IGREJA LUTERANA Revista Semestral de Teologia 1 IGREJA LUTERANA SEMINÁRIO CONCÓRDIA Diretor Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden, Leopoldo Heimann, Norberto Heine (CAAPP), Paulo Gerhard Pietzsch, Paulo Proske Weirich, Paulo Wille Buss, Raul Blum, Vilson Scholz Professores Eméritos Donaldo Schüler, Paulo F. Flor IGREJA LUTERANA ISSN 0103-779X Revista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. Conselho Editorial Paulo Wille Buss (Editor), Paulo Proske Weirich (Editor Homilético) Assistência Administrativa Nara Coelho A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografia Bíblica Latino-Americana e Old Testament Abstracts. Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelope com endereço e selado. Solicita-se permuta We request exchange Wir erbitten Austausch CORRESPONDÊNCIA Revista Igreja Luterana Seminário Concórdia Caixa Postal 202 93001-970 – São Leopoldo/RS Telefone: (0xx)51 3592 9035 e-mail: [email protected] www.seminarioconcordia.com.br 2 ÍNDICE FÓRUM RELATÓRIO DO 11º CONGRESSO INTERNACIONAL DE PESQUISA DE LUTERO 05 Clóvis Jair Prunzel A IGREJA E O PASTOR À LUZ DO PRIMEIRO USO DA LEI 07 Vilson Scholz ARTIGOS LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO 15 Anselmo Ernesto Graff ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ 35 Vilson Scholz ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ 55 Anselmo Ernesto Graff PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA COMBATER O PECADO 87 Trad. Anselmo Ernesto Graff PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA O SERVIÇO CRISTÃO 93 Trad. Anselmo Ernesto Graff IGREJA LUTERANA Volume 66 – Junho e Novembro de 2007 – Números 1 e 2 3 IGREJA LUTERANA DEVOCIONAIS DEUS NOS GUARDA EM TODOS OS NOSSOS CAMINHOS 101 Gerson L. Linden MOMENTO PERFEITO 105 Paulo Proske Weirich VER OU OUVIR? 109 Anselmo Ernesto Graff JESUS, O CENTRO 115 Acir Raymann OS HUMILDES SÃO ENGRANDECIDOS 117 Vilson Scholz QUANTO CUSTA SER DISCÍPULO DE JESUS? 121 Acir Raymann DÍVIDAS 125 Paulo Wille Buss SANTIFICA-OS COM A TUA PALAVRA DA VERDADE 131 Vilson Scholz MANTENDO O FOCO 135 Paulo Proske Weirich HORA DE ACORDAR 139 Raul Blum QUE HORA É ESSA? EM QUE TEMPO ESTAMOS VIVENDO? 143 Vilson Scholz EXPECTATIVA E SURPRESA Paulo Wille Buss 4 147 FÓRUM RELATÓRIO DO 11º CONGRESSO INTERNACIONAL DE PESQUISA DE LUTERO Clóvis Jair Prunzel1 Durante os dias 22 a 27 de julho de 2007, na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, realizou-se o 11º Congresso Internacional de Pesquisa de Lutero. Pela primeira vez ao longo de sua história, o Congresso foi sediado em um país do hemisfério Sul. Com base no tema A ética de Lutero: vida cristã na igreja, família, economia e política, o Congresso esteve organizado em três grandes momentos: palestras, seminários e pequenas apresentações. As palestras principais apresentaram o tema aos congressistas. A missão de Lutero no Brasil de hoje foi a palestra de abertura apresentada pelo Dr. Gottfried Brakemeier (EST-SL). Dr. Antti Raunio dirigiu a palestra Fé e vida cristã na Confissão de Lutero de 1828. A terceira palestra teve o tema O uso por parte de Lutero da tradição legal de seu tempo. Dr. Ricardo Rieth apresentou o tema A resposta de Lutero às mudanças sociais e econômicas de seu tempo. Dr. Jane Strohl conduziu a reflexão Uma nova apreciação de Lutero a respeito da sexualidade, casamento e família. Dr. Carl Aurelius palestrou sobre Deus iustificans homo peccator: culto como impulsionador para a vida cristã. As palestras foram encerradas com uma videoconferência conduzida pelo Dr. Robert Kolb diretamente de Saint Louis, EUA, sob o tema Modelos para a vida cristã nas exegeses e sermões de Lutero. Dos 14 seminários organizados, destacaram-se: A exposição de Lutero a respeito do Sermão do Monte, Catecismos e catequistas, Lutero sobre o trabalho e a vocação, Sexualidade e casamento na teologia de Lutero, Recepção de Lutero em países do Terceiro Mundo, etc. As pequenas apresentações oportunizaram pesquisadores e estudiosos a compartilhar suas pesquisas. Foram diversas apresentações. A convivência com mais de 150 pesquisadores e especialistas em Lutero é, sem dúvida, ímpar. Para nós, Seminário Concórdia e IELB, conhecer pessoalmente pessoas que até pouco tempo atrás eram conhecidas somente pela sua produção bibliográfica é um grande privilégio. Também, receber este grupo de pessoas privilegiadas em sua pró1 O Rev. Prof. Clóvis Jair Prunzel é Professor de Teologia Sistemática no Seminário Concórdia e na ULBRA. 5 IGREJA LUTERANA pria casa é um belo estímulo para continuar a pesquisa em Lutero (o Seminário Concórdia recepcionou os congressistas no dia 24 de julho). Pelo Seminário Concórdia, participaram os professores Paulo W. Buss, Paulo Weirich e Clóvis Prunzel, além de três professores que atuaram na organização do congresso: Gerson Linden, Leopoldo Heimann e Paulo Pietzsch. O próximo congresso está agendado para 2012 em Helsinki, na Finlândia. No endereço http://www.ulbra.br/luthercongress/ tem-se mais informações sobre o Congresso. 6 A IGREJA E O PASTOR À LUZ DO PRIMEIRO USO DA LEI1 Vilson Scholz2 Lembro muito bem que, em aula, o saudoso Dr. Otto A. Goerl certa vez comentou a respeito de um diálogo que tivera com um teólogo norte-americano a respeito do primeiro uso da lei. Ambos teriam chegado à conclusão de que tinham dificuldade de “pregar” o primeiro uso da lei. O primeiro uso da lei é comumente apresentado através da metáfora do freio.3 Essa noção de “freio” parece dar à lei uma função meramente negativa: impedir que o mundo e a nossa vida assumam um caráter caótico ou desordenado. (Seria como um freio que impede que a viatura se estatele contra a parede ou caia no despenhadeiro; seria como um meio-fio que mantém os automóveis afastados da calçada, etc.) Mas a lei em seu primeiro uso tem, com certeza e antes de mais nada, pelo menos à luz da ética, uma função positiva. O mundo em que vivemos foi criado e, ao ser criado, foi ordenado. Como diz Isaías (45.18), Deus não criou a terra para ser um caos.4 Dizemos que Deus colocou em sua criação um princípio de ordem, uma lei. Esta é a lei em seu primeiro uso. Não sei se podemos “pregar” o primeiro uso da lei.5 Mas, com certeza, podemos e precisamos ensiná-lo. Podemos e devemos tirar as conseqüências do fato de que o primeiro uso da lei existe, mesmo que por vezes não seja lembrado. Especialmente em épocas mais instáveis, faz bem refletir sobre este uso da lei. Talvez tenha havido um tempo em que as coisas eram mais estáveis, estavam mais ordenadas, e a gente podia funcionar como que “no automático”. Hoje, no entanto, as forças caóticas parecem mais em evidência, o que torna mais premente uma recuperação do primeiro uso da lei. No que segue, quero fazer uma reflexão dividida em dois tópicos ou momentos: a igreja e o primeiro uso da lei; o pastor e o primeiro uso da lei. Estas reflexões foram inspiradas por James Bachman, professor de Ética da Concordia University de Irvine, Califórnia, uma escola do Sínodo de Missouri. 2 O Rev. Prof. Dr. Vilson Scholz é Professor de Teologia Exegética (Novo Testamento) no Seminário Concórdia e na ULBRA e Consultor de Traduções da Sociedade Bíblica do Brasil. 3 A lei, em seu primeiro uso, é freio; no segundo uso, espelho; e, no terceiro uso, norma. 4 No hebraico, é usada a palavra tohu, a mesma que ocorre em Gn 1.2 (“sem forma”). 5 A rigor, não temos controle absoluto sobre os diferentes usos da lei. A lei que se pretende como de terceiro uso, facilmente se torna em espelho ou lei que acusa (segundo uso). 1 7 IGREJA LUTERANA IGREJA Por igreja quero entender, neste caso, a igreja local (congregação, paróquia). Claro, quando se vê a igreja à luz do primeiro uso da lei, não se está falando dela como “os santos crentes e ‘os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor’” (Artigos de Esmalcalde, 12). Trata-se da igreja em sua configuração histórica, como organização inserida neste mundo. À luz do esquema dos dois reinos, a igreja entra tanto no reino da mão direita de Deus (evangelho) quanto no reino da mão esquerda (lei). Aqui, interessa mais a perspectiva do reino da mão esquerda. A igreja, vista sob a ótica do primeiro uso da lei, é uma organização como muitas outras deste mundo. Ela se organiza a exemplo de outros grupos sociais, estabelece horários de culto, faz registros, paga salários, cumpre as leis, etc. Ela precisa – e tem – um conjunto de suportes culturais que propiciam o contexto no qual se pode pregar o evangelho. Dito de outra forma, Deus mantém o ‘microcosmo’ da comunidade cristã com a sua mão esquerda (lei) para poder, nele, fazer a sua obra própria que é proclamar o seu evangelho. Num contexto de igreja transplantada da Europa para a América, esses suportes culturais incluíam – e em grande parte ainda incluem – elementos como os clássicos corais luteranos, ênfase na educação dos filhos (tanto assim que, em muitos casos, a escola era quase mais importante do que a igreja), manutenção de um cemitério, confirmação como rito de passagem da puberdade (e muitos são os conflitos em torno deste assunto, com gente saindo da igreja porque o filho ainda não foi confirmado), uso da língua alemã, realização de festas comunitárias, etc. Numa situação dessas, o que muitas vezes se imaginava (e ainda se considera) como resultado direto da pregação do evangelho era e é, na verdade, fruto daquilo que se pode chamar de “a mão oculta da solidariedade étnica e social”, ou, então “a presença das mãos invisíveis dos patriarcas da comunidade”. Ou, se preferir, a presença da lei em seu primeiro uso. Outra maneira de dizer isso – talvez de maneira um pouco mais chocante – é afirmar que não é automático que a pregação correta do evangelho resultará inevitavelmente na formação de uma comunidade humana viável que consiga dar conta de todos os seus compromissos (como pagar todas as contas e salários).6 O Novo Testamento não permite que se faça tal afirmação precipitada. Também naquele tempo havia “mãos invisíveis” que mantinham as comuDo contrário, todas as organizações heréticas teriam que ser, por definição, caóticas, o que não é o caso. 6 8 A IGREJA E O PASTOR À LUZ DO PRIMEIRO USO DA LEI nidades coesas. Os apóstolos começaram a pregar em comunidades que já tinham uma estrutura, a saber, a sinagoga judaica e a casa romana. Por vezes, essas comunidades podiam pagar as despesas do pregador. Em outros casos, Paulo tinha de fazer tendas (At 18.3; 20.34; 1 Ts 2.9). Algumas delas, como a de Filipos, estavam plenamente engajadas no projeto missionário do apóstolo. Outras, como a igrejas de Corinto, tiveram que ser sacudidas com argumentos de todo tipo, inclusive alguns que temos que descrever como “motivações derivadas do primeiro uso da lei”. É o que se percebe, por exemplo, no início de 2 Coríntios 9, onde aparece um argumento que nos parece pouco teológico (“mexam-se, para que eu e vocês não fiquemos desmoralizados na presença de outros!”). Cada igreja tem uma configuração social e cultural própria que inclui uma vida comunitária com a qual as pessoas se comprometem em maior ou menor escala. Também se pode afirmar que cada igreja ou comunidade tem a sua própria cultura, que não é necessariamente a cultura da igreja vizinha. Deus embutiu uma grande diversidade em sua criação, e isto se aplica também à organização social. As pessoas se organizam em configurações sociais e culturais diferentes, algo que pode, também, ser verificado nas igrejas (vistas sob a ótica do primeiro uso da lei). Podemos dizer que cada igreja e, por conseguinte, cada denominação tem o seu etos, seu jeito próprio de ser. O corpo de Cristo (que é a igreja sob o ponto de vista do evangelho) necessariamente será achado no meio de determinada estrutura social humana. Sempre vai haver alguma estrutura, do lado de cá da eternidade ou na realidade da igreja militante. Sempre vai haver uma cultura. Sempre vai haver uma liturgia. Mas nenhuma estrutura em particular é essencial à vida do corpo de Cristo. Não se pode fazer confusão entre cultura e evangelho, que é uma forma de confusão entre lei e evangelho. A cultura não é evangelho, por mais que, às vezes, ela seja fundamental para que se possa pregar o evangelho.7 Será que existem contextos em que a manutenção da cultura (primeiro uso da lei) pode vir em detrimento da pregação do evangelho? Claro que sim. Neste caso, essas práticas culturais precisam ser criticadas e revisadas à luz do evangelho. (Um exemplo que vem à mente são as festas com seus exageros.) Mas existe também o outro lado, a saber, a lei (em seu primeiro uso) se colocando a serviço do evangelho. Numa comunidade social bem ajustada, os crentes tendem a ter O evangelho não depende, por exemplo, da língua alemã, nem de qualquer outra língua. Em outras palavras, não é necessário aprender alemão para ser luterano (apesar das histórias de que determinados pregadores já tenham feito tal exigência!). Por outro lado, há momentos e situações em que o evangelho só será compreendido se for proclamado em língua alemã, em hunsrik, em pomerano, em kaingang, em iny-karajá, etc. 7 9 IGREJA LUTERANA razões de natureza legal para participarem regularmente na congregação, razões que suplementam a resposta espontânea da nova pessoa em Cristo. Alguns exemplos ajudam a esclarecer isso. Em congregações de caráter mais familiar (uma mesma família ampliada perfazendo uma igreja), o “estímulo” talvez seja (ou era) a cobrança dos mais velhos: Onde você esteve ontem, na hora do culto? Em congregações menores com boa freqüência, ou seja, grupos pequenos em que raramente alguém falta, haverá, talvez, o estímulo a não faltar para não ter que explicar o motivo da ausência na semana seguinte. Nos velhos tempos do Seminário Concórdia, cada aluno tinha seu lugar “marcado” nos bancos da capela. Neste caso, esperava-se uma resposta espontânea do novo homem ou tratava-se de um estímulo ligado ao primeiro uso da lei?8 Há pessoas que vão, talvez, a uma reunião na igreja mais por causa do apreço pelos amigos, por causa do chá e dos salgadinhos do que propriamente por amor à palavra de Deus. A pessoa talvez vá à igreja por motivações de primeiro uso da lei (está marcado um almoço; sou tesoureiro e preciso fazer o registro das ofertas, etc.), mas, em estando lá, tem a oportunidade de ouvir o evangelho. Podemos dizer que essas são formas de levar o velho homem à igreja, onde será afogado nas ‘águas’ do arrependimento. E o velho homem é motivado por incentivos que são típicos do primeiro uso da lei. Nem mesmo os pastores estão isentos disso.9 Ou será que nós, pastores, vamos ao culto e oficiamos os cultos motivados apenas pela graça de Deus? Não seria também porque estamos recebendo um salário, porque nosso trabalho está sendo avaliado tanto formal quanto informalmente pela congregação, etc.? Em outras palavras, é bem provável que as motivações presentes na vida de santos que continuam pecadores são uma mistura de resposta de velho homem suscitada pela lei com vida de novo homem em Cristo. Falamos, no início, das forças desagregadoras presentes no mundo de hoje. Num contexto desses, um dos desafios da igreja é ser um grupo social relativamente coeso. Outro desafio, relacionado com este, é fortalecer a família.10 A igreja não depende da existência de famílias fortes (pois ela poderia existir como um grupo de três, quinze, 8 Convém notar que uma coisa não invalida a outra e que nossas motivações raramente são puras. 9 Bachman observa que, em tom de brincadeira, costuma dizer que muitas pessoas escolhem a “carreira” eclesiástica ou se tornam obreiros como única forma de serem pagos para irem ao culto! 10 A rigor, a família é uma ordem do reino da mão esquerda de Deus, não sendo reconhecida no reino da mão direita. A única “família na igreja” que o NT conhece é “a igreja como família”, ou seja, a igreja apresentada sob a metáfora da família de Deus. No NT, nunca se faz um apelo a uma “família cristã” (por mais importante que a família tivesse sido no contexto romano, por exemplo), mas somente a várias classes: pais, filhos, servos, etc. 10 A IGREJA E O PASTOR À LUZ DO PRIMEIRO USO DA LEI ou trezentas pessoas solteiras), mas a presença de famílias fortes com certeza resultará numa congregação mais sólida e estável. Por isso, não está fora da alçada da igreja investir no fortalecimento dessas estruturas. Isto é, com certeza, um grande desafio. Mas não somos a primeira nem a única geração a se defrontar com esses desafios. O livro de Atos, as cartas aos Coríntios e as cartas a Timóteo e Tito nos dão vislumbres da dificuldade pela qual passou a igreja dos inícios nessa questão da dinâmica social ligada ao reino da mão esquerda. Em muitos momentos, não foi nada fácil organizar a igreja sob o ponto de vista da dinâmica social ligada ao reino da mão esquerda de Deus (lei). Pensando agora em termos de igreja num sentido mais amplo, como sínodo, outra reflexão se faz necessária, à luz da realidade de fragmentação que caracteriza nosso tempo. Se é verdade que determinada organização ou cultura não é essencial ao corpo de Cristo, também é verdade que essa organização e esses elementos culturais em comum podem ser fator importante que facilite a obra própria da igreja. A unidade da igreja não depende da unidade de cerimônias uniformes instituídas pelos homens (Artigo 7 da Confissão de Augsburgo), mas, num mundo em fragmentação, certa unidade cultural e ritual pode ser um fator positivo e algo desejável. Houve um tempo em que toda a igreja, de norte a sul, cantava os mesmos hinos do mesmo hinário. No falar e cantar da liturgia mudava apenas o sotaque. Hoje a tendência é centrífuga. E, neste momento, a questão nem chega a ser se determinada música tem letra ortodoxa ou bíblica. Trata-se simplesmente de refletir em torno dos ritos e estilos musicais que imperam. Porque, do ponto de vista humano (lei), música e ritos são fortes expressões culturais e meios de formar e moldar comunidades de pessoas. São cultura, não evangelho. Agora, uma diversidade que beira o caos dificilmente conseguirá formar uma comunidade sólida. O abandono de uma norma litúrgica e o esquecimento do hinário oficial resulta num estranhamento, num levar as pessoas que viajam a perguntar, como de fato acontece: “Não existe aqui nenhuma igreja luterana”? (E essa pergunta foi feita por uma pessoa que tivera a oportunidade de participar do culto em várias igrejas luteranas daquela região...). Quem quiser uma maior uniformidade visível (que não é essencial, mas que pode ser importante), não poderá acomodar todas as opções que se oferecem. Do contrário, o grupo (leia-se, a igreja) perde o seu caráter distintivo. E uma estrutura humana sólida propiciará os contextos necessários nos quais o evangelho pode ser pregado e as pessoas podem ser trazidas para dentro do corpo de Cristo. 11 IGREJA LUTERANA PASTORES Os artigos 5 e 14 da Confissão de Augsburgo mostram o que é central e essencial no chamado do pastor. Os pastores são, em geral, atraídos a este ofício por causa dessas tarefas essenciais: pregar o evangelho e administrar os sacramentos.11 Mas existem também tarefas que podem ser descritas como “necessárias”, coisas que, embora não essencialmente pastorais, também precisam, em muitos casos, serem feitas pelo pastor. São tarefas que dizem respeito ao reino da mão esquerda, tarefas ligadas à formação e administração da vida comunitária da igreja. O essencial é pregar o evangelho e administrar os sacramentos; o necessário é organizar pecadores, que são também santos em Cristo, de tal forma que surjam contextos estáveis em que se possa pregar o evangelho e administrar os sacramentos. Pode-se dizer que, em muitos casos, o pastor, além do ofício das chaves, precisa dar conta também das chaves da igreja ou do salão comunitário. Por mais que não gostem da idéia, no mundo de hoje, marcado pela instabilidade social e cultural, pastores estão sendo cada vez mais forçados a ir além do serviço essencial do ministério de palavra e sacramentos. Em alguns casos, precisam atuar de forma decisiva em áreas que, no passado e, em alguns contextos culturais, ainda no presente, estavam entregues às “mãos invisíveis dos mais velhos” ou à “mão oculta da coesão cultural”. Um exemplo bem concreto disso é a igreja que coloca como prioridade número um do perfil do novo pastor a competência musical (sem perguntar jamais – talvez por tomar por óbvio – se o novo pastor prega bem, é evangélico, tem amor pelas pessoas, etc.). Outro exemplo é a igreja que busca um pastor dinâmico que saiba organizar os diferentes departamentos que funcionam em seu meio. Estas são tarefas necessárias, que vão além das tarefas essenciais. Em outras épocas, talvez as igrejas podiam depender bem mais das “mãos invisíveis” que mantinham o funcionamento da comunidade. Hoje, elas notam que dependem cada vez mais dos pastores para prover essa liderança do reino da mão esquerda, que é necessária para manter a comunidade humana em funcionamento. As igrejas não estão, na verdade, chamando apenas um pastor; têm, também, a esperança de estarem contratando um líder que lhes possa ajudar a construir uma vida congregacional sólida (sem mencionar a questão do músico). Isso explica o crescente costume de entrevistar os candidatos ao pastorado (bem como a esposa) em determinada localidade. As congregações não querem interferir na escolha de um verdadeiro 11 Raramente alguém vem ao Seminário porque já é um bom músico. 12 A IGREJA E O PASTOR À LUZ DO PRIMEIRO USO DA LEI pastor (isto é algo que, com certeza, entendem ser da alçada de Deus), mas sentem que precisam examinar e discernir os dons que o candidato tem para a liderança que pertence ao reino da mão esquerda. Isso que a igreja espera de seu pastor faz parte ou é a cultura daquela igreja. Todo bom líder precisa conhecer bem a cultura do grupo que lidera. Respeitá-la e estar à altura dela é, muitas vezes, de importância fundamental. E que acontece quando o candidato não tem essas habilidades típicas do reino da mão esquerda? Que fazer quando não se está à altura dessas coisas relacionadas com o primeiro uso da lei, como a organização das atividades, a dinamização de um grupo, estabelecimento de pequenos grupos, etc.? Em geral, se espera que o Seminário propicie o treinamento nessas habilidades. A música, que é uma área muito sensível, está sendo muito bem atendida, especialmente para quem tem o dom e/ou força de vontade. Mas há outras áreas que não podem ser cobertas. Reconhecemos que a formação no Seminário não prepara integralmente os líderes da igreja para as tarefas “necessárias” no mundo de hoje. Em grande parte, confiamos em dons naturais e esperamos um bocado (bem como incentivamos) a formação complementar e a educação continuada. Não se pode ensinar tudo no Seminário. Dá-se uma ênfase maior naquilo que não se pode aprender fora do Seminário e naquilo que faz parte da tarefa “essencial” do futuro pastor. Ao mesmo tempo, pastores não podem mais viver com a velha noção romântica de que basta ser um pastor fiel (no sentido da essência do chamado pastoral) para que se forme uma igreja que seja pujante e que cresça. Se ruir a estrutura comunitária mantida por aquilo que designamos de “primeiro uso da lei” ou “coisas necessárias”, não haverá mais como fazer a obra própria ou a coisa essencial. Diante disso, é importante reconhecer que hoje, especialmente num contexto urbano, as tarefas necessárias para edificar uma comunidade humana precisam ser levadas a sério. E isso precisa acontecer de forma intencional e planejada. Da parte do pastor, talvez ele possa aprender algo de líderes empresariais, sociólogos, psicólogos, etc. Como denominação, uma estratégia poderia ser (e já está sendo) conscientemente desobrigar os pastores da liderança no que diz respeito às tarefas necessárias. Isto já acontece quando se trata, por exemplo, da organização de atividades de confraternização, mas poderia ser estendido a outras áreas. Seria uma “estratégia de Neemias”, isto é, colocar um leigo (Neemias) ao lado do pastor (Esdras).12 Outra estra12 Exemplo disso é a igreja que, constatando uma lacuna, contrata um músico ou ministro de música. Na grande maioria das vezes, essa iniciativa deve partir do próprio pastor que, mais do que ninguém, conhece suas carências. 13 IGREJA LUTERANA tégia é o caminho de Paulo (ministério de tendas), especialmente quando a igreja não tem a estrutura administrativa ou os fundos necessários (coisas do primeiro uso da lei) para pagar salários. CONCLUSÃO Esta reflexão poderia e, com certeza, deve ser levada adiante, sendo que a intenção do que acaba de ser apresentado é exatamente esta. O que parece claro, em todo caso, é que o primeiro uso da lei existe. Levá-lo a sério pode ser importante e fundamental – para a igreja e para o pastor. 14 ARTIGOS LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO1 Anselmo Ernesto Graff2 INTRODUÇÃO Estamos a 10 anos de completar 500 anos de Reforma Luterana. Herdamos e carregamos o pensamento teológico de Martinho Lutero e de outros reformadores. Buscamos neles conselhos e direção em questões de doutrina e vida. A legitimidade para esta prática está no fundamento angular da sua fé, nossa e de toda a Igreja Cristã: a justificação pela fé em Jesus Cristo. O título desse ensaio já diz muito, mas é preciso relacioná-lo com pelo menos duas questões que esse trabalho tem a intenção de abordar: Por que Lutero pode ser um conselheiro ou um inspirador à missão? Como esses seus conselhos foram e podem ser absorvidos? É importante notar que, embora o ponto de partida sejam as críticas feitas a Lutero como missionário e inevitavelmente isso aconteça, essa pesquisa não tem finalidade apologética, mas o alvo é permitir o reformador falar sobre o assunto, nós absorvermos seus ensinos e tentarmos estabelecer uma relação com o período da Ortodoxia Luterana, alvo também de críticas em relação à sua posição sobre missão. 1. O PONTO DE PARTIDA: CRÍTICAS A LUTERO COMO MISSIONÁRIO O católico romano Roberto Belarmino e o professor universitário de missões, Gustav Warneck, são os que não vêem Lutero como um conselheiro para a missão. Um critica os protestantes de forma geral por não terem sido missionários, o outro, a Lutero em particular. Roberto Belarmino (1542-1621) censurou os protestantes numa época de grande empenho de missionários da Igreja Católica Romana. 1 Aula inaugural proferida no Seminário Concórdia de São Leopoldo, RS, no dia 02 de março de 2007. 2 Professor de Teologia Prática no Seminário Concórdia e ULBRA. 15 IGREJA LUTERANA A criação da Ordem dos Jesuítas, fundada em 1534 por Inácio de Loyola e confirmada por Bula Papal em 1540, tinha como princípio básico a conversão dos “hereges” e dos pagãos à fé católica. Na observação do estudioso de missões Stephen Neill, “os jesuítas iriam deixar os seus ossos em quase todos os recantos do mundo conhecido a nas praias de quase todos os mares” (NEILL, 1989, p.151). No final do século XVI, Belarmino incluiu a atividade missionária nos 18 pontos, ou talvez diríamos, marcas da Igreja verdadeira e criticou os protestantes pela falta dela na Igreja Protestante.3 “Os heréticos nunca converteram pagãos ou judeus à fé, mas apenas perverteram cristãos. Neste mesmo século os católicos converteram muitos milhares de pagãos no novo mundo. Todos os anos, um certo número de judeus são convertidos e batizados em Roma por católicos que aderem em lealdade ao bispo de Roma. E há também alguns turcos que são convertidos por católicos, tanto em Roma como em outros lugares. Os luteranos comparam-se a si mesmos como os apóstolos e os evangelistas. Contudo, embora entre eles existam muitos judeus e na Polônia e na Hungria tenham os turcos por vizinhos, pouco mais converteram que uma mão cheia deles” (BELARMINO apud NEILL, 1989, pp.226-227). Gustav Warneck, professor universitário de missiologia em Halle, viveu no século XIX, num contexto de formação de agências missionárias e envio de evangelistas para outros países. Ele difundiu a idéia de que a Reforma não foi proveitosa em termos missionários e que no próprio Lutero faltou, não só a ação missionária, mas a idéia de missões (ELERT, 1962, p. 385). São justas essas críticas? Como se lida com elas? A tendência natural parece ser muitas vezes a racionalização e a tentativa de explicar essas alegadas deficiências. Não houve envolvimento missionário porque havia outras tarefas internas; falta de oportunidade para missões no exterior ou simplesmente a crença de que o fim do mundo estava tão próximo que tornaria qualquer esforço inútil (SHERER, 1994, p.17). Além disso, havia a situação da igreja ser governada por autoridades do Estado (ELERT, 1962, p. 385); Lutero havia sido absorvido por dificuldades em estabelecer os princípios da Reforma na própria Alemanha, a preocupação missionária inicial era com os judeus e os turcos e a teologia do reformador ainda não havia sido estabelecida para motivar e prover os princípios para uma empreitada missionária (JI, 1996, p.149). 3 O teólogo luterano Johan Gerhard argumentou na época que a marca necessária da fé verdadeira é a aderência às Santas Escrituras como fonte de norma e ordem na igreja (SHERER, 1994, p.67). 16 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO 2. DEFINIÇÃO DE CONCEITOS DE MISSÃO Creio que não é possível colocar juntos e na mesma arena para um debate, Warneck e Belarmino de um lado e Lutero e seus defensores como missionário do outro. Os conceitos de missão são divergentes. Lutero e os reformadores são julgados no princípio de que missão é essencialmente o envio de missionários a outro território e as atividades empreendidas por eles. Ou então missão é vista como propagação da fé, expansão do reinado de Deus, conversão dos pagãos e a fundação de novas igrejas (BOSCH, 2002, p.18). O termo missão, na verdade, é relativamente recente. Até o século XVI, a palavra era usada exclusivamente com referência à doutrina da Trindade, ou seja, o Pai envia o Filho e que enviam o Espírito Santo (BOSCH, 2002, p.18). Foram os jesuítas que primeiro usaram o termo referindo-se à difusão da fé cristã entre pessoas que não eram membros da Igreja Católica (BOSCH, 2002, p. 18). Hoje, em termos gerais, missão é entendida como a Missio Dei, conceito adotado na Conferência do Conselho Missionário Internacional em Willingen, Alemanha, em 1952. Missão passou a ser entendida como participação na missão do Deus triúno, nos cuidados da criação divina e estabelecimento do senhorio de Cristo sobre toda a criação redimida (VICEDOM, 1996, p.15). É o envolvimento de Deus no mundo e no qual a igreja tem o privilégio de participar. Missão é olhar para o mundo com os mesmos olhos que Deus olhou e olha, com amor e atenção. Portanto, missão é a atividade geral de Deus no mundo e quando o termo envolve a igreja, ela deve ser entendida como a sua ação global em pregar, administrar os sacramentos, nutrir, testemunhar, promover a comunhão e o serviço. Já evangelização é entendida como tarefa específica de despertar ou reanimar a fé no salvador Jesus onde ela não existe. Evangelizar é chamar pessoas ao arrependimento e anunciar-lhes o perdão dos pecados em Jesus Cristo. Assim, missão não pode ser identificada com evangelização, porém, é decisivo e fundamental afirmar que a evangelização é uma dimensão decisiva e essencial da missão e da igreja. Assim, missão, quando aplicada à igreja, pode ser entendida como o agir dela com a intenção específica de testemunhar as boas novas do evangelho do Senhor Jesus Cristo (SHERER, 1987, p.37). Esse é o cerne da Missio Dei e é nesse sentido, acredito eu, que Lutero pode ser lido, pode nos ensinar e inspirar ainda mais à missão. 17 IGREJA LUTERANA 3. LUTERO, UM MISSIONÁRIO DIFERENCIADO No sentido atual e próprio do termo missão, não há argumentos contrários em afirmar Lutero como um missionário e sua obra como essencialmente missionária, pois: A. Lutero foi um missionário iluminado para o seu tempo. Numa época de inércia e apatia, ele estimulou sua geração a pensar e refletir sobre questões mais profundas, como sua batalha espiritual e a anfechtungen. B. Lutero foi um missionário destemido para a igreja. A base da Igreja Católica Medieval, que ele amava e respeitava, precisava ser censurada e reformada teologicamente. C. Lutero foi um missionário atento para seu próprio povo. Ele disponibilizou a Santa Escritura na língua alemã, catecismos e outros materiais de ensino (JI, 1996, p.148). As palavras de 2 Ts 3.1, “Finalmente irmãos, orai por nós, para que a palavra do Senhor se propague e seja glorificada, como também está acontecendo entre vós”, se tornaram uma realidade não somente na Alemanha, mas também em linguagens européias que faziam referência à tradução de Lutero. O reformador é considerado por muitos como o pai das traduções da Bíblia para o vernáculo em todo o mundo. No tempo da Reforma havia apenas 33 traduções de diferentes línguas e somente de parte das Escrituras (BUNKOWSKI, 1985, p.168). A dimensão missionária do Catecismo Menor é mostrada pelo fato de que este rapidamente foi traduzido para o latim, holandês, russo, polonês, lituano e prussiano. Além disso, é possível acrescentar que o Catecismo era usado na Áustria, Hungria, Boêmia, Morávia, Látvia, Estônia, Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia, Holanda, Bélgica, Inglaterra, França e mesmo na Espanha e Itália (BUNKOWSKI, 1985, p.169). D. Lutero foi um missionário sensível para o ser humano. Ele recolocou a natureza humana no seu devido lugar, impotente e incapaz da conversão, em contraposição ao moralismo humanista que tinha o ser humano em alta conta em termos éticos (JI, 1996, p.149). E. Lutero tinha olhos missionários em seus escritos. Em seus comentários sobre textos bíblicos, ensinos sobre oração e sermões, ele manifestava interesse especial por aqueles que ainda não eram cristãos e no envolvimento dos que já são cristãos na evangelização. F. Lutero tinha visão missionária no trabalho congregacional e nas escolas. Na discussão em torno da manutenção ou não da missa em latim, Lutero diz que se houvesse familiaridade, não só se manteria o latim, como também se faria cultos em alemão, grego e hebraico. Ele não é favorável a se ater a uma só linguagem. Ele se manifesta a favor 18 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO de treinar jovens e pessoas em geral para torná-los capazes de conversar em diferentes línguas e em países estrangeiros. O Espírito Santo não esperou para todo o mundo ir a Jerusalém e estudar hebraico, mas deu várias línguas para o cumprimento do ministério da pregação onde quer que os apóstolos fossem (LUTERO, OSel, Volume 7, 2000, p.179). G. Lutero foi um missionário com precisão pedagógica e sensibilidade no uso da liturgia. Para ele, a missa ou o culto em alemão deveriam ser arranjados para atender às necessidades de todas as pessoas, dos leigos sem instrução e também dos que ainda não crêem. Lutero ressalta a idéia de que esses momentos também devem ser um convite público à fé e ao cristianismo (LUTERO, OSel, Volume 7, 2000, p.179). H. Lutero era missionário lá onde estava, na Universidade de Wittenberg. Ele compartilhou suas descobertas e convicções, ganhando apoio da comunidade acadêmica. Entre 1520 e 1560, passaram por essa universidade alemã cerca de 16.000 estudantes, pelo menos 2/3 de fora da Alemanha (RUDNICK, 1984, p.81). I. Lutero ainda soube explorar o recurso da imprensa. Embora sua criação tenha sido no século anterior, poucos usaram esse recurso tão efetivamente quanto Lutero (RUDNICK, 1984, p.82). 4. LUTERO, MISSIONÁRIO NA LEITURA E EXPOSIÇÃO DA BÍBLIA Há pelo menos duas referências significativas sobre textos bíblicos em que Lutero é apresentado fazendo alusões missionárias. Na compilação de afirmações de Lutero de Ewald M. Plass4, o autor reúne 14 citações relevantes. A outra obra é a de Volker Stolle5, que em seu índice remissivo aponta para 98 referências bíblicas. Não é novidade que a Palavra e sua pregação é a maior bênção para Lutero (LUTERO, LW, Volume 12, p.147). Em seu comentário sobre o Salmo 23 em 1536, ele exalta o poder da Palavra e seu atributo de guiar, instruir, reanimar, fortalecer e confortar. Além disso, os que se aplicam à Palavra são mantidos no caminho certo, protegidos e capacitados a vencer toda a espécie de tribulação (LUTERO, LW, Volume 12, p.148). É em suas exposições sobre a Palavra que é possível detectar todo o espírito missionário do reformador. 4 PLASS, Ewald M. What Luther Says. A Practical In-Home Anthology for the active Christian. St. Louis, USA: Concordia Publishing House, 1959. 5 STOLLE, Volker. The Church Comes from all Nations. Luther texts on Mission. Klaus Detlev Schulz, trad. St. Louis, USA: Concordia Publishing House, 2003. 19 IGREJA LUTERANA 4.1 Uma oração missionária de Noé Em Gn 9.27a está escrito parte da bênção pronunciada por Noé, logo após o episódio da sua embriaguês. “Engrandeça Deus a Jafé e habite ele nas tendas de Sem”. Para Lutero, esta oração de Noé trata da proclamação do Evangelho em todo o mundo. Sem é como um tronco, de onde houve descendentes e dos quais Cristo nasceu. A igreja é dos judeus. Eles tinham patriarcas, profetas e reis. Mas aqui Deus revela a Noé que mesmo os pobres gentios irão compartilhar dos benefícios que o Filho de Deus trouxe a este mundo, a saber, o perdão dos pecados, o Espírito Santo e a vida eterna (LUTERO, LW, Volume 2, p.184). O cumprimento desta profecia ocorreu com o apóstolo Paulo, como está escrito em Rm 15.19: “por força de sinais e prodígios, pelo poder do Espírito Santo; de maneira que desde Jerusalém e circunvizinhanças, até ao Ilírico, tenho divulgado o evangelho de Cristo”. Para chegar a essa conclusão, Lutero explica que alguns derivam Jafé do verbo hpy, que significa “ser bonito”, como no Salmo 45.3. Mas, para Lutero, essa tradução é equivocada, pois a derivação deveria ser de htp, cujo significado é “persuadir”, “seduzir”, “atrair”, como mostram outros textos: Êx 22.16; Pv 1.10; Jr 20.7; Os 2.14. Assim, para Lutero, essa passagem deveria ser entendida como Noé suplicando ao Senhor persuadir a Jafé a aceitar que o privilégio de ser ancestral do Salvador tenha sido transferido para seu irmão e que seus descendentes sejam convencidos amavelmente pela voz do Evangelho. Esta é uma persuasão divina, obra do Espírito Santo. Para o reformador, algumas vezes essas discussões lingüísticas são de grande valor e podem esclarecer o real sentido do texto (LUTERO, LW, Volume 2, p.182184). 4.2 Fidelidade leva à expansão missionária Em seus comentários sobre Gn 12.8, Lutero afirma que Betel, por significar “casa de Deus”, se torna um lugar propício ao culto idólatra, como fez Jerobão (1 Rs 12.28-29). Porém, Abraão foi fiel à sua fé e não se intimidou com o povo de Moré. Ele ergueu um altar e instruiu sua igreja sobre a vontade de Deus, admoestou-os a uma vida santa, fortaleceu-os em sua fé, manteve-os na esperança e orou com eles. É no verbo arq que Lutero retira todas essas atividades (LUTERO, LW, Volume 2, p.286). Em Gn 13.4, Lutero exalta Abraão porque ele realizou as tarefas de um sacerdote, a saber, ensinar, orar e sacrificar, não em algum canto, temendo as ameaças de violência dos pagãos, mas num lugar público, para que pelo seu próprio exemplo e dos que estavam com ele, outros 20 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO pudessem ser conduzidos ao conhecimento de Deus e às verdadeiras formas de culto (LUTERO, LW, Volume 2, pp. 332-333). Também em Jacó Lutero vê essa fidelidade. Quando comenta Gn 35.2, ele menciona que, através do ensino dos patriarcas, muitos dos pagãos se uniam a eles, pois estes viam neles pessoas do bem e que Deus estava com eles. Foi por isso que os gentios ouviram e aceitaram seu ensino. Foi assim mais tarde com José no Egito, Daniel na Babilônia e Jonas em Nínive (LUTERO, LW, Volume 6, p. 227). Numa pregação sobre Mt 2.13-23, Lutero diz que não há dúvida de que Maria e José, enquanto no Egito, não ficaram em silêncio sobre o grande milagre que aconteceu com seu filho. Eles pregaram e trouxeram outros à fé e à salvação. Através da perseguição a cristãos fiéis o Cristianismo cresce, mas quando há paz e tranqüilidade, os cristãos se tornam preguiçosos e inativos (LUTERO apud STOLLE, 2003, p.18). Também o Eunuco (At 8.39) foi um missionário fiel a partir de seu batismo e fé. Ele com certeza ensinou a muitas outras pessoas a palavra de Deus, pois lhe foi ordenado “proclamar as virtudes daquele que o chamou das trevas para a luz” (1 Pe 2.9), especialmente porque não havia outros lá designados para fazê-lo (LUTERO apud STOLLE, 2003, p.19). 4.3 Um cristão não fica calado Em sua exposição do Evangelho de João 14 e 15, Lutero afirma que uma vez que o cristão conhece a Cristo como seu Senhor e Salvador, seu coração é permeado por Deus. Por isso, agora ele está ansioso para ajudar a cada um receber os mesmos benefícios, pois seu maior prazer está neste tesouro, o conhecimento de Cristo. Assim ele dá um passo à frente, ensina e admoesta outros, louva e confessa sua fé diante de todos e ora, pois onde há o espírito da graça, deve-se começar a orar, para que eles também obtenham essa misericórdia. Um cristão não pode ficar calado ou preguiçoso. Ele peleja para disseminar a honra e a glória de Deus entre as pessoas (LUTERO, LW, Volume 24, pp. 87-88). Sobre o diálogo de José com seus irmãos em Gn 45.9-11, Lutero parafraseia a conversa dizendo que José logo pediu para seus irmãos não ficarem calados depois de terem reconhecido a Deus e a ele. Então ele afirma: “tão logo aprendemos a conhecer a Deus em seu Filho, depois de apreender o perdão dos pecados e o Espírito Santo, que veste nosso coração com alegria e com a libertação do pecado e morte, o que resta fazer? Vai, não fica calado, para que o restante seja salvo também, não somente você” (LUTERO, LW, volume 8, p.46). 