SUMÁRIO ARTIGOS ORIGINAIS ÁGUA DE QUALIDADE: POR QUE UNS TÊM, OUTROS NÃO? QUALITY WATER: WHY DO A FEW HAVE ACCESS TO IT, WHILE OTHERS DON’T? Ana Piterman; Josélia Márcia Carvalho; Rosângela Maria Greco ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE E SANEAMENTO AMBIENTAL NA MELHORIA DA SAÚDE NOS MUNICÍPIOS DA ZONA DA MATA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, BRASIL Primary Health Care and environmental sanitation in improving health in the Zona da Mata region of the state of Minas Gerais, Brazil Júlio César Teixeira, Maíra Crivellari Cardoso de Mello, Carlos da Costa Ferreira A CORRELAÇÃO DO CÂNCER DO COLO UTERINO COM O PAPILOMAVIRUS HUMANO The correlation between Cervical Cancer and the Human Papilloma Virus Aline Campos Gonçalves Almeida; Adriana Takamatsu Sakama; Rosângela Galindo de Campos MOTIVOS REFERIDOS PARA ABANDONO DE TRATAMENTO EM UM SISTEMA PÚBLICO DE ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL Referred reasons for treatment dropout in a Public Mental Health Care System Mário Sérgio Ribeiro; José Luís da Costa Poço NOMENCLATURA BRASILEIRA PARA LAUDOS CERVICAIS E CONDUTAS PRECONIZADAS: RECOMENDAÇÕES PARA PROFISSIONAIS DE SAÚDE Brazilian nomenclature for cervical reports and recommended conduct: recommendations for health professionals Fátima Meirelles Pereira Gomes; Giani Silvana Schwengber Cezimbra; José Antonio Marques ;Jurandyr Moreira de Andrade; Lucilia Maria Gama Zardo; Luiz Carlos Zeferino; Marco Antonio Teixeira Porto; Maria Fátima de Abreu; Neil Chaves de Souza;Olímpio Ferreira Neto. TRAUMA MAMILAR E A PRÁTICA DE AMAMENTAR: ESTUDO COM MULHERES NO INÍCIO DA LACTAÇÃO Nipple trauma and breast-feeding: a study of women in the early stages of lactation. Aida Victoria Garcia Montrone; Cássia Irene Spinelli Arantes; Ana Carolina S. Nassar; Thaisa Zanon RELATO DE EXPERIÊNCIA EXPERIMENTANDO A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO COM BASE EM DIFERENTES SABERES Constructing understanding based on different kinds of knowledge Vera Joana Bornstein ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO A BUROCRACIA E OUTROS ATORES SOCIAIS FACE AO PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: ALGUNS APONTAMENTOS Bureaucracy and other social agents and their role in the Brazilian Family Health Program Flavio A. de Andrade Goulart ORGANIZAÇÃO DAS AÇÕES EM SAÚDE BUCAL NA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: AÇÕES INDIVIDUAIS E COLETIVAS BASEADAS EM DISPOSITIVOS RELACIONAIS E INSTITUINTES. Organization of oral health actions in the Family Health Strategy: individual and collective actions based on relational and self-transforming arrangements. Adriano Maia dos Santos Editorial 2006: dez anos do NATES! No ano de 2006 estamos comemorando os 10 anos do NATES! Muito trabalho e muitas conquistas são motivos para essa comemoração. E dentre essas está nossa Revista de APS, que agora integra os periódicos avaliados pelo programa Qualis da CAPES, com a classificação C Internacional. A aprovação do mestrado em Saúde Coletiva da UFJF pela CAPES é o resultado do investimento dessa universidade, onde o NATES tem papel fundamental na construção de espaços que tematizam o campo da Saúde Coletiva. Hoje essas conquistas são visíveis nas pós-graduações strictu sensu e latu sensu: Especialização em Saúde da Família e Saúde Coletiva, Residência em Saúde da Família e Mestrado em Saúde Coletiva, que está em processo de seleção para sua primeira turma. Tudo isso só é possível com as parcerias, internas e externas, que são uma marca registrada nesses dez anos de trabalho do NATES. Nesse contexto, a Revista de APS se fortalece ainda mais, pois passa a ser um veículo também dedicado à transmissão do conhecimento científico gerado nesse espaço de formação. Este número demonstra que a Revista de APS tem aumentado sua abrangência em todo o Brasil, trazendo aos leitores artigos originais e de atualização, bem como relato de experiência com temática diversificada, como é a APS, de vários estados brasileiros. Destacamos a publicação, neste número, da Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas: recomendações para profissionais de saúde, orientando-os sobre o que há de mais atual na questão da saúde da mulher. Finalizando mais um ano de trabalho, esperamos que novas conquistas possam fortalecer cada vez mais nosso periódico e assim continuarmos contribuindo para uma Atenção Primária à Saúde de qualidade em nosso país. Neuza Marina Mauad - CRMMG 25812-1T Editor Geral da Revista de APS ÁGUA DE QUALIDADE: POR QUE UNS TÊM, OUTROS NÃO? QUALITY WATER: WHY DO A FEW HAVE ACCESS TO IT, WHILE OTHERS DON’T? Ana Piterman Gerência Regional de Saúde – São João Del Rei – Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais. ¹ Josélia Márcia Carvalho Secretaria Municipal de Saúde São João Del Rei. ² Rosângela Maria Greco Faculdade de Enfermagem da UFJF. ³ Resumo Este trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa sobre o tema da qualidade da água oferecida para a população em municípios de menor porte. Buscou-se conhecer as formas de gestão, os interesses subjacentes e os conflitos inerentes à administração pública. O caráter social e o binômio saúde-saneamento surgiram de demandas principalmente econômicas, ou seja, as doenças não desejáveis deveriam ser suprimidas para um melhor desempenho do setor econômico; sendo este um fator preponderante para a origem das políticas públicas de implementação dos sistemas de abastecimento de água no mundo e no Brasil. A água representa um bem público mas os serviços prestados pelas companhias de saneamento têm um custo econômico repassado aos usuários, uma contradição que se traduz em conflito de interesses. A portaria MS nº. 518/2004 (BRASIL, 2004) obriga as três esferas do governo a implantar, manter e realizar a vigilância da qualidade da água ofertada para a população nos parâmetros de potabilidade (análises físicas, químicas e biológicas). A qualidade de água para o consumo humano é um dos aspectos fundamentais para a consolidação da organização efetiva da Atenção Primária à Saúde (APS). Palavras-Chave: Água. Abastecimento de Água. Água Potável. Qualidade da Água. Consumo Público de Água. 1 Cirurgia Dentista – Mestranda em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos – UFMG. Referência Técnica em Vigilância Sanitária e Epidemiológica - Gerência Regional de Saúde – São João Del Rei – Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais. Endereço: Gerência Regional de Saúde - São João Del Rei. Coordenadoria Epidemiologia. Av. HermínioAlves nº 234/sala 308 Cep 36.300-000 Tel (32) 3371 8849 E-mail: [email protected] ² Economista – Especialista em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde – UFJF. Funcionária Recursos Humanos – Prefeitura de São João Del Rei. ³ Enfermeira, Professora, Doutora do Departamento de Enfermagem Básica da Faculdade de Enfermagem da UFJF. Abstract This paper studied aspects related to the quality of the water supply in small and medium sized towns. We examined the forms of management, underlying interests and conflicts inherent to public management. The social character and the health-sanitation binomial of the water supply arose from mainly economic demands; in other words, undesired diseases should be controlled so that the economic sector can perform better. This is a preponderant factor in the origin of public policy towards water supply systems in Brazil and throughout the world. Water represents a public good; however, the services provided by sanitation companies have an economic cost that is passed on to consumers. This is a contradiction that results in a conflict of interests. Health Ministry Administrative Rule No. 518/2004 requires the three branches of government to implement, maintain and ensure that water supplied to the population complies with potability standards (in terms of physical, chemical and biological analyses). The quality of the water supplied for human consumption is one of the fundamental aspects for consolidation of effective organization of Primary Health Care. Key Words: Water. Water Supply. Potable Water. Water Quality. Public Water Consumption. INTRODUÇÃO A água é o mais importante alimento para a vida humana e tanto sua qualidade quanto a quantidade necessária são fatores determinantes para o binômio saúde/doença do homem. As doenças de veiculação hídrica transmitidas para o ser humano são em maior parte causadas por microorganismos (vírus, bactérias, protozoários e helmintos) e por doenças relacionadas com vetores que utilizam à água como meio de reprodução. (BRASIL, 2002). Um motivo de preocupação do poder público são: os locais onde há carência ou precariedade de sistemas coletivos de abastecimento de água com tratamento adequado. A população recorre a diversos mananciais de água, vulneráveis à presença de contaminantes. Além disso, estas localidades geralmente são de difícil acesso para os agentes de saúde. As ações de educação e prevenção em saúde tornam-se insuficientes resultando freqüentemente em doenças que poderiam ser facilmente evitadas. O desenvolvimento desta análise se justifica frente à importância de uma política de implementação de sistemas de abastecimento de água e tratamento adequado, pois isto contribui como um dos fatores determinantes para uma população saudável. Esta simples medida é suficiente para diminuir o número de mortalidade infantil por diarréia e melhorar a qualidade de vida dos habitantes além de reduzir os gastos públicos destinados à saúde. Uma população com acesso ao saneamento repercute na vida social e econômica de um país, criando uma maior possibilidade de gerar riquezas. O fortalecimento da cidadania e dos movimentos sociais ocorridos na década de 80, resultante de um conjunto de embates políticos e ideológicos marcados pela crise político-institucional e financeira do país, determinou uma nova Constituição no país (BRASIL, 1988). Esta estabeleceu a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), propondo um novo modelo de organização da atenção e nova lógica de financiamento do setor de saúde no país. Um dos seus princípios estabelece ser a saúde um direito de todos e dever do Estado e amplia o conceito de saúde ao definir os elementos condicionantes da saúde incorporando o meio físico (condições geográficas, água, alimentação, habitação), o meio socioeconômico e cultural (emprego, renda, educação, hábitos) e a garantia de acesso aos serviços de saúde (ROSENFELD, 2000). A investigação dos fatores de risco, abrangendo a determinação de doenças infecto-contagiosas de veiculação hídrica predominante em populações urbanas e rurais que não tem acesso a água tratada, vem provocando uma mudança de estratégia de ação no campo da Saúde Pública. Essa modernização se dá tanto pela ampliação e diversificação de seu objeto quanto pela incorporação de novas técnicas e instrumentos de geração de informações e organização das intervenções sobre danos, indícios de danos, riscos e condicionantes e determinantes dos problemas de saúde (PAIM apud ROSENFELD, 2000, p.51). O Brasil, no momento, experimenta grandes transformações e dificuldades devido ao aumento de complexidade que os problemas apresentam, especialmente nas esferas social, política e econômica. As demandas sociais, tais como a saúde e educação, sofrem uma escassez de recursos, e o setor saneamento e políticas de infraestrutura idem, repercutindo desfavoravelmente na qualidade de vida da população. Os municípios de menor porte têm dificuldades de efetivar uma política de saneamento adequada à sua população. Entendemos que o saneamento é acima de tudo uma ação de saúde pública, pois o conceito saúde deve incorporar novas realidades que compreendam tanto os determinantes dos problemas como as possibilidades de sua resolução pelos atores políticos e institucionais. O poder executivo e o poder legislativo municipal nem sempre convivem em harmonia refletindo nas políticas adotadas ou na ausência desta. Também existe uma dificuldade decorrente da carência ou insuficiência de informações sobre a necessidade e importância de execução de políticas de saneamento adequado previsto em leis federais. As políticas públicas no setor saneamento sofrem limitações impostas pelas