inventando um instrumento sensível ao calor que não era afetado pelas variações de pressão. O instrumento, que foi aperfeiçoado por Fahrenheit, passou a ser denominado termômetro e a grandeza medida, temperatura. – p. 11 O instrumento de Galileu Carta de Benedetto Castelli a Ferdinando Cesarini, 20 de setembro de 1638; Opere di Galileo Galilei, vol. XVII, p. 378. – p. 12 Escala de graus de calor de Newton (1701) A scale of the degrees of heat 0 The heat of the air in winter at which water begins to freeze. This heat is determined by placing a thermometer in packed snow, while it is melting. 6 12 Heat of the air in the middle of the day in the month of July. 1 The greatest heat which a thermometer takes up when in contact with the human body. This is about the heat of a bird hatching its eggs. 24 2 The heat of a bath in which wax floating around melts as the bath gets warmer and is kept in continual movement without boiling. 34 2 21 The heat at which water boils violently. 48 3 The lowest heat at which a mixture of equal parts of tin and bismuth liquifies. 96 4 The lowest heat at which lead melts. 192 5 The heat of coals in a little kitchen fire made from bituminous and excited by the use of a bellows. The same is the heat of iron in such a fire which is shining as much as it can. – p. 13 Coexistência de fases 2 10 1 10 0 p (MPa) 10 gelo agua vapor −1 10 −2 10 −3 10 −4 10 −100 0 100 200 300 400 o T ( C) coexistência gelo-água diagrama de fase da água – p. 14 Temperatura e calor Ao redor de meados do século 18 surgiu a idéia de que o calor possuia dois aspectos distintos sendo que o termômetro media apenas um deles. Joseph Black, em 1760, foi um dos primeiros a esclarecer a distinção entre quantidade de calor (calor propriamente) e intensidade de calor (temperatura) ao introduzir a idéia de capacidade térmica e de calor latente. Mostrou que a temperatura da água em coexistência com o gelo permanece invariante. Durante essa época surge a idéia de que o calor se comporta como um fluido sutil, que se conserva, o qual recebeu o nome de calórico por Lavoisier em 1787. A teoria do calórico foi utilizada por Sadi Carnot em seus estudos sobre o rendimento das máquinas térmicas, publicados em 1824. Mostrou que o rendimento de uma máquina que opera segundo um ciclo formado por duas isotermas e duas adiabáticas não depende da substância mas apenas das duas temperaturas do ciclo (exemplo de lei universal). Isso permitiu a Kelvin a definição de temperatura absoluta. – p. 15 Energia e entropia Durante a primeira metade do século 19 havia a desconfiança de que o calor não se conservava, em contradição com a teoria do calórico. Os trabalhos de Joule e Mayer mostraram que uma quantidade de trabalho sempre se converte na mesma quantidade de calor. Clausius afirma, em 1850, que o calor significa movimento das menores partes dos corpos e mostra que o princípio de Carnot não está em contradição com essa idéia. Com base nesse princípio, Clausius pode introduzir a grandeza denominada entropia que, ao contrário do calor, é uma função de estado assim como a energia é uma função de estado. De acordo com Clausius a diferença de entropia entre dois estados é dada por Z dQ ∆S = T onde a integral se estende sobre qualquer caminho que ligue os dois estados. – p. 16 Leis da termodinâmica Conservação da energia (Mayer, Joule, Helmholtz): ∆U = Q − W ao longo de qualquer trajetória. Em forma diferencial dU = dQ − dW Definição da entropia e temperatura absoluta (Kelvin e Clausius): dQ = T dS Conservação da energia em forma diferencial dU = T dS − pdV A entropia, assim como outro potenciais termodinâmicos, possui a