21 IGREJA LUTERANA Num sermão sobre Jo 20.19-31, no primeiro domingo após a Páscoa, em 1522, falando especificamente sobre o v. 20 “assim como o Pai me enviou assim eu vos envio”, Lutero afirma, sem desconsiderar a instituição do Ofício Ministerial, que a primeira e mais importante obra de amor de alguém que se torna cristão é trazer outros para a mesma fé (LUTERO, Complete Sermons, Volume 12, p. 359). Ainda que sobre esse mesmo texto em 1531 ele fale mais da autoridade da igreja em perdoar pecados (LUTERO, Complete Sermons, Volume 6, pp.60-72) e em 1534 a ênfase esteja na voz de Deus que ecoa através do Ministério Eclesiástico (LUTERO, Complete Sermons, Volume 6, pp. 54-59), em 1538 ele repete pensamento similar, num sermão sobre Mt 23.15, dizendo que “a melhor de todas as obras é quando o pagão é conduzido da idolatria para o conhecimento de Deus” (PLASS, 1959, p.957). E é para isto que o cristão vive. Para Lutero, o cristão permanece vivo só em função de ser uma ajuda para outras pessoas. Se assim não fosse, tão logo alguém tenha sido batizado e começasse a crer, Deus poderia tirar a sua vida. Mas ele o deixa viver para que outras pessoas sejam trazidas à fé. Lutero pregou sobre isto em 1523, tendo como base o texto de 1 Pe 2.9. Esta é uma parte do ser um sacerdote, ser mensageiro de Deus, com a sua ordem de proclamar a sua Palavra. O sacerdote deveria pregar a obra de Deus em tê-lo chamado das trevas para a luz e instruir as pessoas em como elas poderiam vir a essa luz. E isto deve ser em público e em particular. “Onde você vê pessoas que não sabem disto, você deveria instruí-las e também ensiná-las, como você próprio aprendeu, em como Deus o transferiu das trevas para a luz” (LUTERO apud STOLLE, 2003, p.20). Em outro escrito6 em 1523, Lutero ainda é mais enfático e claro quanto à distinção entre o dever do testemunho da fé do cristão e do chamado regular para a pregação pública. Amparado por Jo 6.45, Sl 44.7 e 1 Pe 2.9, Lutero diz que cada cristão tem a palavra de Deus e foi instruído e ungido por Deus para ser sacerdote. Com isto ele tem o dever de confessar, ensinar e difundir a palavra de Deus. Tomando como exemplo Estêvão (At 6.8, 10; 7.2ss), Filipe, o diácono e Apolo, Lutero coloca o cristão na responsabilidade de pregar, onde ninguém foi convocado para isso. O simples fato de ser cristão o torna ungido por Deus para essa tarefa e com o dever de fazê-lo, “sob pena de perder sua alma e cair na desgraça de Deus” (LUTERO, OSel, Volume 7, pp. 31-32). É neste ponto que pode se encaixar o pensamento de Lutero em 6 Direito e autoridade de uma Assembléia ou Comunidade Cristã julgar sobre toda doutrina, chamar, nomear e demitir pregadores – Fundamento e Razão da Escritura (OSel, Volume 7, pp.25-36). 22 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO sua pregação sobre Gn 12.14-16. Deus não deixa que seus filhos permaneçam tempo demais num lugar. Ele os conduz para diferentes lugares para serem úteis a outras pessoas. Abraão não poderia ficar em silêncio e deixar de pregar às pessoas sobre a misericórdia de Deus. Por isso Deus o enviou para uma terra de grande fome (Gn 12.10). Lá o pai dos que crêem poderia iluminar alguns com o verdadeiro conhecimento de Deus, o que de fato ele fez: “seria intolerável para alguém encontrar pessoas e não lhes revelar o que é útil para a salvação de suas almas”. Esse é o jeito maravilhoso de Deus agir. Ele envia apóstolos e pregadores antes mesmo deles perceberem ou pensarem sobre o assunto (LUTERO apud STOLLE, 2003, p.16). Aqui vale a referência de Lutero em Gn 12.8. Quando enaltece a pregação de Abraão, ele não está pensando no Ministério Eclesiástico, mas no Sacerdócio de todos os cristãos, pois sua pergunta é: “Agora vai e pergunta para nossos papas e bispos: quem ungiu Abraão para cumprir seu ofício sacerdotal entre seu povo”? (LUTERO, LW, Volume 2, p.287). Lutero admite que o testemunho cristão não é uma tarefa simples. Em seus escritos sobre o Salmo 51, em 1532, o reformador lembra que de fato não há outra alternativa para o cristão justificado dizer com Davi: “Eu cri por isso falei” (Sl 116.10), ou “a meus irmãos declararei o teu nome” (Sl 22.22), mas baseado no Sl 51.12, o salmista pede ao Senhor que ele abra seus lábios a fim de que ele proclame destemidamente a misericórdia de Deus em público. Ao pedir isto ao Senhor, ele revela como é difícil, no dizer de Lutero, o sacrifício do testemunho público em nome do Senhor. Para ele há vários elementos que podem fechar os lábios dos cristãos. O diabo pode utilizar do medo do perigo e da interferência de amigos, por exemplo, para impedir a confissão de fé publicamente. O próprio Lutero aponta para si como alguém a quem Satanás tentou impedir o testemunho, “mas Deus estava presente e abriu minha boca contra esses obstáculos”. Lutero encoraja ao testemunho cristão dizendo que através dele se aprende como é grandioso falar do que se experimentou (LUTERO, LW, Volume 12, pp. 393-394). Ainda algo sobre o testemunho cristão ou conversação evangelística: Lutero prega em 1524 sobre Mt 4.1ss. para orientar seus ouvintes sobre a melhor atitude para com os judeus. Primeiro, ele fala do conteúdo, Cristo é o Filho de Deus. Caso haja algum interesse maior, conduzi-lo à verdade que Cristo é Deus. Agora isso precisa ser feito de uma forma amigável. Caso ele não queira ouvir, é preciso deixá-lo ir (LUTERO apud STOLLE, 2003, p.60). Também no escrito “Jesus Cristo nasceu judeu”, depois de criticar a atitude arrogante de papas, que além de se interessarem mais pelas propriedades dos judeus, não lhes ensinavam a doutrina cristã das 23 IGREJA LUTERANA Escrituras, Lutero afirma sua esperança de que se alguém lidar com eles de uma forma gentil e instruí-los cuidadosamente com a Santa Escritura, muitos deles se tornarão cristãos como eram os profetas e patriarcas. Ele lembra que os apóstolos, que eram judeus, fizeram isso conosco, com os gentios. Eles nos trataram fraternalmente. Lutero combate a atitude orgulhosa para com os judeus. Seu pedido é que se pare simplesmente de condenar e que as atitudes dos cristãos sejam guiadas pela lei cristã do amor. Assim eles poderão ouvir o ensino cristão e testemunhar nossa vida cristã (LUTERO, LW, Volume 45, pp. 200201, 229). Também os muçulmanos têm que ser abordados com armas espirituais (arrependimento, apologia e missão). Vale a referência de que Lutero julga importante conhecer o Alcorão, para que os cristãos entendam a fé e a vida islâmica e conheçam suas inverdades (HUHTINEN, 2001, p.28). Aqui é interessante refletir sobre alguns detalhes sobre a importância do puro ensino e coerência no viver. Num sermão sobre Mt 23.15, pregado em 1538, Lutero inicialmente condena a atitude missionária do Judaísmo, que forçava os gentios a aderir às leis cerimoniais de Moisés e os “prendiam” à cidade de Jerusalém. Em resumo, colocavam sobre eles exigências da lei para serem salvos. Quando um gentio se tornava um adepto do Judaísmo e fazia o que lhe era ordenado praticar, o Senhor diz: “o tornais filho do inferno duas vezes mais do que vós” (Mt 23.15b), ou seja, eles se tornam piores. O que acontece é isso: sempre que alguém dos gentios adere ao Judaísmo e vê que seus integrantes praticam a usura, avareza, impurezas e outros vícios, então ele acabará abandonando a fé judaica. A pregação é “viva de maneira respeitável”, mas quando encontra esse quadro perverso em quem lhe ensina, então ele vai pensar em seguir antes os ensinos de Cícero e dos filósofos. Lutero continua dizendo que foi exatamente assim na Igreja Católica no seu tempo. Pessoas eram batizadas, mas depois desencaminhadas pela própria igreja, especialmente porque tinham que crer nos artigos da igreja em Roma. Um judeu, por exemplo, poderia pensar, “oh, é melhor viver sob a lei de Moisés do que sob os decretos do Papa”. Lutero conta um fato ocorrido em Colônia, onde um judeu foi batizado. Quando morreu, deixou em seu testamento a ordem de gravar em sua lápide a figura de um rato e de um gato. Com isso ele queria indicar que assim como tão pouco esses pequenos animais concordam, tão pouco provável será um judeu permanecer cristão. Outro judeu permaneceu fiel ao cristianismo. Depois de ter sido 24 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO instruído por mais de um ano por seu pastor, ele pediu para ir a Roma. O pastor tentou dissuadi-lo disso, mas sem sucesso. Aí o pastor pensou: “um ano de serviço perdido”. O judeu foi a Roma e lá viu toda a vida desregrada do povo de lá. Quando retornou disse: “Se o teu Deus não fosse o único e o verdadeiro Deus, então essas pessoas não ficariam vivas por um só momento”. Só a paciência, graça e misericórdia de Deus para preservá-los (LUTERO apud STOLLE, 2003, pp. 34-40). O ponto de Lutero é: a fé cristã já é complicada por si mesma, por isso a interferência de uma vida e condição vergonhosa de cristãos é inimaginável. Só o ensino da Palavra pode resolver isso. Por isso Lutero lembra sobre a responsabilidade especial da família. Em outro sermão pregado em 1532, sobre Mc 8.1-9, ele incentiva todos a se preocuparem, providenciarem e promoverem o ensino da Palavra, pois não há maior ou mais alta obra do que nutrir pessoas com a palavra de Deus (LUTERO, Complete Sermons, Volume 6, pp.330-331). Sem ser pessimista, mas com os pés no chão, Lutero diz que não há tarefa mais difícil do que encaminhar pessoas jovens a aceitarem os princípios escriturísticos, mas também não há maior serviço do que este que se pode render a Deus (Lutero, Complete Sermons, Volume 6, p. 331). 4.4 O princípio universal no pensamento missionário em Lutero “Quando Deus fala, ele abre bem grande a sua boca. Suas palavras não estão limitadas a alguns lugares, mas para o mundo todo. Ele quer abençoar, com certeza, não apenas dois ou três povos, mas o mundo inteiro” (LUTERO apud STOLLE, 2003, p. 28). O princípio missionário universal em Lutero está presente numa série de passagens bíblicas comentadas e pregadas por ele. Em Gn 22.17-18, ele contesta o pensamento exclusivista dos judeus e afirma que todas as nações serão abençoadas na descendência de Abraão, que é Cristo (LUTERO, LW, Volume 4, pp. 151-178). Em Gn 6.9-10 Lutero exalta a fidelidade e coragem de Noé, que informou outros sobre as promessas e os juízos de Deus e, para isso, possivelmente viajou pelo mundo inteiro para pregar em todas as partes, dando instrução a respeito do verdadeiro culto a Deus (LUTERO, LW, Volume 2, pp. 56-57). Em seus comentários sobre o Salmo 117, Lutero também exprime essa preocupação missionária para com todos os povos. Se todas as nações devem louvar a Deus, então ele deve tornar-se Deus delas. Para isso acontecer, elas precisam conhecê-lo, crer nele e abandonar a idolatria. Assim, elas precisam antes ouvir sua Palavra e por meio dela 25 IGREJA LUTERANA receber o Espírito Santo, que através da fé purifica e ilumina seus corações. Para tanto, Lutero defende o envio de pregadores para todos, no lugar onde estão, visto que o salmista não diz: “Venham a Jerusalém, todas as nações” (LUTERO, LW, Volume 14, p.9). Lutero ainda menciona outras passagens que comprovam que a palavra de Deus deveria ir aos pagãos, onde eles estiverem, como no Salmo 19.5 e Sofonias 2.11 (LUTERO, LW, Volume 14, p.10). É valioso observar que Lutero considera isso como um processo contínuo até o dia do Juízo Final. A menção é oportuna, porque em seus comentários sobre o Salmo 68.12, em 1521, ele interpreta os reis como sendo os apóstolos, que aos olhos do mundo são pobres servos, mas que aos olhos de Deus são grandes reis, pois converteram o mundo todo (LUTERO, LW, Volume 13, p.13). Já num sermão de 1522, sobre Mc 16.14-20, Lutero ressalta que os apóstolos não visitaram o mundo todo e muitas ilhas ainda não foram descobertas e nem o Evangelho lá pregado. Para ele as palavras de Paulo em Rm 10.18, “por toda a terra se fez ouvir a sua voz”, devem ser entendidas como a pregação do Evangelho que já começou, saiu para o mundo todo, mas que ainda não o alcançou totalmente. É um processo que iniciou, continua, que ainda não acabou e que vai durar até o dia do julgamento. É pertinente a comparação de Lutero neste sermão. A pregação do Evangelho é como uma pedra lançada na água e que produz contínuos círculos ao redor dela. O centro se acalma, mas as ondas não param e se movem até chegar à encosta (LUTERO, Complete Sermons, Volume 2.1, pp. 201-202). Esse pensamento Lutero reitera mais tarde, em 1535, quando em seus comentários sobre o Salmo 110.2, ele não limita a pregação do Evangelho a uma determinada época, mas que começou com os apóstolos e ainda permanece (LUTERO, LW, Volume 13, p.269). Num sermão sobre Mt 22.9, Lutero diz que os cristãos de hoje foram convidados ao banquete através do Evangelho, mas isto ainda não terminou. Continua o tempo em que os servos vão às ruas para convidar. Só no último dia as mesas serão examinadas para que Jesus veja quem está adornado com a veste nupcial (LUTERO apud STOLLE, 2003, p. 27). A propósito, Lutero acreditava que o último dia estava próximo. Em dois momentos de suas Tischreden, o segundo em 1542, ele trata do assunto. No primeiro ele compara o Evangelho a uma pessoa pronta para morrer. Os lábios se esforçam para o último movimento para dizer “em tuas mãos entrego o meu espírito”. Nós também vivemos num último momento do Evangelho e o último dia virá logo. No segundo 26 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO momento ele faz uma analogia parecida com uma candeia. Quando ela está quase apagando, ela faz um último impulso, como se fosse ainda queimar por um longo tempo, mas na verdade ela está se apagando. Assim também é com o Evangelho. Ele está dando o último suspiro, como se fosse pregado ainda em muitos lugares, assim como uma pessoa próxima à morte, mas depois virá o dia do julgamento (LUTERO apud STOLLE, 2003, p. 84). Sustenta-se que Lutero esperava que o último dia chegasse durante o ano de 1558 (BOSCH, 2002, p. 301). Também se afirma que Lutero esperava que a criação durasse 6.000 anos (OSel, Volume 5, p.62, nota 57). O teólogo ortodoxo Philip Nicolai (1556-1608) esperava que a parusia ocorresse por volta de 1670 (BOSCH, 2002, p. 304). 5. O PENSAMENTO MISSIONÁRIO NO PERÍODO DA ORTODOXIA Durante as últimas décadas do século XVI e por mais algumas no século XVII, muito do luteranismo foi conhecido pelo movimento teológico denominado de Ortodoxia. Este contribuiu de modo significativo para a articulação precisa das verdades escriturísticas (RUDNICK, 1984, p. 114), inclusive a manutenção da ênfase teocêntrica da missão em Lutero (SHERER, 1987, p.66). A crítica de Gustav Warneck sobre a ação e pensamento missionários dessa época também é severa. Para ele foi um tempo de atitude negativa de missão aos pagãos (Gregory Lockwood Bendigo, na introdução ao artigo de Pekka Huhtinen, 2001, p. 15). Ao contrário do que acontece com as críticas a Lutero, que não são aceitas e o reformador tem sua defesa garantida, as contestações feitas à Ortodoxia são tratadas de maneira diferente. O professor Won Yong Ji diz que não há dificuldades em descobrir o interesse missionário em Lutero, mesmo no sentido de missão atual, mas isto já é mais difícil com os teólogos da Ortodoxia Luterana (JI, 1996, p.149). Thomas Coates, enquanto professor na Academia Teológica Luterana em Seul, Coréia, também começa enfatizando que Lutero não pode ser associado com o pensamento da Ortodoxia Luterana, de que a grande Comissão já havia sido cumprida pelos apóstolos (COATES, 1969, p.601). Outro exemplo dessa abordagem é James Sherer. Ele diz que Warneck não soube ler em Lutero reflexões missionárias mais profundas e apenas entendeu missão como o envio de mensageiros do Evangelho para pessoas não-cristãs. Por isso ele considera a crítica de Warneck como prematura e parcial (SHERER, 1987, p.54). Porém, quando o assunto é a missão no período da Ortodoxia, o título já revela outro 27 IGREJA LUTERANA pensamento. “Ortodoxia Luterana: dizendo não para a missão” (SHERER, 1987, p.66). Para ele, nesse período a convicção biblicamente fundamentada de Lutero sobre o Evangelho sendo pregado a toda a criação e o triunfo do Reino de Deus deu lugar a minúcias dogmáticas e entrincheiramento eclesiástico. Na avaliação de Sherer, o Luteranismo levantou barreiras dogmáticas para a missão das igrejas evangélicas. A Ortodoxia agora estava afirmando que missão não é tarefa de agentes humanos, exceto nas circunstâncias em que os príncipes evangélicos eram responsáveis por evangelizar os habitantes não-cristãos. De acordo com o princípio conhecido como cuius rego, eius religio (Paz de Westfália, 1648), cada governante tinha a incumbência de determinar o compromisso religioso de seus habitantes. Positivamente, embora de maneira limitada, príncipes luteranos da Suécia e Dinamarca desenvolveram missões estrangeiras nos territórios, cuja responsabilidade administrativa era deles, enviando capelães para pregar o Evangelho tanto para não-cristãos como para os cristãos. Contudo, seguindo aquele princípio, a responsabilidade missionária expirava quando se ia além dos territórios governados por esse príncipe evangélico (SHERER, 1987, p.67). Segundo um parecer do corpo docente da Faculdade de Teologia da Universidade de Wittenberg, de 1652, a responsabilidade missionária cabia unicamente ao Estado. Com base no Antigo Testamento, o Estado tinha que converter pagãos jure belli, pela lei da guerra, caso outros meios não fossem eficazes (BOSCH, 2002, p.307). David Bosch é outro crítico do período da Ortodoxia. Mas não sem antes enaltecer a Lutero como um pensador missionário criativo e original (BOSCH, 2002, p.299) e enfatizar nele a idéia de que a missão é obra exclusiva de Deus. Isso, todavia, não significava passividade e inércia. “Fé é algo vivo e inquieto, algo que não podia permanecer inativo”. Não somos salvos por obras, disse ele, porém acrescentou: “Se não há obras, algo deve estar errado com a fé” (LUTERO apud BOSCH, 2002, p. 303-304). O tom muda quando o assunto é a Ortodoxia Luterana. Suas críticas mais contundentes estão relacionadas à preocupação demasiada com a manutenção da pureza doutrinária e o conceito de igreja, que é vista em grande medida como um órgão passivo, onde tudo é feito para os membros e não de um organismo vivo fazendo algo (BOSCH, 2002, pp.303-304). David Bosch examina e apresenta alguns pontos do primeiro teólogo da Ortodoxia Luterana que se ocupou com o tema da missão. Foi Philip Nicolai (1556-1608) e cujo estudo foi publicado em 1597. Os pontos 28 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO de vista de Nicolai que foram absorvidos, pelo menos em grande parte, pelo pensamento ortodoxo protestante posterior sobre a missão, são os seguintes: 1. A “Grande Comissão” já foi cumprida pelos apóstolos e não é mais compromisso da igreja. Porém, é importante notar que, diferente da Ortodoxia posterior, sua intenção era preservar a singularidade da obra fundadora dos apóstolos, a missio, da propagatio, a expansão subseqüente da igreja (BOSCH, 2002, p.305). Somente a parte relacionada ao Batismo e ao ofício do ensino permaneceriam válidos (SHERER, 1987, p.68). Nicolai avaliou como positivos os esforços missionários da Igreja Católica Romana e Ortodoxa Oriental em outros países. Ele acreditava que devido à operação da palavra de Deus, essas igrejas serviriam ao luteranismo. Teólogos ortodoxos de gerações posteriores já avaliam esse trabalho de forma bem negativa. Sobre seu pensamento da “Grande Comissão”, reteve-se apenas o elemento de que não há necessidade de envolvimento dos cristãos entre os pagãos, visto que os apóstolos tinham concluído a tarefa (BOSCH, 2002, p.305). 2. Em oposição à teologia horizontalizada de Roma, o pensamento vertical da Reforma Luterana, a justificação somente pela fé, também foi encaixado no trabalho missionário. A tensão foi abandonada e todo o peso recaiu sobre a soberania e iniciativa de Deus. Na interpretação de Bosch, a atitude era de completa passividade e qualquer iniciativa missionária entregue à soberania de Deus. Vale lembrar que no pensamento de Nicolai, havia o motivo missionário através do chamado de cada cristão a amar os outros, assim como Deus nos amou (BOSCH, 2002, p.306). 3. Um outro elemento inibidor da atividade missionária nesse período foi a concepção escatológica de ortodoxos luteranos. Philip Nicolai esperava o fim do mundo por volta do ano de 1670 (BOSCH, 2002, p.306), o que tornou qualquer idéia de iniciativa missionária irrelevante (COATES, 1969, p.609). 4. O parecer da Faculdade de Teologia de Wittenberg ainda apresentou outro motivo para a abstinência missionária da igreja: Deus já tinha se revelado a todas as pessoas pela natureza e pregação dos apóstolos. Defendeu-se que todas as nações já haviam sido alcançadas pelo Evangelho. Antigos mexicanos foram evangelizados pelos etíopes, um desconhecido missionário foi ao Brasil e peruanos e brâmanes já deviam ter sido evangelizados, pois suas religiões revelam elementos cristãos (BOSCH, 2002, p.307). Um nome proeminente nesse arranjo teológico foi Johan Gerhard. Para Thomas Coates, essas “provas” desse teólogo ortodoxo são curiosas e pseudo-históricas (COATES, 1969, p.607). 29 IGREJA LUTERANA Foi um leigo luterano austríaco que se opôs a esse posicionamento da Ortodoxia Luterana: Justian von Welz (1621-1666). Embora operando no conceito de que missão é envio de evangelistas para lugares distantes, esse exemplo revela pelo menos algo dos traços da mentalidade missionária da época. Ele não só acreditava que a “Grande Comissão” continua tendo validade, como listou razões para esse seu apelo missionário. a. Deus deseja salvar a todos (1 Tm 2.4) e isto demanda o envio de missionários para pregar o Evangelho a todas as pessoas. b. O exemplo de missionários na história do cristianismo, que sofreram e morreram para levar a Palavra de Deus aos pagãos. c. As petições da liturgia da igreja pela conversão dos que estão em trevas espirituais e erro. Para que esses pedidos não permaneçam apenas como meras palavras, elas devem ser transformadas em ação no envio de homens para trabalhar entre os pagãos. d. O exemplo da Igreja Católica Romana, por seu programa missionário sistematizado (COATES, 1969, p.608). Justian von Welz ao mesmo tempo rejeita o pensamento de que a “Grande Comissão” foi confinada apenas aos apóstolos, que o Evangelho uma vez rejeitado não precisa ser pregado outra vez, que nenhum pregador tem o direito de ir aos pagãos sem o chamado direto e que era preciso olhar e consolidar a “casa” antes, para depois implantar missões em terras estrangeiras (COATES, 1969, p.608). Em termos mais práticos, von Welz esboçou um plano de ação para a obra missionária em terras estrangeiras. Primeiro, a formação de uma sociedade missionária, no estilo dos mosteiros, com voluntários cristãos missionários que, após treinamento, deveriam ser enviados para trabalhar entre os pagãos. Segundo, os missionários em potencial deveriam receber bom treinamento na linguagem, cultura e religião das pessoas às quais seriam enviados a trabalhar para a formação de congregações. Terceiro, tal empreitada deveria ter o suporte das colônias da Dinamarca, Suécia e Holanda, pois essas eram governadas por príncipes protestantes (COATES, 1969, p.608). Mas sua voz foi abafada e ele considerado um herético e fanático (COATES, 1969, p.608 – SHERER, 1987, p.69). Incapaz de sustentar sua posição, ele partiu para o Suriname, na América do Sul, em 1666, onde provavelmente morreu no mesmo ano (BOSCH, 2002, p.308). A refutação oficial a Justian von Welz foi elaborada por Johann Heinrich Ursinos, que preservou a maioria dos elementos do pensamento missionário da Ortodoxia Luterana. a) a conversão dos pagãos é tão difícil, que pouquíssimos se candidatariam para essa tarefa; b) os pagãos são tão depravados, que há pouca esperança de conver- 30 LUTERO: UM RICO, MAS INEXPLORADO INSPIRADOR À MISSÃO são. “Coisas santas não podem ser atiradas aos porcos” (Mt 7.6); c) há judeus e pagãos suficientes ao nosso redor a serem convertidos, não é preciso ir a terras distantes; d) quase que invariavelmente, alguns cristãos são encontrados em territórios pagãos. É deles a responsabilidade, não nossa (COATES, 1969, p.609). Para a voz de Welz clamando no deserto foi dito: “A missão pertence a Deus e Deus não precisa de parceiros” (SHERER, 1987, p.69). Uma última abordagem deste assunto vem do historiador Milton Rudnick. Para ele, o que Lutero havia rejeitado com tanta veemência no catolicismo medieval, a Ortodoxia de certa maneira ressuscitou: um novo escolasticismo. O caráter estático e abstrato da teologia. O efeito desse excesso de intelectualização desencadeou pregações longas e sofisticadas, longe da vida, como ela é, dos seus ouvintes. Pastores estavam mais para guardiões da verdade do que cuidadores de almas. Os leigos estavam mais para consumidores da doutrina do que participantes na missão de Deus através da igreja (RUDNICK, 1984, p.114). O desejo salutar da manutenção com a pura doutrina foi apagando a preocupação com a vivência espiritual e santidade de vida. Até a preocupação com a formação de pastores estava mais para o intelectualismo e formalismo do que o cultivo de uma fé viva e fervorosa (RUDNICK, 1984, p.114). CONCLUSÃO - REFLEXÕES PROVISÓRIAS 1. Parece haver uma ambivalência no pensamento missionário em Lutero e no período da Ortodoxia Luterana. Lutero mantinha de maneira precisa a tensão entre a Missio Dei e a responsabilidade de cada sacerdote ungido por Deus no batismo, para proclamar as obras de Deus. A inclinação da Ortodoxia Luterana, principalmente no período posterior, era quase que invariavelmente pelo exclusivismo vertical. 2. Martinho Lutero esboçou seu conceito de missão em termos teocêntricos e bíblicos. É possível que isto não possa ser traduzido tão facilmente em termos práticos e organizacionais, mas ele com certeza é um inspirador e um desafio para a missiologia hoje. 3. Como inspirador à missão, Lutero nos revela que a vida congregacional era permeada com a dimensão evangelística. Não se pressupunha conhecimento prévio dos participantes do culto. Liturgias deveriam ser organizadas visando também aos visitantes; missão era assunto de púlpito, a fim de orientar e animar; o sacerdócio universal dos cristãos era animado a exercer onde de fato e de direito foi chamado, fora do templo, onde não há ninguém designado para proclamar o Evangelho. 31 IGREJA LUTERANA 4. Lutero inspira, mas com os pés no chão. Ele admite que há muitas coisas que atrapalham o testemunho. É preciso reaprender sempre de novo que onde o Reino de Deus é pregado, há oposição e é preciso perseverar. 5. Em seu escrito “Dos Concílios e da Igreja” (OSel, Volume 3, pp.300432), Lutero identifica e afirma que o santo povo cristão é reconhecido exteriormente quando este possui a santa palavra de Deus, os santos sacramentos do batismo e do altar, o ofício das chaves (absolvição e disciplina), a ordenação e chamado de pastores, a prática da oração, louvor a agradecimento a Deus e em sétimo lugar a cruz, as tentações (LUTERO, OSel, Volume 3, pp.409-421). E a atividade evangelística não poderia ser outra marca que identifique exteriormente o santo povo cristão? BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BOSCH, David J. Missão transformadora. Trad.Geraldo Korndörfer e Luís M. Sander. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2002. BUNKOWSKE, Eugene W. Was Luther a Missionary? Concordia Theological Quarterly, Volume 49, numbers 2 and 3, April-July, 1985. COATES, Thomas. Were the Reformers Mission-Minded? Concordia Theological Monthly, Volume XL, N.º 9, October, 1969. ELERT, Werner. The Structure of Lutheranism. Trad. Walter A. Hansen. St. Louis, USA: Concordia Publishing House, 1962. JI, Won Yong. A Lutheran Understanding of Mission: Biblical and Confessional. Concordia Journal, Volume 22, n.º 2, April/ 1996. HUHTINEN, Pekka. Luther and World Missions: A Review. Concordia Theological Quarterly, January, 2001. LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, Volume 3, Dos Concílios e da Igreja. São Leopoldo, Porto Alegre: Editoras Sinodal e Concórdia, 1992. LUTERO, Martinho. 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Deus falou e o assunto está encerrado. Tem muita outra gente falando – e sendo ouvida. Mas o que importa mesmo é o que Deus falou. Quero, nesta palestra, falar um pouco sobre onde Deus fala para deixar falado, e também sobre o que ele diz, para fechar a questão, no que se refere àquilo que nós cremos. Uma das primeiras coisas que ouvi em aula de Sistemática – que é outro nome, mais pomposo, para Dogmática (ou Doutrina) – é que Deus é e se revela. Deus existe e ele entra em contato com a gente. Na época isto não me fez cair da cadeira, e ainda hoje não me faz balançar. E acho que para todos os que estamos aqui, é coisa bem normal dizer: Deus existe e Deus fala com a gente. Sim, tem alguém lá fora, e nem precisamos de aparelhos sofisticados para tentar captar os possíveis sinais que ele talvez queira mandar para nós. Ele é real, e já nos mandou sua mensagem. Talvez seja mais fácil dizer “Deus existe”. Até mesmo nosso glorioso real, com o seu “Deus seja louvado”, é um testemunho de que existe um Deus. Agora, a segunda afirmação – Deus fala – é mais complicada. Talvez não tanto que Deus fala, mas, muito mais, a questão “onde” ele fala. Entre teólogos, ao menos, há certo consenso de que Deus fala. Todos (ou quase todos) acreditam que existe uma Palavra de Deus. Só que a pergunta é: onde se encontra essa Palavra? Muitos acham que ela vem junto com o som do vento. Outros acham que ela é uma voz que soa lá no fundo do coração. E aí temos, de imediato, um problema. Como saber que é a voz de Deus? E se aquilo que eu escuto não é o mesmo que você escuta? Em outras palavras: Essa Palavra de Deus é Palestra proferida no 18º Congresso Nacional da Liga de Leigos Luteranos do Brasil, em Piratuba, SC, em agosto de 2007. 2 O Rev. Prof. Dr. Vilson Scholz é professor de Teologia Exegética (Novo Testamento) no Seminário Concórdia e na ULBRA e Consultor de Traduções da Sociedade Bíblica do Brasil. 1 35 IGREJA LUTERANA concreta? Ela pode ser repetida? É por isso que nós insistimos no caráter objetivo da Palavra de Deus. Ela existe de forma concreta fora de nós. Ela pode ser ouvida sempre de novo. Ela foi posta no papel (ou, para ser mais exato, no papiro ou no pergaminho). Ela virou livro. Aqui, nas Escrituras, Deus falou e está falado. Em certa língua indígena, ao traduzirem a locução “palavra de Deus”, optaram por dizer “tua fala no papel”. Deus falou “muitas vezes e de muitas maneiras”. A gente vê isso na Bíblia e o autor da carta aos Hebreus confessa que Deus falou “muitas vezes e de muitas maneiras” (Hb 1.1). No final, nestes últimos dias, ele falou pelo Filho. E esta é a palavra final e definitiva de Deus. A Palavra de Deus é, a rigor, o Filho de Deus, a Palavra que se fez gente e morou entre nós. Ainda hoje Deus fala, no seu Filho, de várias maneiras. Ele nos fala na Palavra. Esta Palavra é lida, ouvida, pregada. Esta palavra vem junto com a água do batismo que foi derramada na nossa cabeça. Essa Palavra soa bem clara e de forma concreta no “Eu te perdôo” da Absolvição dos pecados. E essa Palavra é bem concreta no Filho que nos dá seu corpo e seu sangue na Ceia que ele instituiu para nós. Será que a pregação do pastor é Palavra de Deus? Isso é um assunto que muita gente gosta de discutir. Tem gente que acha que não. Palavra de Deus, só o que está escrito. Outros acham que sim, que aquilo que o pastor prega é Palavra de Deus. Do contrário, por que ficar prestando atenção? Aqui tenho um trecho de Lutero que é bem interessante: “No dia do Juízo, Deus vai me perguntar: Você pregou isso? E eu vou responder: Sim, claro. Então Deus vai se virar para você e perguntar: Você também ouviu o que ele falou? E você vai responder: Sim, claro. Então Deus vai continuar: E, então, por que é que você não levou isso a sério? Aí você vai dizer: Ah, eu achei que eram simplesmente as palavras de um homem; afinal, não foi um simples capelão ou um pastor lá da roça que falou? Assim, a mesma palavra que se apega ao seu coração vai acusar você e ser o seu juiz no último dia. Pois esta é a Palavra de Deus. Quem você ouve é o próprio Deus, como diz Cristo: Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim”. E já que estou em Lutero, vou acrescentar mais isto: Para Lutero, o significado fundamental da Palavra de Deus era o sentido ou o significado (Sinn) da comunicação que vem de Deus. Isto é muito importante quando se trata de traduzir a Bíblia e também de pregar o evangelho. Segundo Lutero, quando Deus fala, ele não apenas emite sons ou coloca uns rabiscos no papel. Não; ele diz coisa com coisa. Ele fala coisas que são verdadeiras e que têm conteúdo. (Os dogmáticos de- 36 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ pois falariam da matéria das Escrituras – as letras e as palavras – e da forma – o significado divino, o sentido e conceito.) Isso tornou possível, por exemplo, que os apóstolos e evangelistas citassem os textos do Antigo Testamento de uma forma que nem sempre é bem ao pé da letra. Eles estavam mais preocupados com o conteúdo. Isso permitiu, também, que alguém como o apóstolo Paulo formulasse a doutrina da justificação do pecador diante de Deus – uma só e mesma doutrina – de formas diferentes. Isto permite que a gente faça traduções diferentes, e até mesmo traduções como a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), que quer reproduzir o significado, e não necessariamente as mesmas palavras do original. Isto permite que o evangelho seja pregado em línguas diferentes e que novas aplicações sejam feitas a pessoas em diferentes contextos. No entanto, é sempre a mesma palavra de Deus. Dito tudo isso, temos que voltar ao começo e enfatizar que, se quisermos e tivermos que apontar para algum lugar quando alguém nos pergunta: Onde está a Palavra de Deus?, teremos que apontar para a Sagrada Escritura. É sobre ela que quero falar um pouco, para, depois, passar para o que ela define em termos daquilo que nós cremos. Houve um tempo em que, talvez, não se precisasse discutir sobre a Palavra de Deus, mas só falar a partir dela. A gente tem a impressão de que no tempo de Lutero e dos Reformadores isso era mais ou menos assim. No Catecismo de Lutero (aquilo que ele escreveu, e não a explicação – a segunda parte – que vem de outros) não tem nada específico sobre a Palavra de Deus. As Confissões Luteranas não têm um artigo especial sobre as Escrituras. Não tem nada disso na Confissão de Augsburgo. Mas no Sumário da Doutrina Cristã e na Dogmática tem. É que hoje isso se tornou necessário. Dizemos que “o que não é bíblico não é teológico”. Em outras palavras, nossa teologia sai da Bíblia. E se a Bíblia não é mais levada a sério, aí nos puxaram o tapete e não temos mais como fazer teologia. Por isso, a primeira coisa que os teólogos têm que fazer, hoje, é discutir a própria Bíblia. Nós, hoje, não vamos entrar nessa discussão. Vamos deixar isso para os teólogos, quando eles se reúnem. Quero falar de coisas mais leves e práticas. Mas, para que não tenham a impressão de que as Confissões Luteranas não têm nada a dizer sobre a Bíblia, preciso logo me corrigir e dizer que tem, sim, um parágrafo a respeito disso. Está bem no comecinho da Fórmula de Concórdia, a última das Confissões Luteranas (de 1580), num trecho conhecido como “Da Suma, Regra e Norma [de Acordo com a Qual Deve Ser Julgada Toda Doutrina e Devem Ser Explicados e Decididos, de Maneira Cristã, os Erros Que Surgiram]”. 37 IGREJA LUTERANA 1. Cremos, ensinamos e confessamos que somente os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento são a única regra e norma segundo a qual devem ser ajuizadas e julgadas igualmente todas as doutrinas e todos os mestres, conforme está escrito: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para os meus caminhos” Sl 119. E São Paulo: “Ainda que um anjo vindo do céu vos pregue diversamente, seja anátema”. Gl 1. Outros escritos, entretanto, dos antigos e dos novos mestres, seja qual for o nome deles, não devem ser equiparados à Escritura Sagrada, porém todos lhe devem ser completamente subordinados, não devendo ser recebidos diversamente de ou como mais do que testemunhas da maneira como e quanto aos lugares onde essa doutrina dos apóstolos e profetas foi preservada nos tempos pós-apostólicos (Livro de Concórdia, p. 499). O que se destaca nessa afirmação é que a Sagrada Escritura é vista como uma régua que é usada para medir o que é ensinado e quem ensina. Ela é o padrão usado em nosso controle de qualidade. Claro, esta ênfase era necessária no contexto em que foi redigida a Fórmula de Concórdia, a saber, um contexto de conflitos doutrinários. Nós dizemos que a Bíblia é norma de fé e de vida. Fazemos isso com base no que a própria Bíblia diz (2 Tm 3.16). Vou voltar a isso um pouco adiante. De momento, preciso dizer (talvez para surpresa de alguns ou da maioria) que as Confissões Luteranas (e, por extensão a teologia luterana e os pastores luteranos) nunca definiram quais são “os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento”. Quantos livros são? Sessenta e seis! Como você sabe? É só contar no Índice. Onde os luteranos se pronunciaram a respeito? A rigor, em lugar nenhum. Neste caso, nossa prática mostra o que cremos. (E o curioso é que a Igreja Católica Romana, que depende mais do papa do que da Bíblia, definiu, no Concílio de Trento, uma lista de livros; os luteranos nunca fizeram isso. Pastores são perguntados, na Ordenação ao Ministério, se crêem que os livros canônicos do Antigo e do Novo Testamento são a palavra inspirada por Deus e única norma infalível de fé e vida [respondendo que crêem], mas nunca ninguém dá uma lista de quais sejam esses livros). E já que ouvimos outra vez que os livros canônicos são norma de fé e de vida, talvez seja o momento de perguntar: De onde nos vem essa linguagem, isso de falar em “norma de fé e de vida”? Essa forma de falar nos vem de uma conhecidíssima passagem bíblica: 2 Timóteo 3.16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na 38 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ justiça”. Ou, como diz o texto da NTLH, “... útil para ensinar a verdade (norma de fé), condenar o erro (isto aparece no texto da Fórmula de Concórdia), corrigir as faltas e ensinar a maneira certa de viver (norma de vida)”. É assim que a Escritura é lâmpada para os pés, e luz para os caminhos. II. LIVRO DIVINO-HUMANO Que livro é esse? Este é um livro ou, melhor, uma biblioteca de livros, que tem uma longa história. Está pronto há quase 2000 anos. É, hoje, disparado, o livro mais traduzido, mais vendido e mais lido em todo o mundo. É o livro sobre o qual mais se escreve (diria alguém que, logo depois, vêm os escritos de Shakespeare). Mas, pela idade, é um livro bem antigo. As capas bonitas e as traduções bem compreensíveis que temos hoje meio que escondem a realidade de que se trata de um livro antigo. Escrito em línguas que, mesmo sendo línguas ainda faladas hoje (hebraico e grego), eram línguas bastante diferentes das que hoje conhecemos. Mas, mesmo assim, língua de gente como a gente. Línguas que ainda hoje ensinamos e que podem ser aprendidas. Aliás, por que não poderiam os leigos se interessar pelas línguas bíblicas? Estudar hebraico e grego para poder ler a Bíblia no original não deveria ser algo que interessa exclusivamente a pastores. Que livro é este? É um livro divino-humano, ou, se preferir, um livro humano-divino. Verdadeiramente humano e verdadeiramente divino. Como Cristo, a Palavra de Deus. A Bíblia não caiu pronta do céu. Como diz um personagem do livro O Código da Vinci, ele não foi mandado por fax do céu. Ou, como diríamos hoje, não veio como anexo de um email. A formação da coleção que é a Bíblia foi um longo processo. Nisso estavam envolvidas pessoas, mas não se tratou de um processo puramente humano. Assim eu acredito. E aqui cabe um comentário sobre o famoso Código da Vinci. Esse da Vinci é o Leonardo da Vinci, que pintou o quadro que é, talvez, o quadro mais conhecido de toda a arte cristã. Para quem não leu o livro – e é bem provável que poucos aqui o fizeram – explico que uma das coisas que ele diz com a maior naturalidade é que o Novo Testamento foi formado por uma decisão do imperador Constantino lá pelo ano 330 d.C., por razões políticas. Era preciso uma divindade e então escolheram Jesus e os livros que promoviam um Jesus divino (levando à supressão dos livros em que Jesus aparece como homem). E, claro, a Igreja aproveitou para escolher também os livros que promoviam um ponto de vista patriarcal, eliminando, por exemplo, a memória de Maria 39 IGREJA LUTERANA Madalena e outras mulheres. A história desmente Dan Brown. A espinha dorsal do cânone do NT já estava pronta no ano 200 (se não antes), ou seja, 130 anos antes da data que Dan Brown defende. Quando as autoridades da Igreja se pronunciaram, já era, por assim dizer, tarde: o povo da igreja já sabia que livros faziam parte da Bíblia e que livros não deveriam ser incluídos. E o Jesus mais humano é exatamente o que aparece nos Evangelhos que estão no Novo Testamento. Na Bíblia, o livro de Deus, não temos tudo. Ou seja, a Bíblia não explica tudo, não tem resposta para tudo. E os próprios escritores confessam isso. Paulo diz, em 1 Coríntios 13.12, num contexto em que fala de profecias e revelações, que conhecemos em parte, que vemos como em espelho, obscuramente. E a NTLH, para que a gente entenda o que Paulo disse no contexto dele (uma época em que espelhos feitos de metal polido só permitiam ver mais ou menos o que se enxerga quando se olha para dentro de uma poça d’água), usa a imagem de um espelho embaçado. Já que falamos disso, cabe um comentário sobre o mais recente filme dos Simpsons. Segundo consta, a certa altura Homer folheia uma Bíblia e resmunga: “Este livro não tem resposta nenhuma”. Alguém talvez dirá: Não basta folhear; tem que ler. Seja como for, a questão está posta e cabe uma resposta. Talvez o filme esteja reagindo contra a visão de muitos de que a Bíblia tem todas as respostas. Existe, é claro, uma grande diferença entre não ter resposta para tudo e não ter resposta nenhuma. As questões mais importantes da vida (e da morte) a Bíblia responde. Ela pode nos tornar sábios para a salvação pela fé em Cristo Jesus (2 Tm 2.15; João 20.21). E em Rm 15.4 diz que “tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança”. A propósito de folhear, ler, e assim por diante, cabe um lembrete: a gente poderia usar mais a Bíblia, ler mais a Bíblia. Nós luteranos, em especial. Claro, sempre temos dado preferência ao usar bem. Isto não impede que se leia mais. E o que é usar bem? É, em resumo, fazer duas coisas: Primeiro, ler com cuidado o texto (o que está escrito). Segundo, levar bem a sério o contexto, ou seja, aquilo que está ao redor do que estamos lendo (e esse ao redor inclui o período histórico e o lugar cultural em que o texto foi escrito). Esses dois princípios são diariamente desrespeitados pelos nossos ilustres profissionais da fé que gostam de pinçar versículos isolados e colocá-los na tela da TV. Outro dia, ao mudar de canal, parei quando vi um texto na tela. Era 2 Rs 6.30 – “Tendo o rei ouvido as 40 ELE FALOU E ESTÁ FALANDO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO NA NORMA DE FÉ palavras da mulher, rasgou as suas vestes, quando passava pelo muro; o povo olhou e viu que trazia pano de saco (roupa de pano grosseiro) por dentro, sobre a pele”. O texto era, de fato, o texto que aparece na Bíblia. Qual foi o problema? O texto foi isolado do contexto. Não se leu nada em volta. Por quê? Porque se queria tirar do texto uma lição que ele não traz. E que lição foi essa? A seguinte: Muita gente tem roupa bonita por cima, ou seja, tem aparente felicidade, mas por baixo está com pano de saco. Segundo o profissional da fé, o rei teria que se desfazer do pano de saco. Só que o texto não fala nada disso. Se havia alguma coisa errada com aquele rei, não era o fato de que faltava a roupa bonita (prosperidade, que é o que sempre se prega nesses programas). O que havia de errado, se é que havia, é que o rei não quis mostrar publicamente que estava em situação de penitência (algo que o pano grosseiro queria simbolizar). O que o rei deveria ter tirado é aquela roupa bonita que dava a impressão de que tudo ia às mil maravilhas numa situação de fome aguda em que “duzentos gramas de esterco de pomba custavam cinco barras de prata” (2 Rs 6.25). É interessante como esse pessoal chega nesses textos. Eles chegam lá porque querem provar alguma coisa. Usam a Bíblia como arma. Nesse ponto nós luteranos temos uma visão da Bíblia que muitos, infelizmente, não têm. Para muitos, tudo na Bíblia tem a mesma importância, especialmente quando a gente quer fundamentar os programas da igreja da gente. No outro lado, existem aqueles que reduzem tudo ao evangelho, assim como eles o entendem e definem. Este “evangelho” muitas vezes não passa de um “Deus tolera tudo”. Ficam com uma mensagem central e descartam o resto. Esses tiram a Bíblia da jogada e acabam entrando para uma ONG ecológica. Perdendo a Escritura, a gente perde o evangelho. Adaptando uma comparação usada por Lutero: quanto mais furos a gente fizer nos panos em que o menino está enrolado (as Escrituras), maiores serão as chances de que o menino vai acabar caindo fora. Nós luteranos confessionais somos diferentes. Não abrimos mão de nada, mas ao mesmo tempo reconhecemos que existe um centro ou um núcleo evangélico que é mais importante (mesmo não sendo mais Bíblia) do que o restante. Por exemplo: Em Gn 10.9 diz que Ninrode foi valente caçador diante do Senhor (o patrono dos caçadores, diria alguém). Isto é muito verdadeiro. Só que não é tão importante quanto “Deus amou o mundo ... que deu o seu Filho ... para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. 