exigências de superávit, pela lei de responsabilidade fiscal, além da pressão crescente de demandas sociais, demográficas e do setor saúde. No atual quadro o saneamento é ainda percebido como gasto e não como investimento público de infra-estrutura e políticas sociais. Através de várias visitas aos municípios com jurisdição na Gerência Regional de Saúde (GRS) de São João Del Rei, foi verificada a dificuldade dos gestores de efetuarem ações de vigilância da qualidade da água, conforme a Portaria MS 518/2004 (BRASIL, 2004). Esta obriga todos os municípios a adotarem um sistema de abastecimento de água eficaz que contemple suas normas para garantir uma melhoria da qualidade de vida e a manutenção da saúde humana. Esta pesquisa propõe analisar as ações dos gestores inseridas na conjuntura das políticas públicas de saúde e saneamento, a relação da qualidade da água com a saúde, além das dificuldades e facilidades destes em introduzir e manter os sistemas de abastecimento de água em condições adequadas, como preconiza a Portaria nº 518/2004 (BRASIL, 2004), para garantir a qualidade de vida da população. ABORDAGEM METODOLÓGICA O estudo sobre o tema da qualidade da água foi realizado em três municípios na região das Vertentes, situada ao centro sul de Minas Gerais. A abordagem metodológica utilizada consistiu em uma pesquisa de campo e análise documental. Estes municípios foram escolhidos pela proximidade geográfica e suas disparidades em tratar o assunto da vigilância da água. Um dos municípios possui um sistema de abastecimento de água precário. A captação da água provém de poços artesianos; esta é canalizada, armazenada em uma caixa de água pública e distribuída para a população sem tratamento adequado; denominaremos este de município “A”. O outro município apresenta um sistema intermediário, ou seja, possui um sistema de abastecimento estruturado. No entanto, este sistema de abastecimento de água não obedece criteriosamente às normas da portaria (BRASIL, 2004) que estabelece um controle e vigilância na qualidade da água fornecida através de exames físicoquímicos e bacteriológicos; neste estudo será denominado município “B”. O outro município escolhido obedece a todos os critérios da portaria e possui um sistema de abastecimento de água estruturado e eficiente; será nomeado município “C”. Selecionamos para as entrevistas, em cada um dos municípios estudados, um representante do sistema de abastecimento de água, dois representantes do poder executivo municipal e um representante do poder legislativo municipal. Como instrumentos para coleta de dados foram utilizados uma entrevista semiestruturada gravada e transcrita e a análise documental. Nas entrevistas foram realizadas algumas perguntas relacionadas ao tema e que permitiam aos participantes relatarem de forma espontânea as ocorrências relacionadas à implantação do sistema de abastecimento de água de seu município. A análise das entrevistas foi realizada através da leitura exaustiva das respostas, que possibilitou relacionar as dificuldades vivenciadas pelos municípios e relatadas pelos entrevistados. Optou-se por realizar uma análise temática, pois conforme Minayo (1993), esta consiste em desvendar o âmago do sentido que compõe uma interlocução e cuja presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado, ou seja, a análise temática encaminha-se para a contagem de freqüência das unidades de significação como definitórias do caráter do discurso. E ainda, segundo Unrug apud Minayo (1993, p.209), “uma unidade de significação complexa de comprimento variável, a sua validade não é de ordem lingüística, mas antes de ordem psicológica. Pode constituir um tema tanto uma afirmação como uma alusão”. A análise documental ocorreu em dois (02) momentos. No primeiro momento, relacionaram-se os documentos que diziam respeito à implantação do sistema, como as leis e portarias que regem o mesmo, bem como os documentos de análise da água disponíveis nos municípios, e também foi analisada a Portaria MS nº518/2004 (BRASIL, 2004). Em seguida foi realizada uma análise comparativa dos sistemas de abastecimento de água relacionando os três municípios visitados. E finalmente, ao término da análise, foram agrupados os depoimentos em razão dos temas abordados para melhor compreensão dos dados obtidos. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS Estrutura e funcionamento das políticas de saneamento adotadas pelos municípios estudados. No município A, o saneamento básico da zona urbana pode ser considerado como sendo do tipo parcial, pois o sistema de abastecimento de água é do tipo alternativo sem tratamento; além disso, o sistema de esgotamento sanitário e a coleta e disposição de resíduos são inadequados. A captação da água provém de poços artesianos e esta é distribuída in natura através de canalização pelo serviço público municipal. O esgotamento sanitário é conduzido através de uma rede para fossas coletivas distribuídas estrategicamente pela área urbana, não recebendo também nenhum tratamento. Em relação aos resíduos sólidos urbanos há coleta parcial, isto é, em dias alternados. Estes resíduos são depositados em áreas denominadas “lixões a céu aberto”, na periferia da cidade, sem nenhuma disposição adequada. Assim sendo, a estrutura de saneamento básico deste município é fragilizada, mas vem sendo discutida a possibilidade de se instituir um sistema mais satisfatório. No município B, existe um sistema de abastecimento de água estruturado criado pela lei do município sob o nº 949, em 15 de setembro de 19671. Porém, este sistema ainda deixa a desejar quanto ao monitoramento e vigilância da qualidade da água, pois não atende totalmente às normas da Portaria nº 518/2004 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004). Há uma discussão no município, através dos poderes executivo e legislativo e consulta à população, sobre o destino deste departamento, pois o mesmo atende parcialmente às exigências vigentes. A administração tem dúvidas quanto à forma de administração, isto é, se o departamento de saneamento deveria continuar sendo uma autarquia municipal ou se seria mais conveniente terceirizar o serviço de água e esgoto e passá-lo para uma administração pública e/ou privada. O esgotamento sanitário atende parcialmente à demanda do município e necessita urgentemente de recursos financeiros para a sua ampliação e melhoria, principalmente em bairros novos e periféricos. O resíduo sólido urbano coletado também é depositado em áreas denominadas “lixões a céu aberto”. Todavia está sendo discutida a possibilidade de instalação de um aterro sanitário, através de uma parceria entre os governos municipal e federal. No município C, o sistema de abastecimento de água é terceirizado para uma empresa pública mista que opera no local. No momento, está se ampliando a rede de esgoto da cidade. O serviço público de coleta para resíduos sólidos urbanos tem uma maior organização e existe no município um aterro controlado. Buscando os conceitos e significados em relação às políticas de implantação dos Sistemas de Abastecimento de Agua Ao proceder a leitura das entrevistas, foi possível agrupar em temas, os quais emergiram das falas dos entrevistados. São eles: Relação Saneamento Saúde, Qualidade da Água, Papel do Gestor, Participação e Informação à População e, ainda, Dificuldades e Facilidades para Implantação do Sistema de Abastecimento de Água. Relação saneamento saúde As atividades típicas dos serviços de saneamento podem ser definidas como medidas destinadas a controlar e prevenir doenças de uma determinada população. Estas ações são realizadas através de técnicas específicas que permitem preservar ou modificar o ambiente visando uma melhoria da qualidade de vida humana. O saneamento básico assim compreendido tem vários componentes, tais como medidas de adequação para o fornecimento de abastecimento de água, esgotamento sanitário, planos de gerenciamento de resíduos urbanos e sua real efetivação e drenagem pluvial adequada. Estes são bases para a construção dos denominados “indicadores sanitários”. Um indicador muito utilizado, segundo Pereira (2001), é a proporção da população que dispõe de um sistema adequado de abastecimento de água, de eliminação de dejetos e a coleta regular do lixo. Sabemos que a qualidade da água distribuída é muito importante para medir o nível de saúde da população e, para permitir esta vigilância, é necessário possuir um sistema de abastecimento adequado no município. 1 As autoras optaram por não colocar a referência da lei para evitar a identificação do município. As entrevistas foram iniciadas com a pergunta sobre o vínculo entre saneamento e saúde. Nos parágrafos seguintes, procura-se dar conta do modo como os entrevistados perceberam esta relação. O sujeito A2 relata que a saúde deve ser prioridade para que se estruture o sistema de abastecimento de água. Destaca que o município “tem um alto índice de diarréias e cáries. Todos estão empenhando-se para que se construa um sistema de abastecimento de água adequado para diminuir o índice de internações e doenças”. Completa ainda afirmando que está nesta luta há dez anos e tem feito um trabalho inclusive nas escolas municipais para esclarecimento da população. O sujeito B2 igualmente percebe uma relação importante entre saúde e saneamento que, segundo ele, “[...] é um problema que a administração tem o dever de resolver”. Exemplifica sobre os detritos de esgoto que é jogado no meio ambiente de forma agressiva causando danos a este. Além disso, afirma que a maioria dos bairros periféricos não conta com uma rede de esgoto compatível. “[...] pois, se fizer um sistema de abastecimento de água adequado, a saúde será beneficiada, porque irão acabar as verminoses, xistoses e uma série de doenças provocadas pela ausência de saneamento. Então, os recursos gastos pela secretaria de saúde nestas doenças serão direcionados para outras coisas[...]”. Este exemplo denota uma preocupação nos gastos com a saúde que poderiam ser menores em função de uma política de saneamento adequada. O sujeito B3, apesar de perceber a existência de uma relação entre os serviços de saneamento e saúde, considera que administrativamente o gerenciamento do saneamento é direcionado apenas pelo órgão pertinente. “Acho que existe uma relação entre saneamento e saúde, mas o departamento do sistema de abastecimento de água caminha sozinho e independente. A Secretaria de Saúde, o Centro Regional de Saúde possuem laboratório próprio, as próprias coisas deles, não dependem nada disso. Todo mundo, pelo que vejo, nunca teve vinculação com nenhuma área da saúde [...]”