propriedade de convexidade. A entropia é função monotônica crescente do tempo. Princípio de Nernst (1906): S → S0 quando T → 0. De acordo com Planck, S0 = 0. – p. 17 Planck e a radiação de corpo negro – p. 18 Lei do deslocamento de Wien e lei de Stefan-Boltzmann Na análise da radiação de corpo negro é conveniente introduzir a densidade espectral de energia ρ(ν, T ) tal que du = ρdν seja a energia por unidade de volume da radiação com frequências entre ν e ν + dν. Stefan em 1879 mostrou experimentalmente que a energia total u= Z ∞ ρ(ν, T )dν = σT 4 0 Essa lei foi demonstrada por Boltzmann a partir da expressão obtida por Mawxell para a pressão de radiação, p = u/3. Em 1893 Wien, mostrou que a densidade espectral deveria satisfazer a seguinte lei de escala ρ(ν, T ) = ν 3 f (ν/T ) conhecida como lei do deslocamento de Wien. Notar que a lei de Stefan-Boltzmann é consequência direta dessa lei. – p. 19 Abordagem termodinâmica Em 1899, Planck estabelece a seguinte relação 8πν 3 ρ= 3 E c entre a densidade espectral de energia ρ(ν, T ) e a energia média E(ν, T ) de um oscilador. A partir da fórmula de Wien (1896) para ρ, Planck obtém E = a0 νe−aν/T Escrevendo 1/T como função de E e utilizando 1/T = ∂S/∂E conclui que ∂S 1 E = − ln 0 ∂E aν a ν de onde obtém (1) 1 ∂2S = − ∂E 2 aνE – p. 20 Abordagem termodinâmica Em setembro de 1900, Lummer e Pringsheim reportam desvios na lei da radiação de Wien para pequenos valores da frequência. Em outubro de 1900, Rubens e Kurlbaum também fazem as mesmas observações e acrescentam que nesse regime a intensidade da radiação monocromática se torna proporcional à temperatura absoluta. Planck conclui disso que nesse regime vale E = bT ou seja, ∂S/∂E = 1/T = b/E e portanto (2) ∂2S b = − ∂E 2 E2 Planck conclui que para baixas frequências vale a equação (2) e para altas frequências vale a equação (1) e procura uma formula que interpola entre os dois resultados. Propõe então a seguinte fórmula: – p. 21 Abordagem termodinâmica ∂2S b = − ∂E 2 E(abν + E) que considerou como a mais simples das fórmulas que contivesse os dois casos limites. Integrando, obtém 1 ∂S 1 abν + E = = ln T ∂E aν E ou, isolando E, E= (3) de onde segue a distribuição abν eaν/T − 1 8πabν 3 1 ρ= c3 eaν/T − 1 apresentada por Planck em forma equivalente em 19/10/1900. – p. 22 Método estatístico de Boltzmann Em seguida, Planck tratou de encontrar uma dedução de sua fórmula a partir da interpretação estatística da entropia introduzida por Boltzmann S = k ln W . O método de Boltzmann consistia em discretizar a energia em intervalos ε para a determinação de W . Ao final dos cálculos deve-se restaurar a continuidade tomando o limite ε → 0. Seguindo os passos de Boltzmann, Planck admitiu que as possíveis energias de um oscilador sejam discretizadas. Supôs que energia U = N E de N osciladores seja dada por U = P ε. A partir de uma análise combinatória, escreve (N + P − 1)! W = P !(N − 1)! do qual obtém o resultado E E E E S = k{(1 + ) ln − ln ε ε ε ε Diferentemente de Boltzmann, Planck não toma o limite ε → 0. – p. 23 Método estatístico A partir da entropia, dada pela expressão anterior, Planck obtém 1 ∂S k ε = = ln(1 + ) T ∂e ε E e, isolando E, E= ε e/kT − 1 Comparando com a fórmula (3) obtida pela abordagem termodinâmica, conclui que é proporcional ν. Escreve então ε = hν onde h = ab. Além disso faz a identificação k = b e escreve 8πhν 3 1 ρ= c3 ehν/kT − 1 fórmula apresentada por Planck em 14/12/1900. – p. 24 Constante de Boltzmann e constante de Planck A partir dos dados experimentais para a densidade espectral de energia, Planck determinou os valores numéricos das duas constante que aparecem em sua