41 IGREJA LUTERANA III. NORMA DE FÉ Que é que Deus falou e fala neste livro, sua Palavra? Ele nos diz o que (ou em quem) devemos crer. Ele nos ensina a dizer “creio”. Ele nos ensina em quem crer. Creio. “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar”. Pouca gente diria que não tem fé. Mas fé em quê? Fé em quem? Aí a coisa fica mais complicada. Poucos sabem ou saberiam dizer em que(m) crêem. A propósito disso, tem aquela história do carvoeiro (sujeito rude e simples que trabalhava em mina de carvão) que, verdadeira ou não, ficou famosa e criou até um nome para certo tipo de fé, a fé do carvoeiro. Perguntaram ao carvoeiro: Em que(m) você crê? E ele respondeu: Creio no que a igreja crê. Pergunta seguinte: E o que é que a igreja crê? Resposta: A igreja crê o que eu creio. Fé de carvoeiro. Fé implícita. Fé que não sabe em quem ela crê. Não são assim os homens bíblicos. Paulo diz: Porque sei em quem tenho crido (2 Tm 1.12). Nós não somos que nem aquele carvoeiro, porque, depois de dizer “creio”, nós sabemos ir adiante. A saída do carvoeiro deveria ter sido esta: Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra ... Sim, os credos expressam o que nós cremos. E, mais importante, eles são resumos da Bíblia, resumos daquilo que cremos, a partir da Bíblia. Eles são regra de fé. Credo quer dizer “creio”, em latim. Por isso, o Credo não é uma oração. É nossa confissão de fé. É nosso testemunho. Você diz que não sabe testemunhar? Como não? Você faz isso sempre de novo, cada vez que diz o Credo. Claro, no contexto protegido do culto é mais fácil. Mas aquele é o nosso momento de pregar. (Outro momento em que os leigos pregam na igreja é quando participam da Ceia. Paulo escreve que os participantes anunciam a morte do Senhor até que ele venha. Por isso o Dr. Carl F.W. Walther chamou a santa ceia de “o púlpito dos leigos”). Existem igrejas que não usam os credos. Dizem que, como não estão na Bíblia, não teria como usá-los na igreja. Os luteranos nunca rejeitaram os credos. Ouça o que eles dizem a respeito dos mesmos: [“... confissões breves e categóricas [schlüssig, bündig], que foram consideradas como a fé e confissão unânimes, universais, cristãs da igreja ortodoxa e verdadeira, a saber, o Símbolo Apostólico, o Símbolo Niceno e o Símbolo Atanasiano” (Epítome, Da Suma, 2, p. 499)] “... antigamente a verdadeira doutrina cristã foi reunida, em puro e são entendimento, da palavra de Deus, em breves 42 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ artigos ou capítulos contra a falsificação dos hereges, confessamos ... os três Símbolos gerais ... como as gloriosas confissões da fé, breves, cristãs e fundadas na palavra de Deus ...” (Declaração Sólida, Da Suma, 2, p. 541). Portanto, para falar sobre Bíblia como regra de fé, nada melhor do que seguir o resumo dessa fé, conforme aparece no Credo (ou Símbolo) Apostólico. Ele é nosso distintivo. É como o escudo e as cores que identificam um clube de futebol. Em nosso caso, nos identifica como Igreja. Em primeiro lugar, preciso dizer que ninguém mais acredita que o Credo Apostólico seja apostólico no sentido de ter sido escrito pelos apóstolos. (Na Idade Média se pensava que cada apóstolo tinha contribuído com um pedacinho ou uma frase do Credo.) Mas ele é, com certeza, apostólico no sentido de estar em conformidade com a doutrina apostólica. Ou seja, o Credo Apostólico sai diretamente do testemunho apostólico do Novo Testamento. Em termos históricos, tudo indica que ele surgiu (ou se popularizou) na igreja romana, sendo usado como confissão de fé no batismo. (Ainda hoje é usado por nós nos batismos; em culto com santa ceia, dizemos o Credo Niceno, que dá maior destaque à pessoa de Cristo). Antes de mais nada, está claro que o Credo tem estrutura trinitária. Exemplos dessa estrutura trinitária, no Novo Testamento, aparecem em 2 Co 13.14; Mt 28.19; 1 Co 6.11; 12.4; 2 Co 1.21,22; 1 Ts 5.18,19; Gl 3.11-14. E isto é muito importante: impede que se tenha ou confesse uma fé vaga em Deus, talvez um Deus que é simplesmente o arquiteto do universo. Também impede que se tenha uma fé exclusiva em Jesus. Por outro lado, o primeiro artigo e o segundo artigo protegem a fé cristã de deslizar para o entusiasmo, no qual não se dá atenção suficiente ao fato de que o ser humano é criatura e que ele vive neste mundo, num contexto bem específico, com todos os seus dilemas e dificuldades. Que texto usar? Ora, o texto que todo mundo conhece de cor. Sim, eu poderia usar, nesta discussão, o texto do Credo que aparece em nosso hinário. Mas, preferi usar o texto que se encontra no Livro de Concórdia, que, pelo que parece, é o texto oficial: CREIO EM DEUS, O PAI ONIPOTENTE, CRIADOR DO CÉU E DA TERRA. E EM JESUS CRISTO, SEU ÚNICO FILHO, NOSSO SENHOR, O QUAL FOI CONCEBIDO DO ESPÍRITO SANTO, NASCEU DA VIRGEM MARIA, PADECEU SOB PÔNCIO PILATOS, FOI CRUCIFICADO, MORTO E SEPULTADO, DESCEU AOS INFERNOS, NO TERCEIRO DIA RESSUSCITOU DOS MORTOS, SUBIU AOS CÉUS, ESTÁ SENTADO À DESTRA DE DEUS, O PAI ONIPOTENTE, DONDE HÁ DE VIR PARA JULGAR OS VIVOS E OS MORTOS. 43 IGREJA LUTERANA CREIO NO ESPÍRITO SANTO, A SANTA IGREJA CATÓLICA A COMUNHÃO DOS SANTOS, A REMISSÃO DOS PECADOS, A RESSURREIÇÃO DA CARNE E A VIDA ETERNA. AMÉM. Não será possível, neste momento, entrar em todos os pormenores do Credo. Mas vou falar um pouco a respeito de cada uma das partes, aprofundando alguns pontos que ganharam importância em tempos recentes. Creio. Esta é a parte mais pessoal do Credo. Eu creio. Minha suspeita era que, no Novo Testamento, é mais comum o “cremos” (plural comunitário), mas essa suspeita não se confirmou. Encontrei cinco passagens com “creio” ou “tenho crido” (Mc 9.24; Jo 9.38; 11.27; At 27.25; 2 Tm 1.12) e cinco passagens com “cremos” ou “temos crido” (Jo 6.69; 16.30; At 15.11; Rm 6.8; 2Co 4.13). Na verdade, nunca cremos sozinhos. A mãe Igreja nos ensinou a fé. Mas ninguém pode crer por mim; só eu posso dizer “creio”. Mas digo esse “creio” no contexto do “cremos”. Creio o quê? Que Deus existe? Pergunta errada, segundo o Credo. Creio em quem? Esta é a pergunta certa. Crer que Deus existe é pressuposto (Sl 14.1). (Esse crer em aparece em textos como At 14.23; Rm 10.14; Ef 1.13.) Crer em Deus é lançar-se sobre Deus, confiar-se a ele, entregar-se a ele. Creio em Deus. Para muitos, muitos mesmo, o credo termina aqui. Para nós, não. Esse Deus, que é um só, é o Pai onipotente. Deus é Pai. Apenas em relação ao Filho ou na medida em que tem o Filho? Sim, já no Primeiro Artigo se pode prever que virá um Segundo Artigo, que fala do Filho. (Assim, no NT, sempre que se fala sobre o Pai, o Filho está subentendido. E, quando se fala do Filho, o Pai fica subentendido.) No NT, “Pai”, em referência a Deus, aparece 270 vezes. Isso não é pouco, especialmente em comparação com o AT, onde raras vezes Deus é chamado de Pai (Dt 32.6 (?), Is 63.16 [duas vezes], Jr 3.4,19; Ml 2.10). Há, é claro, momentos em que Deus chama os seus de filhos. Mas também isso é raro (Êx 4.22-23; Is 1.2; Os 11.1; em relação ao rei messiânico: 2 Sm 7.14; Sl 2.7; 89.27-28). Talvez a passagem mais significativa seja Malaquias 2.10: “Não temos nós todos o mesmo Pai? Não nos criou o mesmo Deus? Por que seremos desleais uns para com os outros, profanando a aliança de nossos pais?” Neste texto fica clara a ligação entre Pai e Criador. Em que sentido Deus é Pai? (Aliás, como Deus nunca se chama de mãe e ninguém nunca se dirige a ele como mãe, a gente respeita o que foi revelado e não chama Deus de mãe, embora aqui e ali Deus se compare com as atitudes de uma mãe.) No dia dos pais, me chamou a atenção um texto do escritor Moacyr Scliar: 44 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ O bastão da paternidade passa de mão em mão através de gerações sem conta. ... Meu pai recebeu o bastão do meu avô e este do meu bisavô (não os conheci) e assim numa sucessão que regride no tempo até chegar ... a quem? Quem foi o primeiro pai? Darwin nos remete a um primata qualquer, mas a Bíblia tem uma resposta que corresponde muito mais às nossas fantasias e aspirações. Deus foi o primeiro pai. E uma figura paterna. Ele é, ao menos na visão dos pintores renascentistas: aquele homem de face severa (Deus nunca sorri), de longas barbas brancas. ... a Ele devemos a partida para a Grande Corrida do Revezamento Humano (Donna ZH, 12 de agosto de 2007, p. 15). O Scliar, como gosta de fazer, menciona a Bíblia. Só que ele está errado quando diz que Deus deu início à grande corrida de revezamento. Deus foi o primeiro pai, diz Scliar. Errado; Deus é Pai. Hoje. Agora. Dizer que Deus é Pai é mais do que dizer simplesmente que existe Alguém que, lá no começo, criou o mundo e o homem. Nesse sentido, estava mais correta a propaganda do dia dos pais de um hipermercado: Pai é quem cuida, Pai é quem protege, Pai é quem educa. Deus é Pai também na medida em que cuida. E um Pai é sempre pessoal; é uma pessoa, um tu. Quem diz Pai não pode mais falar de um destino que governa cegamente ou de uma “força divina” que está por aí. O Pai é um Tu que se comunica com a gente e que podemos invocar. Pai onipotente. É assim que está no credo, e isso nos vem do latim. Onipotente é quem tudo pode. Ele tem capacidade de fazer todas as coisas. Ninguém, por mais inteligente que seja, pode dizer o que é onipotência. E isso, apesar de encontrá-la sempre e em toda a parte, pois o mundo não seria mundo sem ela. Só que, no grego, a palavra usada pode dizer algo um pouco diferente. É a palavra PANTOCRÁTOR. E esta aparece no NT em 2 Co 6.18; Ap 1.8; 4.8; 11.17; 15.3; 16.7,14; 19.6,15; 22.22, sendo, em geral, traduzida por “Todo-Poderoso”. Deus é pantocrata. Ele é todo-soberano, todo-governante. Ele governa todos, ele sustenta o mundo. Em vez de poder fazer tudo, como sugere “onipotente”, ele faz tudo. Criador do céu e da terra. Isso vem meio que direto do primeiro versículo da Bíblia (Gn 1.1). Em outras religiões, no tempo em que a Bíblia foi escrita, não se afirmava isso. Pensavam que o mundo era eterno, ou seja, sempre existiu. Outros, os gnósticos, achavam que Deus não podia sujar as mãos, criando a matéria. Hoje se fala sobre um “big bang”. Poucos, pelo que sei, na comunidade científica, diriam hoje que o mundo sempre existiu. Houve um começo. 45 IGREJA LUTERANA Deus criou céus e terra. Nada é dito do ser humano. Estamos incluídos na terra que Deus criou. Aliás, fomos feitos do barro. Lutero, na explicação do Credo, fala que Deus me criou a mim. Claro que isso é importante. Além de ser verdade, faz bem para nossa auto-estima. A gente se sente bem com essa verdade. Não só criados por Deus, mas criados à imagem de Deus. E aqui preciso pausar para uma reflexão e uma ênfase. Sou criatura de Deus. Isto é bem diferente de uma visão ateísta da origem do ser humano representada na teoria da evolução. Aliás, alguém já disse, com razão, que, depois da propagada “morte de Deus” (que é mais ou menos o mesmo que negar que Deus existe), veio a morte do homem. Historicamente, três figuras tiveram grande influência nesse processo: Nicolau Copérnico, Charles Darwin e Sigmund Freud. Copérnico tirou o homem, na Terra, do centro do Universo. Somos uma partícula de pó nalgum canto remoto do Universo. Giramos em torno do sol, e não o contrário. Que choque! Darwin, todo mundo sabe, veio com essa estória de que não passamos de um animal mais evoluído. E, quando ainda restava o recurso de dizer que temos uma alma ou uma consciência que nos distingue dos animais, apareceu Freud para dizer que nossas emoções e sentimentos íntimos são simples produto de nossos instintos físicos. Mas eu quero voltar a Darwin e a visão evolucionista, mais especificamente sobre a influência e os resultados da visão evolucionista. Noutro dia foi publicado na revista Veja (agosto de 2007) uma matéria intitulada “Só os vermes são fiéis”. Trata-se de uma resenha sobre um livro que acabava de ser publicado no Brasil, chamado O Mito da Monogamia. Ali se argumenta que o desejo de variedade sexual foi incutido no homem (e, em grau pouco menor, na mulher) pela evolução. Seria um fato incontestável à luz fria da ciência. Logo, a biologia não deixa outra alternativa: trair é natural. Mesmo que admitamos, para fins de exercício, que somos todos, por natureza, polígamos, isto ainda não significa que isto é algo bom, muito menos que é assim que as coisas deveriam ser. Por outro, este é o caminho natural para onde nos leva o ateísmo. Já disse o escritor russo Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Creio em Deus, o Pai onipotente, criador do céu e da terra. Para muitos, o Credo termina aqui. Até crêem em Deus, mas não crêem em Jesus Cristo, o Filho de Deus. Portanto, aqui existe um divisor de águas, uma ilha no meio do rio fazendo com que o canoeiro tenha que decidir de que lado vai passar. Só os cristãos passam do lado onde está Jesus Cristo. E (creio) em Jesus Cristo. Creio em Cristo. Quem é ele? Seu único Filho. Filho de Deus, o Deus de quem vínhamos falando até aqui. Cris- 46 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ to é Filho (Mt 3.16-17; João 3.16, etc.). Ele é único. Isto é interessante. Seria de esperar “seu Filho unigênito” (No NT, em referência a Jesus, só em João 1.14,18; 3.16; 1 Jo 4.9). Mas não é isso que dizemos; dizemos “único”. Existem aqueles que acham que este “único” deveria ser entendido no sentido de “unigênito”, mas eu já acho que o “unigênito” (que aparece, por exemplo, em João 3.16) deve ser entendido no sentido de “único”. Unigênito (palavra em que aparece o mesmo radical que nos dá a palavra “gênese”) leva a perguntar: ele foi gerado como e quando? Único pode significar que “não existe outro”. E isto é verdade no caso de Cristo. “Único” pode, também, significar que “não existe outro igual, não existe outro tão importante” (mais ou menos no sentido em que Isaque é o filho único de Abraão – Hb 11.17). E isso também é verdade. Quando dizemos que Jesus é único, estamos dizendo que ninguém é Filho assim como ele é. Seu Filho, nosso Senhor. Esta é outra parte bem pessoal. Dizemos quem Jesus é em relação a nós. Poderia ser “meu Senhor”; mas ainda é plural: nosso Senhor. Dizer que Jesus é Senhor é fazer a confissão de fé original no NT (1 Co 16.22; 1 Co 12.3; Rm 10.9; Fp 2.11). Para aqueles primeiros cristãos, dizer que Jesus é Senhor era o mesmo que dizer que ele é Deus. Em 1 Co 8.5-6, Paulo reconhece que, para os pagãos, havia muitos deuses e senhores. E continua: “para nós há um só Deus, o Pai, ... e um só Senhor, Jesus Cristo”. Ele não é um superhomem ou um semideus; ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. No que segue, fazemos um breve relato da vida de Jesus. O texto é longo, mas poderia ser muito mais. O QUAL FOI CONCEBIDO DO ESPÍRITO SANTO, NASCEU DA VIRGEM MARIA, PADECEU SOB PÔNCIO PILATOS, FOI CRUCIFICADO, MORTO E SEPULTADO, DESCEU AOS INFERNOS, NO TERCEIRO DIA RESSUSCITOU DOS MORTOS, SUBIU AOS CÉUS, ESTÁ SENTADO À DESTRA DE DEUS, O PAI ONIPOTENTE, DONDE HÁ DE VIR PARA JULGAR OS VIVOS E OS MORTOS. Longo ou não, o que dizemos é muito importante. Como disse alguém: “O relato da vida, morte, ressurreição e exaltação de Jesus ocupa o centro da Bíblia” (Stanley Grenz). Algumas coisas que dizemos se explicam ou somente são possíveis à luz do fato de que ele é verdadeiro Deus. Outras são bem típicas de sua natureza humana. Um rascunho dessa confissão já aparece em 1 Co 15. A gente poderia até esperar que se dissesse o que Jesus significa para mim ou para nós, mas isso não é feito no Credo. Ele conta a história de Jesus de forma bem objetiva. O qual foi concebido do Espírito Santo: Isto vem do primeiro capítulo de Lucas (Lc 1.34-35). Nasceu da Virgem Maria: Isso é tirado de Mt 1.18. Cresceu em Nazaré, começou a pregar quando tinha uns 30 47 IGREJA LUTERANA anos, chamou discípulos, escolheu apóstolos, pregou o reino de Deus ... Tudo isso poderia estar aí, mas não está. Pulamos logo para o final da história dos Evangelhos, para a Paixão de Cristo, como que confirmando a tese de que os Evangelhos são histórias da última semana de Jesus em Jerusalém com uma longa introdução (Martin Kähler). Padeceu sob Pôncio Pilatos. Padecer é sofrer. É raro dizer-se que Jesus sofreu, mas isso também aparece na Bíblia (Mc 8.31; At 3.18). Padeceu sob Pôncio Pilatos? Será? Claro! Não foi lá que ele foi espancado e açoitado (Mc 15.15)?! E esse Pilatos, secretário da segurança da província da Judéia, queria, como disse alguém, sair de fininho, sem se comprometer, e acabou, em contrapartida, “embalsamado” no Credo cristão. Lá está ele, como uma das pessoas do Credo. É mencionado junto com Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, a virgem Maria, os vivos e os mortos, os santos – não porque ele mereça, mas porque faz parte da história. Foi crucificado. Duas palavras. Mas daria 20 ou mais minutos de cinema. Um mundo de horror, mas o que está escrito é só isto, bem como está nos Evangelhos (Mc 15.25). Para quem conhecia a prática, isso bastava. Ele foi crucificado. E Paulo diz, em 1 Coríntios 1, que ele prega Cristo crucificado. Na verdade, só a cruz de Jesus distingue o cristianismo de outras religiões do mundo. As outras querem que você se crucifique. Só o cristianismo diz que Jesus foi crucificado por nós. Morto. Sim, morto. O atestado de óbito está em Jo 19.33-34: não lhe quebraram as pernas, mas abriram o lado e logo saiu sangue e água. Sepultado. Também isso os Evangelhos relatam (Lc 23.53). Morto e sepultado. Verdadeiro homem. Desceu aos infernos. Ou seria “desceu ao inferno”? Literalmente, o latim, donde isso foi traduzido, traz “infernos”. Mas, então, teria mais de um? Não chega um? Para nós, “inferno” virou sinônimo de lugar de tormento. Para os cristãos do tempo em que o Credo foi formulado, “infernos” eram as regiões subterrâneas onde, assim se acreditava, ficavam as almas dos mortos. É por isso, por exemplo, que essa parte do Credo, ao ser recitada na Igreja Católica Romana, reza assim: “desceu à mansão dos mortos”. Na verdade, esta é uma interpretação possível. Cristo desceu ao(s) inferno(s). Onde está isso, na Bíblia? Isso é um pouco mais difícil de mostrar e tem gente que escreveu livro a respeito. Passagens que podem ser mencionadas são Mt 12.39-40 (“o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra”); At 2.31 (“nem foi deixado na morte/ no Hades”); Rm 10.7 (“quem descerá ao abismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos”); Ef 4.9 (“havia descido até às regiões inferiores da terra”). 48 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ Nada é dito a respeito do propósito dessa ida. Teólogos, é claro, tratam de achar um motivo para essa ida. Em geral, se entende que Cristo foi para se mostrar vitorioso, depois que subjugou o inimigo. Outra possibilidade – e talvez era assim que os primeiros cristãos que usaram o Credo entenderam isso – é que ele “desceu aos infernos” apenas como conseqüência de sua morte. Ele não só morreu; ele foi até onde estão os mortos. É uma possibilidade. A Fórmula de Concórdia, no entanto, entende que Cristo “destruiu o inferno para todos os crentes, e os livrou do poder da morte, do diabo, e da condenação eterna” (Artigo IX, Epítome 4). Ao mesmo tempo acrescenta: “quanto à natureza como isso aconteceu, é coisa que devemos reservar ao outro mundo”. No terceiro dia ressuscitou dos mortos. No terceiro dia (ou, como diz em alguns textos: Mc 8.31; 9.31; 10.34, “depois de três dias”) ele ressuscitou. É páscoa. Ele ressuscitou. Difícil é dizer quantas vezes se afirma isto no NT (1 Co 15.14, por exemplo). Em todo o caso, “a ressurreição, juntamente com a expiação, é o centro da mensagem do cristianismo” (Kent Knutson). O teólogo C. F. Evans escreveu: “O Cristianismo – pelo menos o do NT – é a religião da ressurreição”. O NT foi escrito a partir da perspectiva da ressurreição. O livro de Atos dos Apóstolos, para citar um exemplo, pode ser chamado de “Evangelho da ressurreição”. Em todos os sermões deste livro (At 2, At 3, At 4, At 5, At 10, At 13, At 17), a ressurreição é o tema central. Em Atenas, Paulo pregou a ressurreição. Há quem diga que Paulo não teve grande sucesso com seu sermão em Atenas porque tentou falar aos filósofos numa linguagem filosófica quando deveria ter pregado o Cristo crucificado (1 Co 2.2). Isto não é verdade. O problema para aqueles filósofos foi a mensagem da ressurreição. Mas esta mensagem é o evangelho. Como disse outro teólogo, “não haveria até hoje nenhum evangelho, nenhuma carta do Novo Testamento, nenhuma fé, nenhuma Igreja, nenhum culto, nenhuma oração, sem a mensagem da ressurreição de Cristo” (Günther Bornkamm). Subiu aos céus. Para esta afirmação do Credo não temos muitas passagens bíblicas. A rigor, apenas o final do Evangelho de Lucas (Lc 24.51), o começo do livro de Atos (At 1.11) – e o relato deste acontecimento é uma maneira de unir os dois volumes da obra de Lucas – e Ef 4.10. Mas são três passagens! (A forma plural, “céus”, aparece em Ef 4; em Lucas e Atos se diz que ele subiu ao “céu”.) Como disse alguém, “a ascensão assinala o fim do envolvimento de Deus na história daquela maneira. A ascensão é o evento terminante. ... Jesus não vai aparecer a nós assim como apareceu aos discípulos. Ele resolveu ir embora, isto é, mudar a forma pela qual trabalha conosco” (Kent Knutson). 49 IGREJA LUTERANA Está sentado à destra de Deus, o Pai onipotente. Esta afirmação, que é bem mais freqüente no NT, subentende a anterior: que ele subiu aos céus. E toda vez que se chama Jesus de Senhor está implícito esse estar sentado à destra de Deus. Em nossa Bíblia de Almeida aparece tanto a palavra “destra” como “direita”, o que dá no mesmo. (Algumas passagens: At 2.33; Rm 8.34; Ef 1.20; Cl 3.1; Hb 8.1; 10.12; 12.2; 1 Pe 3.22.) Onde fica a destra de Deus? Lutero respondeu, e está no Livro de Concórdia: “A destra de Deus está em toda a parte” (FC, Art. VII, SD, 95). Cristo não ocupa nem desocupa espaço. E por estar à destra de Deus, ele pode estar realmente presente na santa ceia, e isso em todos os lugares em que a ceia estiver sendo celebrada, mesmo simultaneamente. Donde há de vir para julgar os vivos e os mortos. Afirmamos uma série de coisas a respeito do que se passou com o Filho de Deus no passado. Afirmamos também quem ele é hoje: Está à direita do Pai. E dizemos algo a respeito do que esperamos: Ele há de vir, ele virá. E dizemos bem, quando dizemos que ele há de vir. Nós, na verdade, gostamos de dizer que Cristo vai voltar. Falamos de sua volta, ou, então, de sua segunda vinda. O NT prefere falar de sua vinda, pura e simplesmente. “Anunciais a morte do Senhor até que ele venha” (1 Co 11.26), não “até que ele volte”. (É possível que aqueles primeiros cristãos estavam mais voltados para o futuro do que para o passado. Para eles, Cristo viria. Para nós, que estamos mais voltados para a sua vinda na encarnação, a sua outra vinda só pode ser a sua volta). Ele virá para quê? Para julgar os vivos e os mortos. Essa expressão é tão bíblica que é exatamente assim, nessa seqüência, que ela aparece no NT (só em duas passagens: At 10.42; 2 Tm 4.1). Poderia ser “julgar os mortos e os vivos”, mas não é. Os vivos são os que estiverem vivos no momento da vinda de Cristo; os mortos, os que já tiverem morrido. Creio no Espírito Santo. Na verdade, Lutero nos ensinou a dizer que cremos que não podemos por nossa própria razão ou força crer, mas que o Espírito Santo tornou isso possível. Aqui, confessamos que cremos no Espírito Santo (Jo 14.26), assim como cremos no Pai e no Filho. Crer nele é dizer, de forma indireta, que o Espírito Santo é Deus. (Raramente se ora ao Espírito; em geral ele é objeto de nossa súplica. Em outras palavras, pedimos o dom do Espírito). Interessante é que não dizemos nada diretamente a respeito do Espírito Santo. Nada como “Consolador” ou “Doador da Vida”, como dizemos no Credo Niceno. A menos que estejamos dizendo algo neste sentido quando continuamos com A SANTA IGREJA CATÓLICA A COMUNHÃO DOS SANTOS, A REMISSÃO DOS PECADOS, A RESSURREIÇÃO DA CARNE E A VIDA ETERNA. 50 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ E aqui se estabelece um interessante debate. Nós dizemos, no culto, Creio no Espírito Santo, na santa igreja cristã, etc. Agora, em que sentido podemos dizer que cremos na igreja? Certamente não no mesmo sentido em que cremos no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Em que sentido, então? Com certeza no sentido de “cremos que ela existe”. É por isso que, na tradução do Credo que aparece no Livro de Concórdia, diz: Creio no Espírito Santo, a santa igreja ... Na verdade, o que segue é uma lista de realidades que têm relação com o Espírito Santo, mas não de forma direta ou exclusiva. Por exemplo, de que forma a ressurreição da carne se relaciona com o Espírito Santo (e somente com ele)? Por isso é que se diz que a Igreja antiga decidiu acrescentar uma série de itens aqui ao Terceiro Artigo. Por que exatamente estes e não outros? Não sabemos. Não se menciona, por exemplo, o batismo. Nem a ceia. (A menos que isto fique subentendido numa outra afirmação). Seja como for, tudo indica que a Igreja antiga, que começou a usar o Credo Apostólico no contexto do batismo, entendeu que era importante afirmar essas verdades em conexão com o batismo (subentendendo-se que o Credo Apostólico era o credo usado por ocasião do batismo). Polêmicas à parte, falamos da santa igreja católica a comunhão dos santos. Aqui, temos que ir por partes. Santa igreja. Isso sai diretamente de Efésios 5.25-27: “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela ... para a apresentar a si mesmo gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito”. Santa igreja. Só a palavra “igreja” aparece umas 110 vezes no NT. A palavra quer dizer “assembléia”, “reunião”. (Portanto, que ninguém se queixe que na igreja sempre tem reunião. Igreja é, por definição, uma reunião! Não tem como ser diferente). Além de ser chamada de igreja, ela é chamada de lavoura de Deus, edifício de Deus, os santos (povo de Deus), raça eleita, filhos de Abraão, os eleitos, rebanho, sacerdócio real, os fiéis, os justificados, seguidores, família de Deus, filhos de Deus, etc. Para muita gente, é muito difícil de dizer o que é igreja. Não assim para os luteranos. Nos Artigos de Esmalcalde, Lutero tem a coragem de dizer que “... graças a Deus, uma criança de sete anos sabe o que é a igreja, a saber, os santos crentes e ‘os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor’ ...” (AE XII, p. 338). E na Confissão de Augsburgo confessamos, no Artigo VII, que “... sempre haverá e permanecerá uma única santa igreja cristã, que é a congregação (Versammlung) de todos os crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho”. 51 IGREJA LUTERANA A santa igreja católica. Opa! Igreja católica?! Sim, no texto em latim está católica. Isso foi escrito muito antes de existir uma igreja católica romana. Já no tempo antes de Lutero e especialmente a partir do tempo de Lutero, quando passou a existir uma igreja católica romana, começou-se a usar, na tradução, o termo “cristã”. Não é exatamente a mesma coisa. Católica quer dizer geral, universal, que está em todo o mundo. (Ainda bem que não traduzimos por “a santa igreja universal”!). Cristã quer dizer “de Cristo”. A rigor, tanto se pode dizer “católica” como “cristã”. No entanto, pelas razões citadas, fica difícil de dizer “católica”, e fazemos bem em dizer “santa igreja cristã”. E por falar em católica, em meados de 2007, uma nova declaração do Vaticano, reafirmando coisas antigas, causou uma enxurrada de reações em todo o mundo. O papa reafirmou que só a igreja católica romana é igreja, as outras não. (No Concílio Vaticano II, no início da década de 1960, até haviam dito que a verdadeira igreja subsiste na Igreja Católica Romana, mas agora o papa tratou de explicar que “subsiste” significa “é”.) Foi mais um banho de água gelada nos protestantes liberais que sempre acharam que Roma estava pensando em casamento quando aceitava flertar com as outras igrejas. Agora ficou claro, mais uma vez, que, para Roma, ecumenismo é uma via de mão única. Todos os caminhos levam a Roma. Os “irmãos separados” que voltem. De Roma ninguém sai nem vai a lugar nenhum. A gente poderia falar longamente sobre isso, mas não é o momento. Importa reafirmar que, também quando se trata de igreja, é preciso ficar com a regra de fé, ou seja, definir igreja assim como a Bíblia define igreja, e não como o papa ou qualquer outra pessoa a define. O corpo de Cristo não pode ser aprisionado dentro de uma instituição. Na Bíblia, no NT, se fala da igreja tanto no singular (igreja) como no plural (igrejas). E nunca se diz que a igreja é a soma das igrejas. Tomando apenas o livro de Atos (que é onde a igreja “nasce”), pode-se dizer que ali “... a igreja é uma só, em última análise, embora somente apareça conforme se reúne em lugares específicos (cf. 14.27). Isto, porém, sempre subentende a totalidade” (NDITNT, vol. 2, 404-405). O que isto significa é o seguinte: o pequeno grupo de cristãos que se reúne numa garagem – mas que se reúne em torno da Palavra e dos Sacramentos – é igreja completa. Ela é uma das igrejas, mas ao mesmo tempo ela é a igreja. (E podem até chamar de “ponto de pregação”). Ela não precisa de nada de fora, pois está completa, como igreja. Claro, ela não vai querer ficar isolada. Ela sabe que existem outras igrejas (locais) e vai se juntar a elas para projetos, missão, etc. É o que fazemos como IELB. 52 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: UM ESTUDO DO CREDO APOSTÓLICO COMO RESUMO DA NORMA DE FÉ Emendando na frase anterior, dizemos a comunhão dos santos. Aliás, como você diz isso? Seria “a santa igreja cristã; a comunhão dos santos”? Ou seria “a santa igreja cristã – a comunhão dos santos”? Tem diferença. Com Lutero, nós aprendemos a dizer isso como uma coisa só. Há toda uma discussão em torno disso, com alguns teólogos dizendo que essa comunhão dos santos seria comunhão ou participação nas coisas sagradas (em referência aos sacramentos). É possível, mas menos provável. Aliás, as palavras “comunhão” e “santo” aparecem na Bíblia, isoladamente, mas o conjunto “comunhão dos santos” não aparece, dessa forma, em lugar nenhum. Eu prefiro tomar isso como algo que tem a ver com igreja. Só que não é um simples sinônimo de igreja. Essa afirmação nos leva um pouco adiante. É, por assim dizer, uma comunhão com os santos de todos os tempos. É como abrir o foco: santa igreja cristã é o rebanho de Jesus aqui na terra; comunhão dos santos é mais amplo, pois inclui toda a companhia celeste. A propósito de santos, mais uma vez importa definir “santos” assim como a Palavra da Verdade define esse termo. Especialmente numa época em que, afinal, os católicos romanos do Brasil têm um santo brasileiro. Quando os católicos romanos falam em santos, eles esquecem o uso de santos no Novo Testamento. Fizeram dos santos um grupo especial de intermediários, um grupo do qual a Bíblia nunca ouviu falar. Há, como é sabido, todo um processo, em que o candidato passa de servo de Deus a venerável, a beato e, finalmente, a santo. O papa tem a palavra final. Só por curiosidade: A lista mais completa dos santos da igreja católica romana, a Bibliotheca Sanctorum, é uma coleção de 18 volumes e lista mais de 10.000 santos. Quem voltou a canonizar para valer foi João Paulo II. Ele sozinho canonizou mais do que todos os outros papas do século XX juntos. E se alguém que saber por que, entre outras coisas, a Igreja Católica Romana é “romana”, basta ver esta estatística: Dos 275 nomes que Roma incluiu na lista dos seus santos, entre 1972 e 1983 (uma década mais ou menos), 86% são da Europa (236), 45% são italianos (123), e apenas 3% (8) são da Ásia. Ainda que bem que, para sermos santos, não dependemos do papa romano! A remissão dos pecados. A nova aliança, o novo testamento, foi selado com o sangue “derramado ... para remissão de pecados” (Mt 26.28). Em Cristo temos a remissão dos pecados (Ef 1.7; Cl 1.14). O que é remissão, pastor? Remissão é perdão. E o que é perdão? Perdão é perdão. Pois bem, “remissão” (e essa palavra aparece 17 vezes no NT) é cancelamento de dívida. Remir pecados é cancelar pecados, é levar os pecados embora. Pecados remidos são pecados que saem da memória de Deus. São pecados jogados no fundo do mar, como apare- 53 IGREJA LUTERANA ce na bela imagem de Miquéias 7.19. Aqui, quase ao final do Credo, pela primeira vez se fala sobre o pecado. E a doutrina do pecado é a única doutrina que não precisa de confirmação da Bíblia, porque está nas páginas do jornal todos os dias. Mas mais importante que falar do pecado é saber que existe solução para ele. E se a gente imagina que no Credo não se fala de pregação, batismo e santa ceia, aqui está a resposta. Cristo disse que está escrito que em seu nome se pregasse (proclamasse) arrependimento para remissão de pecados a todas as nações (Lc 24.47). No dia do Pentecostes, Pedro disse a cada um dos seus ouvintes que fosse batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos pecados (At 2.38). E, como já vimos, na ceia temos o sangue de Cristo que foi derramado para remissão dos pecados (Mt 26.28). A ressurreição da carne. Opa! É a segunda vez que falamos da ressurreição. (Também mencionamos duas vezes o Pai onipotente e o Espírito Santo. Mas é de Cristo que se fala mais extensamente.) Isto mostra ênfase. Agora estamos falando de nossa ressurreição. A palavra carne nos surpreende. Especialmente porque Paulo diz (1 Co 15.50) que “a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus”. Claro, o mesmo apóstolo espera que a vida de Jesus se manifeste em sua carne mortal (2 Co 4.11). Seja como for, aqui provavelmente se entende carne no sentido de corpo, como é o caso em At 2.31, onde se fala do corpo de Davi usando a palavra “carne”. E a vida eterna. Segundo Santo Agostinho, essa frase está no Credo para deixar claro que a ressurreição de que se fala é como a de Jesus, e não como a de Lázaro. É ressurreição e não simples reanimação ou volta à vida como a conhecemos neste mundo. A gente entende vida eterna como vida que não tem fim. De fato, como diz no Apocalipse (21.4), “a morte já não existirá”. Mas a palavra “eterna” pode ser lida também de outra maneira: não tanto em termos de quantidade (vida sem fim), mas de qualidade (vida real, vida verdadeira, vida de união com Deus). Vida eterna é estar para sempre com o Senhor (1 Ts 4.17). Jesus Cristo: “Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1 Jo 5.20). E vida não se conquista, vida não se merece. O que se merece é morte. O salário do pecado é a morte. Vida sempre é presente. O dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 6.23). Amém. Isto é certamente verdade. Sim, assim seja. Esta é a nossa norma de fé. Que seja sempre a minha e a tua norma e confissão. Amém. 54 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ1 Anselmo Ernesto Graff2 INTRODUÇÃO O contexto de onde se originou esse tema é um contexto de anseio por andar nos caminhos do Senhor. Esse desejo, que também é uma confissão, foi gerado em grande parte pelo contexto maior de nossa sociedade, que discute e se posiciona muitas vezes, e de maneira bem subjetiva, sobre assuntos polêmicos, como o casamento de pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do aborto e tantos outros temas que geram dúvidas nos corações dos cristãos e "revoltam" o espírito cristão, como revoltaram o do apóstolo Paulo quando ele viu a idolatria na cidade de Atenas (At 17.16). Há também outros tópicos de impacto menor, mas não menos importantes, como a educação dos filhos, o relacionamento familiar, a administração do dinheiro, a vida diária como trabalhador, empregado ou patrão e outros assuntos que se tornam em questões a serem refletidas à luz da Palavra de Deus. O que a Palavra de Deus tem a nos dizer sobre nossa vida diária? O livro de Eclesiastes, o Senhor Jesus Cristo e Martinho Lutero providenciam três resumos para a vida cristã. O autor de Eclesiastes diz: "De tudo o que se tem ouvido, a suma é: teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo o homem" (Ec 12.13). Quando perguntado sobre qual dos mandamentos seria o principal, o Filho de Deus resumiu: "O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor! Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mc 12.29-31). Para Lutero, o resumo da vida cristã é "o amor de coração puro e de consciência boa e de fé não simulada" (LUTERO, OSel, Vol. 5, Resumo da Vida Cristã, p.92). 1 Este artigo é resultado de palestra proferida no 18º. Congresso Nacional da Liga de Leigos Luteranos do Brasil, em Piratuba, SC, em 25 de agosto de 2007. 