. Para o sujeito C1 é muito importante o saneamento para a saúde, pois a água tratada é fundamental para evitar algumas doenças. O monitoramento ambiental da água para o consumo humano é uma parte importante da Saúde Pública e é essencial que os gestores e autoridades públicas percebam a relação entre saneamento e saúde. Podemos observar que na concepção abrangente da vigilância à saúde, o objeto das ações de saúde caminha no sentido de transformar o papel das políticas públicas intersetoriais, da participação comunitária e a criação de ambientes e estilos de vida saudáveis (BRASIL, 2002). Qualidade da água Os profissionais de saúde sabem que o provimento da água em quantidade e qualidade adequada é a medida básica para a promoção e prevenção das doenças. A qualidade da água é estabelecida pelos órgãos de saúde pública como padrões de potabilidade sob os aspectos físicos, químicos e biológicos. As comunidades, também devem dispor de quantidade suficiente para diversos usos. Sua escassez poderá influir na saúde humana. Grande parte dos municípios brasileiros de pequeno porte conta com um sistema de abastecimento precário ou inadequado prejudicando a vigilância e o monitoramento da água que é distribuído para a população (ROUQUAYROL; ALMEIDA, 1999). Segundo as entrevistas coletadas no município A, a qualidade da água é “muito boa” conforme pode ser ilustrado pelas falas a seguir. O sujeito A1 diz: “a água daqui é muito boa” e ainda colocou a importância do tratamento da água refletindo na área da saúde, mas em sua visão: “A água sai limpa, não tem micróbios. Se você pegar a água lá na saída dela, não tem micróbio nenhum, não tem nada, não atrapalha nada a saúde. Mas para ela vir para a caixa ela vem com encanamento, aí ela polui... o tratamento tem que ser nas caixas para entregar a água limpa para o povo. No caminho ela pega micróbios, mas no poço sai limpinha”. Nesta interlocução podemos inferir que apesar do sujeito achar que se deve tratar a água das caixas, não considera que haja esta necessidade para a água consumida diretamente do poço, denotando aí uma contradição. Para ele é mesmo necessário, de fato, tratar a água? Por outro lado, alguns entrevistados disseram que a água, para ser de boa qualidade, tem necessidade de tratamento, como relata o sujeito B4: “[...] a água deve ser de qualidade, uma água tratada, livre de bactérias, com pureza. O acompanhamento, uma pesquisa laboratorial é muito importante. Tudo isso se resolveria pela vontade política de realizar este trabalho e colocar o sistema para funcionar”. Outro entrevistado, como o sujeito B2, explicitou que a água do município é muito boa, porém sua preocupação é com o fato dela não ser fluoretada. Ainda, segundo ele, as análises da água apontam problemas, deixando a desejar. O sujeito B3 relata que: “a água do município é de muito boa qualidade, pelo que percebo relacionando com os outros municípios do Estado de Minas Gerais. Esta água tem certa pureza, além de ser um município muito rico em manancial, lençol freático, enfim, em reserva de água”. Acha que a cidade é muito agraciada pela natureza neste sentido. Este discurso demonstra uma preocupação em justificar que apesar do seu município não seguir completamente as normas de tratamento da água, esta apresenta certa pureza, é de muito boa qualidade e ainda há uma oferta ostensiva, o que abonaria qualquer intervenção. Os entrevistados do município C relataram que foi muito boa a implantação do sistema de abastecimento de água, pois anteriormente a água faltava muito, causava doenças e não era fluoretada. Papel do Gestor É essencial que as autoridades públicas se envolvam no processo de efetivação e manutenção dos sistemas de abastecimento de água. A medida de controle da qualidade da água oferecida à população é um importante fator de prevenção de doenças. Muitas vezes, o gestor não tem uma consciência clara do seu papel público, isto é, as demandas vão muito além da pasta que administra. As abordagens dos serviços devem ser transsetoriais para alcançar os objetivos propostos, pois os recursos são escassos, pulverizados e as demandas são complexas. Os entrevistados dos municípios B e C abordaram o papel do gestor na ingerência em relação ao processo de planejamento e manutenção das políticas públicas de saneamento. O Sujeito A1 observa que a população, muitas vezes, não tem consciência de seu papel e deveria apoiar o poder executivo para tranqüilizar o administrador e tirar certas responsabilidades. O administrador tem um papel transitório e o cidadão é um ator permanente do cenário. A população está sendo esclarecida através de debates e discussões sobre o tema. O sujeito B2 abordou que o gestor de saúde deveria ter uma participação mais ativa nesse caso, principalmente no abastecimento de água. Mas, como é uma cultura da região, especificamente da cidade e dos órgãos públicos municipais, não há entrosamento necessário e não sabe definir se é por ciúme ou vaidade. O sujeito B3 explicou que o sistema é uma grande autarquia e tem potencial para atender bem à população. “Acho que o problema se deve à má administração, deveria ter um enxugamento no quadro de pessoal para ter mais reserva de caixa”. Além disso, é necessário fazer alguns investimentos para a melhoria do sistema. E ainda, segundo o depoente, é fundamental procurar parcerias com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD). O tratamento de esgoto também é uma demanda importante de que, infelizmente, o município carece, sendo importante inclusive para a saúde pública. O sujeito B4: “O gestor de saúde é fundamental neste processo. Ele deve ter o conhecimento de tudo que acontece neste meio, pois se ocorrer uma epidemia, uma virose, ele precisa conhecer a causa que, certamente, está na questão do mau uso da água, na questão do esgoto. Você consegue identificar, por exemplo, a causa do problema ao invés de ficar atacando somente as conseqüências”. O sujeito C1 também aponta o tema relatando que: “o papel do gestor é, com certeza, muito importante para melhorar a saúde do município e um dos fatores é o saneamento”. Participação e informação à população Outro tema abordado foi a participação e informação à população sobre qual é a política adotada em seu município sobre o sistema de abastecimento de água. O sujeito B2 acha que a população deve ser sempre muito bem informada, deve entender que a implantação de outro sistema é uma mudança para melhor. Reclamou que na sua própria casa há interrupção de água das 14 horas até a 0 hora todos os dias e quando há uma pane no sistema costuma ficar sem água até três dias. Por isso, tudo deve mudar. O sujeito A4 entende a legislação sobre o tratamento da água como um entrave, devido ao fato de que os municípios menores não têm condições de cumprir suas exigências rigorosas. Em primeiro lugar, o governo federal deveria contribuir para estruturar o município através de repasses de verbas específicos para o setor e ainda, implementar um trabalho para a conscientização da população quanto à importância de uma água de qualidade para o consumo humano, pois o desconhecimento sobre o assunto ainda é um grande entrave. Acha que a comunidade deveria ser disciplinada e demonstrar o custo/benefício do tratamento da água. “O que adianta jogar para o poder público essa responsabilidade a ponto desta não poder ser atendida por absoluta falta de recursos? A comunidade está sempre expandindo e dia após dia há um aumento de construções de habitações, pressionando uma ampliação do número de ligações de água e a capacidade de atender a estas solicitações é precária”. Facilidades e dificuldades para estruturação do Sistema de Abastecimento de Água As facilidades e dificuldades encontradas estão em estreita relação com os outros aspectos abordados anteriormente como a clareza do papel público que o gestor exerce e o grau de participação e informação da população e seu envolvimento nas políticas públicas. Uma das dificuldades apresentadas para a inserção de um Sistema de Abastecimento de Água adequado pela população no município é a inclusão dos custos como, por exemplo, a fala do sujeito A1: “a população tem dificuldade em aceitar a concessão do sistema porque isto traria um custo”. O depoente também se preocupa com a dificuldade do município em suportar financeiramente um sistema municipal que atenda a portaria MS nº518/2004 (BRASIL, 2004). Há o custo dos funcionários, da energia elétrica, a rede de esgoto e o tratamento de água. Não há cobrança de tarifas da população pelo consumo da água, onerando ainda mais o poder público. Nos distritos, a situação é ainda mais preocupante, pois a administração municipal não consegue tratar a água consumida pela comunidade. A maioria utiliza a água in natura. Segundo seu depoimento, a população só reclama quando há falta de água, isto é, é exigente quanto à quantidade disponível de água e não quanto à qualidade da água consumida. Pode-se depreender que há um conflito sobre quem vai arcar com o custo da distribuição e do tratamento da água. A população tem uma preocupação apenas com a disponibilidade e quantidade da água, quer estar desobrigada deste encargo. Por outro lado os municípios que contraíram estes custos para si percebem que não suportam estes encargos da maneira que as leis estão exigindo. Então, como resolver este impasse ?. O sujeito A4 analisou a situação sob o prisma econômico e propõe uma solução para esta questão. Em sua opinião, o município deveria ter um sistema suficiente de arrecadação para investir na infra-estrutura. Um fator é correlacionado ao outro. Acha que deveria ser criado um sistema de transferência voluntária ou o repasse do Fundo Participação Município (FPM) ser maior para atender as prioridades emergenciais e necessidades básicas para a melhoria na qualidade de vida da população. Explicou que a sociedade deveria ser mais participativa de modo a atingir, com o poder público, um objetivo comum. Outra dificuldade apontada é a interferência política, como explica o sujeito C1: “Acho que o político tem preguiça de enfrentar a burocracia das papeladas para conseguir recursos para o saneamento”. O sujeito B3 ressaltou que o sistema de abastecimento de água não é muito moderno, senão precário. Acha que o departamento responsável pelo sistema, possui uma estrutura arcaica, a tubulação é antiga e nem todas as residências são atendidas. Para ele o sistema deveria ser remodelado. O sujeito B3 também apontou algumas dificuldades para a modernização do sistema de abastecimento de água, como a cultura no município de incentivar isenções na taxa de água e esgoto. Este é um recurso muito utilizado pelos políticos em suas campanhas para obtenção de votos, o que onera o sistema que necessita de recursos para investimentos. Além disto, há um incentivo para os indivíduos inadimplentes que “sempre se dá um jeitinho” para no final de cada ano as contas serem abonadas. Há uma suspeita forte de que o Departamento Municipal de Água e Esgoto seja utilizado como barganha de votos em troca da isenção da taxa em épocas de campanha eleitoral. Outra dificuldade relatada foi a de que não há um trabalho de conscientização da população sobre a finalidade do pagamento das taxas em dia. O sujeito B2 considera que o sistema “não está legal, não está bem”, porque não há um acompanhamento técnico. Abordou as dificuldades encontradas para a elaboração de um sistema de abastecimento de água adequado. Dentre outras, segundo ele, “a principal é política”, pois há um entrave político, não havendo interesse governamental para a resolução do problema. Outra questão apontada é que: “a população não é bem informada” e percebe qualquer empresa que queira assumir o processo “como um bicho de sete cabeças”, que vai cobrar uma taxa muito alta. B2 explicou que acha o contrário, pois, para ele, a terceirização iria permitir um serviço de qualidade e oferta de água ininterrupta. Uma rede de esgoto deveria estar sempre com manutenção adequada e isso faria com que a cobrança não fosse considerada tão alta pelo benefício que iria trazer para a população.Ele usou o exemplo da energia elétrica que, segundo ele, você paga caro, mas tem o produto sempre que necessário. Explicou, ainda, que o sistema atual de abastecimento de água tem uma história bastante irregular culminando nos problemas de hoje. Segundo suas palavras “é coisa muito antiga”. Os sujeitos do município C relataram as facilidades encontradas para a efetivação do sistema de abastecimento de água em seu município. Contraditoriamente, a falta de água foi um facilitador para que houvesse pressão por parte da população para o município adquirir um sistema de abastecimento de água adequado. Na fala do sujeito C2 podemos evidenciar isso: “sempre faltou água, o sistema era bastante precário e a água era originária de uma mina. A cidade é localizada em cima de uma rocha”. Através de contatos políticos, conseguiram furar três poços artesianos que abasteciam uma grande caixa de água instalada na laje da igreja matriz: “[...] como a cidade padecia de falta de água constante, causava problemas na saúde da população, além do crescimento demográfico”. Perceberam que necessitavam de um sistema de abastecimento organizado. A população concordou com a iniciativa já que sempre faltava água para o consumo. Chegou-se a interromper o abastecimento por cinco dias, o que foi um transtorno. Na época, servidores municipais, em conjunto com os técnicos da Companhia Saneamento de Minas Gerais, realizaram um trabalho de sensibilização junto à população para aceitação do projeto de implantação da Companhia Saneamento de Minas Gerais (COPASA). Segundo o depoimento do sujeito C, “informaram que era o melhor presente que a cidade podia receber. Deveriam agradecer à sua padroeira. É melhor ter água do que asfalto”. Frisou, também, que em seu município não ocorreram conflitos entre o poder executivo e