equação: k = 1, 346 × 10−16 erg/K, h = 6, 55 × 10−27 erg/K Mostrou ainda que a constante k está relacionada com a constante universal dos gases R por R k= NA onde NA é a razão entre a massa de um mol e a massa de uma molécula (ou constante de Avogadro, embora não mencione esse nome). A partir do resultado conhecido R = 8, 31 × 107 erg/mol K, obtém NA = 6, 175 × 1023 mol−1 – p. 25 Hipótese de Avogadro e equipartição da energia A constante de Avogadro havia sido determinada até então de forma indireta. Planck, além de obter NA de forma direta, seu valor para essa constante era a melhor estimativa da época. A constante de Avogadro é consequência da hipótese de Avogadro cuja importância reside em sua conexão com a teoria cinética dos gases e com a teoria atômicomolecular e portanto com a estrutura discretizada da matéria. Durante o século 19, a teoria discretizada da matéria foi desenvolvida pelos químicos e físicos resultando na teoria atômico-molecular, na teoria cinética e na mecânica estatística. Um dos resultados fundamentais dessas duas últimas consiste no teorema da equipartição da energia e na intepretação estatística da termodinâmica e em particular da entropia. – p. 26 Perrin e o movimento browniano – p. 27 Movimento browniano A equipartição da energia está implicita nas teorias sobre o movimento browniano. Embora a partícula que executa o movimento browniano observável tenha uma massa muitas vezes maior do que massa das moléculas do meio em que ela se move, sua energia cinética média é igual à energia cinética de qualquer molécula e vale (3/2)kT . Robert Brown (1827) mostrou que o movimento errático e incessante de partículas imersas n´água não tinha caráter vital, isto é, não consistia de movimento de organismos vivos. A teoria do movimento browniando foi desenvolvida por Sutherland (1905) e Einstein (1905), que deduziram a expressão D = kT /3πµa e ainda por Smoluchowski (1906) e Langevin (1908). Einstein afirma que a grandeza apropriada para mensuração é o deslocamento e não a velocidade; em particular, o deslocamento quadrático médio: hx2 i = Dt – p. 28 Movimento browniano Esferas de resina de raio 0,53 µm. Posicao anotada a cada 30 s. J. Perrin, Les Atomes, 1913. – p. 29 Movimento browniano As experiências de Perrin sobre o movimento browniano em 1908, baseado na teoria de Einstein de 1905 sobre esse fenômeno, convenceram os mais céticos (Ostwald, por exemplo, mas não Mach) sobre a estrutura discretizada da matéria. Perrin obteve o seguinte valor para a constante de Avogadro NA = 6, 85 × 1023 mol−1 . ¨L’agitation moléculaire échappe à notre perception directe comme le mouvement des vagues de la mer à un observateur trop éloigné. Cependant, si quelque bateau se trouve alors en vue, le même observateur pourra voir un balancement que lui révélera lágitaion qu’il ne soupçonnait pas.¨ J. Perrin, Les Atomes, 1913, p. 119. ¨A agitação molecular escapa à nossa percepção direta como o movimento das ondas do mar, de um observador longínquo. Entretanto, se algum barco se encontra à vista, o mesmo observador poderá notar um balanço que lhe revelará a agitação da qual não suspeitava.