2 O Rev. Prof. Anselmo Ernesto Graff é professor de Teologia Prática no Seminário Concórdia e na ULBRA, RS. 55 IGREJA LUTERANA O PROBLEMA Essa possibilidade de simplificar ou resumir os conselhos para a vida cristã não impediu que questões referentes à Palavra de Deus como orientação, gerassem muita controvérsia e nem sempre as respostas mais claras na história do luteranismo (KOLB, 2002, p.275). A questão chegou a ser colocada num título de artigo em forma de pergunta: "Luteranos falam alto sobre a Justificação, mas sussurram sobre a Vida Santificada"? (LINDBERG, 1999, p.1). Para começar, Lutero foi compreendido nos primeiros anos da Reforma como alguém despreocupado com a vida cristã. Alguns dos seus opositores concluíram que com a pregação da justificação do pecador somente pela graça de Deus, o reformador estaria abolindo as boas obras (LUTERO, OSel, Vol. 2, Das Boas Obras, p.97), ou mostrando pouca preocupação com a vida cristã. Lutero respondeu à essa crítica dizendo que o conceito de "boas obras" para esses críticos é muito estreito. Ao invés de considerar a oração na igreja, o jejum e as esmolas como obras que interessam a Deus, Lutero afirma que a boa obra ou a vida cristã se faz no "trabalho, andando, parados de pé, comendo, bebendo, dormindo ou fazendo toda sorte de obra para o sustento do corpo ou para o bem comum". Para Lutero, a fonte disto está na primeira, suprema e mais nobre boa obra, a fé em Cristo, a boa obra que Deus opera primeiro em nossa vida (LUTERO, OSel, Vol. 2, Das Boas Obras, pp.102-103). Nesse contexto, a referência bíblica que Lutero usa é Eclesiastes 9.7-9: "Vai, pois come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agradou das tuas obras. Em todo o tempo sejam alvas as tuas vestes e jamais falte o óleo sobre a tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do sol; porque esta é a tua porção nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol". Depois houve um debate, conhecido como a "Controvérsia Antinomista" (1527). João Agrícola defendia a exclusão completa da Lei na vida do cristão. Tudo seria operado pelo Evangelho, mesmo o conhecimento do pecado e a contrição. Esta foi uma das razões para o aparecimento do Catecismo Menor escrito por Lutero. Havia pelo menos outras duas razões. Quando aconteceu a visitação a congregações luteranas, Lutero descobriu a extrema necessidade de elaborar um material para a instrução cristã. "Querido Deus, quanta miséria eu vi! A pessoa comum, especialmente nas vilas, não sabe coisa alguma da fé cristã... não sabem o Pai Nosso, o Credo, os Dez Mandamentos! Como resultado, eles vivem simplesmente como cabeças de gado ou porcos 56 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ irracionais" (ARAND, 2000, p.133). Além disso, houve abusos da liberdade cristã. A obra da Reforma libertou a igreja das exigências legalistas para se obter um Deus favorável, mas Lutero descobriu que o povo leigo foi para um outro extremo: a liberdade se tornou em libertinagem. Houve relaxamento na moral e disciplina religiosa. Alguns não queriam mais pagar impostos ao governo, não ir aos cultos e nem providenciar os recursos para manter os pastores (ARAND, 2000, p.133). Mas não era só isso. Os registros das visitações revelam que na congregação de Ducher, de 110 famílias que faziam parte dela, muitas vezes apenas três pessoas participavam dos cultos. Havia também um estado de ignorância entre leigos e entre pastores. Em Zinna, camponeses não queriam aprender a oração do Pai Nosso, porque é muito longa, e um pastor em Elsnig mal e mal conseguia orar o Pai Nosso e recitar o Credo (ARAND, 2000, p.73). Mais tarde (1556), o assunto teve outra versão. Negou-se que a Lei estivesse a serviço do cristão para lhe fornecer direções para a prática das boas obras: bastaria pregar e ensinar o Evangelho, as Boas Novas da salvação. A Fórmula de Concórdia, na época, resolveu a situação afirmando a Lei em seu tríplice uso: freio, para manter a ordem ou a disciplina externa; espelho, para revelar o pecado e conduzir o cristão a Cristo - o uso teológico da Lei; e norma, a Lei funcionando para fornecer orientações para a vida cristã (Fórmula de Concórdia - Epítome VI, p.516.1). Entre 1551 e 1574 houve mais uma controvérsia histórica relacionada à prática da vida cristã. Alguns afirmavam que "boas obras são necessárias para a salvação; sem obras é impossível salvar-se" (Fórmula de Concórdia, DS, IV, p.590.1). Isto evidentemente foi baseado no princípio de que a fé sem amor é morta, ainda que não seja o amor a causa da salvação. Já o outro lado afirmava que boas obras são necessárias, mas não para a salvação e sim por outras razões. Essa posição se mantinha para não colocar uma sombra sobre os méritos de Cristo, nosso Redentor (Fórmula de Concórdia, DS, IV, p.591.2). Na linguagem do apóstolo Paulo, poder-se-ia dizer que quaisquer tipos de obras, visando à aquisição da salvação, anulariam a graça de Deus e a morte de Cristo seria inútil: "Não anulo a graça de Deus; pois se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão" (Gl 2.21). Em meio a essa disputa, houve até quem dissesse que "boas obras são prejudiciais para a salvação". Obviamente se tinha como referência aqueles que confiariam na sua vida cristã como meritória para a salvação (Fórmula de Concórdia, DS, IV, p.591.3). Nas décadas de 60 e 70 do século passado houve outra discussão no Sínodo de Missouri em torno do uso da Lei como instrução. No de- 57 IGREJA LUTERANA bate, alguns teólogos argumentavam que a Lei só poderia julgar e condenar, e os Dez Mandamentos não podem servir de guia para a moralidade cristã. Essa posição era assim defendida em razão de que tudo deveria ser reduzido ao Evangelho. A Escritura deveria ser interpretada à luz do Evangelho. Por exemplo: o homossexualismo poderia ser aceito, uma vez que o Evangelho deve falar mais alto e o mais importante é crer em Cristo. A Lei, nesse caso, não pode falar nada sobre a ética cristã (MURRAY, 2001, pp. 134-135). Parece-me que, nessa linha, o Evangelho estava mais para "panos quentes" colocados sobre as transgressões do que o poder de Deus para salvação daquele que crê. Também, na avaliação desse pensamento, foi reafirmado que a negação do uso da Lei revelada na Palavra de Deus é colocar em risco toda a revelação de Deus, especialmente como palavra inspirada de Deus, a doutrina e a vida cristã (MURRAY, 2001, p.155). 1. O PAPEL DA LEI NA VIDA DO CRISTÃO REGENERADO Qual é o papel da Lei3 na vida do cristão habitado por Cristo e pelo Espírito Santo? Como filho regenerado de Deus, ele precisa da orientação para aprender a viver conforme a vontade santa de Deus? Ou colocado de outra forma: é preciso exortar uma árvore boa a produzir frutos? (RAABE/VOELZ, 1996, p.154). Como já foi visto anteriormente, e isto parece ser histórico, há aqueles que dizem não. O cristão não precisa de instrução para saber o que agrada e o que não agrada a Deus. Essa operação é automática. Uma vez regenerado e habitado pelo Espírito, o cristão só precisa da Lei para denunciar o pecado que continua agindo nele, fazendo-o cair, afastar-se de Deus e não andar corretamente em sua vida. A Lei não é necessária para fornecer diretrizes para sua vida. A vontade de Deus não precisa lhe ser informada e o cristão sabe o que fazer em sua vida diária. Ele precisa da Lei em sua função de acusar e corrigir. A Lei o fará reconhecer o pecado e combater as idéias, as noções e os desejos do velho homem e assim viver uma vida cristã sadia. Mas há também aqueles que afirmam que a Lei é necessária também em sua função (uso) de fornecer conselhos aos cristãos em como viver uma vida correta e agradável a Deus. Os que concordam com esse conceito afirmam que é preciso lidar com o novo e o velho homem presentes na vida do cristão. Como o cristão ainda não está plenamente renovado e nele habita a velha natureza pecaminosa, ele precisa também aprender a servir a Deus segundo a sua boa vontade. É Sempre que usada neste trabalho, a palavra Lei se refere aos Dez Mandamentos, às instruções em Provérbios e às exortações do apóstolo Paulo em suas epístolas. 3 58 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ verdade que como cristão ele está comprometido em fazer o que é certo, mas nem sempre ele sabe o que ou como fazer, ou ainda, o cristão pode se equivocar em suas escolhas e opções, o que faz com que ele necessite a Palavra da verdade para a vida cristã (VOELZ, 1995, p. 9-10). 2. O CARÁTER DIDÁTICO DA LEI DE DEUS REVELADA EM SUA PALAVRA A Lei nos Salmos Na perspectiva do Antigo Testamento, os Salmos oferecem exemplos em que o povo de Deus solicita o ensino do Senhor para andar nos seus caminhos. São orações de fé que expressam o desejo de receber o ensino de Deus. Esta é uma atitude exclusiva do povo do Senhor. Seguidores de Baal ou de outros deuses não teriam essa atitude, pois eles querem seguir os seus próprios caminhos. Mas os salmistas querem ser ensinados pelo verdadeiro Deus, nos caminhos verdadeiros, porque são eles que são justos, bons, santos, salutares, dignos de louvor e perfeitos (RAABE, 2004, p.1). A palavra geralmente traduzida por Lei no Antigo Testamento se origina da palavra hebraica "Torá" e que significa instrução. É importante lembrar isto, pois as leis do Antigo Testamento são essencialmente ensinos vindos do Senhor e possuem também esse caráter didático. Nos Salmos, a instrução da Torá do Senhor é percebida em vários momentos. Uma petição bastante comum é "ensina-me" (Sl 27.11; 86.11; 119.12; 143.10). Um desses exemplos é o Salmo 32. Este é um salmo penitencial em que o salmista confessa seus pecados, recebe o perdão de Deus (vv.1-5) e a promessa de ensino do próprio Senhor. "Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir, e sob as minhas vistas te darei conselho. Não sejas como o cavalo ou a mula, sem entendimento, os quais com freios e cabrestos são dominados; de outra sorte não te obedecem" (vv. 8-9). Deus lhes ensina porque os seus filhos são ensináveis. Outro detalhe a observar é que claramente não há qualquer indício da justiça das obras, o perdão e a instrução vêm juntos, mas de forma distinta (Rm 4.6-8). Outro exemplo de conexão entre a fé no Deus verdadeiro e o desejo de andar no seu caminho é o Salmo 143. O autor apela pela justiça do Senhor, implora pela sua imerecida misericórdia (vv. 1-2) e também suspira por andar nos caminhos de Deus. "Faze-me ouvir pela manhã da tua graça, pois em ti confio; mostra-me o caminho por onde devo andar, porque a ti elevo a minha alma; ensina-me a fazer a tua von- 59 IGREJA LUTERANA tade, pois tu és o meu Deus; guie-me o teu bom Espírito por terreno plano" (vv. 8,10). É dominante esse tema também no Salmo 25. O salmista se dirige ao Deus da sua salvação para rogar por direção em sua vida. "Fazeme, Senhor, conhecer os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas. Guia-me na tua verdade e ensina-me, pois tu és o Deus da minha salvação, em quem eu espero todo o dia" (vv.4-5). Esse mesmo pedido está nos vv. 8-9, 12. Por quê? "Bom e reto é o Senhor, por isso aponta o caminho aos pecadores" (v.8). É interessante notar que esses pedidos por instrução não estão desconectados do reconhecimento de sua pecaminosidade e pedido de perdão. "Não te lembres dos meus pecados da mocidade, nem das minhas transgressões. Lembra-te de mim segundo a tua misericórdia, por causa de tua bondade, ó Senhor" (v.7). Isso se repete ainda nos vv. 11, 18. Ou seja, não se pode operar no sistema de que o salmo esteja falando de uma possível justiça das obras, mas de alguém que depende da misericórdia de Deus para receber a aceitação de Deus e passar a ser ensinado nos caminhos de Deus. Há pelo menos três salmos que são dominados pelo louvor à Torá e que são chamados de salmos da Torá. O Salmo 1 declara abençoado aquele que se recusa a andar nos conselhos dos maus, mas medita na Torá do Senhor. A Torá é conectada à água corrente, que nutre e frutifica uma árvore. O Salmo 19 exalta a Torá em seis frases. "A Torá do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do Senhor é fiel e faz sábios os simples; os preceitos do Senhor são retos e fazem o coração feliz; o Mandamento do Senhor é claro e ilumina os olhos; o temor do Senhor é puro e ilumina os olhos; os juízos do Senhor são verdadeiros e igualmente justos" (vv.7-9). A instrução do Senhor alegra a alma e o coração, ilumina os olhos e nos faz sábios. Aqueles que amam o Senhor consideram sua Torá mais desejável do que ouro e mais doce que o mel (v.10). O mais interessante salmo da Torá é o 119. Esse Salmo é estruturado em torno de oito termos funcionando como sinônimos para a Lei do Senhor. Testemunhos (v.2), Mandamentos (v.4), Estatutos (v.5), Juízos (v.7), Palavras (v.9), Promessas (v.11), Preceitos (v.15) e Torá (v.18). O Salmo exalta a Palavra do Senhor. No Salmo é possível perceber com freqüência expressões como "os teus testemunhos são o meu prazer" (v.24), pedidos para ser ensinado pelo Senhor "ensiname, Senhor, o caminho dos teus decretos" (v.33) e declarações de desejo em cumprir os seus mandamentos "Dá-me entendimento e guardarei a tua lei; de todo coração a cumprirei" (v.34). Por quê? 60 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ Para andar nos caminhos bons (vv. 36-37; 53; 68; 104; 113; 128; 137;163). É proveitoso notar que há apenas duas fontes, radicalmente opostas, de onde se pode extrair a instrução. Esse Salmo é um encorajamento para fixar os olhos na fonte oferecida pelo Senhor. Também é preciso observar que o objetivo não é promover a justiça das obras para adquirir a justificação ou uma atitude orgulhosa diante de Deus ou dos homens, mas esses salmos foram escritos pelo próprio Deus para informar ao povo de Deus a oração e o louvor que lhe agradam (RAABE, 2001, pp.1-7). A Lei em Provérbios De todos os livros da Escritura Sagrada, talvez é o livro de Provérbios que mais oferece conselhos para a prática da vida cristã (Pv 25.17;18.13;11.30). Ele está destinado a ensinar sabedoria. O livro opera com pelo menos três pressuposições básicas. A primeira é a capacidade inata do ser humano em pensar e agir. O autor formula princípios de conduta para seu interesse e da sociedade de maneira mais ampla. Mesmo afetado individualmente pelo pecado dos primeiros pais, o Criador lhe dotou com capacidades racionais para produzir o que é lógico, comprovado na prática, mas submetido acima de tudo à vontade de Deus. A segunda pressuposição é a de que o livro deixa claro que o homem é completamente dependente de Deus. Por mais esperto que seja, ele não está apto a determinar o curso de sua vida. Por melhor que seja seu refletir, os passos do homem estão ordenados por Deus. "O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos" (Pv 16.9;20.24;19.21). A cada passo, Deus lhe "pesa" o coração. "Todos os caminhos do homem são puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o espírito" (Pv 16.2; 21.2) e o próprio livro recomenda reconhecê-lo em todos os caminhos. "Reconhece-o em todos os teus caminhos e ele endireitará as tuas veredas" (Pv 3.6). Também é preciso considerar que a prática errada é abominação ao Senhor (Pv 3.32; 6.16; 15.8-9) e a quebra das leis morais não fica impune (Pv 3.33;11.21). Onde está a esperança para quem quebra essa lei? Nisso está envolvida a terceira pressuposição. No livro de Provérbios, a Lei, em termos de manter a disciplina externa e ensinar, predomina significativamente. Com isto pode se pressupor que essas palavras são dirigidas a filhos perdoados por Deus e que existe uma relação positiva entre ambos, com iniciativa do próprio Deus. "Confia no Senhor de 61 IGREJA LUTERANA todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento" (Pv 3.5; 10.3). Provérbios aplica os princípios gerais revelados a Moisés (Sl 103.7) a questões mais complexas da vida diária. A Lei nas cartas do Apóstolo Paulo Aos gálatas Paulo começa afirmando nos primeiros capítulos que se é aceito diante de Deus unicamente pela fé em Cristo Jesus (Gl 2.16) e que o Espírito Santo nos é concedido e somos filhos dele pela fé (Gl 3.2;3.14;3.26). A esses filhos regenerados pelo Evangelho do Senhor Jesus, o apóstolo agora diz como viver: "Andai no Espírito" (Gl 5.16). Andai no Espírito na área da sexualidade, das relações pessoais e sociais e na religiosidade (Gl 5.19-21). Se aproximarmos um pouco a imagem, vamos perceber que Deus diz aos seus filhos em como agir e não agir nas diferentes áreas da vida. Quais são as atitudes da velha natureza e o que é fruto do Espírito, ou a ação de Deus através da vida dos cristãos. Aos efésios esse procedimento do apóstolo é muito parecido. Ele afirma a graça de Deus como causa da salvação e aceitação diante de Deus, talvez como em nenhum outro lugar: "Porque pela graça sois salvos mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais de antemão preparou para que andássemos nelas" (Ef 2.8-10). Nos capítulos 4 a 6, o apóstolo descreve e ensina algo mais específico sobre essas boas obras. Aos salvos pela graça de Deus, Paulo roga para que andem dignamente na família de Deus (Ef 4.1) e revestidos do novo homem criado por Deus (Ef 4.24), falem sempre a verdade, deixando a mentira, não furtem, mas trabalhem para poder ajudar os necessitados, não usem de palavras que façam mal às outras pessoas e outros ensinos para uma vida cristã diária sadia nos diversos tipos de relacionamento pessoais (Ef 4.25-6.9) e espirituais (Ef 6.10-20). Essa mesma seqüência também pode ser vista na carta aos Colossenses. Depois de lhes dizer que pelo Batismo eles foram regenerados e ressuscitados com Cristo (Cl 2.12;3.1), Paulo os exorta sobre questões da sexualidade, o uso adequado do dinheiro, as virtudes recomendadas na família de Deus e conselhos para as esposas, maridos, filhos, pais, servos (empregados) e chefes (Cl 3-4.1). Não é diferente a teologia de Paulo quando ele escreve para um pastor. A Tito ele afirma a graça do Senhor Jesus (Tt 2.13-14; 3.4-7), ensina sobre a conduta padrão de um pastor (Tt 2.7-9), bem como orienta o que ensinar sobre o viver santo, justo e piedoso (Tt 2.12) de diferentes grupos de pessoas. Homens e mulheres idosas (Tt 2.2-3), 62 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ jovens casadas (Tt 2.4-5), jovens (Tt 2.6), escravos (Tt 2.9-10) e aos cidadãos em geral, especialmente em relação às autoridades (Tt 3.1-2). A Lei nas Confissões Luteranas Esse é o ensino das Confissões Luteranas. Como o velho homem ainda age na vida dos crentes, faz-se necessária a Lei. "Porque a carne milita contra o Espírito e o Espírito contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que porventura seja do vosso querer" (Gl 5.17; Rm 7.18-19, 23). "Por isso, em virtude dessas concupiscências da carne, os verdadeiramente crentes, eleitos e regenerados filhos de Deus necessitam, na presente vida, não só o diário ensino, admoestações, advertências e ameaça da Lei, mas também, freqüentemente castigos, a fim de que sejam animados e sigam o Espírito de Deus" (Fórmula de Concórdia, DS, p. 605.9). Ainda, segundo as Confissões Luteranas, a Lei não é o poder ou a capacidade para a vida cristã saudável; isto é obra do Evangelho. Mas o Espírito Santo emprega a Lei de Deus para instruir aos renascidos sobre qual é a vontade de Deus para a vida cristã (Fórmula de Concórdia, DS, p.606.11-15). Parece certo e claro concluir que o cristão necessita da Lei. O que às vezes parece ser mais difícil definir é como essa Lei vai chegar até o seu coração. A Lei vai só acusar ou condenar? A Lei vai acusar, mas não somente isso, e também vai ensinar? A Lei vai só ensinar? Que impacto causam essas palavras de Deus na sua vida? "Não matarás" (Êx 20.13); "Não dirás falso testemunho contra o teu próximo" (Êx 20.16); "A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira" (Pv 15.1); "O que encobre a transgressão adquire amor, mas o que traz o assunto à baila, separa os maiores amigos" (Pv 17.9); "Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo" (Ef 6.1); "E vós pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do Senhor" (Ef 6.4). Parece que esse é o ponto nevrálgico da questão, e a falta de clareza e compreensão desse item faz com que muitas vezes se procure evitar o ensino da Lei, com um temor, justificável até certo ponto, de ser legalista e obscurecer o que de fato não pode ser obscurecido, o Evangelho do Senhor Jesus, mas que pode anular o também caráter didático da revelação de Deus em forma de leis ou instruções. 3. AS DUAS JUSTIÇAS NA VIDA DO CRISTÃO Como integrar a motivação para a vida cristã através do Evange- 63 IGREJA LUTERANA lho, com as informações necessárias para tomar decisões corretas e escolher entre o certo e o errado? Bem recentemente, dois teólogos luteranos publicaram um artigo procurando refletir sobre um caminho que se encaixa no pensamento de Lutero, nas Confissões Luteranas e acima de tudo que seja segundo a Palavra de Deus (ARAND/BIERMANN, 2007, pp. 116-135). O princípio adotado é ver a vida do cristão em duas dimensões. Diante de Justiça Diante de Deus Deus e diante do mundo. Ou então, duas justiças, justiça diante de Deus e diante dos homens. Estar correto diante de Deus e viver corretamente diante dos homens. Simultaneamente vivemos com responsabilidades a serem cumpridas diante de Deus e diante das outras criaturas de Deus. Nesses dois mundos há exigências a serem preenchidas para se estar na correta relação. A justiça diante de Deus deriva do próprio Deus. É atividade exclusiva de Deus. Assim como ele cria a vida sem participação alguma de suas criaturas, assim continuamos completamente dependentes de todas as bênçãos. Diante de Deus somos apenas e tão-somente recebedores. O ar que respiramos, a comida que comemos, a água que bebemos, as estações, "em Deus nós vivemos, nos movemos e existimos" (At 17.28). Passivamente recebemos tudo de nosso Criador. Nesta mesma condição estamos ao receber as bênçãos espirituais. O cristão recebe gratuitamente e passivamente pela fé os méritos da obra de Cristo na cruz e que o restauram à comunhão com Deus Pai. Se tivermos que nos gloriar em sermos filhos aceitos diante de Deus, temos que nos gloriar no Senhor, pois Cristo é a nossa sabedoria, justiça, santificação e redenção. "Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação e redenção, para que, como está escrito: Aquele que se gloria, gloriese no Senhor" (1 Co 1. 30-31). Qual é o papel da Lei nessa dimensão? Nessa dimensão a Lei continuará cumprindo sua função de denunciar e desmascarar o pecado, mas quem governa é a graça de Deus. Diante de Deus o melhor que tenho a fazer é deixar as minhas obras na terra e ir de mãos vazias, apenas com a fé em Cristo, para receber o perdão, a vida e a salvação. Diante de Deus a Lei não é instrumento para andar como um justo, pois nunca cumpriríamos suas exigências e, com ela, as portas se fecham para recebermos a justificação de Deus. 64 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ A função da Lei é aterrorizar nossa consciência, para dar lugar à consolação e vivificação do Evangelho. Qualquer indício de que olhamos para nossa vida cristã com intenção de sermos avaliados por Deus, tanto para nos orgulhar, como, especialmente, para causar em nós desespero, deve ser cortado. A sugestão são as palavras de Lutero: "Mas se a Lei quiser ir até minha consciência e governar com suas exigências lá, veja para que seja feita a correta distinção. Não conceda mais a Lei do que é sua função e diga para ela: Lei, você quer denunciar o pecado e tirar de mim a alegria do coração, que eu tenho através da fé em Cristo. Você quer me empurrar para o desespero, para que pereça. Você está ultrapassando seus limites... você não vai tocar a minha consciência. Porque eu sou batizado" (LUTERO, apud ARAND, 2007, p.121). Por outro lado e ao mesmo tempo vivemos também diante do mundo. A justiça diante do mundo será preenchida quando Deus realizar as tarefas indicadas por ele através de nós, para nosso bem e o restante da criação. Antes mesmo da queda em pecado, Deus deu tarefas a serem cumpridas, Justiça Diante do Mundo como o de servir e guardar o seu jardim (Gn 2.15). Tanto Lutero como as Confissões Luteranas interpretam os Dez Mandamentos como parte da criação de Deus e da lei natural gravada nos corações dos homens, o que significa que sua função é servir também de instrução para o uso apropriado do mundo criado por Deus. Aqui o cristão já não será passivo, mas ativo instrumento de Deus e a Lei funcionará como ensino para a vida cristã (ARAND, 2000, p.137; Fórmula de Concórdia, Ep, p.517.2). A distinção e a relação nas duas dimensões O grande desafio é manter a distinção entre a justiça diante de Deus, na qual o cristão não tem nada a contribuir ou ter alguma participação, e a justiça diante dos homens, que é a responsabilidade de agir segundo a vontade de Deus revelada em sua Palavra e que visa o benefício de toda a sua criação. Por um lado, diante de Deus somos completamente passivos. A Lei nos faz reconhecer que nossa vida nunca estará nos padrões de Deus, e antes que nossa consciência nos acuse, precisamos ouvir e lembrar as boas novas do Evangelho: "Ainda que vossos pecados são como o 65 IGREJA LUTERANA escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que são vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã" (Is 1.18). Por outro lado, diante dos homens a Lei é usada por Deus para nos informar sobre escolhas e procedimentos e ele próprio realizar as obras através do cristão para que este tenha uma vida santa, justa e piedosa. Nós não nos tornamos justos diante de Deus porque fazemos obras justas, mas porque a justiça de Cristo nos é atribuída mediante a fé. Justos diante de Deus, somos capacitados a viver uma vida cristã justa. A motivação não será o medo do castigo ou almejar recompensas, mas de espírito disposto, voluntário (Fórmula de Concórdia, DS, p.607.16-17) e tendo como alvo o bem da criação de Deus. Ao mesmo tempo que é saudável manter essa distinção, não podemos deixar de lembrar a relação existente entre as duas justiças. A justiça da fé é relevante tanto para a realidade celestial, pois somos justos diante de Deus, como para a terrena, onde vamos exercitar as boas obras aconselhadas por Deus. "Quando eu tenho esta justiça (passiva) dentro de mim, eu desço dos céus assim como a chuva desce para tornar fértil o solo. Ou seja, eu apareço dentro do outro reino e realizo as boas obras sempre que aparecer a oportunidade" (LUTERO, apud ARAND, 2007, p.122). Nossa relação com Deus nos providencia a capacidade e a base para nossa relação com a criação. Assim, sobre a terra, na medida que crescemos em fé, ativamente vamos ter como alvo uma vida de obras e virtudes de acordo com a vontade de Deus. A recepção passiva da justiça de Deus pelos méritos de Cristo leva-nos a abraçar o mundo e nele servir, como a boa criação de Deus (ARAND, 2007, p.122). 4. LUTERO E OS CATECISMOS Dentre as razões que levaram Martinho Lutero a escrever um catecismo, uma foi a ruína espiritual dos cristãos no início da Igreja Luterana. É preciso lembrar que isto tinha a ver em grande parte pela crise institucional inicial e pelo momento de transição da antiga estrutura de igreja para um novo conceito de povo de Deus. Uma das conseqüências foi a dificuldade com os salários dos pastores e que pode ter sido gerado por outro problema, a indiferença religiosa. "Os camponeses não queriam aprender mais nada, não sabiam nada, não oravam, não faziam nada senão abusar da liberdade religiosa e não iam mais à confissão e à comunhão" (ARAND, 2000, p.72). Essa realidade não muito agradável da igreja foi comprovada pela visitação feita às igrejas e de que Lutero também tomou parte. Lutero então escreveu os catecismos. Dois eram seus alvos. Lem- 66 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ brar aos próprios pastores das verdades elementares da fé evangélica e lhes proporcionar um manual de cuidado pastoral, caso eles não fossem capazes de ensinar com suas próprias palavras os seus membros (ARAND, 2000, pp.94-95). Embora a intenção original dos catecismos fosse atingir os pastores, outro alvo de Lutero era a família. Ele tomou como princípio o conceito do ensino doméstico da Idade Média e da Igreja Antiga. A importância dada por Lutero à família pode ser percebida, por exemplo, quando ele designa o pai e a mãe como sacerdote e a sacerdotisa do lar. O sonho do reformador era a família reunida ao redor da Palavra, para ensiná-la e orar (ARAND, 2000, pp.95-96). Lutero reconhece que ninguém pode forçar alguém a crer em Jesus, isso é obra do Espírito, mas horizontalmente a Lei deve ser ensinada, para moldar através da Palavra de Deus novas atitudes, pensamentos e ações (ARAND, 2000, pp.99-100). Lutero começa pelos Dez Mandamentos e não é sem motivos que ele inicia assim. O papel principal dos mandamentos é funcionar em primeiro lugar como um instrumento para diagnosticar a situação do indivíduo e, em segundo lugar, adquirir um conhecimento e entendimento da vontade de Deus. É significativo olhar um pouco mais para a estrutura dos catecismos: Dez Mandamentos - Credo e Pai Nosso. Para Lutero, um homem, para ser salvo, precisa saber três coisas: primeira, o que ele deve fazer e o que não fazer. Segunda, quando ele percebe que ele não tem poder para fazer o que dele é exigido, ele precisa saber para onde olhar e receber esse poder. Terceira, ele precisa saber como olhar para esse poder e dele se apropriar. Assim, os mandamentos ensinam ao homem a reconhecer sua doença, seu pecado; o Credo mostra-lhe onde encontrar a medicina e o remédio que ele precisa para se tornar alguém justo em Cristo e o Pai Nosso lhe ensina como ele deveria desejar ir e se aproximar dessa graça salvadora, em espírito de humildade, para depois ser tornado apto a cumprir os mandamentos. A própria experiência de Lutero lhe ensinou que a vida cristã começa com o reconhecimento do pecado e a inabilidade para cumprir as prescrições divinas. Porém, ele também concede aos mandamentos o atributo de ser uma prescrição positiva para a nova vida em Cristo. O objetivo do reformador é deixar claro que a vida cristã não pode ser vivida sem os Dez Mandamentos. Ele tinha em mente a libertinagem e as idéias antinomistas (ARAND, 2000, pp. 129-132). Todavia, é importante lembrar que é o Credo que traz o ensino gracioso de que Deus nos encontra em todas as nossas necessidades, para assim nos tornar íntegros e agradáveis a ele e também ter prazer, amor e respeito 67 IGREJA LUTERANA pelos seus mandamentos. Deus se dá inteiramente para o cumprimento dos Dez Mandamentos: o Pai, todas as criaturas; Cristo, todas as suas obras; o Espírito Santo, todos os seus dons (LUTERO, CM4 , Pai Nosso, p.457.69). 5. O CONTEXTO DOS DEZ MANDAMENTOS NA ESCRITURA SAGRADA Na Bíblia, os Dez Mandamentos são designados de dez palavras. "E ali esteve com o Senhor quarenta dias e quarenta noites; não comeu pão nem bebeu água; e escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras" (Êx 34.28; Dt 4.13; 5.22;10.4). Essas dez palavras precisam ser mantidas e lidas no contexto maior do Pentateuco. A narrativa bíblica começa com a criação, queda em pecado, a primeira promessa e a invasão do pecado e da morte em todo o mundo criado por Deus. Depois a narrativa foca de maneira mais fechada em Abraão, que é chamado, recebe a promessa da descendência, da terra de Canaã e que através dele todas as famílias da terra serão abençoadas. Abraão tem muitos descendentes, mas eles não vivem na terra prometida. Ao invés disso, eles são escravos no Egito. É uma escravidão teológica, pois eles não podem prestar culto ao Senhor e são forçados a servir ao Faraó. Sua situação é de completa incapacidade de se libertar. A iniciativa e a operação de libertá-los é do Senhor (Êx 3.8). Essa libertação não é somente da escravidão, mas também para um futuro diferente. A promessa original feita a Abraão agora é renovada e feita a toda a nação de Israel (Êx 6.2-8). Israel foi redimido da escravidão e feito propriedade especial de Deus (Êx 19.5-6). Eles foram libertados de uma forma de vida para uma vida como sacerdotes a serviço do Senhor. Agora, no Monte Sinai, Deus se apresenta a esse povo e revela as dez palavras sobre a nova vida a ser vivida como sacerdotes do Senhor na terra de Canaã. Deus não os libertou de uma escravidão para uma nova escravidão, mas para a liberdade de serviço a Deus entre outras nações. A conduta do povo de Deus agora seria marcada pela forma distinta de vida e de testemunho. "Guardaivos, pois, e cumpri-os, porque isto será a vossa sabedoria e o vosso entendimento perante os olhos dos povos que, ouvindo todos estes estatutos, dirão: certamente este grande povo é gente sábia e entendida" (Dt 4.6-8). Deus preventivamente exorta seu povo a não se contaminar com práticas de outras nações, como o incesto, adultério, sacrifícios humanos a Moloque, homossexualidade e bestialidades (Lv 4 CM – Catecismo Maior de Martinho Lutero. 68 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ 18; Êx 23.23-24; Dt 18.9-14). O Senhor deve ser o seu ensinador e não as nações idólatras. É importante notar isso. Deus, cujo nome é Senhor, libertou misericordiosamente a Israel do Egito e fez dele seu próprio povo. Por isso, é de fundamental importância olhar para as Dez Palavras de Deus em conexão com o termo de abertura: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão" (Êx 20.2; Dt 5.6). Nessas palavras está revelada a identidade de quem está proclamando as dez palavras. O Deus que criou e redimiu a Israel, o Deus que viu a aflição do seu povo, que ouviu seu clamor, que conheceu seu sofrimento e que toma a iniciativa de descer para resgatá-lo (Êx 3.7-8). Desobedecer a Deus é desobedecer ao amado Salvador. Há freqüentes advertências para quem não leva a sério os mandamentos, mas não deveríamos pensar no Deus que deu essas palavras como alguém irado e desejoso de punir (RAABE, 2001, pp 7-12), mas o Deus que desceu para salvar. O Deus que desceu em seu filho Jesus Cristo para libertar a humanidade da escravidão do pecado, da morte e do diabo. As Dez Palavras de Deus para a Vida Cristã O cristão quer amar o que o Senhor ama, ter prazer nos seus ensinos e conselhos, porque os caminhos ensinados por ele são verdadeiros, bons, justos, santos, agradáveis e perfeitos. Para Lutero, as orientações para a vida cristã começam nos Dez Mandamentos. Não há boas obras senão as que Deus ordenou, nem pecado senão naquilo que Deus proibiu. "Por esta razão, quem quer praticar boas obras não precisa conhecer senão os Mandamentos de Deus" (LUTERO, OSel, Vol. 2, Das Boas Obras, p.102), que serão designados aqui como as Dez palavras de Deus. Primeira Palavra de Deus "Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra"5 (Êx 20.3-4). A idolatria dos tempos antigos possivelmente era diferente da dos nossos dias. Enquanto na antigüidade havia mais imagens, às quais muitas vezes eram atribuídos poderes miraculosos (2 Rs 18.4), a idolatria hoje parece ser mais secretamente guardada no coração. O povo 5 A opção de tradução das Dez Palavras foi a Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. 69 IGREJA LUTERANA de Deus no Antigo Testamento esqueceu muito cedo essa primeira palavra de Deus e, materializando sua propensão para o mal (Êx 32.22), fabricaram o bezerro de ouro. Freqüentemente Deus os lembrava desse primeiro conselho de Deus. "Não seguirás outros deuses, nenhum dos deuses dos povos que houver à roda de ti" (Dt 6.14; 2 Rs 17.15; Sl 81.9-10; Jr 1.16). Na explicação desta primeira palavra, Lutero diz que ter um deus é confiar nele de coração. O que Deus pede é que nossa confiança, esperança e fé sejam depositados inteiramente nele e em mais ninguém. O contraponto é confiar nas riquezas materiais, no deus Mâmom, o ídolo mais comum na terra, na inteligência, no poder, mesmo nas boas obras e deles tirar segurança e alegria. Quem procura o favor em outras coisas e mesmo em si mesmo, pratica a idolatria. "O mesmo se dá com todos os que, diante da adversidade, correm para aqui e acolá, procurando conselho, ajuda e consolo por toda a parte, menos junto a Deus, justamente onde mais lhes foi ordenado procurar" (LUTERO, OSel Vol.2, Das Boas Obras, pp.107-108). O sentido dessa palavra é a fé e confiança de coração e que vai certeiramente ao único e verdadeiro Deus. "Toma cuidado no sentido de apenas eu ser o teu Deus e de forma nenhuma procures outro. Isto é: o que te falta em matéria de coisas boas, espera-o de mim e procura-o junto a mim, e se sofres desdita e angústia, arrasta-te para junto de mim e apega-te comigo. EU, eu te quero dar o suficiente e livrar-te de todo o aperto. Tão só não prendas a nenhum outro o coração, nem o deixe em outro descansar" (Lutero, CM, p.395.4). "Pois é ele quem nos dá corpo, vida, comida, bebida, nutrição, saúde, proteção, paz e todo o necessário em bens temporais e eternos. Além do que nos preserva de infortúnios e quando algo nos sobrevém, ele nos salva e liberta" (LUTERO, CM, p.398.24). Também é oportuno mencionar que Lutero tem em mente a fé em Cristo quando trata da primeira palavra de Deus. Se alguém disser: "Como posso ter certeza de que todas as minhas obras agradam a Deus, se ocasionalmente caio, bebo e durmo em demasia, ou, no mais, passo da medida de uma forma que não me é possível evitar?" A resposta é: se você pensar assim, você considera sua fé uma obra como as outras e não a coloca acima de todas as obras. Pois ela é a obra suprema por também apagar os pecados diários, sem duvidar que Deus lhe seja favorável a ponto de fazer vistas grossas para quedas e fraquezas do dia a dia (LUTERO, OSel Vol.2, Das Boas Obras, p.112). 70 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ Apêndice da Primeira Palavra "Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porque eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniqüidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos" (Êx 20.5-6). Essas palavras são consideradas como um reforço à primeira palavra. Elas se referem a todos os mandamentos, mas estão juntos à primeira palavra, porque é de máxima importância que o homem tenha a cabeça certa (LUTERO, CM, 399.31). A ira de Deus está sobre os que confiam em algo fora dele, a bondade e sua misericórdia sobre os que nele confiam de todo o coração. Essas são palavras em que Deus revela que não é um Deus distante ou indiferente, nem do pecador deliberado e impenitente, nem dos que se apegam exclusivamente a ele e dele esperam toda a espécie de bênçãos. Ele é um Deus que chama pessoas ao arrependimento e mostra disposição em mostrar-se misericordioso e bondoso para os que prendem seu coração e esperam nele a salvação (Js 24.19-20). Segunda Palavra "Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus, porque o Senhor não deixará impune aquele que pronunciar em vão o seu nome" (Êx 20.7). Alguns estudiosos consideram esta palavra como sendo apenas uma proibição do falso juramento. Outros ainda dizem que se trata de impedir a profanação do nome de Deus ou jurar em vão. Há de fato na palavra de Deus vários textos advertindo sobre os juramentos lícitos e os ilegítimos (Dt 6.13; 10.20; Êx 22.28; Lv 18.21; 19.12; 22.2; 24.11,16). Mas para Lutero, um click nessa palavra abre um leque de aplicações e um alcance bem maior. Se na primeira palavra a instrução foi para o nosso coração confiar totalmente no Senhor, na segunda o ensino é para colocar a língua e a boca na relação correta com Deus. Se com a língua pode ser cometido um dos mais graves pecados contra Deus, ao valer-se do nome dele para mentir ou enganar alguém (LUTERO, CM, p.402.51-52), é com a língua também que podemos fazer a segunda obra da vida cristã: honrar, invocar, enaltecer e louvar o nome de Deus (LUTERO, OSel Vol.2, Das Boas Obras, p.117). 