legislativo. Outra facilidade encontrada foi às afinidades políticas do município com os órgãos públicos para gerenciar estes sistemas, contribuindo para um processo mais fluido e resolutivo. Como relata o sujeito C3, “não houve nenhuma resistência de entidades políticas nem tampouco da população que aguardava ansiosa a inauguração do sistema de abastecimento de água, o que foi realizado com uma grande festa”. O sujeito C4 confirma este depoimento. Para ele foi uma conquista muito grande, uma conquista política, e muitas pessoas contribuíram para que este processo se tornasse uma realidade: “Foi uma das melhores coisas que aconteceram na cidade”. Pela própria topografia, o município não é abastecido com grandes rios ou córregos e sempre faltou água. Agora, com o sistema de abastecimento de água estabelecido, mesmo na época da seca não há intermitência de água, apenas um ligeiro racionamento. Examinemos agora os resultados da pesquisa em seu conjunto. Pode-se inferir que existem vários desafios para que um município de porte pequeno ou médio consiga instituir e manter um sistema de abastecimento de água adequado para a sua população. É entendido que a área da saúde pública é a mais afetada pela ausência de políticas adequadas em saneamento, pois se sabe que a incidência de doenças preveníveis seria menos expressiva e o número de internações hospitalares, principalmente no setor da pediatria, reduziria drasticamente. A formação de uma consciência pública e coletiva da importância de se ter uma água de qualidade é muito contraditória e frágil, como podemos perceber em nossas entrevistas. Se por um lado existem as forças políticas em atuação, a sociedade civil é ainda uma tanto desorganizada, pois há um desconhecimento quanto aos seus direitos e deveres, baixo entendimento dos aspectos legais sobre determinado assunto ou mesmo ausência de informações para uma melhor participação no processo de implementação de políticas adequadas. A maioria da população continua preocupada apenas com a quantidade da água disposta para consumo ou o valor que representa no orçamento doméstico A política pública não é clara em seus objetivos, pois a falta de recursos financeiros inviabiliza o empenho de realização de uma obra necessária para o saneamento. O saneamento é de responsabilidade do município, porém, em virtude de altos custos, o governo sempre protela este importante setor para seus sucessores. Além da carência de recursos necessários, há uma ausência de vontade política para superação do quadro atual de saneamento. Também podemos notar que o dirigente público não tem consciência de sua força e de seu papel nestas mudanças tão necessárias para a prevenção de doenças de veiculação hídrica. O aumento de surtos ou epidemias de veiculação hídrica também afeta a imagem do governo, obrigando-o a desenvolver algum tipo de atuação de emergência; porém, estas ações ainda estão distantes da melhoria de qualidade de vida para a população. Os esforços, às vezes, isolados e comumente conflituosos, ajudam a elucidar os problemas inerentes à própria história do saneamento no Brasil. Segundo Resende e Heller (2002), qualquer que seja a análise, a situação do saneamento no Brasil ainda é muito acanhada e crítica. Nos setores saúde, meio ambiente, recursos hídricos e políticas urbanas foram acelerados a participação popular e o controle social. Estes movimentos foram institucionalizados através de Conselhos Municipais de Saúde, Conselhos Municipais do Meio Ambiente (CODEMAS) e Comitês e Agências de Bacias Espera-se que, no âmbito do saneamento, a população consiga uma maior participação e influência sobre os destinos dos sistemas de abastecimento de água com água de melhor qualidade e melhorias no saneamento. Ainda fazendo uma análise sucinta dos exames laboratoriais de água destes municípios, podemos inferir que no município onde há sistema de abastecimento de água adequado, os exames estão dentro das normas estabelecidas pela Portaria nº 518/2004 (BRASIL, 2004). Nos outros municípios há uma variação nas análises: em alguns momentos, apresenta um valor aceitável e, em outros, um aumento considerável na quantidade de coliformes fecais e totais da água coletada, principalmente se esta for dos distritos ou lugares sem nenhuma espécie de tratamento, aumentando significativamente o aparecimento de doenças de veiculação hídrica, como infecções diarréicas agudas. As crianças menores de cinco anos são as mais susceptíveis. Não basta apenas ter uma lei. É preciso não confundir direito com lei. A luta jurídica não se restringe à simples procura de mudanças de leis, como se estas modificassem o mundo (AGUIAR apud SILVA, 1998). As leis não modificam o mundo; ao contrário, o mundo é que modifica as leis, uma vez que este é o resultado das ações humanas. Para o autor, a eficácia da lei no tratamento das questões ambientais consiste em abandonar o textualismo, pois “direito é contexto, é concretude palpável da sociedade humana, é fruto das lutas cotidianas [...] os indivíduos devem estar comprometidos com a transformação e rompimento de paradigmas sociais, produtivos e científicos” (SILVA, 1998). CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde as épocas mais remotas, as comunidades se estabeleceram próximas a uma fonte de abastecimento de água, sendo esta uma condição de sobrevivência das mesmas até os dias de hoje. Sabe-se que a trajetória de implementação de sistemas de abastecimento de água está intimamente relacionada aos aspectos econômicos, políticos e sociais em todas as civilizações, sendo fortemente influenciadas pelos interesses dominantes de cada época. A descoberta da relação entre as doenças e a ausência ou a precariedade do saneamento básico intensificou as políticas de saneamento pelo poder público. Estas políticas foram formuladas a partir do surgimento de demandas e pressões do setor econômico. Um melhor desempenho da economia é diretamente proporcional à disponibilidade de trabalhadores qualificados e saudáveis e esta, por sua vez, depende de uma infra-estrutura de serviços básicos eficaz. Contudo, como afirma Resende e Heller (2002), o processo de estruturação política do saneamento no Brasil sempre foi dependente da política econômica vigente, sendo que o saneamento nunca constituiu um setor público específico, com abordagem plena, dada à ausência de integração entre as ações que o compõem. Os municípios, titulares legítimos dos serviços foram enfraquecidos ao longo de sua evolução histórica, o que promoveu uma ampliação do poder da União e dos Estados com a centralização das ações de abastecimento, através do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) nos anos setenta. Essa centralização das políticas públicas tem facilitado a privatização de vários setores tradicionalmente públicos, ameaçando o cumprimento da própria Constituição Federal que garante aos cidadãos o direito à saúde e, dentro deste, o direito ao saneamento básico, à educação e ao trabalho (RESENDE; HELLER, 2002). Os dirigentes públicos sempre concordaram sobre a importância de um sistema de abastecimento de água adequado; contudo, nas propostas apresentadas ao longo do tempo, através de órgãos públicos federais, estaduais ou municipais e, atualmente, sob uma lógica privada de auto-sustentação isto não tem sido colocado com prioridade. Exclui-se grande parte da população que vive nas periferias das grandes cidades e zonas rurais (RESENDE; HELLER, 2002). Nesta pesquisa, através da compreensão dos aspectos relacionados às necessidades dos municípios quanto à implantação ou mesmo à manutenção de um sistema de abastecimento de água com tratamento adequado, espera-se estar contribuindo para que os gestores possam refletir sobre as dificuldades e mecanismos de enfrentamento das mesmas. Os principais representantes dos municípios entrevistados têm uma compreensão parcial da relação entre a saúde coletiva e o saneamento, pois se percebe pela discussão que alguns não apreendem a responsabilidade de seu papel de forma contundente em relação a este assunto. Há um sentimento de ambigüidade, pois alguns participantes acham que os municípios não suportam o peso financeiro de arcar com um sistema de saneamento de água de acordo com as exigências da portaria MS nº 518/2004 (BRASIL, 2004). Ao mesmo tempo definem que a água que possuem é muito boa e saudável, portanto, não necessita de tratamento. Outros definem que o problema maior a ser enfrentado é a “politicagem”. Esta dificulta uma ação mais técnica e imparcial, acarretando ônus para o sistema. Outros ainda percebem que o problema maior encontra-se na população que rechaça uma implementação do SAAs pelo temor de arcar com despesas financeiras. Esta profusão de concepções e sentimentos gera dúvidas e obscurece os objetivos. Só é imperativo resolver o problema, porque a ordem é “superior” (imposição da Portaria). No entanto, não há um entendimento do processo e dos motivos pelos quais de fato são necessárias as mudanças, uma vez que “a água é boa”. Aliás, a população é quase totalmente alienada do movimento, principalmente as comunidades rurais, periféricas dos centros urbanos e municípios menores. A cultura da participação e a parceria sociedade e Estado são ainda incipientes e exigem mecanismos institucionais que facilitem e regulamentem, não ficando ao sabor dos “estilos de gestão” (mais ou menos democráticos) de técnicos e líderes. Os autores Oliveira e Teixeira (1985) apud Minayo (1999), enfatizam que a adoção de determinados programas de prestação de serviços de saúde, o funcionamento de centros ou postos de saúde em diversas localidades, a expansão da rede de canalização de água ou esgotamento sanitário são indispensáveis no combate à mortalidade infantil redimensionando a ordem de seus determinantes. É primordial que os sujeitos envolvidos no processo de organização e funcionamento adequado do sistema de abastecimento de água definam seus papéis de forma clara e as negociações sejam construídas e amadurecidas para uma melhor compreensão na forma de perceber os diferentes papéis de cada um. O apoio da população é indispensável e esta deve ser informada de todas as etapas e seus objetivos e, além disso, deve-se contribuir para uma educação continuada enfatizando a relação saúde, doença e saneamento. Assim, a comunidade poderá reivindicar seus direitos e seu poder de pressão será suficiente para influenciar e transformar as ações do poder público em seu favor. Outro parceiro importante neste movimento é o setor judiciário, através da Promotoria Pública. Esta é acionada quando as partes não conseguem atingir um acordo. Na prática, porém, o não cumprimento legal das normas provoca a não confiabilidade deste instrumento, por parte da sociedade. Isto gera uma desconfiança da população arrefecendo suas reivindicações. Além disso, as leis e portarias são em sua maior parte desconhecidas para ela. Os técnicos e especialistas detentores do saber concentram e manipulam de acordo com as conveniências, tornando-os instrumento de dominação. Segundo Aguiar, ”a velha retórica, que afirma serem as leis boas e sua aplicação ineficaz, começa a fazer água” (AGUIAR apud SILVA, 1998, p. 164). O setor de saneamento básico vive uma crise institucional, correndo riscos iminentes de racionamento. As metas de universalização dos serviços de água e esgoto estão claramente ameaçadas. Segundo a pesquisadora Katya Calmon do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) podem ocorrer graves desabastecimentos de água nos grandes centros urbanos com risco de epidemias. Estas se convertem em poderes e mecanismo de pressão pela liberação imediata de recursos para ações emergenciais (SALOMON, 2003). Mais de 8,5% da população estão sem acesso à água potável e a quarta parte dos domicílios brasileiros não têm coleta de esgoto ou fossas adequadas, isto é, a ausência de saneamento recai justamente entre os moradores de municípios pequenos ou residentes em periferias das grandes cidades, ampliando o abismo sócio-econômico na população de baixa renda. A universalização dos serviços de saneamento esbarra no valor das tarifas cobradas dos usuários, cujos critérios poderão ser revistos no pacote da Política Nacional de Saneamento Ambiental. Outro entrave é o de saber de quem é a competência de fato em conceder os serviços de água e esgoto. A Constituição Federal do Brasil, Art.