¨ – p. 30 Teoria atômico-molecular – p. 31 Elementos químicos e teoria de Dalton Elementos químico de Lavoisier (1789). Estabelecimento de elemento químico independente da teoria atômica. Lei da conservação da massa nas reações químicas. Teoria atômica de Dalton (1805, 1808). Substâncias químicas simples são constituídas de unidades elementares denominadas átomos. Regras de combinação: quando apenas um composto decorre da combinação de duas substâncias simples deve-se presumir que o átomo composto seja binário. Exemplos: água, HO, amônia, HN. Constrói a primeira tabela de pesos atômicos. Berzelius (1814, 1818, 1826) constrói tabelas de pesos atômicos relativos com base nas leis das proporções definidas, múltiplas e recíprocas. Continham incertezas derivadas da arbitrariedade na adoção da composição química de certas substâncias compostas. Exemplo: inicialmente Berzelius adota FeO2 e FeO3 ; posteriormente, FeO e Fe2 O3 . – p. 32 Elementos químicos de Lavoisier (1789) – p. 33 Elementos químicos de Lavoisier (1789) – p. 34 Átomos de Dalton (1808) water olefiant gas carbonic acid sulphuric acid acetous acid ammonia hydrogen strontites azote barytes carbone I iron oxygen Z zinc phosphorus C copper sulphur L lead magnesia S silver lime P platina soda G gold carbonic oxide carburetted hydrogen nitrous acid sugar potash mercury – p. 35 Pesos atômicos de Dalton (1808) no. substância peso no. substância peso 1 Hydrogen 1 11 Strontites 46 2 Azote 5 12 Barytes 68 3 Carbone 5 13 Iron 38 4 Oxygen 7 14 Zinc 56 5 Phosphorus 9 15 Copper 56 6 Sulphur 13 16 Lead 95 7 Magnesia 20 17 Silver 100 8 Lime 23 18 Platina 100 9 Soda 28 19 Gold 140 Potash 42 20 Mercury 167 10 – p. 36 Pesos atômicos de Berzelius el. 1814 1818 1826 el. 1814 1818 1826 O 16 16 16,03 Cu 129,03 126,62 63,42 S 32,16 32,2 32,24 Bi 283,34 283,81 213,22 P 26,80 62,7 31,43 Pb 415,58 414,24 207,46 Cl 35,16 35,41 35,47 Sn 235,29 235,30 117,84 C 11,986 12,05 12,25 Fe 110,98 108,55 54,36 N 14,36 14.05 14,19 Zn 129,03 129,03 64,62 H 1,062 0,9948 1 Mn 113,85 113,85 55,43 As 134,38 150,52 75,33 Al 54,88 54,77 27,43 Cr 113,29 112,58 56,38 Mg 50,47 50,68 25,38 Si 48,696 47.43 44,44 Ca 81,63 81,93 41,03 Hg 405,06 405,06 202,86 Na 92,69 93,09 46,62 Ag 430,107 432,51 216,6 K 156,48 156,77 78,51 – p. 37 Gay-Lussac e Avogadro Lei volumétrica de Gay-Lussac (1809). Numa reação química entre dois gases, a razão entre os volumes dos reagentes é constante e corresponde a uma fração de números pequenos. Dois litros de hidrogênio se combinam com um litro de oxigênio para formar dois litros de vapor d´água. Levou Berzelius a adotar as fórmulas H2 O para a água e NH3 para a amônia. Hipótese de Avogadro (1811). Volumes iguais de gases distintos, sujeitos à mesma pressão e temperatura, contém o mesmo numero de moléculas. (a) As massas moléculares são proporcionais às densidades dos gases. (b) A partir dos resultados de Gay-Lussac, uma molécula de água deve ser composta por uma ¨meia-molécula¨ (ou molécula elementar) de oxigênio e duas ¨meias-moléculas¨ de hidrogênio. Em geral as moléculas de substância simples são compostas por por uma ou mais moléculas elementares. Hipótese rejeitada por Dalton (átomos iguais se repelem) e por Berzelius (incompatível com sua teoria dualista). – p. 38 Teoria atômico-molecular Lei de Dulong e Petit (1819). O produto do calor específico pelo peso atômico dos elementos na forma sólida é constante. Utilizada por Berzelius para corrigir a tabela de 1826. Objeção de Dumas (1826) à hipótese poliatômica de Avogadro. Experimentamente, a densidade do vapor de mercúrio é 100 vezes maior do que a do gás hidrogênio. Logo o peso atômico do mercúrio pelo método da densidade de Avogadro seria a metade do valor obtido pelo método de Dulong e Petit, em torno de 200. A hipótese de Avogadro só foi reconhecida como contribuição importante para a teoria atômica décadas mais tarde quando Cannizzaro (1858) a instituiu como fundamento da teoria molecular em seu curso de química. Resolve o problema levantado por Dumas ao reafirmar que a molécula do hidrogênio é diatômica e a do vapor de mercúrio é monoatômica, como já interpretado por Gaudin em 