71 IGREJA LUTERANA Por um lado, Lutero lembra que com esta palavra Deus nos aconselha a nos guardar e a fugir do vício da honra e louvor em benefício pessoal. Segundo ele, são poucas as pessoas que em meio à honra e ao elogio permanecem modestos, serenos e imperturbáveis, não deixando se envolver pela soberba e autocomplacência. "Como o crisol prova a prata e o forno o ouro, assim o homem é provado pelos louvores que recebe" (Pv 27.21). Espirituais são as pessoas que atribuem a honra e o prestígio a Deus e fazem uso deles, para a glória de Deus e a promoção do próximo. Essa palavra também nos lembra que Deus é louvado através do nosso bom nome e honra. Lutero ainda complementa o pensamento sobre esse assunto afirmando que quando as pessoas querem nos louvar, temos que fugir disso, "como se fosse o mais grave pecado e roubo da glória de Deus" (LUTERO, OSel Vol.2, Das Boas Obras, pp.117-119). Em resumo, orgulhar-se de alguma realização é roubar a glória de Deus. Por outro lado, essa palavra também é um estímulo para que nós nos dediquemos à oração. O cumprimento dessa palavra é chamar o nome de Deus nas tribulações e necessidades. Isto é santificar e honrar seu nome. Para Lutero, Deus permite toda sorte de dificuldades em nossas vidas para nos dar motivos e correr até ele, gritar e invocar o seu santo nome. É assim que se experimenta o que é o nome de Deus e como ele é poderoso para ajudar a todos os que o invocam (LUTERO, OSel, Vol.2, Das Boas Obras, p.120). Lutero vê pelo menos quatro razões "para viver continuamente nos ouvidos de Deus" (LUTERO, CM, p. 457.2). O fundamento principal está na primeira razão: a obediência a Deus (CM, p.459.19). Como em outros mandamentos, o cristão tem a obrigação de fazê-lo. É parte do cumprimento do Segundo Mandamento (CM, 457.5-6). Não há como terceirizar a prática da oração. "Não pensemos que isso não nos diz respeito ou que está em nosso livre arbítrio" (LUTERO, OSel, Volume 9, Mateus 5-7, p.222). O segundo estímulo é a "consoladora promessa e rica oferta que ele faz em relação à oração, para mostrar que ele se importa com isso" (LUTERO, OSel, Volume 9, Mateus 5-7, p.222). Deus nos encoraja amigavelmente e promete que isso não será em vão. A promessa amiga do Senhor poderia ser motivo suficiente para nos incitar à oração (Ibid., p.222). "Invoca-me no dia da angústia: eu te livrarei e tu me glorificarás (Salmo 50.15); "Pedi e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Pois todo o que pede recebe; o que busca, encontra; e a quem bate, abrir-se-lhe-á" (Mt 7.7-8) Para Lutero, "quem não crer nessa(s) promessa(s), provoca a ira de Deus (LUTERO, CM, p. 459.21). A terceira maneira pela qual deveríamos ser incitados a orar é ob- 72 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ servar as necessidades particulares e ao nosso redor. Ter a palavra de Deus corretamente é um bom começo, tanto na doutrina quanto na vida. Porém, há também tentações e resistências. "O velho saco podre", a nossa carne é o primeiro inimigo. Este nos arrasta para o lado da desatenção e falta de vontade para lidar com a palavra de Deus. O segundo adversário é o mundo, que quer tirar-nos a palavra e a fé. O terceiro antagonista é o adversário "mais poderoso, o miserável diabo", que se usa da nossa maldade inata e da fraqueza de nossa fé e espírito, para se instalar e lutar contra nós. Trabalhando em parceria perfeita com nossa natureza pecaminosa e o mundo, o alvo de Satanás é abafar a palavra de Deus colocada dentro do cristão. Essas são desgraças opressoras, mas que são motivos permanentes para a oração. Além disso, há ainda as necessidades corporais, tão comuns da vida na terra. Nosso pedido deve ser de bênção da paz, bom governo, proteção contra doenças, carências, violência e tantos outros males temporais que podem nos assolar. É preciso ainda orar pela autoridade secular, para que esta aja com honestidade e não existam escândalos. Se acrescente a isso que é preciso administrar a vida familiar (LUTERO, OSel, Volume 9, Mateus 5-7, p.223-224). O que fazer? "É preciso aprender a invocar (escuta bem isso!), e não ficar por aí recolhido, sentado ou deitado em algum banco, andar cabisbaixo e cambaleante, torturando e consumindo-te com teus pensamentos, preocupado e pensando em encontrar alguma saída, lamentando tão-somente tua má sorte, o quanto sofres, o quanto és miserável. Pelo contrário, vamos lá seu preguiçoso, cai de joelhos, ergue as mãos e os olhos ao céu, ora um Salmo ou um Pai Nosso e apresenta os teus problemas a Deus com lágrimas, lamenta, invoca, como ensina o presente versículo (Sl 118.5) e como diz o Salmo 142.2: Derramo diante dele minha oração e apresento diante dele a minha tribulação" (LUTERO, OSel, Volume 5, O Sublime Louvor, p.37). E o quarto motivo para se orar é a fé: "Devemos orar com fé genuína, tendo certeza e nenhuma dúvida de que ele quer atender-nos e ajudar-nos; e tudo isso em nome de Cristo, por intermédio do qual nossa oração é agradável ao Pai, concedendo-nos, mercê dele, toda graça e benefício" (LUTERO, OSel, Volume 9, Mateus 5-7, p. 144). Terceira Palavra "Lembra-te do dia do sábado [descanso] para santificá-lo. Trabalharás durante seis dias e farás toda a tua obra. O sétimo dia, 73 IGREJA LUTERANA porém, é o sábado do Senhor teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm, mas repousou no sétimo dia; por isso o Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou" (Êx 20.8-11). Essa palavra de Deus é uma orientação holística. Ela visa orientar o povo de Deus a separar um dia para o descanso e a restauração física, bem como atender às necessidades espirituais. É preciso interromper o trabalho, a fim de que homens e animais possam se refazer. No entanto, a ênfase é no santificar, ou conservar o dia santo, que é falar, agir e viver de maneira santa. E isto acontece quando nos ocupamos com a Palavra de Deus, trazendo-a no coração e nos lábios. A crítica de Lutero em 1520 é sobre a superficialidade da prática religiosa. A pregação é ouvida, mas não há qualquer melhora e as orações são feitas sem fé. As pessoas prendem-se mais ao ato exterior e ao fato de ir à igreja do que em querer receber algo do culto para o coração, aprender e manter algo da pregação, desejar e esperar algo com a oração. Aqui a crítica também alcança aos bispos e sacerdotes, os maiores culpados para essa situação. Lutero chega a afirmar que seria melhor se houvesse menos feriados, pois nesses dias o que se vê é comilança e bebedeira, jogos e outros vícios. Nos outros dias há pelo menos o trabalho (LUTERO, Vol. 2, Das Boas Obras, p.126). Lutero diz que é preciso reprimir tudo isto, para Cristo viver, atuar e falar em nós (LUTERO, Vol. 2, Das Boas Obras, p.139). Mas a grande ênfase de Lutero no escrito de 1520 é na oração. Ele anima o povo de Deus a se encontrar para orar, pois antes das palavras serem ditas, a oração já está anotada no céu. É difícil imaginar alguém tão endurecido a ponto de não se deixar convencer pelas promessas do Senhor Jesus (Mc 11.24). Sobre que tipos de pedidos fazer, Lutero diz que deveríamos olhar justamente para os Dez Mandamentos e encontrar o que falta em nosso relacionamento com Deus e com o próximo. Diante de Deus, a fé fraca, falta de ânimo para ouvir a Palavra e a preguiça para orar. Diante dos homens, a desobediência aos pais e outras autoridades, a ira e ódio contra o próximo, a tribulação de se manter a pureza sexual, dificuldades com a avareza e injustiça. Para pedirmos tudo isso é preciso exatamente ter fé e confiança que temos um Deus benevolente e não imaginar que o melhor é esperar nos tornar puros antes e assim pedir algo a Deus. Lutero ainda chama a atenção para que o pedido pela cura dos pecados, ou a cura espiritual, seja feita com mais pressa, ou tenha prioridade sobre aquelas necessidades físicas. Ainda em 1520, Lutero valoriza grandemente 74 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ a oração, de maneira especial aquela feita em conjunto com a cristandade, pois o cumprimento desta palavra de Deus depende da oração feita na comunhão com os irmãos. Esta é a mais valiosa e a mais poderosa (LUTERO, Vol. 2, Das Boas Obras, pp.128-133). Quando escreve sobre esta palavra alguns anos mais tarde, o foco de Lutero é sobre a Palavra de Deus. Santificar o dia do descanso é tratar a palavra de Deus e nela exercitar-se (LUTERO, CM, 408.88). É ela que tudo santifica. Lutero a denomina de "a relíquia das relíquias", no sentido de sua preciosidade. Lutero adverte aos que usam mal a Palavra de Deus, que "vivem nas bodegas, embriagados e encharcados que nem porcos" (LUTERO, CM, 409.96). Em seus comentários sobre o Salmo 23 em 1536, Lutero expressa bem a preciosidade e o tesouro que é a Palavra de Deus. "Neste salmo, Davi, junto como todos os cristãos, louva e dá graças a Deus pela maior bênção existente: a pregação da querida e santa Palavra" (LUTERO, Luther Works, Volume 12, Psalm 23 expounded One evening after Grace at dinner Table, p.147). Segundo Lutero, as imagens utilizadas por Davi neste Salmo são nomes dados à Palavra de Deus. Pastos verdejantes, águas de descanso, veredas da justiça, vara, cajado. Sempre que a Palavra de Deus é pregada de maneira pura, ela cria tantos resultados quantos o profeta atribui nesse salmo. O aprendizado deste salmo é a valorização da Palavra de Deus. Ouvi-la, estudá-la, amá-la e respeitá-la. "Onde esta abençoada luz não alumiar, não pode haver nem alegria nem salvação. Também não haverá força nem conforto para o corpo e alma, mas somente conflitos, medo, temor e especialmente tristeza e ansiedade" (LUTERO, Psalm 23, p.149). Porém, para todos aqueles que a ouvem cuidadosa e seriamente, haverá pasto verdejante e águas de descanso, através dos quais as ovelhas do Senhor são satisfeitas e refrescadas. É a Palavra que mantém os que nela se exercitam nos caminhos da justiça e os preserva do sofrimento e do mal. Pela Palavra há instrução, renovação, fortalecimento e conforto. Também são mantidas no caminho direito, protegidos no corpo e na alma de toda espécie de infortúnio e finalmente capacitadas a superar tribulações e tristeza (LUTERO, LW, Volume 12, Psalm 23, p. 148). Resumo da Primeira Tábua É interessante ainda se referir ao resumo dessas primeiras três palavras de Deus e lembrar que quem fala é o Senhor que resgatou compassivamente Israel da escravidão do Egito e que enviou o seu 75 IGREJA LUTERANA Filho Jesus Cristo para nos resgatar de todas as forças do mal. Ele expressa sua vontade a fim de que vivamos como ovelhas que têm um supremo pastor, Jesus Cristo, e que nos concede todas as bênçãos necessárias para nosso sustento espiritual, físico e material (Fp 4.19). Se ele diz para confiarmos de todo o coração nele; se ele deseja que o invoquemos em todas as horas e cantemos louvores ao seu nome e dediquemos tempo para ele nos servir no banquete da sua Palavra, é porque ele deseja o nosso bem-estar. Nós fomos lembrados até aqui a confiar de todo o nosso coração em Deus, a usar bem o seu nome, não apoiando mentiras, mas fazendo bom uso dele, orando e cantando e que nos ocupemos com o tesouro dos tesouros, a Palavra de Deus. Quarta Palavra "Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá" (Êx 20.12). Essa promessa acrescida nessa palavra pode nos fazer ver a sua grandeza, seriedade e a importância dadas pelo próprio Deus. Deus nos diz o que lhe agrada em nosso relacionamento com os pais e demais autoridades e as recompensas que vamos obter se a guardarmos e colocarmos em prática. É significativo observar o número de conselhos dados no livro de Provérbios sobre esse assunto (Pv 4.1; 13.1; 19.26). Os nossos relacionamentos têm o seu começo em nossos pais. Honra lhes é devida. Essa valorização do estado paterno e materno também é possível ver em outras culturas. No Egito, por exemplo, se ensina que um filho desobediente perde o direito da alegria na vida após a morte (RAWLINSON, 1954, p.262). Lutero afirma que não há obra melhor do que a obediência às autoridades e que a desobediência desta palavra pode ser até pecado maior do que o homicídio, a incastidade ou o roubo (LUTERO, OSel, Volume 2, Das Boas Obras, p.145). Lutero explica que honrar pais e superiores demanda o temor, não no sentido do medo do castigo, mas de ofendê-los (LUTERO, Das Boas Obras, p.146). O fato é que o estado paterno e materno está abaixo somente de Deus e eles são verdadeiramente os seus legítimos representantes. No dar a vida, no cuidar e proteger. A valorização e o respeito aos pais e autoridades, não em razão de sua pessoa, mas do ofício em que foram colocados por Deus. É preciso notar que às vezes se instala na sociedade, e na própria igreja, tanto a supervalorização como a desvalorização da pessoa, em detrimento do ofício e da vontade de Deus os colocando nessa posição. 76 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ Assim é com os membros em relação aos seus pastores (1 Ts 5.1213), os empregados em relação aos seus chefes (Ef 6.5-6), os cidadãos em relação às autoridades civis (Tt 3.1), que em alguns casos até é contestável, mas que merece atenção uma observação de Lutero, "pois sofrer injustiça não arruína a alma de ninguém, sim, melhora a alma, mesmo que cause prejuízo ao corpo e aos bens materiais" (LUTERO, Das Boas Obras, p.154), os filhos em relação aos pais (Ef 6.1). Essa honra é mútua. Dos pastores em relação às suas ovelhas (1 Pe 5.1-4), dos chefes em relação aos seus subordinados (Ef 6.9), das autoridades em relação aos cidadãos (Ef 6.9) e dos pais para com seus filhos (Ef 6.4). Uma última reflexão sobre esta palavra também vem de Lutero: a desonra sutil dos pais. Isso acontece quando o próprio pai e mãe educam seus filhos segundo a vontade do próprio filho. "Educam-nos para o prestígio, gozo e bens mundanos, de sorte que agradam às pessoas e subam na vida. Isto é do gosto das crianças e elas obedecem de bom grado sem qualquer contradição" (LUTERO, Das Boas Obras, p.147). O referencial na educação dos filhos é a Palavra de Deus. "O que ouvimos e aprendemos, o que nos contaram nossos pais, não o encobriremos a seus filhos; contaremos à vindoura geração os louvores do Senhor e o seu poder e as maravilhas que fez. Ele estabeleceu um testemunho em Jacó, e instituiu uma lei em Israel e ordenou a nossos pais que os transmitissem a seus filhos" (Sl 78.3-5). Lutero diz que se queremos pessoas excelentes e hábeis na igreja e na sociedade, não deveria se poupar empenho e gastos na tarefa de ensinar e educar os filhos, a fim de que prestem serviços a Deus e ao mundo e não pensar em apenas amontoar-lhes dinheiro e bens (LUTERO, CM, p.421.172). Reconhecendo todos os percalços nesse padrão de educação, Lutero nos lembra que um coração que desespera diante dessa situação, também precisa aprender a entregar essa parte da sua vida aos cuidados de Deus, como o próprio Pedro ensina: "Lancem sobre ele todas as suas preocupações e tenham certeza de que ele cuida de vocês" (1 Pe 5.7). Quinta Palavra "Não matarás" (Êx 20.13). Deus é o doador da vida e ele quer protegê-la. Por isso, a sua quinta palavra diz respeito ao direito recebido do Criador de viver a vida que recebemos da sua mão. É possível que na grande maioria das culturas e nações o homicídio seja qualificado como um dos piores cri- 77 IGREJA LUTERANA mes. A revelação de Deus, no entanto, tem um caráter distintivo, pois há possibilidades de se tratar de diferentes maneiras o mesmo crime. "Se um ladrão foi achado arrombando uma casa e sendo ferido, morrer, quem o feriu não será culpado do sangue" (Êx 22.2; 21.13; Nm 35.22-34). Vou me valer de um exemplo de Lutero sobre o que um olhar superficial de uma palavra e uma meditação mais cuidadosa pode produzir. Se essas palavras "não matarás" são tomadas superficialmente, elas serão palavras frias e você vai simplesmente ouvir que matar alguém é proibido. Mas dá um pause e observa melhor. Primeiro Deus quer proteger a minha vida. Segundo, "Você não deve matar", significa que o "eu" de cada um, que consiste em corpo e alma, não pode matar. E esse "eu" tem muitos poderes: mãos, língua, olhos, mente e vontade. Será que quando você é proibido de matar, você não está sendo ensinado de que é errado matar com as mãos, ou com a língua, ou pelo desejo? Assim, uma reflexão mais cuidadosa dessas palavras vai ensinar que é você que vai cometer um crime agindo com ódio, vingança ou prejudicando alguém. Ao invés disso, você deveria amar, abençoar e fazer o bem. Assim "não matarás" significará que você não deveria agir com raiva, mas com amizade para com o seu próximo (LUTERO, Luther Works, Volume 14, Selected Psalms, p. 296). Aos atos de bater, ferir, matar, causar dano, estão os pensamentos e as palavras de ira, igualmente condenados por Deus (1 Jo 3.15). Se a fé não duvidar que temos um Deus gracioso, não lhe será difícil ser gracioso e favorável também para com o próximo, ainda que este seja culpado, pois nossa culpa é muito maior em relação a Deus (LUTERO, OSel, Volume 2, Das Boas Obras, p.162). "Assim aprenda o homem a serenar a cólera e a trazer no peito um coração paciente e manso, especialmente para com aqueles que lhe dão motivo a se irar, isto é, para com os inimigos" (LUTERO, CM, p.423.187). Sexta Palavra "Não cometerás adultério" (Êx 20.14). Deus quer proteger a vida e também o lar. Adultério é um intruso que pode destruir com certa facilidade vários lares ao mesmo tempo. Ao fugir do adultério, José diz que este é um pecado contra o próprio Deus (Gn 39.9). O profeta Malaquias prega a fidelidade no matrimônio (Ml 2.14-16), assim como o autor de Hebreus (Hb 13.4). Lutero considera que a pureza e a castidade na vida sexual é a luta mais dura do cristão, pois ela é diária e incessante. O refúgio é a oração e a Palavra 78 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ de Deus, mas é preciso também cuidar com o sono excessivo, comer e beber demais, viver na preguiça e no ócio. Baseado em 1 Pe 2.11, Lutero afirma que não se está livre dos maus desejos e que enquanto vivermos não teremos descanso deles, mas ainda que isto gere inquietação e contrariedade, é obra agradável a Deus lutar constantemente contra eles (LUTERO, OSel, Volume 2, Das Boas Obras, pp.163-164). Além de procurar viver de maneira casta e decente, o conselho também é de que se ajude ao próximo a fazer o mesmo (LUTERO, CM, p.426, 205). O estado matrimonial faz parte da criação de Deus. Foi o próprio Deus que percebeu que era preciso uma parte, não cara-metade, mas uma parte oposta e que as duas precisavam ser cimentadas e formarem uma só carne. A sexta palavra de Deus visa proteger essa união das infiltrações que podem colocar em risco seu fundamento e fazê-la desmoronar, pois é estado criado, abençoado e agradável a Deus. Sétima Palavra "Não roubarás" (Êx 20.15). Deus quer proteger o direito de todos na preservação dos bens materiais que vêm de suas mãos. Lutero diz que essa palavra não tem a ver só com o roubo e furto, mas também com "avareza, agiotagem, cobrar caro demais, passar para trás, fazer uso de mercadorias, medidas e pesos falsos" (LUTERO, OSel, Volume 2, Das Boas Obras, p.165). O foco principal de Lutero é o cuidado com o uso do dinheiro e fazer dele um deus em quem se confia (Jó 31.24, 28; Sl 62.10), além da ansiedade e preocupação exagerada com o trabalho. Como poderia ser avarento e preocupado, se pela fé o meu coração confia que conto com o cuidado divino? "Por isso não se apega a dinheiro algum, faz uso deste com alegre caridade em benefício do próximo e sabe muito bem que terá o suficiente, por mais que der aos outros" (LUTERO, Das Boas Obras, p.166). A razão desta certeza está na promessa de Deus que não falha. "Fui moço e já agora sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão" (Salmo 37.25; Pv 10.3). Vale notar que essas boas ações começam pela fé e a certeza de que sempre se terá o suficiente. Também é interessante notar que o diferencial na vida dos cristãos está em servir de socorro aos "não-merecedores", pois o ensino de Cristo é de que o cristão irá mais longe (Lc 6.32-36). Lutero expande ainda essa palavra e a aplica na atuação dos empregados em relação aos seus patrões. O cumprimento se dá quando 79 IGREJA LUTERANA estes utilizam bem o seu tempo, são fiéis e honestos trabalhadores (LUTERO, CM, p.428.225). Em resumo, nessa palavra Deus pede para que nada seja feito ao próximo com a intenção de diminuir seus bens, mas auxiliar, compartilhar e emprestar a quem necessita, com a abençoada promessa do Senhor. "Quem se compadece do pobre ao Senhor empresta, e este lhe paga o seu benefício" (Pv 19.17). E ainda, "o que oprime ao pobre insulta aquele que o criou, mas a este honra o que se compadece do necessitado" (Pv 14.31). Oitava Palavra "Não apresentarás um falso testemunho contra o teu próximo" (Êx 20.16). Deus também fala uma palavra para revelar sua preocupação e cuidado com o nosso bom nome. Honra e boa reputação não podemos dispensar (LUTERO, CM, p.434.255) e são mais valiosos do que bens materiais. "Quem rouba minha carteira, rouba só lixo; mas quem rouba de mim o bom nome, rouba-me do que não o enriquece; e com certeza muito pobre me deixa" (RAWLINSON, 1954, p.263). "Mais vale o bom nome do que as muitas riquezas; e o ser estimado é melhor do que a prata e o ouro" (Pv 22.1). A calúnia traz mais prejuízos que um roubo. Além do que, honra e bom nome facilmente se perdem, mas não é fácil restituí-los (LUTERO, CM, 437.273). Essa palavra trata do testemunho em tribunais (Dt 19.16-20), mas também se refere à prática de espalhar informações sobre outras pessoas. O apóstolo Tiago chega a dizer que alguém seria perfeito, se não tropeçasse no falar (Tg 3.1), o que infelizmente é impossível, pois ninguém é capaz de domar a língua, pois é veneno mortífero. Com ela bendizemos ao Senhor, mas também com ela amaldiçoamos as pessoas (Tg 3.8-9). Um olhar para o livro de Provérbios revela um pouco desse "problema" que decorre do nosso falar, mas também do valor das palavras bem colocadas. "A morte e a vida estão no poder da língua, o que bem a utiliza come do seu fruto" (Pv 18.21); "O Senhor abomina a língua mentirosa... e a testemunha falsa que profere mentiras" (Pv 6.17,19); "No muito falar não falta transgressão, mas o que modera os seus lábios é prudente" (Pv 10.19; 17.27); "O lábio veraz permanece para sempre, mas a língua mentirosa, apenas um momento" (Pv 12.19); "A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira" (Pv 15.1); "Palavras agradáveis são como o mel, doces para a alma e medicina para o corpo" (Pv 16.24). 80 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ Lutero considera a tendência de se falar e ouvir mais mal do que bem do próximo como a praga mais danosa (LUTERO, CM, p.435.264). O fato é que facilmente ultrapassamos a fronteira e, ao invés de apontar falhas, já estamos julgando e sentenciando. Deus nos aconselha nesta palavra a fazer uso da língua para falar o melhor a respeito de todos, encobrir pecados e fragilidades, desculpá-los e a embelezar e velar por sua honra (LUTERO, CM, p. 438.285). Além de falar, o descumprimento dessa palavra pode ocorrer quando silenciamos. O omitir ou o silenciar também não é recomendado, principalmente quando visa preservar interesses ilegítimos (LUTERO, OSel, Volume 2, Das Boas Obras, p.167), ou quando se está com medo de ofender alguém (LUTERO, CM, p.434.258). Essa palavra, como as outras, tem seu cumprimento a partir da fé. "Com efeito, onde há esta confiança e esta fé, ali está um coração corajoso, obstinado e destemido, que se arrisca e apóia a verdade, tanto faz se está em jogo o próprio pescoço ou o manto" (LUTERO, OSel, Volume 2, Das Boas Obras, p.169). Nona e Décima Palavras6 "Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo" (Êx 20.17). Essas palavras foram adicionadas para ensinar que pensamentos também nos condenam diante de Deus. As nossas motivações mais corruptas, guardadas em nosso coração, são como se fossem praticadas exteriormente. Na verdade, é na mente e em nosso coração onde nascem as palavras e atos maus. Deus quer eliminar a causa e a raiz de onde surge tudo aquilo que faz dano ao próximo (LUTERO, CM, p.443.310). Lutero é bem objetivo ao afirmar que essas palavras foram dadas justamente àqueles que presumem ter cumprido exteriormente todas as outras palavras e dirigidas aos que querem ser reconhecidos como pessoas honestas e sinceras, já que "não transgrediram" os demais mandamentos (LUTERO, CM, p.440-441.293, 300). Deus quer proteger o que ele nos concedeu, seja os bens materiais ou em vida, também dos olhos e desejos alheios. Lutero também combate os jeitinhos espertos para se obter algo em prejuízo do próximo e proveito para si. Quando há perdas para o próximo, esperteza As dez palavras têm duas divisões básicas. Uma delas não divide esse versículo em dois mandamentos. 6 81 IGREJA LUTERANA também é pecado. "Suave é ao homem o pão ganho por fraude, mas depois a sua boca se encherá de pedrinhas de areia" (Pv 20.17). Se a raiz do problema está na mente, a solução está em submeter também o pensamento ao senhorio de Cristo (2 Co 10.5) e "Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento" (Fp 4.8). Essa é a referência para a vida cristã. Fora dessas dez palavras nenhuma conduta pode ser agradável a Deus, por maior que seja aos olhos do mundo (LUTERO, CM, p. 443.311). Fundamental também é recordar o que Deus quer que se faça com essas palavras. "Também as atarás como sinal na tua mão e te serão por frontal entre os teus olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas" (Dt 6.8-9); "Ponde, pois, estas minhas palavras no vosso coração e na vossa alma; atai-as por sinal na vossa mão, para que estejam por frontal entre os vossos olhos. Ensinai-as a vossos filhos, falando delas assentados em vossa casa e andando pelo caminho e deitando-vos e levantando-vos" (Dt 11.18-19). CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PRÁTICAS 1. Ele falou. Está falado. Embora o conteúdo dessa frase não mude e seu alvo é expressar a vontade imutável de Deus, ela pode ter um impacto diferente no coração dos cristãos, dependendo do tom de voz que usamos. Para os que vivem em pecado e indiferentes com a vida cristã, talvez a palavra tenha que ser em um tom que reflita a palavra de lei. Para os que vivem em arrependimento e sofrimento, a palavra precisa ser proclamada com a mesma firmeza, mas com suavidade suficiente para expressar as doces promessas do Senhor Jesus. A maior arte do Ministério Eclesiástico e das funções que decorrem dele, é detectar a condição espiritual do cristão para determinar se é conveniente aplicar a Lei na função de revelar o pecado, ou as doces Boas Novas do Evangelho do Senhor Jesus Cristo. Essa arte se estende também no testemunho diário no lar e no trabalho e seu aprendizado depende da oração pelo Espírito Santo e da escola da experiência. Em resumo, a missão da Igreja é denunciar o pecado, mas com sensibilidade acolher o pecador. 2. Desde a Reforma Luterana, a doutrina da justificação pela fé foi recolocada como o alicerce sobre o qual a Igreja Cristã permanece. A doce nova do perdão somente por graça através da fé em Jesus Cristo, não pode sofrer erosão ou ser corrompida. Essa não é uma doutrina, mas a doutrina e base da religião cristã e da teologia. O núcleo 82 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ está na proclamação da salvação através do único nome dado para a salvação e o qual as Escrituras revelam, Jesus Cristo (At 4.12). Essa é a necessidade básica do ser humano, o perdão de Deus. A pergunta principal ainda precisa ser: Como posso obter um Deus gracioso? E a resposta "crê no Senhor Jesus e será salvo"! 3. Nós, porém, podemos e devemos ir um pouco mais longe. Como eu vivo como um filho salvo de Deus? Ou qual é a vontade de Deus para minha vida? A Lei de Deus não pode ser considerada como um elemento estranho na vida do cristão ou irrelevante para ele. Se a igreja se omitir na tarefa de usar as Escrituras para o ensino, repreensão, correção e educação na justiça (2 Tm 3.16), a sociedade em seu contexto maior providenciará o treinamento moral do nosso povo. A televisão, a internet e livretos de auto-ajuda serão as referências morais para os cristãos e nelas será moldado o seu caráter. Essas duas fontes são radicalmente opostas. 4. Além disso, vivemos numa sociedade essencialmente antinomista e nessa onda também na igreja se evita muitas vezes falar do certo e do errado, do pecado e não pecado. Muitas vezes o refúgio é falar nos pecados apenas como fraquezas pessoais, personalidade difícil, ao invés da natureza pecaminosa e dos prejuízos que atitudes erradas podem causar à fé (Fórmula de Concórdia, DS, IV, p. 595.31-32), ao próximo e ofender a Deus. A Lei faz parte da criação de Deus e os seres humanos não funcionam sem ter preceitos para sua vida. 5. A Igreja Evangélica Luterana do Brasil tem seguido a prática de lemas anuais para direcionar os estudos em toda a sua igreja e assim vislumbrar uma unidade de alvo em seu ensino. Embora salutar, estou convencido que há espaço para reavaliar a eficácia e rediscutir a aceitação dessa iniciativa e progredir nisso, no sentido de que as Escrituras Sagradas forneçam o itinerário de estudos e se estou na condição de fazê-lo, sugiro começar com os Dez Mandamentos, para diagnosticar a nossa saúde espiritual, o Credo, para saber que tudo procede da mão de nosso Deus Triúno e o Pai Nosso, para com humildade as bênçãos pedir em oração. Lutero escreveu o Catecismo para ser um manual de cuidado pastoral, caso os pastores não sejam capazes de ensinar com suas próprias palavras os seus membros. A sugestão parece ser relevante ainda hoje. 6. Estou particularmente convencido de que a distinção e a relação nas duas justiças, diante de Deus e diante do mundo, podem nos fornecer uma matriz para proclamação da Lei e do Evangelho e estes realizarem suas obras próprias. Diante de Deus, a Lei expõe o pecado e nossa completa dependência da graça de Deus revelada no Evangelho do Senhor Jesus Cristo. Diante do mundo, o cristão responderá em 83 IGREJA LUTERANA fé e confiança e o papel da Lei será fornecer informações para a sua vida cristã em benefício do próximo e de toda a criação de Deus, sem comprometer a doutrina da justificação pela fé. O ensino da Lei nessa dimensão vai moldar novas atitudes, pensamentos e ações. O cristão não é mono-dimensional. Vivemos diante de Deus e diante do mundo. A justificação pela fé diante de Deus nos confere por antecipação a pátria celeste, mas também torna importante e relevante a vida cristã diária com toda a criação de Deus. Ser um ser humano como Deus nos criou significa viver completamente passivos diante de Deus e totalmente ativos no mundo, como vizinhos responsáveis por outras pessoas e por toda a criação de Deus. É preciso cautela quando se fala em obras ou vida cristã como evidência da salvação ou presença da fé verdadeira. Esse tipo de ênfase pode resultar num involuntário legalismo e gerar dúvidas sobre a certeza da salvação (ARAND, 2000, p.124). Ainda é preciso considerar a Palavra de Deus como verdade para a vida cristã, quando o sofrimento bate à nossa porta. Quando estamos sendo confrontados com a doença, a morte prematura, problemas na educação de filhos, problemas no relacionamento familiar, angústia, medo. Tua palavra é a verdade para nos acalmar e nos devolver a confiança no Deus bondoso. 8. O que é conhecer a Cristo? Lutero responde que conhecer a Cristo, em primeiro lugar, nada mais é do que reconhecê-lo como uma dádiva, um presente dado por Deus. E em segundo lugar, como um exemplo. Imitar a Cristo não é um caminho que precisa ser tomado para a cidade eterna, mas seguir seus passos é ter fé no Salvador. Libertados da escravidão da Lei, o cristão pode seguir espontaneamente o exemplo de Cristo, pela obediência e boas obras. Não vamos obedecer por causa do medo do castigo, mas livremente, sabendo que o Senhor bondoso nos redimiu e toma conta de nossas vidas. Nós recebemos pela fé o Cristo presente e também como exemplo para o nosso próximo. Lutero tem uma preocupação pastoral enorme sobre esse assunto. Em tempos de aflição, prega-se tão-somente Cristo Dádiva, mas em tempos de comodismo, de alegria, quando faltam referências seguras para um amar desinteressado, paciência, sacrifício pelo bem dos outros, pode ser anunciado Cristo Exemplo7. Ainda que nossa 7 Reflexões de Lutero sobre Cristo Dádiva e Cristo Exemplo, extraídas do livro de Ian D. Siggins, pp. 156-164. 84 ELE FALOU E ESTÁ FALADO: “A TUA PALAVRA É A VERDADE PARA A VIDA CRISTÔ imitação seja como uma palha queimando diante do sol que é Cristo, a Palavra de Deus nos ensina a "ter o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus" (Fp 2.1-11), e se Deus falou, está falado. Amém. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ARAND, Charles P. What is the Third Use of the Law? Part 2. Concordia Seminary Publications -Symposium Papers, Numbers 5 and 6, 1995/1996, pp.17-30. ARAND, Charles P. That I May Be His Own. St. Louis: Concordia Publishing House, 2000. ARAND, Charles P. e BIERMANN Joel. Why the Two Kinds of Righteousness? Concordia Journal, Volume 33, April 2007, Number 2, pp.116-135. BACHMANN, James. First Use of the Law in Congregational Life. Concordia University Irvine. KOLB, Robert. Preaching the Christian Life: Ethical Instruction in the Postils of Martin Chemnitz. Lutheran Quarterly, Volume XVI, 2002, pp.275-301. KOLB, Robert. 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Ninguém pode evangelizar se não houver um ponto de contato entre uma pessoa e o Evangelho de Cristo. Uma pregação evangelística por esta razão deve ser dirigida a necessidades específicas. E isto é urgente porque só Cristo pode preencher essas faltas. Ela também demanda uma resposta e está baseada na autoridade de Cristo. O melhor lugar para a pregação evangelística é a congregação local. O melhor pregador evangelístico é o pastor de uma congregação. A evangelização requer mapas para enviar missionários para outras nações e também encontrar endereços de pessoas para serem visitadas em nossas congregações. Vamos fazer um mapa – um diagrama – para olhar para um indivíduo. Um mapa de uma pessoa pode mostrar muitas coisas, mas este mostra algumas manifestações do pecado. vícios (bebida em excesso) cobiça ódio (mentiras) orgulho preconceito (racismo) glutonaria (preguiça) idolatria (avareza) 1 “Evangelistic Preaching to Oppose Sin”. O quinto artigo de uma série de seis, sobre Pregação Evangelística. Fonte: Concordia Pulpit Resources, Volume 2/Part 3, June 14, 1992 – September 20, 1992, pp.8-9. Saint Louis, USA: Concordia Publishing House. Used with permission. All Rights Reserved. Traduzido por Anselmo Ernesto Graff, professor de Missiologia no Seminário Concórdia de São Leopoldo e ULBRA, Canoas, RS. 87 IGREJA LUTERANA O pecado faz parte das nossas vidas. No diagrama acima, há algumas das formas pelas quais o pecado se manifesta. Nós usaremos este mapa para lidar com as partes pecaminosas de nossas vidas, pelo poder que o Evangelho nos dá, fazendo-nos “vivos para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6.11b). Como um santo lida com o pecado? Cristo pagou o preço por nossos pecados. Deus nos declara perdoados e somos santos. Como povo santo, como lidar com o pecado – nosso próprio e dos outros? Alguns cristãos dizem que eles não pecam, embora a Escritura afirme que isto é uma mentira (1 Jo 1.8). Outros aceitam o fato de que são pecadores, mas deixam por isso mesmo. Alguns têm uma atitude (ainda que isto possa não ser dito claramente) de não negar o pecado, mas de pensar que como ele é inevitável, que eles podem muito bem escolher os pecados que mais os atraem. Outra pessoa disse: “As coisas estão bem, eu não me importo em pecar e Deus gosta de perdoar o meu pecado. Assim cada um faz o que gosta”. Esses pensamentos ignoram o perigo do pecado. O pecado prejudica nossa relação com as outras pessoas e com Deus. Pecados não confessados ou não examinados, bem como a impenitência, podem destruir a fé que recebe o perdão conquistado por Cristo na cruz. Sim, mas: alguns respondem, “sim, nós somos perdoados, mas qualquer pecado que cometemos ainda nos condena”. Eles reconhecem o Evangelho, mas voltam atrás e olham para a Lei. A conjunção “mas” é uma boa palavra para mostrar a mudança da Lei para o Evangelho: “Eu sou um pecador, mas Cristo morreu por mim e assim estou perdoado”. Todavia, usar o “mas” depois do Evangelho reverte o assunto outra vez para a Lei. É proclamado que Jesus morreu para pagar os nossos pecados e assim nosso passado foi perdoado, mas olhamos para o futuro confiando em nós mesmos. Debaixo da Lei, sem o Evangelho, nós dependemos de nossa habilidade. Sob o Evangelho, recebemos o poder de Deus em Jesus Cristo. Pregar a Lei depois do Evangelho é pedir às pessoas para deixar de lado o poder de Deus e retornar às suas próprias capacidades. Sim, e: Cristo morreu para perdoar os pecados do nosso passado e seu poder também nos ajuda agora a lutar contra o pecado. Deus perdoou você e ele nos ajuda em nossa batalha diária contra o pecado. Nós não resistimos a pecados individuais como um favor a Deus. Antes, a habilidade para superar o pecado é um favor (graça) que vem de Deus por nós. 88 PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA COMBATER O PECADO Vamos considerar o diagrama acima no contexto de sermos simultaneamente santos e pecadores. A pregação evangelística aplica o Evangelho às áreas da vida onde nós, como santos, ainda batalhamos contra o pecado que nos pressiona. Quando se fala de pecado a descrentes, o alvo é de que eles vejam o seu pecado, se arrependam e creiam em Cristo como seu Salvador. Quando se fala sobre o pecado a crentes ou santos, o alvo é para que eles vejam o seu pecado, se arrependam e reconheçam o perdão que eles têm em Cristo. Eles devem usar o mesmo poder de Deus para combater o pecado. Sujeitos à Lei – sob o Evangelho: O ponto de referência dos cristãos tem movido (por uma ação do Espírito Santo) da Lei para o Evangelho. Seu jeito de agir com a questão é diferente daquele dos descrentes. Vamos examinar três lugares na Bíblia onde os sujeitos da Lei estão claramente definidos. O Primeiro Mandamento identifica um relacionamento entre alguém que deu e aqueles que receberam os mandamentos. Se as pessoas ouviram os mandamentos como parte daquele relacionamento, eles ouviram que Deus os libertou da escravidão e os libertaria da idolatria, ódio, cobiça, avareza, etc. Se eles ouviram esses mandamentos fora desse relacionamento, eles teriam um conjunto de ordens que deveriam obedecer. À luz do Novo Testamento, o Primeiro Mandamento poderia ser escrito assim: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te enviei meu Filho Jesus para morrer como pagamento pelos teus pecados e te ressuscitar da morte e te dar a vida eterna”. Nesse relacionamento Deus também nos dá a liberdade de não participar na batalha para cumprir os Dez Mandamentos com nosso próprio esforço. Se nós ouvimos os mandamentos fora dessa relação, é nos dito a fazer o que nós somos incapazes de praticar. Se nós os ouvimos naquela relação, nós ouvimos sobre as bênçãos que Deus nos concede através de Jesus Cristo e vivemos pelo seu poder. No Sermão do Monte, Jesus diz: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas: não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5.1). Cristo, e somente ele, cumpriu o que os Dez Mandamentos ordenam. Para aqueles que estão fora da relação com Jesus, os mandamentos continuarão como algo a ser cumprido por eles – e o restante do Sermão mostra como isto nos é impossível. Para aqueles que estão no relacionamento com Jesus, os mandamentos se tornam verdadeiros porque Cristo os obedeceu em nosso lugar e agora ele nos ajudará em nossa batalha para também obedecê-los. A exposição da Lei em Rm 1.18-32 é especialmente importante, 89 IGREJA LUTERANA porque isto é pós-Pentecoste e por essa razão aplicada à igreja em que nós estamos hoje. Sermões baseados somente no texto acima seriam totalmente Lei e passariam a mensagem que todos merecem a morte. Contudo, imediatamente um pouco antes, Paulo escreve: “[...] visto que a justiça de Deus se revela no Evangelho, de fé em fé” (Rm 1.17). O tema da seção da Lei é que o pecado nos priva de conhecer a verdade completa a respeito de Deus (vv. 18,22,28). A Lei nos ensina a verdade sobre nós próprios e sobre a ira de Deus. Somente o Evangelho nos revela a verdade completa sobre Deus, a qual inclui seu amor e misericórdia através de Jesus Cristo. A vantagem de jogar em casa: No mundo, a Lei tem a sua vantagem do jogo em casa, mas na Igreja prevalece o Evangelho. No mundo, o Evangelho parece loucura (1 Co 1.21-25). A morte reina porque ela tem dois ases na manga: a lei e o pecado (1 Co 15.56). Porém, na igreja, a morte foi destruída. A dívida do nosso pecado foi paga e a morte é um passo para a ressurreição. O problema é que ainda temos a nossa velha natureza dentro de nós. Mas dentro da igreja nós encontramos o poder do Evangelho para controlar nosso lado pecador. Mas muitas vezes a velha natureza vai querer jogar como se estivesse em casa com o Evangelho enquanto está na igreja. Nosso pecado quer ter a mesma liberdade que temos no Evangelho. Por isso nós temos que identificar o pecado em nossas vidas e aplicar o Evangelho de Cristo para aquela área. Guerrilhas dentro de nós: Vamos pensar em nós como um país que Cristo venceu e dominou. Ele estabeleceu um novo governo – uma nova vida. Porém o antigo governo ainda tem algumas guerrilhas fiéis e que continuam com seus ataques. As áreas do diagrama acima mostram onde essas guerrilhas estão ainda em atividade. Elas não têm controle, mas podem produzir uma série de prejuízos. Exemplos de guerrilhas: alguém honesto pensa em alterar o valor de seu salário por causa do imposto; um pai pensa em agredir seu filho que chora; uma pessoa heterossexual tem desejos homossexuais; um cristão fiel coloca em dúvida toda a história e obra de Jesus. Muitos pensamentos são como guerrilhas atacando a nova natureza do cristão. Eles podem ser breves, desconsiderados e rejeitados – mas eles são perigosos. Nós muitas vezes ficamos receosos em falar sobre eles. A pregação evangelística deve identificar as guerrilhas e, então, as armas espirituais do novo governo podem eliminar os inimigos que permanecem. Não se pode focar apenas numa guerrilha. Isto somente reforçará 90 PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA COMBATER O PECADO o encobrimento de tantas outras. Ao invés disso, é preciso identificar o problema e listar um número de possíveis guerrilhas dispostas a atacar, sempre mencionando que essa lista nunca será completa. Observe como a Escritura quase sempre lida com pecados em grandes listas (Gl 5.19-21; 1 Co 6.9-10), mostrando que cada um é igualmente mau. Um sermão rigoroso contra o abuso do álcool e drogas eliminaria aqueles que têm aquela culpa escondida, mas serviria também para que a justiça própria seja oferecida sobre uma bandeja de prata para o restante das pessoas. Os itens que você inclui e não inclui nesta lista mostrarão o quanto o Evangelho vai alcançar. Hoje talvez tenhamos dificuldades em falar sobre homossexualismo, aborto e uso de drogas como parte de nossas listas. Falar contra eles individualmente é mais aceitável porque faz com que pareçam semelhantes a outros pecados que as pessoas cometem. Mas incluí-los numa lista implica que nossa culpa escondida é tão má quanto a deles. E é isto que precisamos fazer para alcançar o comando da guerrilha secreta de cada pessoa. Qualquer pecado que não pode ser mencionado, não pode a ele ser dirigida a mensagem do perdão. Somente quando o pecado é perdoado nós podemos encontrar ajuda para superar sua contínua força em nós. As Boas Novas são de que Cristo nos ajudará em nossas lutas contra o pecado. Enquanto vivermos, teremos guerrilhas da velha natureza pecaminosa lutando contra nossa nova natureza. Mas nossa pregação pode ajudar as pessoas a lutar a batalha na igreja, onde as regras estão a nosso favor. Se não ajudarmos as pessoas a identificar os seus inimigos, nós as forçamos a lutar contra os problemas sozinhos e, muitas vezes, sem o poder do Evangelho. Evangelizar-se a si mesmo: Aqueles que proclamam o Evangelho para outros devem em primeiro lugar falá-lo para si mesmos. Na pregação, um pecador está falando para pecadores em como vencer o pecado. Em primeiro lugar, é preciso ser extremamente honesto em identificar as guerrilhas em nossa própria vida. Todos nós que pregamos estamos sujeitos a dois perigos: nós podemos supor que cada um tem a mesma culpa que nós temos e condená-los com a força que nós sentimos contra nós mesmos; ou nós podemos defender nosso próprio pecado e oferecer essa mesma defesa para os que nos ouvem. A nossa própria culpa não pode limitar a nossa habilidade para evangelizar a culpa dos outros. Aplique o Evangelho em primeiro lugar para si mesmo, depois o espalhe em abundância. Jesus disse: “[...] porque eu não vim para julgar o mundo, e sim para salvá-lo” (Jo 12.47b). Quando você proclama o sermão, você não 91 IGREJA LUTERANA ajudará ninguém ao condenar ou fechar os olhos para o pecado. Você ajudará quando faz as pessoas olhar para seu próprio pecado e aplicar o Evangelho àquele pecado, primeiro para dar o perdão e depois para auxiliá-las na contínua luta contra aquela transgressão. 