º 30 (BRASIL, 1988), cita que é prerrogativa dos municípios a competência em organizar e prestar diretamente ou sob regime de concessão ou permissão os serviços de interesse local. O debate paralisa as negociações entre os municípios e Estados, gerando uma indefinição da lei que tramita no Congresso. Hoje existem 24 programas em sete ministérios diferentes, produzindo um quadro de ações muito pulverizadas, além da ausência de um plano de educação para as famílias sobre saneamento, gerando exemplos encontrados pelas auditorias técnicas, tais como pessoas cozinhando em banheiros – “era o cômodo mais bonito da casa” – e vasos sanitários convertidos em vasos de plantas para não gastar água, que é cara. O Tribunal de Contas da União produziu um relatório que explicita que o dinheiro não é gasto somente no saneamento, pois não basta ter água. A má qualidade de água continua provocando um acentuado número de internações por esquistossomose ou diarréia aguda, sugerindo que a água fornecida deve ser adequada e de boa qualidade. Nos últimos oito anos não houve nenhuma política governamental para o setor, indicando que os governos anteriores acreditavam que a privatização iria resolver os problemas do saneamento tornando-a universal, o que é equivocado, pois a iniciativa privada não se interessa pelos municípios pequenos e pobres. Finalmente, sobre o orçamento do Plano Plurianual do governo federal, que será encaminhado ao Congresso 2004-2007, prevê um valor de R$ 5 bilhões para o saneamento, sendo grande parte dependente do Fundo de Garantia Tempo Serviço (FGTS) a maior fonte de financiamento do setor. Porém, os municípios estão proibidos de receber empréstimos e a Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (AESBE) explica que o número é irreal diante dos custos dos serviços, do reajuste das tarifas abaixo da inflação e até da crescente inadimplência dos consumidores (SALOMON, 2003). Espera-se com essa pesquisa colaborar para o entendimento e estimular reflexões no processo das políticas de saneamento dos municípios de pequeno e médio porte. Embora este seja moroso, há sempre uma esperança de avanço na efetivação da universalização dos serviços de saneamento básico através de um constante desenvolvimento da consciência coletiva que contribuirá decisivamente para se alcançar os objetivos propostos. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS nº. 518/2004. Controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. Brasília, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Vigilância e controle da qualidade da água para consumo humano. Brasília: FUNASA, 2002. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. 292 p. MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec ; Rio de Janeiro: Abrasco, 1993. 267 p. PAIM, J. S.. A Reforma sanitária e os modelos assistenciais. In: ROUQUAYROL, M. Z. Epidemiologia & Saúde. São Paulo: Medsi, 1994. p. 455-466. PEREIRA, M. G. Epidemiologia: teoria e prática. 5. ed. Brasília: Guanabara Koogan, 2001. 595 p. RESENDE, S.; HELLER, L. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. Belo Horizonte: UFMG. Escola de Engenharia, 2002. 310 p. ROUQUAYROL, M. Z.; ALMEIDA F.N. Epidemiologia & Saúde. 5. ed. Rio de Janeiro: Medsi, 1999. 570 p. ROZENFELD, S. (Org.). Fundamentos da vigilância sanitária. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000. 301p. SALOMON, M. Ajuste fiscal agrava a crise no saneamento. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 agos 2003. Caderno A, p. 6. SILVA, R. E. Os cursos da água na história: simbologia, moralidade e a gestão de recursos hídricos. Tese (Doutorado)–Fundação Oswaldo Cruz/Escola Nacional de Saúde Pública, 1998. 166p. Submissão: junho de 2006 Aprovação: outubro de 2006 ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE E SANEAMENTO AMBIENTAL NA MELHORIA DA SAÚDE NOS MUNICÍPIOS DA ZONA DA MATA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, BRASIL1 Primary Health Care and environmental sanitation in improving health in the Zona da Mata region of the state of Minas Gerais, Brazil Júlio César Teixeira*, Maíra Crivellari Cardoso de Mello**, Carlos da Costa Ferreira*** RESUMO O presente estudo tem como objetivo avaliar a associação entre condições de saneamento – cobertura populacional por sistemas de abastecimento de água, por sistemas de esgotamento sanitário e por coleta de lixo – e de saúde – morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias, taxa de mortalidade infantil e mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade – nas cidades da Zona da Mata do estado de Minas Gerais, utilizando dados secundários. O universo da pesquisa foi composto pelos 142 municípios integrantes da Zona da Mata mineira, com população total estimada em 2.125.104 habitantes. O método epidemiológico empregado foi um delineamento ecológico. Pode-se afirmar que a universalização da cobertura populacional por serviços de saúde (principalmente atenção primária à saúde), a melhoria dos serviços de saneamento (principalmente a coleta de lixo), o combate aos casos de prematuridade e a redução da taxa de natalidade são medidas de relevante importância para a melhoria da saúde na região. PALAVRAS-CHAVE: Saúde. Saúde Pública. Atenção Primária à Saúde. Saneamento. Atenção Primária Ambiental. Prematuro. Coeficiente de Natalidade. ABSTRACT The objective of this study was to evaluate the association between sanitary conditions (supply of drinking water, collection of sewage and urban waste) and primary health care (prevention and treatment of infectious and parasitic diseases, infant mortality and proportional mortality in children under the age of 5) in urban populations of the Zona da Mata region of the State of Minas Gerais, using data derived from secondary sources. Some 2,125,104 inhabitants of 142 towns situated in this area were selected for an epidemiological study based on an ecological model. The results indicated that the expansion of primary health care and sanitation services, particularly the collection of urban waste, together with the reduction in birth rate and in the frequency of premature births are the most important measures for improving the quality of health in this region. KEY WORDS: Health. Public Health. Primary Health Care. Sanitation Primary Environmental Health. Infant Premature. Birth Rate. * Engenheiro Civil e de Segurança no Trabalho, professor adjunto da Faculdade de Engenharia da UFJF e Doutor em Saneamento. Rua Antônio Marinho Saraiva, 115/202 – CEP 36.025-555 – Juiz de Fora – MG. Tel: (32)3232-6342 – e-mail: [email protected] ** Engenheiranda em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora. *** Engenheiro Civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora. (1) Trabalho subvencionado pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora – PROPESQ/UFJF. Introdução Os serviços de saneamento são de vital importância para proteger a saúde da população, minimizar as conseqüências da pobreza e proteger o meio ambiente. No entanto, os recursos financeiros disponíveis para o setor são escassos no Brasil, a despeito das carências observadas na cobertura populacional por serviços de saneamento. Logo, o reduzido número de estudos, tendo como base dados secundários disponibilizados pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2005), pela Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2005) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2005), a respeito da influência da cobertura populacional por serviços de saneamento sobre as condições de saúde existentes nas diferentes regiões do estado de Minas Gerais, constitui uma importante lacuna nas pesquisas no campo da saúde pública no estado. Os países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, entram no terceiro milênio ressuscitando patologias do início do século XX. Grande parte das doenças registradas, como diarréias, difteria, cólera, dengue, hepatite tipo A, leptospirose, esquistossomose e várias parasitoses, decorre da falta de saneamento. Em conseqüência, as taxas de mortalidade infantil, de mortalidade em crianças menores de cinco anos de idade e de morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias são elevadas nestes países. Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU, 1997), na maioria dos países em desenvolvimento a impropriedade e a carência de infra-estrutura sanitária é responsável pela alta mortalidade por doenças de veiculação hídrica e por um grande número de mortes evitáveis a cada ano. Nesses países, verificam-se condições que tendem a piorar devido às necessidades crescentes de serviços e ações de saneamento ambiental, que excedem a capacidade dos governos de reagir adequadamente. 2 Silva e Alves (1999) sustentam que, no Brasil, as populações não atendidas por serviços de saneamento adequados se concentram nas periferias das grandes cidades, nos pequenos aglomerados urbanos e nas regiões mais pobres do país. “As enfermidades associadas à deficiência ou inexistência de saneamento ambiental e a conseqüente melhoria da saúde devido à implantação de tais medidas têm sido objeto de discussão em estudos em todo o mundo” (MORAES, 1997, p.281). Por outro lado é sabido que benefícios específicos de intervenções de saneamento ambiental incluem a diminuição da mortalidade devido às doenças diarréicas e parasitárias e a melhoria do estado nutricional das crianças (ESREY et al., 1990). Contudo, a avaliação dos efeitos das medidas de saneamento ambiental sobre a morbi-mortalidade infantil é de difícil realização, e os resultados dependem de um número considerável de outros fatores como, por exemplo, demográficos, sócio-econômicos, cobertura por serviços de saúde etc., para sua interpretação adequada. Deve-se, então, quando da realização destes estudos, levar em consideração várias questões metodológicas para que não venham a invalidar os resultados (BLUM; FEACHEM, 1983). Assim, o presente estudo tem como objetivo avaliar a associação entre condições de saneamento – cobertura populacional por sistemas de abastecimento de água, por sistemas de esgotamento sanitário e por coleta de lixo – e de saúde – morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias, taxa de mortalidade infantil e mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade – na Zona da Mata do estado de Minas Gerais, de modo a contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população residente nesta parte do território mineiro, bem como constituir um instrumento de planejamento para aplicação eficaz de recursos financeiros em saúde pública na região. Metodologia Comitê de Ética e Conflito de Interesses O manuscrito não foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade Federal de Juiz de Fora por se tratar de um estudo ecológico. Ainda, o trabalho 3 é um estudo observacional no campo da ciência aplicada sem nenhum conflito de interesses associado. Áreas Geográficas Abrangidas O universo da pesquisa foi composto por 142 municípios integrantes da Zona da Mata do estado de Minas Gerais, com população total de 2.125.104 habitantes. A taxa média de crescimento da população da região, estimada para a primeira década do século XXI, é de 0,7% ao ano (IBGE, 2005). Delineamento Epidemiológico O método epidemiológico empregado foi um delineamento ecológico. Este delineamento é útil para detectar correlações entre exposições e indicadores de situações de saúde para agregados populacionais. Base de Informações A base de informações foi composta por dados secundários, disponíveis para o período de 1996 a 2004, provenientes do Ministério da Saúde (BRASIL, 2005), da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2005) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2005). Foi verificado que as variáveis independentes não estão correlacionadas entre si e, portanto, tal comportamento garante a adequação do modelo utilizado. Fatores de risco estudados Cada um dos três indicadores epidemiológicos estudados foi analisado por meio de sua correlação com vários outros indicadores, divididos em cinco classes, a saber: ••• Indicadores demográficos: - Taxa de crescimento anual estimada, 1996-2000 (% da população total); - Grau