1833. Cannizzaro recorre ainda à teoria cinética de Clausius como suporte para a hipótese de Avogadro. – p. 39 Lei de Dulong e Petit (1819) substância calor esp. peso at. produto Bismuto 0,0288 212,8 6,128 Chumbo 0,0293 207,2 6,070 Ouro 0,0298 198,9 5,926 Platina 0,0314 178,6 5,984 Estanho 0,0514 117,6 6,046 Prata 0,0557 108,0 6,014 Zinco 0,0927 64,5 5,978 Telúrio 0,0912 64,5 5,880 Cobre 0,0949 63,31 6,008 Níquel 0,1035 59,0 6,110 Ferro 0,1100 54,27 5,970 Cobalto 0,1498 39,4 5,896 Enxofre 0,1880 32,18 6,048 – p. 40 Moléculas de Gaudin (1833) Cl2 HCl H2 O2 H2 N2 NH3 H2O H2O HCl H2 H2 H2 H2 NH3 – p. 41 O problema da ligação covalente O caráter poliatômico dos gases de substâncias simples, exigido pela hipótese de Avogadro, conciliou as leis ponderais provenientes da teoria de Dalton e a lei volumétrica de Gay-Lussac. Exemplo: a) 1 g de hidrogênio + 8 g de oxigênio → 9 g de água; b) 2 ` de hidrogênio + 1 ` de oxigênio → 2 ` vapor d´água. 1) Primeira hipótese: H (1 g) + O (8 g) → HO (9 g), H = 1, O = 8 consistente com Dalton mas não com Gay-Lussac. 2) Segunda hipótese: 2H2 (4 g) + O2 (32 g) → 2H2 O (36 g), H = 1, O = 16 consistente com Dalton e com Gay-Lussac. Problema 1: a ligação de dois átomos formando uma molécula diatômica não tinha justificação dentro das teorias da época. Na verdade, a ligação, denominada posteriormente de ligação covalente, só pode ser justificada posteriormente pela mecânica quântica. – p. 42 Teoria cinética e mecânica estatística – p. 43 Equação dos gases A relação entre a pressão p e o volume V dos gases foi estabelecida e verificada experimentalmente por Boyle, Mariotte, Amontons, Charles, Gay-Lussac e Dalton. Carnot (1824), Clapeyron (1834) e Clausius (1851) a escrevem na forma pV = A(a + t) onde t é a temperatura na escala Celsius. Carnot e Clapeyron adotam o valor a = 267, obtido experimentalmente por Gay-Lussac (1802) e Clausius, o valor a = 273, obtido experimentalmente por Regnault (1842). Os trabalhos de Kelvin (1850) mostram que (a + t) se identifica com a temperatura absoluta T . A constante A deve ser proporcional à massa de gás de modo que pV = M rT onde r é um parâmetro que depende apenas das características do gás. – p. 44 Teoria cinética dos gases Daniel Bernoulli (1738). Primeira teoria cinética. Partículas dotadas de movimento translacional. A pressão exercida por um gás é devida ao impacto das partículas sobre as paredes do recipiente. Mostra que a pressão é inversamente proporcional ao volume. Herapath (1821) postula que os corpos sólidos e fluidos são constituídos por átomos massivos e perfeitamente elásticos. Deduz a fórmula (4) 1 1 2 pV = N mv = M v 2 3 3 onde N é o número de moléculas, m é a massa e v é a velocidade delas. Waterston (1845) sugere que a temperatura é proporcional à energia cinética. Primeiro enunciado da equipartição: numa mistura de gases, a velocidade qudrática média molecular é inversamente proporcional ao peso específico da molécula. – p. 45 Modelo de Kronig L A v ∆p = 2mv F mv 2 mv 2 = = A AL V m 2L ∆p 2mv 2 ∆t = F = = v ∆t 2L 1 N mv 2 pV = N mv 2 p= 3 V 3 O produto da pressão pelo volume de um gás de moléculas não interagentes é igual a 2/3 da energia cinética de translação. – p. 46 Hipótese de Avogadro e equipartição da energia A partir da equação dos gases ideais e levando em conta que M = N m, onde N é o número de moléculas de massa m, pV = N mrT → T V = mr N p Mas, de acordo com a hipótese de Avogadro, V /N só depende da pressão e da temperatura e não das caracteristicas do gás. Logo mr = k deve ser uma constante universal. Assim pV = N kT para todos os gases a baixas densidades. Conclui-se pois que 1 3 mv 