92 PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA O SERVIÇO CRISTÃO1 Pense no Evangelho de Cristo como sal – dentro de um saleiro. A tarefa de um pregador é salgar, isto é, evangelizar pessoas. O trabalho não é somente sacudir o saleiro para que o sal seja espalhado, mas é sacudir o sal sobre as pessoas. Pregação evangelística como definida nesta série de artigos é: - a aplicação do Evangelho para pessoas específicas em suas necessidades peculiares; - pregar com senso de urgência, pois somente Cristo pode ser a solução para tais problemas; - uma mensagem que demanda uma resposta; - uma dádiva que é dada pela autoridade de Cristo. O melhor local para fazer evangelismo é na congregação local – e a melhor oportunidade está no culto regular de cada congregação. Muitos ouvem o Evangelho, o qual lhes fala que eles estão salvos, mas nunca ouvem a mensagem que lhes fala que eles estão salvos para servir. Eles podem ser como uma árvore regada pela água – mas há pouco fruto. Neste último artigo, o foco será sobre a pregação para o serviço cristão. Em estudos de resultados na religião, as organizações denominacionais geralmente definem o que eles pensam sobre como deveriam ser os membros. Contudo, este estudo olha para as igrejas na outra ponta. Através de uma série de entrevistas com uma grande variedade de membros, o estudo descreve como os membros das igrejas realmente são. Mostra os resultados do ensino e pregação de cada denominação. O estudo olha pelo fruto que o Espírito produz nas árvores dos cristãos. Depois de avaliar um sermão pelo critério do conteúdo da Lei e do Evangelho, a medida mais importante para a avaliação de um sermão não é seu estilo ou a utilização de habilidades homiléticas. A verdadeira questão é: O que o sermão opera na vida dos ouvintes? “Evangelistic Preaching for Christian Service”. O sexto artigo sobre Pregação Evangelística. Fonte: Concordia Pulpit Resources, Volume 2/Part 4, September 27- November 22, 1992, pp. 10-12. Saint Louis, USA: Concordia Publishing House. Used with permission. All Rights Reserved. Traduzido por Anselmo Ernesto Graff, professor de Missiologia no Seminário Concórdia de São Leopoldo e ULBRA, Canoas, RS. 1 93 IGREJA LUTERANA Nós, que pregamos, gostaríamos de pensar que se contarmos a história de Jesus, aqueles que ouvem sobre ele vão segui-lo naturalmente. Nossa lógica nos fala que aqueles que crêem em Cristo viverão assim como pequenos cristos. Mas isto nem sempre funciona assim. Muitos ouvem o Evangelho, o qual lhes fala que eles estão salvos, mas nunca ouvem a mensagem que lhes fala que eles estão salvos para servir. Eles podem ser como uma árvore regada pela água – mas há pouco fruto. Isto é um problema para a pregação evangelística. Não somente a Lei e o Evangelho devem ser aplicados a fim de que uma pessoa chegue à fé, mas que cada vida cristã deve ser motivada pelo Evangelho a servir. Para tanto, vamos fazer outro mapa. Nós podemos mapear cada pessoa para identificar áreas que precisam estar sob o controle do Evangelho. No artigo anterior, desenhamos um mapa para identificar as áreas de pecado na vida de um cristão. Este mapa mostra as coisas boas em nossas vidas. Este mapa inclui somente um iniciador de idéias. Obviamente o pecado é uma parte de todos esses itens. Tudo o que vemos e fazemos está manchado por nossa natureza pecaminosa que herdamos de nossos pais. Mas o mapa do pecado foi considerado no artigo anterior e não estamos tratando nem de pecado e nem de culpa aqui. Também, pode haver problemas em cada uma dessas áreas, mas eles serão 94 PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA O SERVIÇO CRISTÃO tratados mais tarde neste artigo. Por agora olhe para os itens considerados bons e que podem ser motivos para darmos graças a Deus. A obra da igreja se torna visível quando ela alimenta os famintos, ajuda os oprimidos e conforta os que choram. Mas será que a igreja tem uma mensagem para aqueles que não têm tido problemas com culpa e necessidades sociais? Os “brilhantes e lindos” também precisam do Evangelho? Como aplicar o Evangelho para essas pessoas? Estas questões não se aplicam somente àquelas pessoas “saudáveis” que vivem em áreas residenciais e que não sentem necessidade de Deus, porque eles pensam ter uma vida boa. Isso se aplica a nós também. Como cristãos, necessitamos saber como o Evangelho afeta “nosso próprio bem” – as partes boas de nossas vidas. Nós temos duas naturezas. Uma é a nossa natureza pecaminosa. Nós a chamamos de velho adão, o velho homem, que nos faz pecadores desde a concepção. Nós também chamamos isso de pecado original – o qual é, às vezes, mal compreendido. Uma pessoa entendeu que o pecado é original, no sentido de que só ela tinha esse pecado, ninguém mais. A outra é a nossa nova natureza. É a nova vida, que nos foi dada pelo Espírito Santo no batismo e é nutrida através da Palavra e da Ceia do Senhor. É uma dádiva de vida baseada na morte e ressurreição de Cristo. A nossa nova e a velha natureza estão em guerra constante (Gl 5.16-26). Nós percebemos o poder da nossa velha natureza em nossa vida pecaminosa. Nós vemos o poder de nossa nova natureza pela obra do Espírito em nós. O conhecimento natural de Deus pode produzir um desejo a fazer o bem e que conduz a resultados positivos do ponto de vista humanitário. Mas aquilo que é feito pela nossa nova natureza não é produzido pela nossa vontade e energia, mas pelo poder de Cristo em nós. Nosso bem precisa o bem de Deus: Nós podemos abordar “nosso próprio bem” de duas maneiras: a Lei nos mostrará que nosso bem não é suficientemente bom. Se as culpas de pecados da ação não nos incomodam, a consciência de pecados por omissão nos levará a ficar de joelhos. Quando nosso próprio bem é visto da perspectiva da Lei, pessoas serão convencidas de que suas próprias obras são boas o bastante. Então o Evangelho do perdão de Cristo e o poder do Espírito são aplicados. Aqueles que não conhecem a Cristo precisarão ver o pecado em sua própria bondade, antes deles estarem aptos a desistir disto e deixarem se cobrir pela bondade do Salvador. 95 IGREJA LUTERANA ...quando as pessoas se afastam da participação na igreja, existe uma ordem na maneira que eles se amputaram do corpo de Cristo. É preciso cautela quando a Lei é aplicada às boas obras que o cristão faz. Muitas vezes as pessoas aceitam e se alegram na graça de Deus que concede o perdão e percebem sua graça em outros tempos de necessidade, mas não vêem a graça de Deus em tempos de abundância. Podem sentir que foram elas que adquiriram sua saúde, riquezas e sucesso, e ao mesmo tempo se sentem culpadas porque outros não têm a mesma sorte. Se a Lei é aplicada nesse sentido de culpa para motivá-las a produzir boas obras, o resultado será a tentativa de adquirir a justificação através das obras. A Lei precisa, em primeiro lugar, promover o arrependimento. É fácil para os “brilhantes e lindos” praticar boas obras a partir de um sentimento de culpa. A Lei deve ser aplicada ao seu sucesso para preveni-las de não seguir esse caminho. Então o Evangelho pode ser aplicado para conferir perdão e nova vida. A outra forma de abordagem, apropriada somente para os cristãos, é aplicar o Evangelho ao nosso próprio bem. Cristãos batizados em Cristo vivem o arrependimento como uma parte de sua vida diária. Como eles retornam do pecado a Deus pela graça, eles continuam a ver novas formas de servi-lo. Um sermão para o dia de Ação de Graças é uma oportunidade para pregar um sermão evangelístico para o serviço cristão. A moléstia é o pecado da ingratidão contra Deus. As bênçãos nos distraem a ponto de nos afastarmos de Deus, o doador das bênçãos? Nós enxergamos as bênçãos como evidência de nossa bondade e não da graça de Deus? Depois se aplica o Evangelho. Pode-se passar pela lista e ver que as coisas boas em nossas vidas são evidências da bondade de Deus. Assim o Evangelho dará um novo sentido às bênçãos já recebidas. Nós podemos servir: as Boas Novas do Evangelho são de que somos salvos – e salvos para servir. A questão não é de que agora que somos salvos temos que trabalhar por isso. Ao invés disso, o Evangelho que perdoa nossos pecados e nos ajuda a lutar contra o pecado também nos dá a vontade e a energia para servir a Deus. O processo é simples: 1. Tome como exemplo uma bênção que pode ser percebida como resultado do próprio esforço de um ouvinte; não presuma que eles já não saibam que estas bênçãos são presentes de Deus. 2. Aplique o Evangelho para aquela bênção. Para aqueles que já vêem todas as bênçãos como evidências da graça de Deus, o sermão reforçará sua fé. Para aqueles que vêem as bênçãos como resul- 96 PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA O SERVIÇO CRISTÃO tado de seu próprio esforço ou alguém de sorte, o sermão apresentará a Lei para levar ao arrependimento pelo pecado da ingratidão e o Evangelho o perdão. Aqui estão alguns exemplos de como fazer isto baseados no mapa do começo deste artigo. Atividades na Igreja: a vida de culto da congregação já é repleta de Evangelho, que afinal de contas é o objetivo principal do culto. Mas, às vezes, as atividades fora do santuário precisam uma aplicação direta do Evangelho. Ouça as conversas em reuniões de diretoria nas congregações. Preste atenção para o que acontece nos eventos sociais e de trabalhos na congregação. O Evangelho proclamado no culto ecoa em outros eventos da congregação? Se os membros da igreja escutam as Boas Novas no culto, mas não as aplicam na parte administrativa da igreja, qual a chance deles as aplicarem para as suas vidas pessoais? Aqueles que pregam esta mensagem podem segui-la e ver como ela é vivida nas atividades da congregação. É fácil nos assuntos administrativos da congregação deslizar de volta e ficar sob a Lei. Líderes podem esquecer-se da importância do Evangelho e acabam não dependendo do poder de Cristo para fazer a obra na igreja. As atividades na igreja não estão limitadas àquelas coisas listadas no boletim da igreja. Nós que pregamos precisamos ajudar àqueles que ouvem a aplicar o Evangelho em sua vida devocional. Eu tenho notado que quando as pessoas se afastam da participação da igreja, há uma ordem na maneira que eles se amputaram do corpo de Cristo. Primeiro, eles desistem aos poucos de participar do culto semanal, o que significa que raramente eles recebem a Ceia do Senhor. Depois eles vão cortando a comunhão com os membros da igreja. Nesse caminho eles abandonam a leitura da Bíblia. Mas eles ainda oram. A oração é geralmente a última parte da devoção que é abandonada. Muitas pessoas oram motivadas pela Lei e não pelo Evangelho. Compare uma oração a outros pedidos. Pedir por alguma coisa, o que você deve saber é:1. a quem você está pedindo; 2. o que você deseja; e 3. por que você espera recebê-lo. É nesta terceira parte da oração que geralmente reside o problema. Para alguns, esta parte da oração é: “se você me der o que eu quero, eu irei....” Para outros é: “lembre, eu sempre tenho lhe servido”. Isto é barganhar com Deus usando a Lei, ao invés da confiança na graça do Evangelho. Sob o Evangelho, a expiação de Cristo é a base para nossa confiança de que Deus ouvirá nossa oração. Orar em nome de Jesus não é somente uma senha para entrar dentro do sistema de comunicação de Deus. Nós não merecemos o que pedimos, mas Jesus nos concede o que merece. Nós usamos seu cartão de crédito. 97 IGREJA LUTERANA O Evangelho aplicado às nossas ocupações mostra que o propósito do emprego não é somente fazer dinheiro ou providenciar o sustento próprio e da família. Nosso trabalho nos dá uma oportunidade de cuidar de uma parte da criação de Deus (Gn 1.28). Dinheiro: Quando estava escrevendo este artigo, nossa congregação estava tratando do orçamento anual. Meu sermão começou: “Este é um sermão evangelístico. Seu propósito é evangelizar seu talão de cheques, cartão de crédito e seu dinheiro”. O sermão então coloca o dinheiro sob o mesmo Evangelho quanto àqueles que pertence o dinheiro. A preocupação não foi apenas para o que o dinheiro deveria ser, ou seria contribuído à igreja. O alvo não foi atingir os 10% das finanças dos membros – mas 100% – ser considerado como fundo para o serviço de Deus. Um membro ativo da igreja que acabou de se transferir para a nossa congregação disse: “Este foi o primeiro sermão que ouvi sobre mordomia em que eu não me ofendi”. A primeira coisa que fiz foi brincar com a comissão de mordomia a respeito dessa observação. Talvez meu sermão não tivesse alcançado seu alvo se não tivesse ofendido àqueles que o ouviram. Mas aquela atitude presume que pessoas têm se colocado sob a Lei (fazendo-os sentir-se culpados) a fim de que eles vejam a necessidade de ofertar. Pessoas que vivem sob a graça de Deus não precisam sentir culpa antes de eles sentirem o desejo de fazer o bem. Paulo diz: “Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria” (2 Co 9.7). Vocações e famílias: pessoas que sentam nos bancos da igreja gastam muito do seu tempo e energia em dois itens: família e trabalho (a escola para alguns). Muitos sentem um grande conflito nas exigências em ambos. O Evangelho deve alcançar aquelas partes de suas vidas. Nós incluímos os pecados do trabalho e do lar no perdão de Cristo. Nós também temos que aplicar o poder do Evangelho às alegrias em ambos. O Evangelho aplicado às nossas ocupações mostra que o propósito do emprego não é somente fazer dinheiro ou providenciar o sustento próprio e da família. Nosso trabalho nos dá uma oportunidade de cuidar de uma parte da criação de Deus (Gn 1.28). Nossos trabalhos nos dão uma chance de sermos a resposta das orações de alguém outro. Há muito tempo atrás um membro da igreja me pediu para encontrar um novo termo para o trabalho na igreja, pois trabalho teria uma 98 PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA O SERVIÇO CRISTÃO conotação negativa. Eu pesquisei por um tempo e descobri que estava olhando para o caminho errado. Ao invés de encontrar um outro termo, eu procurei dar à palavra trabalho um sentido mais positivo. Não somente o trabalho na igreja, mas todo o trabalho é um presente de Deus. São boas novas quando trabalhamos na equipe de Deus. Habilidades: Todas as pessoas têm habilidades especiais. Algumas vezes suas velhas naturezas usam essas habilidades para propósitos ruins. Mas todas as habilidades que temos podem ser consagradas ao uso cristão. “A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um fim proveitoso” (1 Co 12.7). Por exemplo, eu senti o desejo de escrever porque eu aprendi a ler. Eu tenho aprendido a sacudir o sal do Evangelho sobre o meu desejo de escrever. Deus concedeu-lhe habilidades. Você é alguém redimido por Cristo. Esta redenção inclui o uso de suas habilidades e talentos naturais sob a iluminação do Espírito, como dons espirituais. Pregação evangelística usa o Evangelho somente como fonte de motivação. Aqueles que pregam o Evangelho não precisam ficar temerosos em contar para os seus ouvintes o que eles deveriam fazer. Contudo, eles precisam definir claramente de onde vem a urgência daquele deveria. Se vier do temor, é baseado na Lei. Se sua origem é do amor de Deus em Cristo, é baseado no Evangelho. “Levai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6.2). Jesus disse: “O meu mandamento é este, que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15.12). Estas são mensagens do Evangelho. Cristo é a única fonte de perdão e vida eterna, o único sacrifício que expiou os nossos pecados e a única motivação para o correto serviço cristão. O perigo é que poderíamos pensar em outra base para servir a Deus. Mas se nós oferecemos um outro caminho para o serviço cristão – ou falhamos em proclamar o Evangelho como o único poder para as boas obras – nós falhamos na aplicação correta do Evangelho. “De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam” (Hb 11.6). 99 IGREJA LUTERANA 100 DEVOCIONAIS DEUS NOS GUARDA EM TODOS OS NOSSOS CAMINHOS Salmo 91.11 Em nome de Jesus, o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Amém. “Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos” (Salmo 91.11). “Em todos os teus caminhos”! De fato crês nisto? Como foram os teus caminhos neste período de férias (ou recesso escolar)? Que fatos marcaram teus caminhos? Quem acompanhou as notícias da IELB neste período sabe que houve fatos no caminho de diversos irmãos nossos que mudaram de forma definitiva o rumo de suas vidas. Que promessa é esta que o texto nos traz? Que tipo de atenção devemos dar a ela, tendo em vista que na única vez que esta palavra é citada no Novo Testamento ela o é não por Jesus ou por um apóstolo, mas como vimos no evangelho, é citada pelo diabo (Mt 4.6,7)!? E por que Jesus não aceitou a citação de Satanás deste Salmo? Na verdade, o texto é consolador, como pudemos constatar ao ouvilo dentro do seu contexto, o Salmo 91. O problema que aparece na tentação de Jesus é que o diabo não é um bom professor de Bíblia, apesar de conhecê-la intelectualmente muito bem. Nós diríamos: ele citou o texto fora de contexto! Aliás, tanto no relato de Mateus como de Lucas, faltam as palavras “em todos os teus caminhos”. Será que elas incomodaram o diabo, a ponto de não citá-las? O fato é que, por ocasião da tentação do Senhor, o diabo queria que Jesus “forçasse” o caminho! E não é diferente do que acontece conosco! “Atira-te abaixo”, diz o diabo desafiadoramente: o teu Deus é forte ou não?! Parece que o diabo estava inventando uma forma de “teologia da prosperidade”. Para quem está com Deus, tudo vai bem; se as coisas não vão bem, é porque você não está com Deus ... ou Deus não está com você! Mas a palavra de Deus no Salmo não é uma promessa do tipo “teologia da prosperidade” – é uma promessa dentro da realidade! O Salmo menciona a necessidade de refúgio, fala do mal, da praga; se refere a pedras no caminho; lembra que há animais ferozes – o leão e a serpente; e ainda diz que há tempos de angústia também na vida dos filhos de Deus. Mas é bem aí que Deus guarda os seus! 101 IGREJA LUTERANA Esta não é uma promessa que privilegia o “jeitinho”, a malandragem, nem acena com vida fácil! Teólogos, pastores (e assim, todos os cristãos) são tentados, assim como Jesus o foi, a forçarem o caminho! Neste início de ano letivo desta Faculdade de Teologia, escola de pastores, vale lembrar que seremos tentados em nossa busca por ir além dos limites da revelação de Deus, da competência recebida de Deus e da ética. Somos tentados a forçar o caminho, indo além dos limites da revelação. As polêmicas recentes em torno do fantasioso “Código da Vinci”, a descoberta do “Evangelho de Judas”, que no exagero de uma revista de circulação nacional, estava vindo para mudar os rumos da fé; e outras tentativas de tirar a autoridade do texto bíblico e inventar novas revelações... tudo isto é uma tentação a deixar o caminho da clara e completa revelação de Deus na sua palavra e embrenhar-se por caminhos inventados pela razão humana e que levam as pessoas a um destino triste e solitário. O orgulho e a vaidade tentam o teólogo a buscar fontes alternativas de revelação, que não a Escritura. Com Adão somos tentados a seguir por caminhos além dos limites da competência (“poder”) – somos chamados a anunciar o Rei; somos seu reino, mas não somos reis. Ao sermos chamados para proclamar o evangelho, nenhum poder humano pode nos dizer para não fazê-lo. Nem mesmo uma Assembléia de membros votantes tem a autoridade de proibir que o ministro de Cristo anuncie de forma pura a palavra de Deus. É Deus quem nos constitui, envia e ordena que anunciemos. Esta é nossa competência. No entanto, pastores são hoje tentados, como sempre foram, a esquecer que sua competência – poder – é um chamado para servir a igreja e o mundo com a palavra de Deus e não para dominar consciências, não para impor sua própria vontade. Com Adão somos tentados a seguir por caminhos além dos limites da ética! Ficamos chocados em ouvir notícias escandalosas a respeito de pastores (ou pseudopastores), que se metem em problemas por causa da ganância ou da imoralidade sexual. É preciso estar atentos! Ou pensamos que apenas pastores de outras denominações são tentados na busca do poder, da influência e até a ir além dos limites no campo das finanças?! É uma triste verdade que escândalos sexuais estejam manchando o ministério instituído por Cristo. Mas igualmente triste é que tantas outras situações, que não se tornam escândalo, estão acontecendo e trazendo prejuízo espiritual na vida de pessoas. Por detrás disto, das tentações a seguirmos por caminhos que vão além dos limites da revelação, da competência e da ética, está a pior tentação: de ir além do caminho que Deus preparou para nós em Seu Filho. A maior tentação é a de seguir o caminho da autoconfiança, da 102 DEUS NOS GUARDA EM TODOS OS NOSSOS CAMINHOS autojustificação, que é a mais nociva forma de idolatria e mais comum, como bem nos ensina o Dr. Martinho Lutero em sua explicação do 1º mandamento (Catecismo Maior, p. 397). Mas a promessa de Deus não se torna vazia por causa da má aplicação feita por Satanás ou por causa da infidelidade das pessoas. Deus continua dizendo a ti, seu filho, que ele te guardará “em todos os teus caminhos”. A tentação de Jesus não nos ensina que há alguns caminhos por onde Deus não anda! “Em todos os teus caminhos” é uma promessa séria! O que o episódio da tentação nos ensina é que não podemos forçar Deus a agir conforme nós pensamos que ele deveria fazer – isso é colocar Deus à prova; é “forçar o caminho”. A promessa de Deus não é para “super-homens”, mas para os que em sua própria natureza são carentes, fracos, necessitados; como o próprio Salmo diz, para aqueles que o invocam na angústia (v. 15), que, reconhecendo sua fraqueza, dizem “o Senhor é o meu refúgio” (v. 9). As páginas do Antigo Testamento são ricas em demonstrações de como Deus guardou os seus queridos “em todos os seus caminhos”. Jacó teve de sair de casa e da sua terra, teve de fugir e viver por um bom tempo como peregrino; era perseguido pelo próprio irmão ... que vida miserável! Será? Deus lhe vem em Betel e lhe garante: “Eu estou contigo e te guardarei por onde quer que fores” (em todos os teus caminhos!) (Gn 28.15). E guardou mesmo. E fez dele uma grande nação, de onde nasceu o Salvador. Vários séculos mais tarde, Deus diz ao povo de Israel, que há pouco havia sido tirado da escravidão no Egito: “Eis que eu envio um Anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho e te leve ao lugar que tenho preparado” (Êx 23.20). Foi uma caminhada longa, foi um caminho por vezes difícil, um caminho com dor, sofrimento, morte! Mas Deus cumpriu sua promessa. Algumas décadas mais tarde, após estar já na terra de Canaã, sob a proteção de Deus, o líder Josué confessa: “o SENHOR é o nosso Deus; ele é quem nos fez subir, a nós e a nossos pais, da terra do Egito, da casa da servidão, quem fez estes grandes sinais aos nossos olhos e nos guardou por todo o caminho que andamos e entre todos os povos pelo meio dos quais passamos (Js 24.17). Não é exagero dizer que a história do povo de Israel foi uma história de Deus guardando este povo em todos os seus caminhos. Uma das palavras significativas que estava sempre diante deste povo – e nós hoje ainda a ouvimos – vem das palavras que Deus colocou na boca dos sacerdotes, a fim de que o Seu nome fosse colocado sobre seu povo, palavras que dizem: “O SENHOR te abençoe e te guarde...” 103 IGREJA LUTERANA (Nm 6.24). Por isso o salmista diz com toda confiança: “Guarda-me, ó Deus, porque em ti me refugio” (Sl 16.1); e anuncia esta mensagem de esperança e força: “O Senhor te guardará de todo o mal” (Sl 121.8). Guardados por Deus em todos os nossos caminhos, temos verdadeira segurança. E isto nos dá ânimo, disposição, força e alegria para a caminhada que está à nossa frente. Dias difíceis nos esperam; estudar teologia é trabalho árduo, para aqueles que querem fazer um trabalho sério e comprometido com a verdade. Ensinar teologia é um desafio imenso num contexto pluralista e relativista. Só a proteção e o guiar gracioso de Deus nos garantem segurança para a jornada. É triste que estas palavras consoladoras de Deus sejam mais lembradas na boca do diabo do que no seu sentido original! O diabo é enganador e torce maliciosamente as palavras de Deus. Mas quero arriscar dizer que me parece que havia um motivo para o diabo citar o texto pela metade e deixar de fora “em todos os teus caminhos”. É que, no caso de Jesus, seu caminho era necessariamente um caminho de sofrimento, de abandono por parte de Deus, era um caminho que levava à morte! Pois ele trilhou o caminho que deveria ser o nosso caminho: aquele que é decorrente do pecado e que traz condenação. Houve um momento deste caminho em que Jesus disse a mais terrível verdade: “Deus meu, por que me desamparaste?” Sim, ele foi desamparado para sofrer a tua e a minha dor, por teu e meu pecado, a fim de que para ti e para mim valessem as palavras completas: “para que te guardem em todos os teus caminhos”. Nosso desafio é não fazer violência às palavras de nosso Deus. Nem diminuindo seu alcance, como se houvesse lugares, tempos e situações em que Deus não nos poderia guardar; mas também não ultrapassando limites e colocando Deus à prova. Nossa tarefa de educação teológica neste ano será, em boa parte, compreender, viver e proclamar esta verdade: “Deus nos guarda em todos os nossos caminhos”. Amém. Mensagem proferida pelo Prof. Gerson L. Linden no Culto de Abertura do ano letivo do Seminário Concórdia em São Leopoldo, RS, no dia 1º de março de 2007. 104 MOMENTO PERFEITO Prezados irmãos e irmãs em Cristo: Já não lhe aconteceu em dado momento da sua vida que você pensasse algo assim: “Ah! se o relógio parasse agora!” É o que eu gostaria de chamar momento perfeito. Todos nós sentimos em certos momentos da vida que a felicidade não pode ser melhor do que este momento. Nunca vou esquecer o momento em que o primeiro e raro gole de Pepsi me fez cócegas no nariz quando eu era menino de 8 anos. Momento inesquecível, perfeito. Ouvir o som da gargalhada feliz de um bebê. Segurar nos braços um filho pela primeira vez na maternidade. Cantar com vigor um hino da nossa preferência apoiado nas vozes e instrumentos vibrantes em um culto. Aprovado num emprego sonhado. Lembra de momentos assim? Momentos perfeitos. A Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém: momento perfeito e único. Quem lá esteve, jamais esqueceu. Mesmo participando daquele momento, mesmo vibrando muito com o canto da multidão, ainda assim, naquela ocasião, os discípulos não entenderam isso. Esta pequena observação de João a respeito dele e dos demais discípulos é muito intrigante. Ora, se João declara que somente depois de Jesus ter voltado para a presença gloriosa de Deus, eles fizeram a conexão entre a profecia e o fato, o que podemos imaginar que passava na mente da multidão? Os discípulos não entenderam o quê? João responde: não entenderam que isso estava escrito a respeito dele e também que era isso o quer tinha acontecido. Em outras palavras: Diante dos nossos olhos estava se cumprindo a grande profecia, a grande e única promessa que Deus alimentara pelos seus profetas ao longo de toda a história da humanidade: o Messias vai entrar em Jerusalém. Diante dos nossos olhos, o Messias entra em Jerusalém, com todas as devidas honras. E nós não entendemos nada. Como se, muitos anos mais tarde, João estivesse confessando que o momento perfeito passara diante dos seus olhos e eles aproveitaram mal o momento perfeito. Será que podemos especular sobre a causa, ou causas de eles nada terem entendido? E perguntamos: 1. por que não entenderam que isto estava escrito a respeito dele? 105 IGREJA LUTERANA 2. por que não entenderam que a profecia se cumpriu diante dos seus olhos? Os discípulos conheciam as profecias. Como qualquer israelita, aguardavam a revelação do prometido libertador, o escolhido, o enviado de Deus. O problema que impedia os discípulos de verem com clareza estava nele. O que eles não conseguiam alinhar era que “isso estava escrito a respeito DELE”. O problema era ele. Ele não cabia nas suas mais remotas especulações quanto ao Messias. Ele era um grande profeta. Muitos o queriam para Rei. João descreve a natureza deste ajuntamento de gente em torno de Jesus. O povo foi encontrar-se com Jesus porque aqueles que tinham testemunhado a ressurreição de Lázaro espalharam essa notícia, o que atraiu a multidão a ele. Tanto isto era verdade que também os chefes dos sacerdotes resolveram matar também o Lázaro, pois (v.11) por causa de Lázaro muitos judeus estavam abandonando os seus líderes e crendo em Jesus. Eles não entenderam o que estava escrito a respeito dele, mas, diz João, estavam crendo nele. Estranho. Não entenderam, mas creram. Não sabiam, mas queriam confiar. Sim, podemos colocar ressalvas nesta fé por causa da expectativa equivocada que o povo tinha do Messias. Mas Deus, através do evangelista, usa uma palavra muito forte: “Eles estavam crendo em Jesus”. Podemos até pensar: Mas, como?! Eles só queriam de Jesus os benefícios materiais que lhes povoavam a imaginação. Eles não estavam ali arrependidos, fazendo profissão de fé! A diferença está em que a fé, a expectativa, o rumo dos seus anseios se voltou para ele, para aquele Jesus. João deve ter escrito estas palavras com muita alegria e convicção, talvez quase setenta anos depois. Corações confusos, hesitantes, mas que Deus reconheceu e atribuiu como fé, como seu povo. Agora redimido, porque seus corações se inclinaram para Jesus. Isto fez toda a diferença. O foco da expectante fé estava certo. Isto fez da fé a fé certa. O momento perfeito aconteceu. Eles estiveram em comunhão com o próprio Deus. Deus lhes proporcionou um momento perfeito. Uma ante-sala dos louvores eternos nos céus. Que somente mais tarde puderam reconhecer. Mas nem por isso menos perfeito. Não foi esta mesma multidão que gritou crucifica-o? Nem por isso Deus desqualifica esta multidão como descrente ou hipócrita. É uma multidão perdida que olha para Jesus. E Deus lhes atribui fé. Por que o evangelista é levado a ver esta multidão como multidão 106 MOMENTO PERFEITO de crentes? João mesmo diz que eles, os discípulos, não tinham entendido naquela ocasião a relação que estava estabelecida por Deus com os pecadores na pessoa de Jesus. Setenta anos mais tarde, ao escrever, João revela que a partir da ressurreição de Jesus aprendeu a ver a presença de Jesus sobre uma nova e radicalmente transformada ótica. Verdade é que a nossa perdição é tão absoluta e completa, o nosso pecado é tão devastador que nem mesmo o nosso louvor a Deus deve receber qualquer mérito. Nem isto os discípulos tinham ainda reconhecido. O povo de Jerusalém canta em euforia pura, não tenha medo. E Deus vê, Deus atribui a este canto já a fé que os deixa unidos a Deus. A profecia estava nos lábios do povo. A profecia estava sendo cumprida. Deus estava visitando o seu povo com a salvação. Os discípulos também não entenderam que o autor da vida estava cumprindo a promessa de restaurar a vida para a humanidade. A vida começava ali, às portas de Jerusalém. Um povo de lábios impuros, mas santificado pela presença e pela obra de Jesus. Ao mesmo tempo justos aos olhos de Deus, mas no coração ainda capazes de gritar: Crucifica-o! Fica difícil dizer que Deus ama aqueles que gritam: Crucifica-o! Mas a verdade é que fomos nós mesmos que crucificamos a Jesus. Não somos menos culpados do que aqueles que gritaram naquele dia, ou aqueles que pensaram estar fazendo um bem com a sua morte. Mas o amor de Deus nos atrai com o seu perdão, porque ele quer que o ímpio viva. A vida que temos não é a vida que fizemos por merecer. Não merecemos corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os sentidos. Não merecemos casa, lar, esposo/esposa, filhos e bens, nem o sustento. Entretanto, por causa de Cristo e do perdão que temos nele, Deus nos faz entender que nos ama assim mesmo, por absoluta bondade do seu coração. Mais tarde os discípulos entenderam que Deus considera seus filhos aqueles que estão na presença de Jesus e o saúdam. Mesmo que não tenham clareza sobre o que estão dizendo com o seu canto. Mesmo que sejam capazes de negá-lo ou até desejar a sua morte. A misericórdia de Deus não se afasta, nem diminui. Pelo contrário diz o apóstolo Paulo: Onde aumentou o pecado, aumentou muito mais a graça de Deus. Este é o teu e o meu Deus. Ele nos dá uma vida para viver e nos dá aquilo que pertence à vida. Ele nos livra do mal. Nos protege na tentação. Nos dá honra e dignidade. E nos dá sentimentos que nos permitem identificar a felicidade com que ele nos acompanha ao direcionar a nossa vida dando-nos tarefas, objetivos e metas, e o gozo do descanso. 107 IGREJA LUTERANA Bendize, ó minha alma, bendize ao Senhor. João diz: Depois da Ascensão, os discípulos entenderam quem realmente era Jesus. Nós estamos aqui tentando entender, pois o mundo precisa saber em Jesus quem é o seu Deus. Aprendamos a reconhecer os momentos perfeitos na nossa vida. E vibrar intimamente por eles terem acontecido desde o momento perfeito do nosso batismo. Amém. Devoção proferida pelo Prof. Paulo P. Weirich na Capela do Seminário Concórdia no dia 4 de abril de 2007. 108 VER OU OUVIR? João 20.19-31 INTRODUÇÃO Esse trecho do evangelho de João pode ser muito familiar aos nossos ouvidos. Em muitas ocasiões, o personagem principal nas mensagens é Tomé e sua descrença a respeito de Jesus Cristo ressuscitado, bem como suas exigências para crer. O FATO Porém, nas três cenas descritas, bem como na conclusão desse capítulo, existe uma variada e rica lista de verdades e lições para a vida da igreja e dos cristãos individualmente. E é essa riqueza que torna legítima a leitura deste texto a cada ano. CENA I: Jo 20.19-23 A primeira parte mostra os discípulos trancados a fim de se protegerem dos judeus. Foi também uma oportunidade para mais um sinal de Jesus. É verdade que para quem acabou de vencer a sepultura, foi apenas um detalhe, mas foi mais um sinal. A saudação de paz ao chegar, e repetida mais tarde, devolve a alegria e acalma os discípulos. Embora paz seja uma palavra até comum, ela não é nesse contexto. Na saudação de Cristo está a promessa de paz cumprida (Jo 14.27; 16.33). Mas também é o complemento para o “está consumado” da cruz (Jo 19.30). A paz da reconciliação entre Deus e os homens está consumada pela ressurreição (Rm 5.1; 1 Co 15.17). Outro detalhe importante dessa primeira cena é que Jesus faz da sua missão a missão da Igreja. A centralidade da missão é o perdão, que é resultado da pregação dos desígnios de Deus, Lei e Evangelho, que promovem o arrependimento e a fé ou a rejeição e a incredulidade; o perdão ou a retenção dos pecados. A Igreja não substitui a Cristo, ele continua sendo o enviado, como o próprio tempo verbal (perfeito) atesta e é também tarefa do Espírito 109 IGREJA LUTERANA Santo apontar para o Salvador Jesus (Jo 15.26). Ele sempre será o centro de nossas vidas e da pregação da Igreja. CENA II: Jo 20.24-25 Tomé é bem exigente. Ele quer um sinal palpável e provas concretas. É necessário contar com o fato de que os discípulos estavam sob o impacto da tragédia da crucificação. Lucas fala que os discípulos estavam assustados e com medo, em admiração e alegria, por isso ninguém deles parece ter crido num primeiro momento (Lc 24.36-43). CENA III: Jo 20.26-29 Compassivamente, Jesus atende aos anseios de Tomé e remove tudo o que pode atrapalhar o seu crer. Jesus se apresenta como ele quer ser reconhecido, com as marcas da cruz. Ele aponta para as marcas da cruz, pois lá ele esteve mais próximo de cada um de nós, no pecado e no sofrimento. Ele veio como ressuscitado, mas com as marcas e cicatrizes que proporcionaram a paz e todas as bênçãos que dela decorrem. “Senhor meu, Deus meu!” O mais cético dos discípulos fez uma confissão pessoal, mas a mais significativa e profunda possível. E Jesus antevê o tempo em que não haverá mais esse tipo de evidências palpáveis e que a proclamação das boas novas é que vai gerar confissões como a de Tomé, além de vida e fé no Cristo ressuscitado. Cristo fala então que estes cristãos serão mais bem-aventurados, porque não viram e creram. Pedro expande esse pensamento e fala da preciosa fé de olhos que não viram, mas amam, não vêem, mas crêem (1 Pe 1.7-9). Isso poderia ser ilustrado por um texto de um rabino judaico que, em 250 A.D., escreveu: “O prosélito é mais querido a Deus do que todos os israelitas que estavam no Monte Sinai”, pois se os israelitas não tivessem visto todas aquelas manifestações, eles não teriam aceitado a lei; há, porém, aquele que não enxerga nada disto e é recebido no Reino de Deus (D. A. Carson, The Gospel According to John, p.660). Abençoado é Tomé, mas abençoados são os que não tiveram essa experiência, que lêem e ouvem a seu respeito e chegam à confissão que ele chegou: “Senhor meu e Deus meu!” CONCLUSÃO DO CAPÍTULO: Jo 20.30-31 Para pessoas de todos os tempos chegarem a essa confissão é 110 VER OU OUVIR? que esse evangelho foi escrito. Descreve os sinais de Jesus, desde a água transformada em vinho (Jo 2.1-11), até o maior de todos os sinais, a cruz e a crucificação de Cristo e agora também a sua ressurreição. O v. 31 é tanto o resumo do objetivo do livro bem como da verdade cristã. Jesus Cristo é o Filho de Deus. Crer nele é receber a vida, o sopro da vida espiritual através do Espírito Santo, e tudo foi escrito para que se creia nessa verdade. Uma discussão gira em torno da forma verbal do verbo crer. Presente do subjuntivo ou aoristo, para continuarem a crer ou que venham a crer. Parece que o detalhe é significativo, mas tão pequeno, que é possível dizer também a partir disso que esse evangelho carrega tanto o alvo evangelístico como o fortalecimento e o conforto daqueles que já são cristãos. ENSINO – REFLEXÃO PRINCIPAL Dentre os vários ensinamentos deste evangelho, quero destacar um em especial. O ver e/ou o ouvir para chegar-se à fé e também ser fortalecido nela. Isso me parece ser de grande valor, visto a grande importância que se dá para o ver. É quase um instinto natural a preferência pelo ver para se chegar e continuar na fé. Mas parece que não é isso que o evangelho de João mostra. A maioria das pessoas de fato passou a crer muito mais pelo que ouviu do que pelo que viu. João viu a Jesus, reconheceu-o como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, mas só o confessou como Filho de Deus quando ele “lhe disse” (Jo 1.31,33). João apontou o Cordeiro para dois indivíduos, mas eles, ouvindo, seguiram a Jesus e se tornaram seus discípulos (Jo 1.36-37,40). André levou seu irmão a Jesus, falando-lhe a respeito dele (Jo 1.40). Filipe ouviu Jesus dizer: “Segue-me”! (Jo 1.43) e este, por sua vez, chamou Natanael que não acreditou e mesmo com o pedido “vem e vê”, ele passou a crer quando ouviu Jesus (Jo 1.47). É verdade que o sinal de Caná de Galiléia foi um marco fundamental visível para a fé dos discípulos (Jo 2.11) e que o discípulo amado, ao entrar no túmulo, viu e creu (Jo 20.8), mas a ênfase no crer pelo ouvir aparece muito claramente ainda em outros tantos exemplos. Nos samaritanos (Jo 4.39-41-42); no oficial do rei (Jo 4.47,50); no cego de nascença (9.7), que ouviu e confessou a Jesus enquanto con- 111 IGREJA LUTERANA versava com ele (9.35-38). Marta, antes de ver seu irmão Lázaro ressuscitado, confessou sua fé (Jo 11.25-27). Em contraste a esses exemplos, houve complicações com aqueles que colocavam o seu crer sob a condição de algum sinal visível. Nicodemos (Jo 3.1-9); o paralítico que esperava pela água se mover, que foi curado por Jesus, mas que não sabia quem era Jesus. As multidões que viram a multiplicação dos pães (Jo 6), também não compreenderam e Jesus as exortou e censurou. Esse modelo de crer pelo ouvir também pode ser visto na própria ressurreição de Jesus. Quando Maria Madalena viu o túmulo aberto pela primeira vez, ela simplesmente relatou que o corpo havia sumido (Jo 20.2). Mais tarde viu dois anjos dentro do túmulo (Jo 20.11-13), mas não se impressionou. Só quando Jesus falou com ela (Jo 20.16-18), ela saiu para anunciar aos discípulos “vi o Senhor”. Também poderíamos dizer que isto aconteceu com o próprio Tomé. Sua confissão está, de certa forma, baseada no seu ver, mas muito provavelmente pelo que havia ouvido dos discípulos um pouco antes, “vimos o Senhor” (v.25). APLICAÇÃO/CONCLUSÃO Você e eu e a maioria dos cristãos de todos os tempos somos bemaventurados. Cremos sem ver. Nossa fé é preciosa, amamos a quem não enxergamos, cremos em quem não vimos. Jesus Cristo entrou e entra em nossas vidas pelas portas da Palavra falada. No Batismo, pelo Evangelho proclamado, pela Ceia e pela mútua consolação entre os irmãos, Jesus fala aos nossos ouvidos. E quando ele fala, recebemos o perdão, a paz com Deus e todos os benefícios da cruz. Quando Jesus, o vencedor sobre a morte fala, ele acalma, tira o medo, dá vida. Creio que, em questões de fé, Jesus quer que fechemos os nossos olhos para o que se vê. Como poderiam crer os seus discípulos vendo seu mestre sendo crucificado e depois sepultado? Como nós vamos ser consolados, confortados, vendo o sofrimento em nossas vidas, ao nosso redor, em nossas famílias, na igreja, em nosso país, no mundo? Será que a nossa fé pode ser baseada em ver queridos cristãos sofrendo intensamente no leito do hospital? Ver um mundo cheio de contradições, violência e injustiças? Quantas vezes você e eu tivemos que desistir de olhar, para ouvir 112 VER OU OUVIR? Jesus em sua Palavra nos dizer: calma! “No mundo passais por várias aflições, mas animem-se, eu venci o mundo” (Jo 16.33). A missão de Jesus é continuar falando aos nossos ouvidos para nos transmitir a paz, a calma e a segurança; e a missão da igreja é continuar ecoando sua voz pelo Batismo, Evangelho e Ceia, para proclamar a paz que só ele pode dar, tirar o medo, acalmar corações e devolver a esperança às pessoas. E assim creio que sempre será. Amém. Mensagem proferida pelo professor Anselmo Graff na devoção do Seminário Concórdia em 18 de abril de 2007. 