Valor Econômico - 15/10/2008 Aquisição de carteiras de crédito e as novas regras do BC Patricia Bentes A crise de liquidez atual, que dificulta as operações das instituições de pequeno e médio portes, levou o Banco Central brasileiro (BC) a anunciar recentemente medidas para reduzir o compulsório e incentivar a compra de carteiras de crédito por bancos maiores e pelo próprio BC através da aceitação de créditos em operações de redesconto. Estas medidas vêm suscitando entre os participantes do mercado questões importantes relacionadas à forma e ao preço de equilíbrio (fair value) destas carteiras. O preço neste caso é ainda mais importante porque as vendas de carteira com ou sem coobrigação estão permitidas, mas as recompras não. Sendo assim, a instituição financeira que vender uma carteira de financiamento não disporá do mecanismo de recompra como forma de recuperar a receita adicional gerada por uma carteira cuja inadimplência efetiva tenha sido menor que a esperada, por exemplo. O mesmo ocorre com a instituição financeira compradora, no caso de uma inadimplência maior que a esperada. No caso das operações de redesconto, já se sabe que os critérios de avaliação e aceitação de ativos, ainda pendentes de definição pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), irão requerer avaliações com critérios objetivos e parâmetros de mercado. A importância destes critérios e da utilização de parâmetros de mercado é da maior importância para a boa implementação destas medidas, em especial quando levamos em conta a enorme suspeita que recai sobre o mercado global de crédito após a crise do subprime americano. Entretanto, é importante alertar para o risco de erros de avaliação decorrentes da utilização de metodologias tradicionais, geralmente percebidas no Brasil como conservadoras, mas que freqüentemente se provam inadequadas para a avaliação de ativos financeiros. Entre estas metodologias, incluem-se as avaliações pelo valor contábil ou pelo valor individual dos créditos que compõem uma determinada carteira, aos quais são atribuídas notas de risco com descontos no preço a partir de uma matriz de perdas arbitrada. Não raro, as metodologias pecam por desconsiderar aspectos dinâmicos de uma carteira de créditos, onde a correlação entre bons e maus créditos precisa ser levada em conta na determinação do valor da carteira como um todo. Em outras palavras, podemos dizer que a soma dos valores de cada crédito individual raramente é igual ao valor da carteira, pois estamos lidando com probabilidades de perda, ou seja, há incerteza quanto à perda efetiva que a carteira produzirá. Alternativamente, o método dinâmico, que utiliza algumas ferramentas estatísticas para a definição de valor, oferece muitas vantagens. Pelo método dinâmico, estudamos o comportamento histórico da carteira a nível de safras, faixas de atraso e qualidade da originação e de processos de cobrança, e dispomos de recursos matemáticos que atribuem valor a estas variáveis, de forma a diminuir a margem de erro da precificação à luz da perda efetiva que a carteira produzirá. E o que torna este método ainda mais útil no momento atual é o fato do mesmo ser muito objetivo, resultando em uma precificação que pode ser facilmente verificada e testada através de funções matemáticas. Mas o método dinâmico, por si só, não encerra o exercício de precificação. Outros aspectos qualitativos precisam ser levados em conta para a conclusão do negócio, tais como o valor do cadastro dos clientes que compõem a carteira, o custo do marketing para originação de uma carteira desta natureza, a estrutura dos documentos que serão firmados pelo vendedor e pelo comprador, se a venda será feita com ou sem coobrigação, e como será feita cobrança dos créditos e o direcionamento do fluxo de caixa gerado por esta cobrança. No que diz respeito à cobrança, o ideal é que o processo se mantenha inalterado pelo ótica do devedor. Qualquer mudança neste processo pode alterar o comportamento do devedor perante aquele crédito, provocando atrasos e, em última instância, perdas efetivas. Mas manter o processo de cobrança inalterado implica, em muitos casos, em manter a cobrança direcionada para a conta do vendedor, que em seguida repassa os valores para o comprador. Este é o caso, por exemplo, de contratos de financiamento cuja cobrança não é registrada junto ao sistema bancário. Intuitivamente, este processo de cobrança requer proteções contra o risco de crédito do vendedor, o qual atua transitoriamente como fiel depositário das cobranças oriundas da carteira de crédito adquirida pelo comprador. Para mitigar este risco de crédito, pode-se constituir uma reserva de caixa que corresponda ao volume estimado de cobranças por certo número de dias, até que seja feito o redirecionamento da cobrança para o comprador. O redirecionamento, neste caso, precisa ocorrer quando o vendedor enfrenta problemas críticos como, por exemplo, uma intervenção. Entretanto, duas salvaguardas são fundamentais para que seja possível fazer este redirecionamento: que o comprador tenha pronto um plano de contingência bem estruturado para efetivar rapidamente este redirecionamento, e que a venda tenha sido realizada a preço justo e de forma perfeita e acabada do ponto de vista legal (no jargão jurídico, em regime de True Sale). Sem o True Sale, o comprador está exposto à invalidação da compra da carteira, enquanto que sem um plano bem estruturado de redirecionamento, o comprador fica exposto ao bloqueio dos recursos oriundos da cobrança por até um ano. Por fim, além dos riscos citados, há os associados ao processo de registro da compra de carteiras em cartório e a avaliação do tratamento contábil que será dada à venda da carteira. No caso deste último, vendas sem a transferência substancial dos riscos e dos benefícios da carteira para o comprador dificilmente contribuem para redução dos limites de capital do vendedor (também chamado de tratamento Off-Balance Sheet), um objetivo importante a ser perseguido pelo bancos médios brasileiros neste momento, tendo em vista a pressão em seus balanços exercida pelo aperto de liquidez atual. Patricia Bentes é mestre em Finanças pela Universidade de São Paulo - USP e Sócia-Diretora da Hampton Solfise Finanças Estruturadas e Securitização.