2 = kT 2 2 que é uma expressão da equipartição da energia. – p. 47 Teoria cinética dos gases Artigo de Krönig (1856) considerado o primeiro trabalho sobre a teoria cinética. Supõe que as moléculas de um gás se movem em linha reta com velocidade constante e paralela às paredes e deduz (4). Clausius (1857), artigo fundamental sobre a teoria cinética. Deduz (4) sem a restrição de Krönig sobre impacto perpendicular. Admite que as moléculas podem ter outros tipos de movimento além do movimento de translação, como o movimento de rotação e vibração. Mostra que a pressão não é afetada por esses novos tipos de movimento. Clausius propões que as moléculas são constituídas por vários átomos. Aparentemente, parece não ter conhecimento de que essa idéia já havia sido proposta pelos químicos, inclusive para gases simples. Entretanto, foi o primeiro a propor a idéia no âmbito da teoria cinética. Com base em (4) conclui que volume iguais de gases, sujeitos à mesma pressão e temperatura contém o mesmo número de átomos (sic) e a mesma energia cinética de translação. – p. 48 Teoria cinética dos gases Maxwell (1860) introduz a distribuição das velocidades das moléculas de um gás 4 2 −v 2 /α2 √ v e dv 3 α π Deduz (4) mas com v 2 interpretado como a velocidade quadrática média. ¨When two sets of particles communicate agitation to one another, the value of M v 2 is the same in each. From this it appears that N , the number of particles in unit volume, is the same for all gases at the same pressure and temperature. This result agrees with the chemical law, that equal volumes of gases are chemically equivalent¨, James C. Maxwell, ¨Illustration of the dynamical theory of gases¨, Phil. Mag. 19, 19 (1860). A primeira parte é o teorema da equipartição para o movimento de translação. O segundo resultado é a hipótese de Avogadro, embora Maxwell não o chame por esse nome mas por lei química. – p. 49 Teoria cinética dos gases Maxwell demonstra ainda que a equipartição é válida também para o movimento de rotação. A partir da equipartição entre os três graus de liberdade de rotação e três de translação conclui que a razão entre os calores específicos vale 4/3 enquanto os dados experimentais fornecem o valor 7/5. Inconsistência resolvida posteriormente por Boltzmann em 1876 e Bosanquet em 1877 que propuseram, independentemente, um modelo de moléculas diatômicas. Problema 2: Maxwell não aceita a supressão de um dos graus de liberdade supostamente implícita na molécula diatômica. Argumenta ainda que uma molécula diatômica deve possuir ainda os modos de vibração que contribuiria para o calor específico. Esse problema se resolverá com a quantização dos graus de rotação e de vibração. Problema 3: Os calores específicos dos sólidos a baixas temperaturas se desviam consideravelmente da lei de Dulong-Petit e se anulam no zero absoluto. A solução desse problema se encontra na quantização dos modos de vibração (Einstein e Debye). – p. 50 Calor específico de gases 5 4 cp /R 3 2 nitrogenio hidrogenio argonio 1 0 0 200 p = 1 atm 400 600 T (K) – p. 51 Calor específico de sólidos 1.2 1 cp /3R 0.8 chumbo prata cobre aluminio diamante 0.6 0.4 0.2 0 0 100 200 300 400 T (K) – p. 52 Mecânica estatística Determinação da energia de um oscilador harmônico. Cálculo clássico: R He−H/kT dxdp = kT E = R −H/kT e dxdp p2 mω 2 2 H= + x 2m 2 Cálculo quântico: P∞ −nε ne ε n=0 E = P∞ −nε = ε/kT e −1 n=0 e ε = hν = ~ω – p. 53 Conclusão – p. 54 Teoria de Rayleigh De acordo com Rayleigh (1900), a fórmula de Wien para a densidade espectral de energia ρ era apenas uma conjectura. Entretanto, a fórmula de Wien dava uma descrição adequada dos dados