113 IGREJA LUTERANA 114 JESUS, O CENTRO Talvez nunca a espiritualidade esteve em tão alta evidência como em nossos dias. As igrejas talvez não sejam as mais procuradas, mas o impulso para buscar uma comunhão com Deus de alguma forma tem crescido. Quantas vezes se ouve as pessoas dizerem: “Sou uma pessoa espiritual, mas não sou religiosa”. Um artigo recente na revista americana Newsweek confirma esse fato. O autor do artigo comenta que, conforme a pesquisa, os americanos estão buscando por uma mais profunda e imediata experiência pessoal com Deus. Em outras palavras, “se você sente Deus dentro de si, então o problema principal está resolvido: o resto é detalhe”. Segundo ele, as pessoas procuram por uma religião que lhes dê poder e que resolva seus problemas imediatos. No Brasil, neste mês de junho, a espiritualidade tem sido bastante significativa. Junho é um mês de celebração de vários santos: Santo Antônio, São José, São João Batista, São Pedro e São Paulo, para ficar nos mais populares. Cada um deles atende a um setor da vida dos seus devotos. Pode se notar que a espiritualidade hoje tende a ser bastante fragmentada, direcionada, beirando o politeísmo. E todo politeísmo é uma projeção do que nós imaginamos sobre Deus. Será que nós também não corremos o risco de sermos idólatras? Não é assim, por exemplo, que: Quando estou triste, quero um Jesus que me faça feliz; Quando perco meu emprego, quero um Jesus que me ajude a achar outro; Quando estou doente, quero um Jesus que me ajude a ficar bom; Quando anseio ver o meu time campeão, quero um Jesus que faça milagre, como escreveu Martha Medeiros na sua coluna no jornal de hoje de manhã (Zero Hora, 20 de junho)? Em cada uma dessas situações, Jesus parece que vem em segundo lugar; em primeiro lugar venho eu com as minhas necessidades. Para enquadrar Jesus nesse meu esquema, eu fragmento Jesus e escolho o ângulo certo de Jesus para resolver o MEU problema. Lutero, no seu Catecismo Maior, ousa afirmar que é a nossa fé que cria deuses falsos. O que é essencial para a nossa espiritualidade? O menino estava num barco a passeio em alto mar. Por um descuido, ele resvalou e caiu ao mar. Vendo-o, um marinheiro se lança ao mar e o salva. Dois dias depois a mãe do menino vai ao capitão do barco para saber qual o marinheiro que havia salvado o seu filho. Ao encontrar o marinheiro que resgatara o seu filho, ela lhe pergunta: “Onde está o boné do meu 115 IGREJA LUTERANA filho?” Nós muitas vezes enfocamos o aspecto errado. Centramos as coisas em nós mesmos, nos nossos bonés, não na nossa salvação. Dos cinco santos antes mencionados, o mais popular é João Batista, cuja festa está sendo celebrada esta semana. A festa requer que se pise descalço em brasas para se provar a fé (seja qual for) e receber alguma graça/proteção especial. Mas não é esta a mensagem de João Batista, o bíblico. Ele mesmo não concede graça nenhuma. Ele é santo como nós o somos pelo batismo. O que João Batista faz é anunciar Aquele que é o Santo, mas que se apresenta como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Ao falar sobre o Cordeiro de Deus, João está apontando para Jesus como aquele cujo sangue me perdoa os pecados, cujo sangue me concede bênçãos as quais nenhuma mereço, cujo sangue me torna verdadeiramente espiritual. Na verdade, o centro da nossa vida não sou eu, não somos nós, mas Jesus Cristo – o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus, é o centro também da nossa espiritualidade. Essa é a essência. Isto resolvido – e efetivamente o é pelo batismo -, todas as demais coisas nos serão acrescentadas. Sem medo e sem temor. Digno é esse Cordeiro de todo o louvor. Devoção proferida pelo Prof. Dr. Acir Raymann na capela da ULBRA no dia 20 de junho de 2007. 116 OS HUMILDES SÃO ENGRANDECIDOS Lucas 14.1a, 7-11 Quando a gente vai a um lugar público, onde é que a gente senta? Quem vai a um show, normalmente gosta de ficar perto do palco. Quem vai a um estádio, gosta de ficar perto do centro do campo. Quem vai ao cinema não gosta de ficar muito perto da tela. E quem vai à igreja, gosta de sentar em que lugar? Normalmente sentamos onde sempre sentamos. Alguns gostam de sentar no meio, outros chegam cedo para não perder o lugar no último banco. (Se os bancos da frente fossem estofados, quem sabe mais gente sentaria bem aqui na frente ...) E quem vai a uma festa de casamento, onde é que senta? A rigor, a gente cuida para não sentar à mesa dos noivos. No mais, a gente escolhe um lugar e senta. Isto quando os lugares não estão marcados, com um cartão ao lado do prato indicando quem deve sentar ali, o que facilita as coisas, mas só funciona quando se sabe que só aqueles convidados no papel vão aparecer ... Pois Jesus foi convidado para jantar na casa de um fariseu. Isto a princípio nos surpreende. Não o fato em si, isto é, que Jesus estivesse jantando na casa dos outros, pois isto era comum. Quem não lembra que ele esteve no casamento em Caná da Galiléia? E no Evangelho de Lucas existem nove histórias em que Jesus participa de uma refeição. Três delas aconteceram na casa de fariseus (Lc 7, Lc 11, Lc 14). E aí está a surpresa: Jesus na casa de fariseus. O amigo de pecadores e publicanos é também o amigo de fariseus, por mais que Jesus tenha palavras de severa advertência para eles (limpam o exterior do copo, mas não notam o que tem dentro, etc.). Na casa do fariseu, naquele sábado, depois do culto na sinagoga (não diz em que cidade de Israel), Jesus observou o que normalmente acontece quando as pessoas vão sentar em lugares públicos. Todos procuram o melhor lugar. Naquela sala de jantar, os melhores lugares eram perto do dono da casa. Seria mais ou menos como ficar do lado ou atrás – feito papagaio de pirata – da pessoa que está sendo entrevistada ao vivo pela televisão. É a chance de aparecer! Todos procuram o melhor lugar. Todos querem estar no palanque. Todos queremos parecer importantes, todos queremos ficar perto dos famosos. Até parece que Jesus ficou parado, enquanto todos os outros convidados foram correndo e se atropelando para sentar perto do dono da casa. Talvez até tenha acontecido que, sendo Jesus o convidado 117 IGREJA LUTERANA mais ilustre (o Mestre, tendo sido, talvez, o pregador na sinagoga), o dono da casa teve que pedir a alguém que tinha se instalado do seu lado que cedesse o lugar para Jesus! Seja como for, Jesus aproveitou a oportunidade para contar uma parábola: - Quando alguém convidá-lo para uma festa de casamento, não sente no melhor lugar. Porque pode ser que alguém mais importante tenha sido convidado. Então quem convidou você e o outro poderá dizer a você: “Dê esse lugar para este aqui”. Aí você ficará envergonhado e terá de sentar-se no último lugar. Pelo contrário, quando você for convidado, sente-se no último lugar. Assim quem o convidou vai dizer a você: “Meu amigo, venha sentar-se aqui num lugar melhor”. E isso será uma grande honra para você diante de todos os convidados. Porque quem se engrandece será humilhado, mas quem se humilha será engrandecido. Isso parece uma simples lição de boas maneiras ou etiqueta de jantar, semelhante a “não fale com a boca cheia”. Mas não é. Também não é um texto que dá razão àqueles que gostam de sentar no fundo da igreja (“olha, Jesus mandou sentar no último lugar”), porque, em nosso caso, dos luteranos, como ninguém gosta de sentar aqui na frente, o último lugar seria, de fato, aqui na frente, e não lá no fundo. Antes de tudo, o que Jesus disse é uma parábola. Ou seja, tem uma lição mais profunda ou, se preferir, mais elevada. Isto se confirma com a observação de que Jesus não fala de um jantar, mas de uma festa de casamento (e muitas vezes o reino de Deus é comparado a bodas ou a uma festa de casamento). E, por fim, as palavras do v. 11 – quem se engrandece será humilhado, mas quem se humilha será engrandecido – não têm nada a ver com etiqueta social. (Jesus não está propondo uma falsa humildade, um bancar o humilde porque se tem a certeza de que, um pouco adiante, a gente vai ser honrado em público, tipo, talvez, o prefeito chegar para um almoço no salão da igreja e ficar escondido lá na cozinha até que alguém vá chamá-lo e o apresente em público com um longo discurso. No final ele poderia, talvez, dizer que se orgulha de sua humildade ...). Dito de outra forma, aqui Jesus tem uma lição a respeito do reino de Deus. E se falamos do reino de Deus, de imediato temos que falar de Jesus. Não existe reino de Deus sem ele. E como essa parábola se aplica a Jesus? Da seguinte forma: Na festa de casamento do reino de Deus, o convidado mais importante é Jesus. Ele é o Filho. Ele é o Noivo. O lugar de honra é dele. Ele poderia ter entrado na sala e dito alto e bom som: “Eu sou o mais importante aqui. O lugar de honra é meu. Depois que 118 OS HUMILDES SÃO ENGRANDECIDOS eu sentei, os lugares que sobrarem são de vocês. E não cheguem muito perto. Eu posso até mandar todo mundo sair ...” Mas ele não fez isto. Ele foi se colocar no último lugar. Mais do que isso: ele foi expulso da sala! É isso que diz Filipenses 2: “Ele tinha a natureza de Deus, mas ... abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo ... ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte – morte de cruz”. Que lugar poderia ser mais último lugar do que este? Mas o Pai disse para ele: “Meu amigo, Filho, venha sentar-se aqui num lugar melhor”. Deus não o deixou na morte. Deus o ressuscitou. Ele “deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes (o nome de SENHOR), para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e debaixo da terra caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. A parábola se aplica também a nós todos. Se achamos que estamos com tudo e que o lugar de honra é nosso, podemos nos dar mal. Com Deus, as coisas não são do jeito que são entre nós. Deus enche de bens os famintos e despede vazios os ricos. Deus é livre para virar a mesa ou começar a fila na outra ponta. Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos. Os que chegaram primeiro vão ser atendidos por último e os que chegaram por fim vão ser atendidos primeiro. (Não tente isso na fila de atendimento do SUS!). Quem se engrandece será humilhado e quem se humilha será engrandecido. Quem acha que está com a bola toda, fica no banco de reservas; pior, nem é relacionado. Quem nem trouxe o fardamento, vai sair jogando. Assim é o Reino. Quem quer entrar por esforço próprio, construir sua própria escada, vai ver que não tem entrada por aquele lado. O único caminho é o caminho da humilhação. Como assim: o caminho da humilhação? Na verdade, nós já fomos humilhados. No batismo, nós fomos crucificados com Cristo Jesus. Fomos expulsos da sala. Mas Deus também nos deu nova vida, no batismo, pela fé. Em Jesus, fomos exaltados. Esta é nossa honra, nossa glória. A exaltação de Cristo é, também, a nossa exaltação. Por isso, agora podemos ser humildes. A rigor, só uma pessoa grande pode se fazer pequena. (Todos os demais são atrevidos e petulantes). Sabendo que a gente nem merecia o convite de fazer parte da festa do Reino de Deus, a gente nem pergunta “Onde é que eu sento?”, mas confessa “Desventurado homem que sou!” (Rm 7.24). Tem gente que pergunta, por exemplo, a respeito de graus de glória e discute o assunto. É que a Bíblia, aqui e ali, dá a entender que haveria lugares especiais no céu. Tenho para mim que isso é mais ou menos como ir a um espetáculo muito concorrido: o que interessa não é onde você sen- 119 IGREJA LUTERANA ta, mas que você conseguiu entrar! (Isso é como ter que viajar de última hora: não interessa onde a gente senta; o que importa é que conseguiu lugar para viajar...) Ou, como aprendemos de outra parábola de Jesus (Mt 20), o que realmente importa é ter recebido o convite para trabalhar na vinha; esta é a recompensa. O resto é orgulho ou pensamentos de seres humanos, que não são os pensamentos de Deus. Recebemos um convite e um lugar para sentar à mesa do banquete de Deus. Deus pediu que sentássemos num lugar melhor, perto dele. Ele nos chama de amigos. O dono da casa nos exalta quando encontramos exaltação em nosso Salvador. Honra não se conquista à força; honra se recebe. Para nós, essa honra é dada em Cristo. Somos conectados com a humilhação e a exaltação de Cristo. E esta é a verdadeira humilhação, e a verdadeira exaltação. Mensagem proferida pelo Prof. Dr. Vilson Scholz na congregação Sião de Santo Ângelo, RS, em setembro de 2007. 120 QUANTO CUSTA SER DISCÍPULO DE JESUS? Lucas 14.25-33 Na quarta-feira tivemos uma reunião do DAMAL (Diretório Acadêmico Martinho Lutero) e todos estávamos preocupados com o baixo número de inscrições para este Encontro. E o argumento era de que o valor da inscrição estava muito alto. Alguns sugeriram que a camiseta incluída na pasta estava encarecendo. Outros argumentaram que há um distrito da IELB que está por fazer também um encontro em que a camiseta não está sendo parte da inscrição e mesmo assim ela é mais cara do que a nossa. Por isso, que bom que vocês vieram. Até pode ser um pouco caro, mas vale o preço. Custos! Sempre pensamos em custos. Quanto custa ser discípulo de Jesus? Na verdade, o preço é chocante. Ser seguidor de Jesus, diz ele, implica eventualmente aborrecer pai, mãe, filhos, filhas, irmãos, irmãs e a si mesmo. E não há nada a indicar que Jesus esteja brincando de sorte que possamos abrandar a dureza destas palavras. E então ficamos confusos. Este não é o Jesus de quem ouvimos falar na escola dominical e na instrução de confirmandos. Não é o Jesus que conhecemos e amamos - o meigo e doce Jesus de infinita paciência, bondade, compaixão e amor. Normalmente Ele diz: “Vinde a mim!”. Mas no evangelho de hoje Ele fala: “Se alguém vem a mim e não aborrece a sua família e a si mesmo não pode ser meu discípulo”. Com certeza alguns de nós se lembram de quando éramos criança e a gente hesitava em contar para a mãe que estava sentindo um malestar, com febre e dor de garganta. A gente sofria, mas não contava. Não era porque não queríamos ser aliviados da dor. Não. Sabíamos que a mãe iria fazer de tudo para nos trazer alívio. Não queríamos nos queixar a ela porque havia o risco de na manhã seguinte ela nos pegar pela mão e nos levar ao médico. E nós já sabíamos o que poderia acontecer: ele mediria a nossa febre, olharia a garganta, examinaria outras partes, faria algumas anotações e chamaria a sua assistente para nos aplicar uma injeção. E antes de deixarmos o consultório ele ainda nos faria algumas perguntas embaraçosas e nos recomendaria que mudássemos nosso estilo de vida, que fôssemos dormir mais cedo, que vestíssemos um moletom ao sair de casa e tomássemos banho com mais freqüência porque a última vez foi há duas semanas. É assim 121 IGREJA LUTERANA com os médicos: se a gente dá um dedo, eles querem a mão toda. O ponto é este: a gente não recebia o que queria da mãe, que era alívio para o nosso mal-estar, sem também receber o que não queríamos – uma possível visita ao médico. Mais ou menos assim é a nossa relação com Deus. Se lhe dermos um dedo, ele quer a nossa mão toda. Se pedimos para que nos cure de alguma enfermidade ou de um mau hábito qualquer, ele o fará. Mas Deus não pára por aí. Ele nos fará um check-up geral e o tratamento pode ser dolorido. O nosso texto é uma daquelas passagens na Bíblia que parecem fazer o cristianismo soar difícil. Jesus estava subindo para Jerusalém. Ora, no evangelho de Lucas subir a Jerusalém quer dizer que ele estava também subindo para a cruz. O que queria a multidão? Estava seguindo o caminho de Jesus, ou um caminho paralelo? A multidão havia visto Jesus curar várias pessoas, ressuscitar a filha de Jairo, fazer a multiplicação de pães e peixes e, como vimos no domingo passado, curar um hidrópico. Não seria isso o que a multidão buscava? Um Jesus que resolvesse os seus problemas imediatos? Talvez. Mas é possível também que muitos deles quisessem ser discípulos de Jesus. Mais ou menos como vir a este Encontrão, gostar e depois voltar aqui para estudar teologia. Mas o que Jesus quer dizer quando afirma que devemos aborrecer nossos pais, filhos, aborrecer nosso irmão ou irmã (às vezes dá vontade!)? Será que Jesus está insinuando a desunião da família, separação de casais, promoção da violência doméstica? É claro que Jesus não está querendo isso. Mas ele quer dizer, sim, que se a situação chegar a tal ponto em que eu precise tomar uma decisão entre seguir a Ele ou seguir a minha família, devemos optar por Ele. É evidente que isso não é fácil. Aqui mesmo, neste auditório, há uns quatro anos atrás, estava um homem que nos deu uma palestra e que teve de tomar essa decisão em sua vida. Um dia ele ouviu falar de Jesus por meio de um pastor luterano. E ele foi convertido. Ele era judeu. Mas a sua família não queria que ele abraçasse o cristianismo. O relacionamento ficou comprometido. Hoje esse judeu-cristão chamado Steve Cohen lidera um movimento missionário nos USA para levar o evangelho de Jesus Cristo também aos judeus, porque Cristo é para todos. Alguns que estão nessa sala receberam dele um e-mail sobre essa missão na semana passada. Por graça divina, a maioria de nós que aqui está foi poupada desta decisão. Mas o que é marcante nestas palavras de Jesus é que se não permitimos que motivos sérios como laços familiares interfiram no nosso seguir a Jesus, é preciso também que não permitamos que outros 122 QUANTO CUSTA SER DISCÍPULO DE JESUS? motivos como desejos, ganância ou sucesso também interfiram. E este é um desafio que todos nós, no transcorrer da vida, estaremos enfrentando – não há como fugir. Quanto custa ser discípulo de Jesus? Para entornar mais o caldo, Jesus diz ainda mais uma coisa: “Qualquer que não tomar a sua cruz e vier após mim não pode ser meu discípulo”. Num sentido popular, a cruz é qualquer coisa que nos causa problema como uma enfermidade ou doença. Mas tomar a cruz, no sentido específico, é seguir com Jesus para Jerusalém, a caminho da cruz. Cruz é aquele tipo de problema ou dificuldade que sofremos precisamente porque somos cristãos. Por exemplo, quando somos ridicularizados por causa de um comportamento cristão, perdemos o emprego porque seguimos princípios cristãos, somos ameaçados porque falamos de Jesus onde é proibido falar. Cruz e cristianismo estão conectados como energia e juventude, como pastor e culto, como amor e casamento. Para concluir, Jesus conta duas histórias. Uma é sobre um homem que pretende construir uma torre. Jesus adverte para que faça as contas antes de começar a construção para que, se não conseguir terminá-la, passe a ser objeto de gozação. A outra história é sobre um rei que possui um exército de 10 mil soldados e que pretende guerrear contra um rei que possui um exército duas vezes maior. Jesus adverte para que ele primeiro se sente e faça as contas. O ponto nestas duas histórias é avaliar o preço do discipulado e qual a sua implicação. Você vai perguntar: será que com estas duas histórias Jesus não está desencorajando o discipulado? Não. Se existe alguma verdade bem clara na Escritura é o fato que Jesus quer que sejamos seus discípulos. Mais: ele quer que aquela torre seja construída e que aquele inimigo seja vencido. É por isso que ele nasceu, morreu e ressuscitou. Mas Jesus deixa claro que ser um discípulo dele significa muito mais do que ser membro de um grupo chamado “comunidade”. Na verdade, ser discípulo dele significa viver uma vida 100% sob a influência de Deus. Deus não quer um dedo apenas, nem apenas a mão. Ele quer tudo de nós. É o que Jesus diz no v. 33: “Aquele que não renuncia a tudo o que tem ... não pode ser meu discípulo”. Mas você vai dizer: tudo bem, mas este mundo é um lugar bom para se viver. Certamente que é. A maioria de vocês que aqui está, quem sabe, vai viver mais 60 ou 70 anos. E como aqueles que já passaram por essa fase, vocês dirão que é possível desfrutar tudo o que o mundo oferece e o céu também. Mas Jesus em nosso texto faz a advertência. E, de repente, nos sentimos desencorajados e clamamos: “Senhor, não posso construir aquela torre, porque descobrimos que ela é o Reino de Deus e o Reino de Deus não pode ser construído por 123 IGREJA LUTERANA mim. Não podemos vencer aquele inimigo, pois ele é duas vezes mais forte do que nós e descobrimos que ele se chama Satanás. Não construímos o Reino de Deus nem podemos vencer Satanás. Por fim, temos que admitir: “Senhor, eu não posso! Tu deves assumir!”. E é exatamente isso que Deus quer que façamos: que ele assuma por meio de Jesus Cristo. Exatamente porque não podemos. Isso é discipulado. Quanto custa ser discípulo de Jesus? Na semana passada, o terrorista Osama Bin Laden apareceu na TV de maneira ameaçadora. Mas ao mesmo tempo deixou um convite: “Abracem o islamismo”, disse ele. Abraçar o islamismo é mudar de Deus. Se a sua família o obrigasse a fazer isso, você teria de tomar uma decisão. Ela não é uma decisão emocional, afetiva: você pode continuar amando a sua família, mas haveria um rompimento de ordem espiritual: nada há mais importante do que a família, mas há Alguém mais importante: Jesus Cristo. Irmãos e irmãs: Juntar-se aos que seguem a Jesus é juntar-se a um grupo que tem identidade própria, diferente e que, por assim dizer, usa um uniforme. Não é uma camiseta. Mas é um manto, o manto branco da justiça de Cristo e que custou muito caro. Foi lavado com o seu sangue. Mas para nós não custa nada. É de graça pelo batismo. Vestidos com este manto, podemos continuar firmes seguindo a Jesus. Com este manto podemos comparecer diante de Deus para o grande Encontro, a maior festa, a grande ceia e um luau que ele mesmo preparou. Tem preço? Mas estar um dia com Jesus e desfrutar a sua presença eternamente bem, isto não tem preço. Sermão proferido pelo Prof. Dr. Acir Raymann no Encontro de Jovens Luteranos ocorrido no Seminário Concórdia no dia 15 de setembro de 2007. 124 DÍVIDAS Filemom 1.10-21 Caros irmãos e irmãs em Cristo Jesus! A maioria das pessoas parece não gostar de ter dívidas. Alguns até mesmo perdem o sono quando têm dívidas difíceis de serem pagas. Outras pessoas, para não terem que se preocupar com dívidas, as evitam a todo custo e só compram coisas quando têm dinheiro para isso. Será que é realmente possível escapar de dívidas? Você, por exemplo, tem dívidas? Nosso texto de hoje fala de dívidas. Na verdade, de mais do que um tipo de dívida. Vamos recapitulá-lo um pouco e verificar de que dívidas se fala ali. O apóstolo Paulo estava preso em Roma. Na verdade, ele estava em prisão domiciliar como lemos em Atos 28.30: “Por dois anos permaneceu Paulo na sua própria casa, que alugara, onde recebia a todos que o procuravam”. Um dia, ele foi procurado por uma figura, diríamos, no mínimo suspeita: um escravo fugitivo chamado Onésimo. Ao que tudo indica, além de fugir de seu senhor Filemom, ele também havia forrado os bolsos para a viagem com bens pertencentes a seu patrão. De alguma maneira ele chegou a Roma, e de alguma forma ele entrou em contato com Paulo. Este deve tê-lo recebido muito bem porque Onésimo acabou sendo convertido e Paulo ficou muito ligado a ele. Onésimo passou a servir Paulo, ajudando-o de diversas maneiras. Finalmente, agora que ele era uma nova criatura em Cristo, ele estava fazendo jus a seu nome. Pois Onésimo significa “útil”, e ele estava sendo muito útil a Paulo. O apóstolo, então, escreve uma carta a Filemom. Ele envia Onésimo de volta ao seu antigo dono e o torna portador da carta ao mesmo. Nesta breve carta, encontramos um maravilhoso resumo da nova vida que segue à conversão. Toda a vida do cristão adquire um novo significado. Todo o seu relacionamento para com Deus e para com as pessoas a sua volta se transforma. As coisas antigas passaram ... tudo se fez novo. Ou, então, como o próprio apóstolo resume sua nova vida: “para mim o viver é Cristo”. Mas, comecemos do início. Toda esta história começa com uma grande dívida. Paulo, Filemom, Onésimo, eu, você, todas as pessoas de todos os tempos têm essa dívida. É essa dívida que reconhecemos toda vez que oramos o Pai Nosso. Podemos tentar negar, esquecer, 125 IGREJA LUTERANA disfarçar essa dívida. Mas, ela não nos deixa em paz. Nossa consciência sempre de novo volta a nos acusar: você está em dívida para com Deus, você é culpado. E a lei é clara: “o pecado deve receber a punição condizente com a sua culpa”. Só que esta mesma lei nos revela também que nossa dívida é impagável. Nenhum esforço nosso, nenhuma boa intenção, nem uma vida inteira de sofrimento e flagelação são capazes de nos livrar de nossa culpa e pagar nossa dívida para com Deus. O resultado disso só pode ser uma vida de desespero, de fuga e negação de Deus, de fuga da própria realidade procurando ocupações e distrações que permitam pelo menos o esquecimento temporário da terrível verdade. Mas, inesperadamente e contra todas as expectativas, o ser humano recebe uma boa notícia: “Você foi salvo! Sua dívida foi paga!” Jesus Cristo pegou sua conta e a pagou inteiramente em seu lugar. O preço que ele pagou pela sua dívida e a de todos os seres humanos foi altíssimo — custou sua própria vida. Você agora está livre, completamente livre. Não deve mais nada a Deus. Não é mais escravo do diabo e do pecado. Não precisa mais acreditar nas falsas acusações do diabo e de sua própria consciência. Você recebeu, de graça, de presente, uma nova vida, cheia de novas oportunidades. Você pode parar de fugir de Deus e pode voltar a ele como um filho pródigo, sabendo que ele é o Pai amoroso que está aguardando de braços abertos para recebê-lo de volta ao lar com uma grande festa de boas-vindas. Esta boa notícia chegou até um perseguidor implacável dos cristãos chamado Saulo e o transformou no apóstolo Paulo. Este levou a boa notícia a Filemom, que também a aceitou com alegria e, assim, se tornou um companheiro e um irmão na fé do apóstolo. Agora, na prisão, Paulo teve a oportunidade de compartilhar a boa notícia com Onésimo, “gerando-o entre algemas”. Sim, algemas materiais podem ainda prender seu corpo e cercear seus movimentos. Mas, ele estava livre definitivamente da pior escravidão — das algemas espirituais. Por isso, mesmo preso fisicamente, ele estava verdadeiramente livre para servir a Cristo. A carta de Paulo a Filemom permite que observemos de perto que significado a nova vida em Cristo, que cada um deles recebeu, terá no relacionamento entre esses três homens. A primeira conseqüência bem evidente no texto é a grande consideração que Paulo demonstra por ambos, Filemom e Onésimo. Ambos são irmãos amados e caríssimos em Cristo. A condição social dos envolvidos — o fato de um ser um rico senhor e o outro um pobre escravo — não afeta esse relacionamento em Cristo. O que eles têm 126 DÍVIDAS em comum é muito mais importante e significativo: eles foram alvos do mesmo amor sacrificial e perdoador de Jesus Cristo. Eles receberam a mesma graça e a mesma nova vida em Cristo. E, sim, eles têm mais uma coisa em comum: todos eles têm uma dívida de amor para com Cristo. É por causa desta dívida de amor para com Cristo que Paulo está preso em Roma. Foi por sentir que era seu dever anunciar o evangelho, ou que ele era “devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes” que ele acabou sendo perseguido como seu Mestre e finalmente preso. Essa nova dívida não muda sua relação para com Deus, ela não soma créditos para a salvação, mas ela é fruto da salvação já recebida. A dívida de gratidão de Paulo é reflexo da consciência do grande amor com o qual Deus o amou em Cristo. Ele pode concordar inteiramente com seu colega apóstolo João de que nós amamos a Deus porque ele nos amou primeiro. A dívida de amor leva Paulo a se tornar um “pequeno Cristo” em relação a Onésimo. Ele se empenha por ele, intercede por ele junto a Filemom para que não seja mais tratado como escravo mas, agora, como um irmão caríssimo, e Paulo assume, inclusive, a eventual dívida de Onésimo para com Filemom: “E se algum dano te fez, ou se te deve alguma cousa, lança tudo em minha conta. Eu, Paulo, de próprio punho, o escrevo: Eu pagarei” (vv. 18-19). O apóstolo Paulo não se constrange em apontar a Filemom que ele também tem essa mesma dívida de amor. Paulo diz a Filemom: “tu me deves a ti mesmo”. Como assim? Uma vez que Filemom chegou à fé por intermédio da pregação de Paulo, ele, por assim dizer, deve sua nova existência cristã ao apóstolo. E Paulo vai além: ele dá indicações claras de como ele gostaria que Filemom demonstrasse o fruto de gratidão. Diz ele no v. 13 com respeito a Onésimo: “Eu queria conservá-lo comigo mesmo para, em teu lugar, me servir nas algemas que carrego por causa do evangelho”. É desta forma que Onésimo, que antes era inútil para Filemom, se pode agora tornar “útil” como seu nome diz, ou seja, ele pode prestar a Paulo o serviço que o próprio Filemom gostaria de lhe prestar, mas que não se vê em condições de lhe prestar pessoalmente. Mas, embora Paulo indique a Filemom o que espera dele no serviço a Cristo, ele não lhe prescreve, nem impõe nada. O fruto da fé deve brotar espontaneamente, por gratidão e amor e, por isso, Paulo continua no v. 14: “nada, porém, quis fazer sem o teu consentimento, para que a tua bondade não venha a ser como que por obrigação, mas de livre vontade”. E isso ainda pode e precisa ser assim na igreja hoje em dia. Se esperamos que os cristãos se engajem com serviço e ofertas no traba- 127 IGREJA LUTERANA lho do reino de Deus, precisamos informá-los das necessidades e oportunidades de serviço e motivá-los com a graça de Deus, assim como Paulo o faz aqui em relação a Filemom. Eu e você também fomos trazidos de volta para a família do Pai celeste. Por meio da palavra e do sacramento do Santo Batismo fomos reintegrados nessa bendita família. Recebemos todas as bênçãos da nova vida em Cristo. Como podemos retribuir um amor tão grande e imerecido? É claro que jamais poderemos retribuir ou pagar a nossa dívida para com Deus. Mas podemos reconhecer nossa dívida de gratidão e servir a Cristo na pessoa do nosso próximo da maneira como nós próprios fomos servidos. Em primeiro lugar, Deus nos serviu através de nossos “pais em Cristo”. Refiro-me às pessoas que foram instrumentos de Deus para nos levar a Cristo e nos fazer participantes do seu Reino. O pastor que nos batizou e nos instruiu na fé. Os pais e outras pessoas que nos ensinaram em casa. Temos uma dívida de gratidão para com essas pessoas. Precisamos honrá-las e lhes demonstrar nosso amor concretamente. Ao mesmo tempo, somos aqui lembrados da sublimidade do ministério pastoral. Talvez vocês já tenham tido a oportunidade de ver, alguma vez, a satisfação estampada no rosto de um médico quando ele ajudou a trazer uma criança ao mundo, ou quando participou de uma cirurgia bem sucedida, ou conseguiu ajudar uma pessoa a se recuperar de uma doença grave. Da mesma forma, ou até mais, o pastor tem motivo para ficar feliz quando serve de instrumento para que alguém renasça em Cristo, quando ensina, corrige e repreende, e quando consola, conforta e cura feridas espirituais. É bom que o pastor se lembre disso quando sente que não está fazendo nada de importante no lugar onde está atuando. É importante lembrar que as tarefas que parecem rotineiras, como pregar e ensinar o evangelho, batizar, administrar a Santa Ceia são, na verdade, as coisas mais importantes que existem e que não é necessário e nem correto procurar injetar vida na igreja por meio de outras coisas que parecem mais empolgantes e interessantes aos olhos humanos. É no serviço fiel de conduzir pessoas a Cristo e de ensiná-las a guardar tudo o que ele nos ordenou que demonstramos nosso amor a Cristo e que reconhecemos nossa dívida de gratidão para com ele. Temos muitas outras áreas também, em nossa vida diária, em que podemos demonstrar nossa gratidão a Cristo por meio do serviço ao próximo. De uma delas somos lembrados na segunda parte da petição do Pai Nosso já mencionada. Dizemos “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores”. Filemom foi convidado e incentivado por Paulo a perdoar a falta de Onésimo. 128 DÍVIDAS Quantos Onésimos que precisam de nosso perdão temos em nossa vida? E quantos Onésimos conhecemos que podemos defender e pelos quais podemos interceder junto a outros? Em resumo: oportunidades para demonstrar nossa gratidão a Cristo não faltam na vida de nenhum cristão. Graças a Deus estamos livres para servir com alegria. Amém. Mensagem proferida pelo Prof. Dr. Paulo Wille Buss na devoção do Seminário Concórdia do dia 18 de setembro de 2007. 129 IGREJA LUTERANA 130 SANTIFICA-OS COM A TUA PALAVRA DA VERDADE João 17.17 “Santifica-os na tua verdade. A tua palavra é a verdade”. Sempre que ouço essas palavras de João 17.17, faço uma viagem no tempo, para uns 40 e tantos anos atrás, quando éramos confirmandos, e, naquelas tardes quentes de domingo, estávamos na igreja cantando a liturgia. Seguíamos a assim chamada Antiga Ordem do Culto Principal, que hoje até já foi aposentada. Bem no começo do culto vinha uma antífona (um confirmando não tinha a mínima idéia do que poderia ser uma antífona, mas é uma parte responsiva). O pastor cantava: “Santifica-nos, Senhor, na tua verdade. Aleluia.” E o povo respondia lenta e pausadamente (em ritmo de domingo de verão): “A tua pa-la-vra é a ver-da-de. Aleluia.” Depois fiquei sabendo que essa antífona – como a maior parte do que dizemos na Liturgia – foi tirada da Bíblia. Neste caso, de João 17. E hoje ela aparece como texto dessa mensagem de confirmação. “Santifica-os na tua verdade. A tua palavra é a verdade”. “Que eles sejam teus por meio da verdade; a tua mensagem é a verdade”. Quem está dizendo isso? É Jesus. Ele está falando com alguém (um “tu”). Ele fala com o Pai, ele fala com Deus. Ele está orando. Orando pelos seus discípulos, orando pela Igreja. Ele ora por nós, ora por vocês. (Na verdade, ele fez essa oração antes de ser preso e crucificado. Mas, como está na Bíblia, a gente pode dizer que esta é a oração que Jesus continua fazendo pelos seus discípulos). Nem sempre a gente lembra que essa é uma coisa que Jesus também faz: ele ora por nós. Em Hebreus 7.25 diz que “Jesus vive para sempre a fim de pedir a Deus” em favor das pessoas. Jesus orando – ainda hoje. E o que ele pede ao Pai? Ele faz vários pedidos, que aparecem em João 17. Pede que sejam um e que sejam guardados do maligno. E pede mais. A gente poderia esperar que ele fosse pedir: “Pai, faze deles cristãos ativos, consagrados, sempre atuantes na igreja, etc.” Mas não. Jesus tem um pedido mais importante. Santifica-os! Santifica-os. Faze com que eles sejam santos. Nossa! Que pedido bem grande! Ser santo. Que mais a gente poderia ser depois de ser santo? (No Brasil, os católicos agora se orgulham de terem um – até 131 IGREJA LUTERANA que enfim um – santo brasileiro.) Aliás, quem é santo? Santo é Deus. E ele quer que a gente seja santo também. Acho que vocês aprenderam este versículo: “Santos sereis, porque eu, o SENHOR, vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2). E, então, como é que a gente fica santo? Se o santo é Deus, acho que a gente fica santo quando fica perto de Deus, quando a gente é de Deus. E como a gente fica perto de Deus? Quando ele nos leva para perto dele, quando ele nos santifica, quando ele faz que a gente seja de Deus. A NTLH traduz o pedido de Jesus assim: “Que eles sejam teus”. Jesus pede que vocês (e nós) sejam de Deus. Na verdade, vocês são dele, no batismo. Ele colocou a sua marca – marca de dono – em cada um de vocês, no dia do batismo. E agora Jesus pede a Deus que nós sejamos de Deus. Que continuemos sendo dele. Que sejamos santos. E como isso acontece? Como é que se faz um santo? No Nordeste do Brasil tem os santeiros, pessoal que faz imagem de santo. Isso é mais ou menos fácil de fazer (desde que a pessoa seja do ramo). Na Igreja Católica, quem faz um santo é o papa. Isso acontece lá de vez em quando. Que pena. Mas é outra idéia de santo, que tem muito pouco a ver com o que a Bíblia entende por santo e santidade. Jesus ensina outro jeito de fazer santo, que é o jeito que Deus tem de fazer santos. Jesus ensina isso na oração dele: Santifica-os na tua verdade. Santifica-os com a tua verdade. Santifica-os por meio da tua verdade. Que eles sejam teus por meio da verdade. Deus faz santos por meio da verdade. E assim chegamos à verdade. Faz deles santos usando como ferramenta a verdade. Agora complicou. O que é verdade? Pergunta famosa. Feita por Pilatos. Jesus deixou sem resposta – para Pilatos. Não era um pergunta séria. Mas para nós ele deixou a resposta. Ele disse: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida (Jo 14.6). E aqui ele diz: A tua palavra é a verdade. Resumindo, o que nos faz santos é a palavra de Deus. Paulo diz em 1Tm 4.4-5: “Pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável, porque, pela palavra de Deus e pela oração, é santificado”. E esta palavra de Deus é a verdade. Isto vocês também aprenderam na instrução de confirmandos. Nós não dizemos apenas que a palavra de Deus é verdadeira, que ela não mente, mas que ela é a verdade. Não uma verdade, mas a verdade. Por quê? Porque ela é a palavra de Deus. Ela é aquilo que de fato é. Ela é “a coisa”. Ela nos fala de Deus; ela nos traz Deus. 132 SANTIFICA-OS COM A TUA PALAVRA DA VERDADE Hoje está na moda dizer que verdade, ora, cada um tem a sua verdade. O que é verdade para mim, não é necessariamente verdade para ti. Cada um acredita no que quer acreditar, e ninguém deveria forçar a sua verdade para cima dos outros. Só que, é claro, todo mundo e cada um procuram vender o seu peixe. Tem muitas idéias andando por aí. Por isso é importante saber que Jesus continua orando pela gente, pedindo que Deus nos guarde bem junto dele (santifica-os) através da palavra da verdade. E que a gente não largue da verdade. Quero dar três exemplos. Primeiro: Donde é que nós viemos, nós, gente, pessoas, o bicho homem? Os livros da escola ensinam que somos um animal evoluído. Isso é coisa de Charles Darwin. O que nunca ninguém diz é que Darwin acreditava que os brancos eram mais evoluídos que os negros. Isto é racismo, ou não é? Qual é a verdade? A verdade é a palavra de Deus. E que diz ela? “De um só fez toda a raça humana para habitar sobre a face da terra” (Atos 17.26). Negros, brancos, índios, japoneses – todos da raça de Adão. Por baixo da pele, todos têm o mesmo sangue. Verdade da palavra de Deus. Segundo exemplo, tirado do segundo artigo do Credo: Quem é Jesus? Para muitos, um homem excepcional. O maior psicólogo que já viveu. O maior líder (executivo) de todos os tempos, etc. Qual é a verdade? A verdade é a palavra de Deus. Que diz ela? Ela chama Jesus de Senhor (que é um título de divindade). Ela chama Jesus de Filho de Deus. E ela diz mais. Ela chama Jesus de Deus (por mais que muitos talvez até jurem de pés juntos que a Bíblia nunca faz isso). Em Tito 2.13 diz que vivemos “aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus”. Terceiro exemplo: A santa igreja cristã. Onde está a igreja? Recentemente um líder de uma das igrejas chocou o mundo ao dizer: só quem é membro da nossa igreja é que é, de fato, igreja. Em outras palavras: quem não é membro da minha igreja não pode ser salvo. Qual a verdade? A verdade é a palavra de Deus. Que diz a palavra de Deus? Ela diz que a igreja é o pequeno rebanho de Jesus a quem o Pai tem o prazer em dar o Reino (Lc 12.32). Ela diz que a igreja está onde dois ou três estiverem reunidos em nome de Jesus, com Jesus no meio deles (Mt 18.20). Ela diz que igreja (isto é, aqueles que vão herdar o reino de Deus) são aqueles que foram santificados, justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1Co 6.11). Igreja são aqueles que foram alvo da resposta à oração de Jesus: Santifica-os com a tua verdade. Que eles sejam completamente teus por meio da verdade, que é a palavra de Deus. Esta verdade vocês aprenderam. Esta verdade vocês confessam e 133 IGREJA LUTERANA confirmam hoje. E nós oramos, com Jesus: Que vocês sejam completamente de Deus – e continuem assim. Ele vai fazer isso na vida de vocês – por meio da Palavra dele. Fiquem firmes. Amém. Mensagem proferida pelo Prof. Dr. Vilson Scholz na congregação São Mateus de Tenente Portela, RS, em outubro de 2007, em culto de confirmação. 