de urbanização, 2001 (% da população urbana); - Taxa bruta de natalidade, 2002 (nº de nascidos vivos por 1.000 habitantes); - População residente estimada, 2004 (habitantes). ••• Indicadores sócio-econômicos: - Taxa de alfabetização, 2000 (% na população de 15 anos e mais de idade); 4 - Produto Interno Bruto (PIB) per capita, 2002 (US$ internacional per capita); - Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), 2000. ••• Indicadores de risco: - Percentagem de nascidos vivos de baixo peso ao nascer, 2002 (% de nascidos vivos com peso inferior a 2.500 g); - Percentagem de crianças nascidas prematuras, 2002 (%); - Percentagem de mães com idade entre 10 e 19 anos, 2002 (%). ••• Indicadores de cobertura por serviços de saúde: - Número de consultas médicas SUS – procedimentos básicos – por habitante, 2004 (procedimentos/habitante); - Cobertura vacinal – tríplice viral (SCR) – no primeiro ano de vida, 2002 (% de menores de um ano imunizados). ••• Indicadores de saneamento: - Cobertura por redes de abastecimento de água, 2000 (% da população total); - Cobertura por sistemas de esgotamento sanitário, 2000 (% da população total); - Cobertura por serviços de coleta de lixo, 2000 (% da população total). Análise de dados A análise dos dados foi desenvolvida segundo um processo evolutivo, em etapas sucessivas, de tal forma a permitir a determinação das exposições efetivamente associadas aos indicadores de saúde estudados. Tal processo envolveu, em seqüência, as seguintes atividades: • análise descritiva de cada um dos indicadores, avaliando as suas principais características, o que propiciou a avaliação da precisão e da consistência dos dados levantados; • cálculo do coeficiente de correlação linear entre as três variáveis dependentes estudadas; • análise de regressão linear simples entre os indicadores epidemiológicos versus indicadores demográficos, sócio-econômicos, de risco, de cobertura por serviços de saúde, e de saneamento, um a um, de modo a avaliar a importância das correlações obtidas por meio da estatística F, além de pré-selecionar os indicadores a serem utilizados na regressão linear múltipla em nível de 15% de significância (p ≤ 0,15); 5 • cálculo do coeficiente de correlação linear entre todas as variáveis independentes préselecionadas para a análise de regressão linear múltipla; • análise de regressão linear múltipla em que se procurou identificar as variáveis independentes efetivamente associadas a cada indicador epidemiológico estudado em nível de 5% de significância (p ≤ 0,05). Foi utilizado o pacote estatístico SPSS 10.0 - Statistical Package for Social Sciences. Resultados Variação dos indicadores para o conjunto dos municípios Na Tabela 1, são apresentadas as principais características dos indicadores para o conjunto de municípios estudados. Tabela 1 O indicador com menor coeficiente de variação é taxa de alfabetização – 4,4% – e o de maior variação é taxa de crescimento da população – 1.400,0%. Na Tabela 2, observou-se que a taxa de mortalidade infantil está correlacionada com a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade em um nível de significância de 0,01. Tabela 2 Taxa de mortalidade infantil Da regressão linear simples, alguns indicadores foram selecionados com valor de p – significância estatística – igual ou inferior a 0,15. Apresentaram significância estatística, nesta etapa, os seguintes indicadores em ordem de importância da estatística F: número de consultas médicas SUS por habitante, percentagem de crianças nascidas prematuras, percentagem de nascidos vivos de baixo peso ao nascer e taxa bruta de natalidade. Ao se processar a análise de regressão linear múltipla, encontrou-se um coeficiente R2 ajustado de 0,086 sendo que as variáveis que permaneceram no modelo final com p ≤ 0,05 foram: número de consultas médicas SUS por habitante (p = 0,002) e percentagem de crianças nascidas prematuras (p = 0,032). 6 O indicador número de consultas médicas SUS por habitante apresentou coeficiente β negativo, mostrando uma relação inversamente proporcional com a taxa de mortalidade infantil. Já o indicador percentagem de crianças nascidas prematuras apresentou coeficiente β positivo, mostrando uma relação diretamente proporcional com a taxa de mortalidade infantil Tabela 3 Na Figura 1, observa-se que quanto maior o número de consultas médicas SUS por habitante em um município da Zona da Mata mineira, menor é a mortalidade infantil naquele município. Figura 1 Mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade Da etapa inicial, regressão linear simples, vários indicadores foram selecionados com valor de p igual ou inferior a 0,15. Apresentaram significância estatística nesta etapa, os seguintes indicadores em ordem decrescente da estatística F: taxa bruta de natalidade, percentagem de crianças nascidas prematuras, cobertura por sistemas de coleta de lixo, percentagem de nascidos vivos de baixo peso ao nascer, cobertura por sistemas de abastecimento de água, grau de urbanização, cobertura por sistema de esgotamento sanitário, percentagem de mães com idade entre 10 e 19 anos, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e taxa de alfabetização. Na regressão linear múltipla, encontrou-se um coeficiente R2 ajustado de 0,099, sendo que as variáveis que permaneceram no modelo final foram: taxa bruta de natalidade (p = 0,028), percentagem de crianças nascidas prematuras (p = 0,015) e cobertura por sistemas de coleta de lixo (p = 0,023). Os indicadores taxa bruta de natalidade e percentagem de crianças nascidas prematuras apresentaram coeficiente β positivo, mostrando uma correlação diretamente proporcional com a mortalidade em crianças menores de cinco anos de idade. Já o indicador cobertura por sistemas de coleta de lixo apresentou coeficiente β negativo, mostrando uma correlação inversamente proporcional com a mortalidade em crianças menores de cinco anos de idade. 7 Tabela 4 Na Figura 2, observa-se que quanto maior a cobertura por serviços de coleta de lixo em um município da Zona da Mata mineira, menor é a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade no município. Figura 2 Morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias Apresentaram significância estatística na regressão linear simples (p ≤ 0,15) os seguintes indicadores em ordem de significância da estatística F: número de consultas médicas SUS por habitante, percentagem de crianças nascidas prematuras, taxa bruta de natalidade e percentagem de nascidos vivos de baixo peso ao nascer. Na análise de regressão linear múltipla, encontrou-se um coeficiente R2 ajustado de 0,062, sendo que as variáveis que permaneceram no modelo final foram: número de consultas médicas SUS por habitante (p = 0,014) e percentagem de crianças nascidas prematuras (p = 0,033). O indicador percentagem de crianças nascidas prematuras apresentou coeficiente β positivo, mostrando uma relação diretamente proporcional com morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias. Por outro lado, o indicador número de consultas médicas SUS por habitante apresentou um valor de β negativo, mostrando uma relação inversamente proporcional com o indicador epidemiológico em estudo. Tabela 5 Na Figura 3, observa-se que quanto maior o número de consultas SUS por habitante em um município da Zona da Mata mineira, menor a morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias. Figura 3 8 Discussão A Zona da Mata do estado de Minas Gerais, localizada na região Sudeste brasileira, é composta por 142 municípios. A taxa de mortalidade infantil média na região era de 21 óbitos de menores de um ano de idade por mil crianças nascidas vivas, no ano de 2002, sendo que este indicador variava de um mínimo de zero (em 27 municípios) a um máximo de 60,6 (no município de Santana do Deserto). Segundo Pereira (2003), as taxas de mortalidade infantil são geralmente classificadas em altas (50 por mil ou mais), médias (20-49) e baixas (menos de 20). Adotando-se esta classificação pode-se caracterizar a mortalidade infantil na Zona da Mata mineira como média com viés para baixa. Segundo o autor, quando a mortalidade infantil é alta, o componente pós-neonatal (28 dias ou mais de vida) é predominante. Quando a taxa é baixa, o seu principal componente é a mortalidade neonatal (0-27 dias de vida). Portanto, a partir do valor verificado para a mortalidade infantil média na região, supõe-se que haja um predomínio da mortalidade neonatal em relação à pós-neonatal. Na análise multivariada, o indicador número de consultas por habitante apresentou uma correlação inversamente proporcional à taxa de mortalidade infantil, ou seja, quanto maior o número de consultas e atendimentos médicos oferecidos à população em um dado município da amostra, menor a mortalidade infantil naquele município. Já o indicador percentual de crianças nascidas prematuras apresentou uma correlação positiva, indicando que quanto maior o número de crianças nascidas prematuras nos municípios estudados, maior a mortalidade infantil. Desde 1995, o Ministério da Saúde tem estado à frente de um movimento nacional, o Projeto de Redução da Mortalidade Infantil (PRMI), que busca diminuir significativamente as taxas de mortalidade entre as crianças brasileiras. Além do incremento anual dos recursos financeiros e da maior agilidade no repasse aos municípios por meio do Piso de Atenção Básica, procurou-se promover um atendimento integrado e focalizado em municípios mais carentes, envolvendo ações de saneamento, imunização, promoção do aleitamento materno e do pré-natal, combate às doenças infecciosas e à desnutrição. Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2000), o incansável trabalho de milhares de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de equipes do Programa de Saúde da Família (PSF), que diariamente visitam as casas onde 9 habitam milhões de mulheres e crianças, tem sido decisivo para o declínio da mortalidade de menores de um ano de idade em todo o país. A idade gestacional inferior a 37 semanas – prematuridade – foi a variável que apresentou maior força de associação com a mortalidade infantil no estudo de Martins e Velásquez-Menendez (2004). A prematuridade como um dos principais fatores de risco para a mortalidade infantil é consenso na literatura, confirmando o achado da presente pesquisa. Assim, pode-se levantar a hipótese da necessidade de disponibilidade de recursos tecnológicos e humanos adequados para o atendimento em tais circunstâncias (ALEXANDER et al., 2003). A falta de unidades de terapias intensivas – UTI – nos municípios da Zona da Mata mineira pode ter dificultado a prevenção de óbitos potencialmente evitáveis entre os prematuros. A baixa taxa de mortalidade infantil na Zona da Mata mineira leva à priorização de um melhor atendimento por parte dos serviços de saúde às crianças menores de um ano, às gestantes e aos prematuros na região, cabendo à ampliação da cobertura por serviços de saneamento um papel complementar na redução da mortalidade infantil. Na Zona da Mata mineira, a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade apresenta um valor médio de 7,2% do total de óbitos da região, variando de 0% (em 22 municípios) a 40% (no município de Pedro Teixeira). Como demonstrado na Tabela 2, há uma correlação estatisticamente significativa entre a taxa de mortalidade infantil e a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade. Tal achado é explicado pelo fato de que parte das mortes em crianças menores de cinco anos de idade é constituída por óbitos de crianças menores de um ano de idade. O estudo demonstrou que nos municípios da Zona da Mata mineira a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade é diretamente correlacionada à taxa de natalidade, à percentagem de crianças nascidas prematuras, e inversamente correlacionada à cobertura populacional por serviços de coleta de lixo. Assim, a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade cai com a diminuição da taxa de natalidade em nível municipal. Tal achado é consistente com o de Nascimento Costa et al. (2003). Os autores afirmam que a redução da taxa de natalidade 10 foi uma das principais responsáveis pelo declínio da mortalidade infantil e, por conseqüência, da queda da mortalidade proporcional em menores