experimentais disponíveis à epoca e por isso chamou a atenção de Planck. Em 1900, Rayleigh mostrou que seria possível obter uma fórmula para ρ a partir do teorema da equipartição da energia. Concluiu que ρ ∝ ν 2 T . Posteriormente, em 1905, escreve a fórmula para ρ com todas as constantes 8πν 2 ρ = 3 kT c onde kT é a energia de um oscilador de acordo com a equipartição da energia. Essa fórmula conhecida como lei de Rayleigh-Jeans é aquela que Planck teria obtido se tivesse tomado o limite ε → 0, ou ainda, se tivesse usado o teorema da equiparticao da energia. Entretanto, Planck aparentemente não tinha conhecimento desse importante teorema quando apresentou sua fórmula em 1900. – p. 55 Quantização A aceitação da teoria de Planck só ocorreu alguns anos depois de 1900. Klein argumenta que isso se deve em parte aos ataques à teoria atômica feitos entre outros por Ostwald, Mach e Duhem. Além disso, Rayleigh e Jeans mostraram a inconsitência da fórmula de Planck com a equipartição da energia. Por outro lado, Einstein, em 1905, mostrou que a lei de Rayleigh-Jeans não descrevia os dados experimentais e era internamente inconsistente pois implicava uma energia infinita para grandes frequências (denominada posteriormente por Ehrenfest de catástrofe do ultravioleta). É importante notar que, a partir a lei de Rayleigh-Jeans, podemos obter o valor da constante de Boltzmann, e portanto da constante de Avogadro, mas não o valor da constante h. Einstein avançou ainda mais a teoria de Planck ao analisar o efeito fotoelétrico e mostrar que não apenas a energia dos osciladores é quantizada, como fez Planck, mas que a própria radiacao é quantizada. – p. 56 A lógica da descoberta e a lógica da justificativa É importante notar que Planck não foi motivado por uma suposta crise da física clássica, denominada catástrofe do ultravioleta, como é afirmado em alguns livros-textos de física moderna. A motivação de Planck foi encontrar uma fórmula que descrevesse os dados experimentais para o espectro de radiação de corpo negro e sua dedução a partir da teoria estatística. A inconsistência com a equipartição da energia e portanto com a física clássica é um fato revelado posteriormente. Devemos lembrar ainda que, mesmo detectando-se uma inconsistência, nem sempre é possivel afirmar claramente em que nível de descrição encontra-se a inconsistência: se ela está num nível mais profundo (das grandes teorias) ou num nível mais raso (dos modelos que sempre utilizamos para descrever um fenômeno). De acordo com Brush "a ’crise’ da catástrofe do ultravioleta foi inventada depois que a teoria quântica tinha sido proposta para mostrar que a mecânica newtoniana era incorreta". – p. 57 Bibliografia [1] Max Planck, The Theory of Heat Radiation, Dover, New York, 1959; republication of the Masius translation of the second edition of Waermestrahlung as orginally published by Blakiston, 1914. [2] Martin J. Klein, "Max Planck and the beginnings of the quantum theory", Archive for History of Exact Sciences 1, 459-479 (1962). [3] Hans Kangro, Planck’s Original Papers in Quantum Physics, Taylor and Francis, London, 1972. [4] Thomas S. Kuhn, Black-Body Theory and the Quantum Discontinuity, 1894-1912, Clarendon Press, Oxford, 1978. [5] Stephen G. Brush, Statistical Physics and Atomic Theory of Matter, Princeton University Press, Princeton, NJ, 1983. [6] Henrique Fleming, "Max Planck e a idéia do quantum", in 100 Anos de Física Quântica, organizado por M. S. Hussein e S. R. A. Salinas, Editora Livraria da Física, São Paulo, 2001, p. 1. – p. 58 Fim Mário José de Oliveira, Termodinâmica, Editora Livraria da Física, São Paulo, 2005. – p. 59