134 MANTENDO O FOCO 2 Coríntios 5.1-10 Prezados em Cristo, especialmente vocês que hoje recebem a autorização para pregar sob supervisão. Mesmo que vocês, em sua modéstia, digam que nada alcançaram de especial, cabe aos seus professores receberem com alegria este momento, dizendo que fizeram por merecê-lo e que merecem festejá-lo. Vocês experimentam algo de que o apóstolo diz aos Coríntios ao falar do seu ministério. Cada passo que Deus nos apresenta é um desafio para nós que não se dá sem tribulações, mas, e nas palavras de Paulo: A nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória. Que isto continue a se confirmar ao longo de vossas vidas. Entretanto, Paulo também nos prepara para lidar com estas tribulações no texto que lemos. Ele tem em vista que as pessoas não tentem desviar dos desafios que a caminhada na fé impõe. O Tim Maia que o Brasil conheceu foi um sujeito muito espirituoso. Uma das suas frases foi reproduzida pela revista Veja há quinze dias. Disse ele a respeito de uma dieta que lhe foi proposta: “Fiz uma dieta rigorosa de duas semanas em que cortei álcool, gordura e açúcar. Resultado da dieta? Em duas semanas perdi 14 dias”. Com esta piada Tim Maia fez exatamente aquilo que milhões de pessoas costumam fazer quando o assunto é a própria vida e seus obstáculos: Desviam o foco. Fazem piada. E continuam no caminho da autodestruição. O apóstolo Paulo não queria que as pessoas mudassem o foco, fizessem piada, e continuassem no caminho da autodestruição. Paulo queria que, quando as pessoas falassem de vida, na perspectiva da morte, o grande e definitivo obstáculo, elas não mudassem o foco e fizessem piadas do tipo: “Comamos e bebamos que amanhã morreremos”. Paulo queria que as pessoas mantivessem o foco e finalmente pudessem ver a VIDA com letras maiúsculas, a vida permanente. Assim como o Tim Maia fez a opção de ganhar os dias de comida e diversão e arriscar a vida, assim muitos querem ganhar dias correndo atrás do transitório e passageiro. Mas como dizer às pessoas que não pode ser assim? Como tirar das pessoas o foco no passageiro, frágil e transitório? Como fazer com que mirem a morte para não perderem a vida? Neste texto aos Coríntios, Paulo não somente ensina a verdade, 135 IGREJA LUTERANA mas também nos mostra a maneira de levar pessoas a refletir sobre a verdade. Como ele faz isso? Paulo é um fazedor de tendas. Em Corinto todos sabiam disso. Ele sabe falar de tendas. Ora, tendas não são a melhor solução para quem procura moradia. As crianças até gostam de barracas. Mas ... dentro de casa, na garagem, no corredor. Barracas são boa idéia para pescadores de fim-de-semana. Mas ... por poucas noites. Paulo sabe que todos os que compram a sua tenda sonham em morar numa casa mais sólida e permanente. Imagino quantas vezes ele deve ter usado este raciocínio aqui registrado para engatilhar uma conversa evangelística e então falar da morada permanente, da vida que não morre, da existência gloriosa e eterna. Imagino Paulo vendendo uma tenda para alguém: - De que tamanho você precisa? - Por que precisa dela? Só para viagem? Morada permanente? - Lá, onde você vai armar a tenda, chove? Faz vento? Talvez haja temporais? Quando a conversa já ia se escoando nas generalidades, o tempo, a colheita, etc., imagino Paulo perguntando, como quem não quer nada: - Você pensa algum dia morar em uma casa, prédio, sólida e não tão frágil? E daí a pergunta inevitável: - Você sabe que você tem à sua disposição uma casa sólida e definitiva? - Como assim?” pergunta a pessoa a Paulo. Imagino Paulo continuando: - Vamos falar da vida como se fosse uma tenda. Não é verdade que nós, em nosso íntimo, quando chove ou faz temporal, gememos de angústia porque a tenda é frágil? De que nos adianta a roupa no corpo se a tenda se foi no temporal? Assim também não gememos por uma vida maior, permanente, eterna? Não é verdade que gostaríamos de ficar livres da decadência e da fragilidade que é esta vida e nos vestirmos de uma vida firme, sólida, eterna? LEMBRANÇA DO DESERTO Ao falar de tendas e tabernáculo, Paulo evoca em seus leitores judeus a lembrança do passado de Israel que viveu em tendas no deserto e que adorou num tabernáculo no deserto, um templo provisório. A vida que tanto prezamos é transitória, seja de que ângulo a observemos. Idéia estranha: vestir a moradia porque somos nus. Paulo acrescenta a esta lembrança uma idéia nova, mas interes- 136 MANTENDO O FOCO sante. Ele diz que a moradia é algo que a gente veste e também despe. À medida que temos a possibilidade, a grana, nós nos vestimos sempre melhor. A casa é a vestimenta mais externa, na visão de Paulo. Segundo ele, nós nos vestimos da casa quando entramos nela. Estar sem casa é o mesmo que estar nu. Somente dentro da casa estamos fortes para enfrentar chuvas e tempestades e outras ameaças e perigos que nos rondam. A nossa vida, diz Paulo, é uma tenda, uma barraca muito frágil. Essa morada frágil está se desfazendo rapidamente. Os sinais disto são claramente reconhecidos. AS CÉLULAS EM NOSSO ORGANISMO Uma imagem que podemos acrescentar é a imagem das células. Ao que se diz, elas não vivem mais de sete anos em nós. Quer dizer que a cada sete anos o nosso organismo todo morreu e se refez. Mas com uma diferença: Assim como as células que substituem as que morreram não surgem com o mesmo vigor, o que é denunciado pelos sinais do envelhecimento, assim também a vida e a vontade de enfrentar obstáculos começam a morrer também. Este morrer precisa ser encarado. A tenda, a vida que estamos usando, está se desfazendo rapidamente. E Paulo concorda que não é sem gemidos que olhamos para ela ao nos darmos conta disso. Ela nos faz gemer. E não é com piadas, ou desviando o foco, que esta transitoriedade pode ser modificada. Não importa onde e como tenhamos morado na vida que é transitória, a última morada é a mesma, é igual para todos. Por mais que alguém fuja dela, ela nos alcança e nos veste. A morte nos faz gemer porque denuncia a nossa cegueira e impotência, como também a nossa submissão total a ela. Gememos, porque ela revela a nossa nudez e total exposição ao mal que ela opera. Diariamente lemos, vemos e ouvimos os testemunhos que revelam o seu poder sobre a humanidade. As pessoas, como Tim Maia, caminham cegos para ela porque reconhecem a inutilidade do esforço de adiá-la ou dela fugir. Vejam, não é tarefa simples levar pessoas a encarar a realidade do morrer. E então Paulo, como já fizera na primeira carta, revela aquilo que realmente está acontecendo nos cristãos pela fé: “O mortal está sendo absorvido pela vida, o transitório está sendo revestido pelo permanente, o pecaminoso está sendo vestido de justiça e perdão”. Disso temos a garantia, o penhor: o Espírito de Deus, o sopro da vida que dá vida à alma, que anima, que ressuscita o que é mortal. 137 IGREJA LUTERANA Pela mesma palavra com que fomos criados, por esta mesma palavra estamos sendo criados de novo. Quem nos observa e quando nós próprios nos observamos com clareza e sobriedade, vemos o mortal. Entretanto, algo que não vemos está acontecendo em nós ao mesmo tempo. Tal como as células que morrem denunciam a mortalidade, o Espírito gera em nós células novas, células de vida eterna. Comer e beber o corpo e sangue de Cristo é muito mais do que receber o perdão dos pecados. Comemos e bebemos o que o Espírito de Deus dá: a vida se instala e absorve a mortalidade. Estes são os fatos, diz o apóstolo. O que nós vemos e sentimos, o mortal, já não é a realidade. A realidade está oculta em Cristo e nós dela nos apropriamos pela fé nele. Paulo achou um jeito muito interessante e eficaz de ajudar as pessoas a olhar a morte o tempo suficiente para verem, além dela, a vida que está preparada, a verdadeira vida. Nisto está o nosso ânimo de continuarmos a servir a Cristo e ser-lhe agradáveis. A motivação para isso é dupla: A primeira é que nesta fé, os meios da graça vão implantando em nós o organismo de Cristo. Estamos sendo transformados naquilo que seremos na vida verdadeira. A segunda é que, desde agora, experimentamos as delícias do céu. A vida que vivemos não é mais a vida no passado. Sobrepõe-se a ela a vida e as obras do futuro eterno. Amar a Deus e ao próximo não são obrigações do presente. Para nós, já são as obras de quem tem em si a vida eterna garantida pela presença do Espírito. Estas obras Cristo vai julgar e aceitar como feitas em honra e louvor dele. E aquilo que nós aqui não conseguimos ainda fazer por vocês, Deus vai completar em vocês na experiência desta vida. Amém. Mensagem proferida na Capela do Seminário Concórdia pelo Prof. Paulo P. Weirich no dia da Autorização de Pregação da Turma do 3º Ano de Teologia, Penúltima Semana do Ano Eclesiástico, dia 20 de novembro de 2007. 138 HORA DE ACORDAR Romanos 13.11-14 Texto de Romanos 13.11-14, destacando o v. 11: “E digo isto a vós outros que conheceis o tempo: já é hora de vos despertardes do sono; porque a nossa salvação está, agora, mais perto do que quando no princípio cremos”. INTRODUÇÃO Estamos em ritmo de fim de ano. Já começamos a pensar no que será o ano que vem: novo ano escolar, novas tarefas a cumprir, novos propósitos a alcançar. Quem sabe, finalmente, conseguiremos fazer algo que sempre sonhávamos. Mas, ainda temos muitas tarefas a fazer, e ainda tem o Natal, os presentes, as visitas, as festas ... Em meio às muitas coisas que se acumulam no fim do ano, corremos o risco de perder o foco do Advento, que nos quer preparar para o verdadeiro Natal: a salvação que está naquela criança da manjedoura de Belém e que é o verdadeiro e único sentido e fundamento do Natal. HORA DE ACORDAR Nosso texto nos alerta apropriadamente dizendo que é hora de acordar. É hora de acordar porque a nossa salvação está cada vez mais perto. Advento é tempo de relembrar a vinda do Senhor como uma pessoa humana. Para a primeira vinda do Salvador, já no Antigo Testamento, o profeta Isaías havia predito: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9.6). A concretização desta promessa o anjo do Senhor pôde dizer aos pastores, nas campinas de Belém: “Não temais; eis aqui vos trago boa nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2.10-11). É hora de acordar e conscientizar-se de que Advento é também o tempo de lembrar o dia da vinda do Senhor para o juízo final, quando se dará o regresso de Cristo. Os sinais estão aí, diante de nossos olhos para nos alertar para tanto: fome, guerra, falta de amor e sinais na natureza. Todos estes sinais que o próprio Jesus nos deu estão 139 IGREJA LUTERANA cada vez mais evidentes. Conhecer este tempo é ser despertado do sono. Quem está dormindo não tem conhecimento do que se passa durante o seu sono. Ele pode até sonhar, mas não pode agir. A vida cristã é igual a uma pessoa acordada: está consciente, está agindo. Quando Deus nos trouxe à fé, ele fez despertar em nós a salvação. Mas é ainda uma salvação em esperança. Mas esta salvação que Deus despertou em nós se tornará plena naquele dia do Senhor, quando o último Advento de Cristo, o Salvador, vier. É tempo de acordar porque a noite está terminando. Está terminando a noite do pecado e corrupção. O poder da noite ainda se manifesta poderosamente pelo mundo inteiro: inimizades, guerras, desavenças dentro das famílias, separações são características do período da noite. As injustiças e a corrupção não têm fim e se revelam na natureza humana tal qual ainda nos tempos antes do dilúvio quando “a terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência” (Gn 6.11). Esta é a realidade do mundo no qual vivemos e no qual estamos inseridos também com nossos pecados. Mas, está terminando a noite da imperfeição de cada um de nós. Vivemos este tempo de fim da noite. Ainda estamos expostos ao pecado, à falta de amor, à intriga, à morte. Somos afetados pela noite de tal maneira que diariamente temos uma série de coisas para pedir perdão e reconhecer a nossa situação de pecadores diante de Deus. É hora de acordar porque o dia está chegando. Viver no dia envolve luta constante. Viver o dia exige uma ação decisiva. Somos desafiados a andar dignamente. Isto significa ter uma vida decente, não viver brigando, não ter ciúmes, viver em amor. Para tanto, precisamos pegar as armas espirituais: a Palavra de Deus, o Batismo e a Santa Ceia são nossas armas para vivermos o dia que está raiando. Isto significa estar acordado contra os perigos do pecado para viver segundo a luz de Deus. Viver o dia, no entanto, só é possível se estivermos revestidos do Senhor Jesus Cristo. Enquanto este mundo existir, nós somos ao mesmo tempo justos e pecadores. Mas, Paulo nos assegura: “Todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes” (Gl 3.27). Com o batismo recebemos uma capa protetora contra os ataques que Satanás nos impõem para voltarmos a ser da noite. Ainda bem que Deus nos torna justos em Cristo. Assim que, em Cristo, mesmo pecando diariamente, somos qualificados para lutar contra o pecado para já vivermos no dia, na luz de Deus. 140 HORA DE ACORDAR CONCLUSÃO É hora de acordar. Cada vez que pecamos, somos da noite. Mas o dia está perto e Cristo nos faz acordar para o dia quando reconhecemos nosso pecado e confiamos no perdão de Deus em Cristo. Advento é um período especial para acordarmos do sono do pecado. O Advento de Cristo precisa estar também em nossos corações. Em meio aos presentes que compramos para dar alegria aos que amamos, em meio a toda esta vida agitada e apressada, podemos ter aquela paz e tranqüilidade que só Jesus nos pode dar. O perdão dos pecados que ele nos garantiu na cruz ecoa em nossos corações e somos instigados a ver que o Advento não é um simples preparo de uma festa de confraternização do Natal. Advento é o preparo de nosso coração para receber a Cristo na certeza do canto dos anjos aos pastores: “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens a quem ele quer bem” (Lc 2.14). É hora de acordar. A noite está terminando, o dia vem chegando e a nossa salvação está cada vez mais perto. Amém. Mensagem proferida pelo Prof. Raul Blum no 1º Domingo de Advento, dia 2 de dezembro de 2007. 141 IGREJA LUTERANA 142 QUE HORA É ESSA? EM QUE TEMPO ESTAMOS VIVENDO? Romanos 13.11-14 Que hora é essa? Que horas são? Em que tempo estamos vivendo? Bom, agora são 9h e ... Claro, não posso estar fazendo uma pergunta tão simples assim. Que hora é essa? Em que tempo estamos vivendo? É tempo de confirmação. Chegou o dia. Chegou a hora. Mas que hora é essa? É hora da formatura ou hora do vestibular? Para muita gente, pela festa, confirmação tem mais um tom de formatura. Este é o fim de um período de maior contato com o pastor, de maior presença na igreja, de estudo da Bíblia, etc. Formatura, portanto. Depois de hoje, muita gente some ... Infelizmente. Mas nós queremos que esta seja a hora do começo. Não é o fim, mas o começo. Confirmar para reafirmar, para começar de novo e continuar. Que hora é essa? Em que tempo estamos vivendo? Alguém vai me dizer: Mas, pastor, o senhor não sabe que é o adiantado da hora, o período mais corrido do ano, fim de ano! Fim de ano ou começo de ano? Hoje é primeiro domingo de Advento. É ano novo na igreja. Portanto, não é fim de ano, mas começo. O ano novo está começando hoje. E não é nem porque é tempo de Natal. A rigor, Natal só daqui a algumas semanas. (Acontece que o Natal já está sendo antecipado para novembro. Isto porque o Natal é uma festa que vende bem. Advento não vende. Advento nos lembra: Cristo veio, vem e virá. Imagine um anúncio assim: “Cristo está voltando. Compre já!” Mas as luzes, a mensagem de paz, o ambiente familiar do Natal é um clima bem diferente. Por isso, o comércio tem que antecipar o Natal. Também isto é uma pena). Que hora é essa? É tempo de Advento. Vamos, pois, viver o Advento e deixar o Natal para depois. Que hora é essa? Em que tempo estamos vivendo? É hora e tempo de considerar um texto bíblico. Afinal, que pregação seria esta se não tivesse um texto bíblico?! E o texto para hoje é Rm 13.11-14, um texto que é lido neste domingo desde mais ou menos o ano 600 d.C.: “Vocês precisam fazer todas essas coisas porque sabem em que tempo nós estamos vivendo; chegou a hora de vocês acordarem, pois o momento de sermos salvos está mais perto agora do que quando começamos a crer. A noite está terminando, e o dia vem chegando. Por isso pare- 143 IGREJA LUTERANA mos de fazer o que pertence à escuridão e peguemos as armas espirituais para lutar na luz. Vivamos decentemente, como pessoas que vivem na luz do dia. Nada de farras ou bebedeiras, nem imoralidade ou indecência, nem brigas ou ciúmes. Mas tenham as qualidades que o Senhor Jesus Cristo tem e não procurem satisfazer os maus desejos da natureza humana de vocês”. Que hora é essa? Em que tempo estamos vivendo? O texto de Romanos 13 responde. Diz que estamos mais perto da salvação agora do que quando começamos a crer. Isso foi dito faz 1950 anos, em 57 d.C., pelo apóstolo Paulo. E se eles já estavam mais próximos da salvação, imaginem nós! Mas não é tanto que nós estamos chegando mais perto – porque estamos ficando velhos, ou coisa que o valha – mas é que a salvação, que vem ao nosso encontro, está mais perto. Isto significa, pastor, se estou ouvindo bem, que o fim de tudo está mais perto. É isso mesmo? Que hora é essa? Em que tempo estamos vivendo? É tempo de fim ou tempo de começo? É o fim do mundo ou o começo do mundo? Se a gente for fazer essa pergunta, tenho quase certeza que as pessoas da igreja, em geral, vão responder que é o fim; pessoas de fora talvez sejam um pouco menos pessimistas. Em que tempo estamos vivendo? Se formos pelas notícias que chegam até nós e por aquilo que nos cerca, que tempo é o nosso? Tem gente que vai continuar convencida que este é o período mais sombrio da história da humanidade. Quem tem lembrança da grande guerra mundial (que acabou faz mais de 60 anos) vai dizer que é assim. E nos últimos 50 anos, em meio a muito aparente progresso, os ricos dobraram, mas os pobres triplicaram. 22% da população mundial (e isso dá mais de um bilhão de pessoas) sobrevivem com menos de dois reais por dia. Está bem escuro lá fora (e aqui dentro também). Mas, pensando em outras coisas (como facilidade de locomoção, rapidez na transmissão de informações, comunicação pela internet, etc.) alguém poderia dizer que nunca esteve tão claro como agora, e que nos encontramos em pleno sol do meio-dia! É um tempo excepcional para a gente estar vivo! Afinal, que hora é essa? Em que tempo estamos vivendo? É dia ou é noite? Poderia ser que não é nem bem um nem bem outro ou as duas coisas ao mesmo tempo? Vamos voltar a Romanos 13. A palavra de Deus diz: “Vocês sabem em que tempo nós estamos vivendo”. Sabemos?! Mas que tempo é esse, então? Resposta: “A noite está terminando, e o dia vem chegando”. Isto é estranho. A gente esperaria que Paulo, na Bíblia, dissesse: “Estamos indo para o fim. Os sinais estão todos aí. Está ficando cada vez mais escuro”. Mas Paulo não diz isso. Ele diz que o dia está che- 144 QUE HORA É ESSA? EM QUE TEMPO ESTAMOS VIVENDO? gando; a noite é que está indo para o fim. Na verdade, é hora do crepúsculo, hora do lusco-fusco. E esse crepúsculo ou lusco-fusco acontece tanto de manhã como no entardecer. E tem uma diferença entre os dois. O lusco-fusco da tarde às vezes dá uma tristeza na gente. Mais um dia que está se indo ... O lusco-fusco da manhã (e penso só nas pessoas que passam uma noite em claro, num hospital) é uma hora muito mais esperada e feliz. Pois o texto de Rm 13 nos apresenta o lusco-fusco da manhã, a alvorada. A Bíblia nos diz: O pior está passando; o melhor está por chegar. O dia vem chegando. Já dá pra ver a luz do sol. O Sol da justiça está nascendo sobre nós. Não, a noite não terminou completamente. Mas não estamos mais no escuro. Não estamos sozinhos e abandonados numa remota galáxia do universo. Deus visitou o seu povo. Cristo nasceu. Cristo ressuscitou. Temos Jesus, a luz do mundo. Não o vemos, mas o amamos mesmo assim. Ele não está sobre nós em todo o seu resplendor, mas já vemos os seus raios e já nos beneficiamos deles. Cristo está entre nós, como que indiretamente, na sua Palavra, no seu Batismo e na sua Ceia. Que hora é essa? Em que tempo estamos vivendo? Estamos no lusco-fusco, naquele momento entre o fim da noite e o começo do dia. O mundo está nesse estado desde o nascimento de Jesus e vai ficar nesse estado (de uma imagem congelada) até o dia da vinda dele para o juízo. Nada de mais significativo ou novo vai acontecer até lá. Vai ser sempre essa mistura de trevas e luz. Até que, com a chegada gloriosa do Sol da justiça, o Dia nasça pra valer. (Mas é muito importante saber que esse crepúsculo ou lusco-fusco é da manhã, e não do fim do dia. A diferença é a diferença entre desespero [fim do dia] e esperança [começo do dia]). Que hora é essa, então? Em que tempo estamos vivendo? É tempo de se preparar para ir dormir, ou tempo de acordar? Claro que é hora de acordar. O texto bíblico diz: “chegou a hora de vocês acordarem”. Não do sono reparador da noite, mas do sono destruidor da morte espiritual. (Interessante que Paulo diga isso a cristãos. Mas o arrependimento constante e diário é marca da vida cristã ...) Como é que isso é possível? Tem gente que não acorda sem despertador. Tem gente que tem um despertador embutido e, mesmo deixando o despertador preparado, acorda antes e “desperta” o despertador. No campo espiritual, ninguém tem despertador embutido. Tanto assim que seria até mais exato dizer que “chegou a hora de vocês serem acordados”. Deus nos acorda com o barulho forte da sua santa lei e com a doce melodia do rádio-relógio do evangelho. (A palavra de Deus nos acorda 145 IGREJA LUTERANA para o dia que já vem chegando e para o Sol que em breve vai nascer. Tem vezes que somos acordados por uma boa ducha de água e um café bem reforçado. A gente poderia dizer que isto é o batismo e a santa ceia). Que hora é essa, então? Em que tempo estamos vivendo? É tempo de se preparar para ir dormir, ou tempo de sair da cama? A resposta só pode ser uma: É mais que hora de tirar o pijama! O texto de Romanos 13 fala de revestir-se das armas da luz, de revestir-se do Senhor Jesus Cristo. Isso significa que as roupas próprias da noite, aqueles pijamas mal-cheirosos de farras, imoralidade, brigas e ciúmes, etc. devem ser postos de lado. Revestir-se do Senhor Jesus é ter as qualidades que o Senhor Jesus tem. É perguntar, ao longo da vida: Que é que Jesus faria numa situação dessas? Isto é especialmente importante também para quem deixa o dia da confirmação para trás e ingressa a passos firmes nos, por vezes, conflituosos dias da adolescência. Que hora é essa, então? É hora de assumir a vida cristã. Confirmandos fazem exatamente isto. Entram numa batalha. Isto porque viver no crepúsculo é viver uma vida de tensão e luta. Há uma batalha que é travada no lusco-fusco da manhã. A obra de Jesus já garantiu o resultado vitorioso para todos nós. Mas as escaramuças ainda continuam. Há focos de resistência – inclusive em nós. Portanto, que hora é essa? É hora de revestir-se das armas da luz. É hora de viver como em plena luz. Que hora é essa para mim? No relógio de Deus, é o tempo em que o dia está nascendo e o Sol da graça, Jesus Cristo, logo vai aparecer. No calendário da igreja, é tempo de Advento, tempo de esperar e vigiar. No relógio da minha vida, é tempo de ser acordado, tempo de deixar que Deus sempre de novo nos acorde com sua palavra. Para cada um dos confirmandos, é tempo de confessar a fé dada no batismo e revestir-se das armas da luz para entrar na batalha e deixar para trás as coisas que pertencem à noite. Para cada um dos confirmandos, é hora de aproveitar o benfazejo Sol matinal de Cristo, particularmente a presença de Cristo e os dons de Cristo na ceia do Senhor – privilégio ao qual vocês terão acesso a partir de hoje. Ela é instrumento de Deus para nos manter acordados e fortes na batalha – até que ele venha. Amém. Mensagem proferida pelo Prof. Dr. Vilson Scholz na Congregação da Cruz de São Lourenço do Sul, RS, em culto de Advento e Confirmação, em dezembro de 2007. 146 EXPECTATIVA E SURPRESA Mateus 11.2-11 Prezados irmãos e irmãs em Cristo, prezados amigos: O texto base de nossa mensagem é o Evangelho deste 3º Domingo de Advento, Mt 11.2-11. Destacamos os versículos 2-6. Advento é tempo de preparo e de expectativas. O que você espera do Natal que está chegando? Suas expectativas são grandes ou pequenas? Você espera alguma surpresa? Certamente todos nós já descobrimos que existem expectativas que se realizam e outras que são frustradas. Também sabemos que há surpresas boas e outras desagradáveis. Uma de minhas lembranças com relação a expectativas e surpresas é de quando meu filho mais velho ainda era bem pequeno. Na ocasião, passava um comercial na televisão sobre um carrinho que fazia as mais diversas manobras, transpondo obstáculos, voando por cima de precipícios, etc. Meu filho ficou encantado com a propaganda e o que ele mais queria como presente de Natal era aquele carrinho. (E, se vocês já tiveram ou conviveram de perto com um menino de 2 anos, talvez saibam que não é tarefa simples convencê-lo a mudar de opinião quando ele tem absoluta certeza do que ele quer). Chegou a noite de Natal e, posso lhes garantir, a expectativa dele estava no ponto máximo. Ele abriu seu pacotinho e ... lá estava o tão sonhado e esperado carrinho! Seus olhos brilhavam! Mal podia esperar para tirar o brinquedo do pacote e começar a brincar com ele. E aí, vocês já sabem, veio a desagradável surpresa. O carrinho não fazia nenhuma daquelas manobras e piruetas vistas na TV. Na verdade, ele não fazia movimento nenhum. Era apenas mais um brinquedinho de plástico. Que decepção! Felizmente, nem sempre é assim com nossas expectativas e surpresas. Às vezes, nossa expectativa é pequena e a surpresa é grande. Outra lembrança minha ilustra que também existe esse outro lado. Há um certo tempo, fui convidado para dar uma palestra no interior do Estado. Ficou combinado que eu, minha esposa e nosso filho mais novo ficaríamos hospedados na casa de um jovem pastor recém-formado. Era um dia de inverno muito frio. Já tínhamos bastante experiência em viajar e ficar hospedados nos mais diferentes lugares e condições. Nesse dia, nossa expectativa quanto à hospedagem não era lá muito animadora. Sabíamos que o pastor morava num lugar muito simples. Será que dormiríamos numa cama ou no chão? Haveria um cobertor sufici- 147 IGREJA LUTERANA entemente grosso para espantar o frio? Chegando ao local, no final de uma tarde de sábado, veio a primeira surpresa: os planos haviam sido alterados. Não iríamos mais ficar na casa do pastor, mas sim, na casa de um congregado. Lá chegando, fomos recebidos de braços abertos e logo conduzidos a uma sala aconchegante onde o fogo crepitava numa lareira, deixando o ambiente todo agradavelmente aquecido. Depois de uma bela janta, dormimos numa cama tão confortável e quentinha que até esquecemos que fazia frio lá fora. Que surpresa agradável! Tenho certeza de que poderíamos passar a manhã inteira recordando expectativas e surpresas tanto agradáveis quanto desagradáveis que todos nos já experimentamos. Isso, sem dúvida, poderia ser muito divertido. Mas, temos um texto bíblico à nossa frente e estou certo de que poderemos ter muito proveito se dedicarmos os próximos minutos ao exame deste texto verificando que, também ali, nos defrontamos com expectativa e surpresa. Nosso texto inicia com a informação de que “João Batista estava na cadeia e, quando ouviu falar do que Cristo fazia, mandou que alguns dos seus discípulos fossem perguntar a ele: O senhor é aquele que ia chegar ou devemos esperar outro?” Aí está: percebemos que havia uma expectativa no ar. Alguém estava sendo esperado. Esse alguém era o Messias prometido e anunciado em todo o Antigo Testamento. Durante séculos e séculos, o povo de Deus havia aguardado e ansiado por sua chegada. Mas, na época em que Jesus começou seu ministério, havia muita confusão sobre como seria o Messias e qual seria sua tarefa. Muitos imaginavam que ele viria como um rei poderoso, que ocuparia o trono de Davi, que expulsaria os invasores romanos e que iria restaurar a glória do reino de Israel. Quando João Batista começou a pregar seu batismo de arrependimento, a expectativa do povo aumentou e começaram a pensar que talvez ele, João, fosse o Messias. Mas João imediatamente desfez essa confusão e apontou para Jesus. Jesus, um homem de aparência comum, filho de um carpinteiro pobre, rodeado de gente doente, fraca e – pior – de pecadores notórios, seria este o Messias Prometido? Será? Alguma coisa não podia estar certa. Imaginem que eu tivesse entrado nesta capela hoje de manhã e anunciado para vocês que o presidente dos Estados Unidos, a maior potência mundial, estaria a caminho vindo para cá. Até aí, talvez tudo bem. Muita gente importante e famosa já colocou os pés neste campus. Garanto que vocês iriam imaginar o presidente vindo com uma 148 EXPECTATIVA E SURPRESA grande comitiva, cercado de um amplo esquema de segurança. Mas, imaginem que eu tivesse dito que quando eu estava saindo da BR lá embaixo, eu vi o presidente Bush descendo sozinho de um ônibus da Central ou da VICASA, e que, logo em seguida, ele ajudou um velhinho a atravessar a rua, e, depois, já se abaixou para socorrer um motoqueiro que tinha sofrido um acidente e etc. Vocês acreditariam nessa história? Acho que não. Não é essa imagem que temos de como um presidente de uma grande potência viaja e de como ele anda pelas ruas. Pois é, os judeus do tempo de Cristo também não conseguiam fazer rimar a imagem que eles haviam formado do Messias que deveria chegar com a daquele homem Jesus. Não deveria ele chegar com grande estardalhaço, montado num cavalo fogoso, para ser recepcionado pelas principais autoridades políticas e religiosas do povo? Não deveriam essas autoridades vir a seu encontro e lhe entregar o sacerdócio, o templo e se declararem seus leais súditos e seguidores? Nada disso, porém, estava acontecendo. Tal como naquela época, existe também ainda hoje muita confusão a respeito de quem é Jesus. Por um lado, há pessoas que tem ignorância total de quem ele é. Essas pessoas têm suas próprias idéias e seus próprios conceitos sem jamais ouvir as palavras do próprio Jesus. Tais pessoas não existem apenas em países distantes, elas estão em grande quantidade ao nosso redor num país considerado cristão. Por outro lado, continuam a existir pessoas que não se conformam com um Jesus aparentemente pobre, fraco e sem poder. Estas idealizam um Jesus de acordo com suas preferências e o vendem a grandes clientelas: um Jesus que resolve todos os problemas mundiais e pessoais. Um solucionador de problemas, um exemplo de vida digna e correta, alguém que oferece uma vida de sucesso e prosperidade, que garante segurança e que traz solução para doenças incuráveis e outros males humanos. Outros, ainda, chegam à conclusão de que hoje em dia não é conveniente falar muito de Jesus. Afinal de contas, ele pode causar divisão com aqueles que têm outras crenças. Ou então se pensa que ser muito direto e explícito a respeito de Cristo pode chocar e afastar as pessoas – esquecendo que o Evangelho de Cristo é o poder de Deus que, pela ação do Espírito Santo, conduz as pessoas à salvação. Lutero certa vez disse: “Onde Cristo está, ali o evangelho certamente será pregado; mas onde o evangelho não é pregado, ali Cristo não está presente”. Será que o próprio João Batista, que já havia dado testemunhos muito claros a respeito de Jesus como o Salvador do mundo, também 149 IGREJA LUTERANA estava começando a ter dúvidas, a vacilar e a questionar a identidade de Jesus? Será que o fato de estar preso injustamente o estava deixando confuso? O texto não nos diz se ele enviou seus discípulos a Jesus porque ele próprio tinha dúvidas ou se ele o fez para que as dúvidas de seus discípulos fossem desfeitas. II Quando os discípulos de João apresentam sua pergunta a Jesus: “O Senhor é aquele que ia chegar ou devemos esperar outro?” – Jesus não responde com um simples “sim” ou “não”. Sua resposta é: “Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço”. Jesus aqui aponta para suas obras como prova e autenticação de sua identidade como o Messias. Qual é a importância dessas obras que Jesus menciona? Em primeiro lugar, justamente estas obras são muito significativas para os discípulos de João e para o povo em geral porque no Antigo Testamento é dito que são estas as obras que o Messias irá fazer. Por exemplo, Isaías 29.18,19: “Naquele dia os surdos ouvirão as palavras do livro, e os cegos, livres já da escuridão e das trevas, as verão. Os mansos terão regozijo sobre regozijo no Senhor, e os pobres entre os homens se alegrarão no Santo de Israel”. De modo semelhante, em Is 35.5,6: “Então se abrirão os olhos dos cegos, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos cantará”. E, ainda, em Is 61.1: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados”. Os discípulos de João certamente conheciam essas profecias e agora podiam constatar com os próprios olhos e ouvidos que Jesus estava realizando essas obras messiânicas. Em segundo lugar, estas obras de Jesus são importantes porque elas mostram sua graça e seu poder. Jesus estava realizando obras que nenhum ser humano, por mais poderoso que fosse, jamais fizera. Nenhum rei, nenhum general, nenhum sacerdote, nenhum médico tinha feito cegos de nascença enxergar, coxos, ou paralíticos, andar, nenhum deles tinha purificado leprosos, feito surdos ouvir e, muito menos, alguém tinha feito um morto ressuscitar. 150 EXPECTATIVA E SURPRESA Então, apesar de sua aparente simplicidade e fraqueza, Jesus era muito mais poderoso do que qualquer ser humano cercado de pompa e glória. Com estas obras ele estava dando provas de quem ele de fato era: o Messias, o próprio Filho de Deus, aquele que tem todo o poder sobre a vida e a morte. Jesus cita suas obras em ordem crescente. Fazer um cego enxergar, ou fazer um paralítico andar certamente parece mais simples do que ressuscitar mortos. Mas, Jesus não termina sua lista ali – com o ressuscitar dos mortos – ele acrescenta mais uma obra. Ele diz: “e aos pobres está sendo pregado o evangelho”. Aí está: esta era sua obra principal: pregar o evangelho aos pobres. As demais obras apontam para esta obra principal e como que a sublinham. Esta obra caracteriza o seu reino da graça: evangelizar os pobres, trazer as boas notícias de perdão e vida aos pobres. Não é estranho o que Jesus está dizendo? Sua pregação é só para os pobres? Não ordenou ele mesmo que o Evangelho fosse pregado a toda criatura em todo o mundo? Sim, é verdade. Mas também é verdade que o Evangelho só é aceito pelos pobres. E isso decorre da própria natureza do Evangelho. Pois Evangelho é a boa nova (notícia) de que por meio de Cristo são oferecidos e presenteados perdão dos pecados, paz de consciência e vida eterna. Agora: quem quer saber dessas coisas? Quem considera isso o maior tesouro que existe sobre a face da terra? Quem se dá conta de que este é um tesouro que não pode ser encontrado, por preço algum, em nenhuma prateleira de shopping center, de algum mercado, loja ou farmácia e em nenhum consultório médico? Somente alguém que na agonia de sua consciência sabe que em si mesmo e no mundo inteiro não há recurso nem remédio que o livre da ira de Deus, da morte e do inferno. Somente quem sabe que, na hora da morte, quando comparecer diante do Juiz Supremo, suas próprias obras não o salvarão. Sim, este é um verdadeiro pobre. Um pobre que sabe que se Deus não o socorrer em e com Cristo, ele jamais encontrará paz e consolo. Esta é, portanto, a maior obra de Jesus: pregar o evangelho aos pobres. Obra muito maior do que curar doentes e ressuscitar mortos. Não há no mundo inteiro outro conhecimento, ciência ou notícia que nos faça conhecer o que este evangelho proclama e oferece: que temos um Salvador que chama para junto de si e acolhe os que nada têm além de pecado, culpa, doença e miséria. Um salvador bondoso que garante: “não vim chamar justos, e sim, pecadores” (Mt 9.13). 151 IGREJA LUTERANA III Por ser este evangelho tão importante e vital, Jesus acrescenta a advertência: “E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço”. Tropeçar em Jesus? Se escandalizar com ele? Não aceitar seu convite gracioso para ir correndo ao seu encontro? Como é possível que tantas pessoas não reconheçam a Jesus como seu Salvador e virem as costas para ele? Como é possível que as pessoas não larguem tudo o que estão fazendo e corram para as igrejas para ouvir o doce evangelho? Acontece que o mundo olha para as aparências. As pessoas querem ver coisas novas, grandiosas, impressionantes, divertidas. Às vezes, pensamos que isso é uma característica das pessoas de nossos dias. Mas, o texto mostra que as pessoas do tempo de Jesus não eram muito diferentes nisso. Elas pensavam: se Jesus é o Messias, o Rei, o próprio Filho de Deus, então ele deveria vir com muita pompa e glória, cercado de um poderoso exército, fazendo obras espetaculares que chamassem a atenção do mundo inteiro. Mas, para sua surpresa, Jesus contraria essas expectativas. Ele parece tão fraco, humilde e incapaz até de se defender a si próprio. Essa aparência impede as pessoas de enxergar os fatos que estão diante de seus olhos: que Jesus faz o que ninguém jamais fez ou é capaz de fazer – sim, que ele é muito maior e mais poderoso do que o Messias de suas expectativas. Muitos continuam a tropeçar em Jesus e no seu evangelho ainda hoje. O evangelho parece ser uma coisa tão simples e pequena que, para muitos, simplesmente não faz sentido vir à igreja para ouvi-lo, ou então receber suas dádivas no sacramento. Além disso, o evangelho se choca com uma das principais certezas e convicções do nosso velho homem: de que temos que fazer alguma coisa para expiar nossa culpa e para merecer o perdão de Deus. A história mostra que o ser humano sempre acreditou que ele precisa fazer por merecer em termos de sua salvação. Por isso ele inventou mosteiros, procissões, flagelações, promessas, etc. Lutero certa vez disse que se Deus nos dissesse que nossa salvação dependeria de carregar pedras pesadas para o alto de uma montanha, então certamente colocaríamos todo nosso empenho em fazer isso. Mas, agora Deus diz: vem a Cristo como estás, carregado de pecados, e crê somente – e nós nos escandalizamos e tropeçamos em Cristo e na simplicidade de seu Evangelho. No fundo, isso acontece porque não reconhecemos nossa pobreza espiritual. Não reconhecemos nossa total corrupção e perdição por 152 EXPECTATIVA E SURPRESA natureza. É verdade que todos nós vemos os resultados do pecado à nossa volta: a corrupção, crimes de todo tipo, insegurança e medo. Mas, muitas vezes, as pessoas não reconhecem que tudo isso é fruto do pecado. Geralmente se imagina que algumas pessoas são más, mas que a maioria é gente boa. Não se reconhece que o pecado está presente em cada ser humano desde o seu nascimento e que, como diz a Escritura: “é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade” (Gn 8.21), e ainda: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jr 17.9). O mais difícil de tudo, porém, é reconhecer que eu e você somos tão pecadores como os demais e que também nós temos que chegar diante de Deus de mãos vazias, implorando sua graça – como verdadeiros pobres. Mas, quando reconhecemos que somos pobres pecadores, então também podemos ter a certeza de que a Boa Nova de que o Salvador nasceu é também para nós. Então também podemos ter a certeza de que este nosso Salvador é muito maior do que todos os nossos medos e angústias; e de que ele não apenas pode, mas também quer nos socorrer. O que você espera neste Natal? Qual é a sua expectativa? Tomara que você tenha muitas surpresas boas! E que você possa se reunir com os seus para se alegrar e celebrar! Queira Deus que, ao mesmo tempo, o maior motivo de festa e alegria, em nosso coração, seja a mensagem do perdão e da vida que Cristo traz. E que o Menino nascido lá em Belém continue a vir até nós continuamente, por meio de sua palavra e sacramentos, na expectativa do seu retorno definitivo, quando ele irá nos proporcionar a maior de todas as surpresas ao nos transferir deste seu reino da graça para o eterno reino da glória. Amém. Sermão proferido pelo Prof. Dr. Paulo Wille Buss na capela da ULBRA no 3º Domingo de Advento, dia 16 de dezembro de 2007. 153 IGREJA LUTERANA 154 ANOTAÇÕES 155 IGREJA LUTERANA 156 ANOTAÇÕES 157 IGREJA LUTERANA 158 CUPOM DE ASSINATURA SIM! Desejo fazer uma assinatura da revista semestral Igreja Luterana. Para isso, estou assinalando uma das seguintes opções: ( ( ) Uma assinatura de Igreja Luterana por um ano, por R$ 17,00 ) Uma assinatura de Igreja Luterana por dois anos, por R$ 30,00 NOME: RUA OU CAIXA POSTAL: CEP: CIDADE: ESTADO: Após preenchida, coloque em um envelope esta folha acompanhada de cheque nominal ao Seminário Concórdia no valor correspondente e remetao para: REVISTA IGREJA LUTERANA CAIXA POSTAL, 202 – 93 001-970 SÃO LEOPOLDO, RS ASSINATURA-PRESENTE SIM! Desejo presentear com uma assinatura da revista semestral Igreja Luterana a pessoa indicada no endereço abaixo. 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