de cinco anos no Brasil. Deste modo, se não houver uma política pública de planejamento familiar, por meio de orientação sexual e do livre acesso aos métodos anticoncepcionais, haverá a degradação da qualidade de vida, principalmente da parcela mais pobre da população – que tem mais filhos – com conseqüências para a saúde infantil. Ainda, a presença do indicador percentagem de crianças nascidas prematuras como um fator de risco para a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade é coerente. Tal achado é explicado pelo fato de que há correlação entre a taxa de mortalidade infantil e a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade, conforme demonstrado na Tabela 2. Em relação à coleta de lixo, a presente pesquisa mostrou que os municípios com maior cobertura populacional por serviços de coleta de lixo apresentam menor mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade. Tal achado é confirmado por vários autores. Heller et al. (2003) encontraram um risco relativo para a diarréia em crianças menores de cinco anos de idade de 1,61 (1,11-2,34) quando o lixo era disposto no lote em comparação com a disposição do lixo para a coleta pelo serviço municipal. Teixeira (2003) encontrou evidências de que o acondicionamento inadequado do lixo e o lançamento das fezes das fraldas no peridomicílio constituem risco para crianças menores de cinco anos de idade, respectivamente, para a diarréia – odds ratio – OR = 1,93 (1,04-3,60) – e para a desnutrição crônica – OR = 2,60 (1,41-4,80). Tais doenças, diarréia e desnutrição, constituem importantes riscos para a mortalidade em crianças menores de cinco anos de idade. Na presente pesquisa, a morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias apresentou um valor médio de 5,7% do total de internações na região, variando de 0,9% (município de Oliveira Fortes) a 16,1% (município de Guaraciaba). Estas doenças mostraramse inversamente correlacionadas com o número de consultas médicas SUS por habitante e diretamente correlacionadas à percentagem de crianças com nascimento prematuro. Tal resultado comprovou que a melhoria da qualidade da assistência médica, inclusive com a ampliação da cobertura por serviços de saneamento, desempenha um papel importante 11 na redução de uma série de doenças infecciosas e parasitárias, confirmando os achados de vários estudos (HUGHES, 1995; BRASIL, 2004). Quanto à prematuridade, Correia e McAuliffe (1999) afirmam que o meio mais eficaz para reduzir o número de casos de prematuridade é a atenção pré-natal. Durante esse acompanhamento, fatores específicos de risco na gestante podem ser identificados – anemia, desnutrição materna, tabagismo – e tratamento profiláticos oferecidos – sulfato ferroso, suplementação alimentar. Gestantes que apresentam fatores de risco, segundo os autores, devem receber um acompanhamento médico mais intensivo. Em nível coletivo, o sistema de saúde precisa garantir acesso ao pré-natal, estimular sua procura pela população gestante e assegurar a sua qualidade. Conclusão Pode-se afirmar que a universalização da cobertura populacional por serviços de saúde (principalmente a atenção primária à saúde), a melhoria dos serviços urbanos (principalmente a coleta de lixo), o combate aos casos de prematuridade e a redução da taxa de natalidade são medidas de relevante importância para a melhoria da saúde na Zona da Mata do estado de Minas Gerais. REFERÊNCIAS 1. ALEXANDER, G.R.; KOGAN, M.; BADER, D.; CARLO, W.; ALLEN, M.; MOR, J. US birth weight/gestational age-specific neonatal mortality: 1995-1997 rates for whites, hispanics, and blacks. Pediatrics, v.111, p.61-66, 2003. 2. BLUM, D.; FEACHEM, R.G. Measuring the impact of water supply and sanitation investments on diarrhoeal diseases: problems of methodology. International Journal of Epidemiology, v.12, p.357-365, 1983. 3. BRASIL. Ministério da Saúde. 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Associação entre cenários de saneamento e indicadores de saúde em crianças: estudo em áreas de assentamento subnormal em Juiz de Fora – MG. 2003. Tese 13 (Doutorado em Engenharia Sanitária) – Escola de Engenharia, Universidade Federal de Minas Gerais, Horizonte, 2003. Submissão: junho de 2006 Aprovação: outubro de 2006 14 Tabela 1 – Estatística descritiva das características dos 142 municípios da Zona da Mata – MG Indicador Média Mediana Moda DP(*) CV(**) Mínimo Máximo Taxa de mortalidade infantil 21,0 21,1 0 14,7 70,0 0 60,6 o (n óbitos infantis/ 1000 NV) Mortalidade proporcional 7,2 6,1 0 6,1 84,7 0 40,0 em menores de cinco anos (%) Percentagem de internações 5,7 5,5 6,7 2,9 50,9 0,9 16,1 hospitalares por DIP (%) População do município 14575, 6297,5 41628,3 285,6 1671,0 471694,0 (hab.) 2 Taxa de crescimento da 0,2 0,7 1,0 2,8 1400,0 -14,5 5,7 população (%) Grau de urbanização (%) 59,5 58,4 19,6 32,9 17,9 99,2 Taxa bruta de natalidade 13,7 13,6 3,7 27,0 5,5 26,4 (noNV/1000hab.) Taxa de alfabetização (%) 82,0 82,0 81,9 3,6 4,4 72,7 92,7 PIB per capita (R$/hab.) 3639,1 3280,5 3292,0 1391,2 38,2 2144,0 10722,0 No de consultas por 8,2 7,7 8,5 3,9 47,6 0 24,5 habitante (consultas/hab.) Percentagem de prematuros 6,7 5,5 0 5,6 83,6 0 29,8 (%) Percentagem de mães 19,4 19,0 20,0 5,8 29,9 4,8 34,9 adolescentes (%) Percentagem de crianças de 8,8 8,5 8,5 3,9 44,3 0 21,2 baixo peso ao nascer (%) Cobertura vacinal (%) 99,3 96,5 83,3 24,9 25,1 48,6 202,9 Índice de desenvolvimento 0,719 0,717 0,735 0,04 5,6 0,643 0,828 humano Cobertura por redes de 60,8 62,7 86,3 18,2 29,9 17,5 95,0 abastecimento de água (%) Cobertura de sistemas de 52,4 53,1 53,3 19,1 36,5 0,5 92,8 esgotamento sanitário (%) Cobertura de sistemas de 57,3 59,1 36,7 20,1 35,1 12,1 98,2 coleta de lixo (%) Observações: (*) DP = desvio padrão; (**) CV (%) = coeficiente de variação = (desvio padrão/média)*100% 15 Tabela 2 – Matriz de correlação entre indicadores epidemiológicos – coeficiente de Pearson (r) TMI (1) TM5 (2) DIP (3) TMI (1) 1 0,356(*) 0,144 TM5 (2) 0,356(*) 1 0,110 DIP (3) 0,144 0,110 1 Observações: (1) TMI = Taxa de mortalidade infantil; (2) TM5 = Mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade; (3) DIP = Morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias; (*) Correlação é significante em nível de 0,01. 16 Tabela 3 - Regressão linear múltipla entre a taxa de mortalidade infantil e fatores de risco estudados 2 R Variáveis que R p valor Coeficiente β permaneceram (significância) No de consultas médicas -0,254 0,002 +0,175 0,032 SUS por habitante 0,086 0,293 Percentagem de crianças nascidas prematuras Ponto de corte: p ≤ 0,05 17 Tabela 4 - Regressão linear múltipla entre mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade e fatores de risco estudados 2 R Variáveis que R p valor Coeficiente β permaneceram Taxa bruta de natalidade (significância) +0,182 0,028 +0,199 0,015 -0,188 0,023 Percentagem de crianças 0,099 0,315 nascidas prematuras Cobertura de sistemas de coleta de lixo Ponto de corte: p ≤ 0,05 18 Tabela 5 - Regressão linear múltipla entre morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias e fatores de risco estudados 2 R Variáveis que R p valor Coeficiente β permaneceram (significância) No de consultas médicas -0,202 0,014 +0,176 0,033 SUS por habitante 0,062 0,249 Percentagem de crianças nascidas prematuras Ponto de corte: p ≤ 0,05 19 TMI (óbitos<1ano por 1000nv.) 70 60 50 TMI X NCH 40 Linear (TMI X NCH) 30 y = -1,0013x + 29,162 R 2 = 0,0688 20 10 0 0 5 10 15 20 25 NCH (consultas SUS por hab.) Figura 1 – Gráfico de regressão linear simples entre a taxa de mortalidade infantil (TMI) e o número de consultas SUS por habitante (NCH) 20 TM5 (% do total de óbitos) 40 35 30 TM5 X ICL Linear (TM5 X ICL) 25 20 15 y = -0,059x + 10,539 R 2 = 0,0381 10 5 0 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 ICL - % Figura 2 – Gráfico de regressão linear simples entre a mortalidade proporcional em crianças menores de cinco anos de idade (TM5) e a cobertura por serviços de coleta de lixo (ICL) 21 DIP (% do total de internações) 20 15 DIP X NCH Linear (DIP X NCH) 10 y = -0,1596x + 7,0288 2 R = 0,0444 5 0 0 5 10 15 20 25 NCH (consultas SUS por hab.) Figura 3 – Gráfico de regressão linear simples entre a morbidade hospitalar por doenças infecciosas e parasitárias (DIP) e o número de consultas SUS por habitante (NCH). 22 A CORRELAÇÃO DO CÂNCER DO COLO UTERINO COM O PAPILOMAVIRUS HUMANO The correlation between Cervical Cancer and the Human Papilloma Virus Aline Campos Gonçalves Almeida1 Adriana Takamatsu Sakama 2 Rosângela Galindo de Campos 3 RESUMO Este estudo analisa a produção científica sobre a correlação da infecção por Papilomavirus Humano (HPV) com o câncer do colo do útero, tomando como referencial os pressupostos de Ganong (1987). Optamos por realizar uma revisão integrativa sobre a produção científica acerca da correlação do HPV com o câncer do colo uterino. A amostra foi composta por 24 artigos que abordavam o HPV e o câncer do colo uterino da literatura nacional, publicados de 2000 a 2005 e indexados nas bases de dados Lilacs e Scielo. A análise dos artigos possibilitou a identificação de oito categorias temáticas e os resultados apontam para a importância da compreensão do HPV para controle do câncer do colo do útero, da prevenção e do diagnóstico precoce e eficiente e do tratamento adequado para cada tipo de lesão para diminuir a morbimortalidade por esta neoplasia. Palavras-Chave: Câncer do colo uterino. Neoplasias Uterinas. Papillomavirus Humano. ABSTRACT This study analyzes the scientific literature on the correlation between infection by the Human Papilloma Virus (HPV) and cervical cancer, using Ganong’s (1987) presuppositions as a reference. We carried out an integrative review of the scientific literature concerning the correlation between HPV and cervical cancer. The sample was composed of 24 articles about HPV and cervical cancer in the Brazilian literature, published between 2000 and 2005, and indexed in the Lilacs and Scielo databases. The analysis of the articles led to the identification of eight thematic categories, and the results shows the importance of an understanding of HPV in the control of cervical cancer, of prevention, early and efficient diagnosis, and the appropriate treatment for each type of lesion to diminish morbidity and mortality caused by this neoplasia. 1 2 3 Enfermeira. Acadêmica do Curso de Especialização em Assistência Multiprofissional a Pacientes com Agravos Crônicos do Centro Universitário Filadélfia – UniFil, de Londrina - PR. End. Rua Vereador João Carvalho Costa, 126, Conjunto Planalto, CEP: 86220-000, Assai, Paraná. - Fone: (43) 3262-5031 E-mail: [email protected] Enfermeira. Acadêmica do Curso de Especialização em Assistência Multiprofissional a Pacientes com Agravos Crônicos do Centro Universitário Filadélfia – UniFil, de Londrina - PR. E-mail: [email protected] Enfermeira. Orientadora, Docente e Coordenadora do Curso de Especialização “Assistência Multiprofissional a Pacientes com Agravos Crônicos” do Centro Universitário Filadélfia – UniFil, de Londrina – PR. Mestre em Enfermagem Fundamental pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (USP-EERP). E-mail: [email protected] 2 . Key words: Uterine Cervical Neoplasms. Uterine Neoplasms. Papillomavirus Human. . INTRODUÇÃO A neoplasia do colo uterino ainda é um sério problema de saúde pública em nosso país. Desde a introdução da citologia oncótica cérvico-vaginal como método de rastreamento houve uma grande redução da mortalidade devido a esse tumor; apesar disso, os índices de mortalidade continuam não aceitáveis. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA, 2006), o câncer do colo do útero é a terceira neoplasia mais comum entre as mulheres, sendo a quarta causa de morte por câncer, apesar de ser uma das poucas neoplasias preveníveis. É uma doença de longa evolução, podendo ser detectada em fases precoces. O pico de incidência do câncer do colo uterino ocorre em média 10 a 20 anos após a infecção pelo HPV. As estimativas da incidência de câncer no Brasil apontam a ocorrência de 19.260 casos novos de câncer do colo uterino para o ano de 2006. A associação existente entre o papilomavirus humano (HPV) e o carcinoma escamoso cervical está sendo investigado há muitos anos. Hoje se sabe do papel central deste vírus na carcinogênese cervical e a afirmação de que não existe câncer do colo sem que o HPV se faça presente (PINTO et al., 2002; NICOLAU, 2003). A infecção do HPV foi reconhecida como a principal causa de câncer do colo uterino pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1992. A compreensão do HPV é de fundamental importância para o controle do câncer do colo uterino. Apresentamos aqui uma revisão integrativa da literatura nacional em que se procurou identificar estudos que apontassem os fatores de correlação do HPV com o câncer do colo uterino e contribuíssem para fundamentar a melhoria de estratégias de prevenção, diagnóstico e tratamento. Este estudo tem como objetivo caracterizar a produção científica nacional sobre a correlação do HPV com o câncer do colo uterino. MATERIAL E MÉTODOS 3 Esta é uma pesquisa bibliográfica, retrospectiva, de natureza descritiva, com abordagem quanti-qualitativa e enfatiza a importância de compreender a relação entre o câncer do colo uterino e o HPV para controle dessa doença. Optamos pela técnica de pesquisa da revisão integrativa, em que os estudos publicados são reunidos e sintetizados, obtendo os resultados evidenciados na ótica de diversos especialistas, trazendo contribuições para melhoria no diagnóstico e tratamento da doença. Uma revisão integrativa deve ser rigorosa e sistemática, além de discutir os métodos e estratégias utilizadas, avaliar as fontes e sintetizar os resultados (BROOME, apud RODGER; KNAFL, 1993). Nosso trabalho foi desenvolvido conforme os pressupostos de Ganong (1987) cumprindo as seis etapas que ele propõe para se obter os mesmos níveis de clareza, rigor e replicação das pesquisas primárias. A população foi composta por todos os artigos que abordaram o tema HPV e câncer do colo uterino publicados em periódicos nacionais no período entre 2000 e 2005 e indexados nas bases de dados Lilacs e Scielo. A amostra ficou constituída de 24 artigos que preenchiam os seguintes critérios de inclusão: periódicos nacionais, publicados em português, no período entre 2000 e 2005; indexados pelos descritores: câncer; colo do útero/colo uterino; HPV. A análise dos dados ocorreu em duas etapas. Na primeira, examinaram-se os dados de identificação do autor, ano de publicação e localização do artigo, sendo os dados agrupados em um banco, codificados e formatados no programa EPI INFO 6.0. Na etapa seguinte, foi realizada a análise de conteúdo dos artigos, em relação a seus objetivos, ao método empregado, às suas características e delineamento conceitual ou teórico, possibilitando uma caracterização fidedigna da amostra. Para a coleta de dados foi elaborado um instrumento específico composto por três partes: dados referentes ao pesquisador, à identificação do periódico e dados referentes à pesquisa. Os artigos que preenchiam os critérios de inclusão e não foram encontrados nas bibliotecas das universidades de Londrina foram solicitados por meio do Sistema COMUT. 4 RESULTADOS Os resultados são apresentados relacionados ao periódico, ao pesquisador e à pesquisa de acordo com os itens definidos nos objetivos propostos para o estudo. Foram encontradas 167 pesquisas com o cruzamento dos descritores propostos, sendo o Lilacs a base de dados que apresentou o maior número (158 ou 94,6%). Somente 25 (15%) atenderam aos critérios de inclusão e, dessas, uma foi excluída por estar repetida em duas bases de dados. Assim sendo, apenas 24 (14,4%) pesquisas foram utilizadas para este estudo, e todas a partir do seu texto integral. Os artigos que compõem a amostra foram publicados em 13 periódicos, com predominância da Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (25%). Em relação à formação profissional do primeiro autor, os médicos compõem a grande maioria (91,6 %). Em relação ao design, observamos que dos 24 artigos, seis (25%) eram descritivo/retrospectivo, sendo esse design muito utilizado na enfermagem para validar nossa prática assistencial. As categorias temáticas emergiram da experiência das autoras deste trabalho no ensino e na assistência aos pacientes com câncer e das publicações referentes ao câncer do colo uterino e o HPV. As categorias de análise referentes à temática são: 1. Definição e classificação do HPV; 2. Fatores de risco e de proteção para infecção pelo HPV e para câncer do colo do útero; 3. Incidência e prevalência da infecção pelo HPV e do câncer do colo uterino; 4. O HPV na gênese do câncer do colo uterino; 5. Métodos de diagnóstico do HPV e do câncer do colo do útero; 6. Discordância no diagnóstico de ASCUS / AGUS; 7. Importância da prevenção e do diagnóstico precoce. 8. Abordagens terapêuticas. 5 Na busca por compreender melhor o fenômeno HPV e câncer do colo uterino, consideramos necessário fazer uma análise do conteúdo da produção científica, o que passamos a tratar a seguir. Definição e Classificação do HPV Naud et al. (2000), Alvarenga et al. (2000) e Novaes et al. (2002) definem o HPV como um vírus DNA pertencente ao grupo do papilomavírus, da família Papillomaviridae. É um vírus pequeno com cerca de 55 mm de diâmetro e apresenta tropismo pelo epitélio escamoso, como pele e mucosas, acometendo também o epitélio cilíndrico. O período de incubação é extremamente variável, de 2 semanas até cerca de 8 meses, com média de 3 meses. Em alguns casos, o período de latência pode chegar a anos ou indefinidamente (NAUD et al., 2000 ). A infecção pelo HPV no colo ocorre pelo contato direto é geralmente um quadro assintomático (ALVARENGA et al., 2000) e pode ocorrer em três fases distintas: clínica, subclínica e latente. Na grande maioria dos casos há desaparecimento espontâneo do vírus dos locais de infecção. A classificação ocorre pela capacidade do vírus (potencial oncogênico) de se interagir ao genoma celular (NAUD et al., 2000; FERNANDES et al., 2004). Naud et al. (2000) classificam como baixo risco, risco intermediário, alto risco e risco indeterminado; Bagarelli e Oliani (2004) classificam em baixo, médio e alto risco e ambos relatam mais de 100 tipos diferentes de vírus, sendo que aproximadamente 1/3 infectam o trato genital. Carneiro et al. (2004) citam mais de 120 tipos já identificados e juntamente com Fernandes et al. (2004) e Novaes et al. (2002) classificam em baixo e alto risco. Outros autores como Jordão et al. (2003), Bigio et al. (2002), Dobo et al. (2002) e Bringhenti et al. (2001) classificam em baixo, alto e risco intermediário. O HPV tipos 16 e 18 são os mais comumente associados ao câncer cervical. Fatores de risco e de proteção para infecção pelo HPV e para o câncer do colo uterino 6 Naud et al. (2000) citam alguns fatores que podem estimular o crescimento das lesões condilomatosas como as vaginites, má higiene, gravidez, anticoncepcional oral, alteração imune, tabagismo e umidade genital. Yamamoto et al. (2002) relatam que a nicotina facilita a infecção e a persistência da infecção pelo HPV, pois induz um aumento da atividade mitótica do epitélio cérvicovaginal e também devido o seu efeito depressor no sistema imunológico. Alguns autores como Naud et al. (2000), Lapim et al. (2000), Fernandes et al. (2004), Bagarell e Oliani (2000) e Borges et al. (2004) relatam que a persistência da infecção do vírus leva à progressão da infecção para lesão de alto grau. Em contrapartida, Carneiro et al. (2004), Novaes et al. (2002) e Alvarenga et al. (2000) relatam que o vírus sozinho, mesmo na ocorrência de persistência viral, não é suficiente para causar câncer do colo uterino. Seria necessária a participação de co-fatores como multiparidade, tabagismo, uso de anticoncepcionais, deficiências nutricionais, co-infecção por Clamydia trachomatis e outros. Pinto et al. (2002) também relatam vários fatores não virais que interagem em menor ou maior intensidade com as oncoproteínas e outros elementos do HPV que podem facilitar o desenvolvimento dos processos de imortalização e carcinogênese: resposta imune local reduzida, resposta imune humoral e mulheres imunodeprimidas. O estado imunológico da paciente é um dos co-fatores de primordial importância, visto que nas pacientes imunodeprimidas a carcinogênese genital HPV induzida se estabelece de maneira súbita em relação àquelas imunocompetentes (ALVARENGA et al., 2000 apud JACYNTHO; BARCELOS, 1999). Utagawa et al. (2000) acrescentam como fatores de risco a baixa condição socioeconômica, início precoce da atividade sexual e multiplicidade de parceiros sexuais. Segundo Borges et al. (2004) quanto mais precoce a primeira relação sexual, maior a chance do HPV ser fator de risco para NIC ( neoplasia intraepitelial cervical), devido ao freqüente achado da zona de transformação nessas mulheres com seu processo de metaplasia jovem. Segundo Pinto et al. (2002), o papel da resposta imune humoral no controle da infecção por HPV e lesões relacionadas não está completamente compreendido, entretanto ela parece ser capaz de impedir a infecção pelo Papilomavirus. Incidência e prevalência da infecção pelo HPV e do câncer do colo uterino 7 A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima cerca de 30 milhões de novos casos/ano mundo (NAUD et al., 2000). A infecção pelo HPV é bastante freqüente em mulheres jovens, pois esta é uma doença que afeta a mulher em plena vida reprodutiva e na fase de maior atividade sexual. Com o aumento da incidência de infecção pelo HPV em adolescentes sexualmente ativas, o surgimento de lesões intraepiteliais neoplásicas podem progredir mais rapidamente devido à imaturidade da cérvix (CARNEIRO et al., 2004; SARIAN et al., 2003; BRINGHENTI et al., 2001; UTAGAWA et al., 2000). Naud et al. (2000) citam que as taxas de incidência da infecção pelo HPV podem alcançar cerca de 30% a 40% em pacientes abaixo de 20 anos; depois dos 35 anos, a prevalência diminui para cerca de 10% e a infecção pelo HPV de alto risco para cerca de 5%; enquanto a infecção pelo HPV diminui com a idade, a incidência de câncer cervical aumenta. Na população em geral, a prevalência da infecção pelo HPV está entre 0,5% a 2,5% com múltiplas variações regionais (BRINGHENTI et al., 2001). Estudos apontam uma prevalência de 93% de HPV em lesão cancerosa invasiva (CARNEIRO et al., 2004). O HPV na gênese do câncer do uterino Os vírus, associados a substâncias químicas e radiação, parecem ser as causa de câncer (DOBO et al., 2002; NOVAES et al., 2002). A ação carcinogênica viral associa-se às alterações genéticas nos processos de controle do ciclo celular e da diferenciação celular. Nas células cancerosas o controle genético é falho e elas se reproduzem descontroladamente, formando um tumor; ao contrário das células normais que durante o processo natural do ciclo vital replicam, diferenciam-se em vários tipos e então morrem. Segundo Bagarelli e Oliane (2004) e Alvarenga et al. (2000), quando o HPV infecta a célula, pode haver interação do seu genoma ao da célula hospedeira imatura, impedindo a diferenciação e maturação celular. A célula transformada contém o DNA viral. Infecção persistente por 10 a 20 anos permite o desenvolvimento de alterações genéticas adicionais e progressão de lesões de baixo, moderado e alto grau para câncer invasor. 8 Novaes et al. (2002) relatam que o resultado da inserção do vírus ao genoma celular é a imortalização das células, ou seja, estas células adquirem a capacidade de reprodução contínua e com número de vezes teoricamente indefinido. Em estudos utilizando técnicas de mensuração viral foi confirmado que determinados tipos de HPV são a causa central do desenvolvimento do câncer cervical e seus precursores (BIGIO et al., 2002). Métodos de diagnóstico de HPV e do câncer do colo do útero A prevenção e o diagnóstico precoce constituem as formas ideais para reduzir a morbidade e a mortalidade decorrentes das neoplasias do colo uterino, sobretudo nos países em desenvolvimento (SEBASTIÃO et al., 2004, p. 431). Naud et al. (2000) e Alvarenga et al. (2000) descrevem vários métodos de diagnóstico para a infecção por HPV, desde o diagnóstico clínico até os de biologia molecular, sendo que estes são utilizados para identificação dos diferentes tipos de HPV em lesões subclínicas e até em estados latentes da infecção. O exame citopatológico (Papanicolaou) é um método muito útil e difundido mundialmente no rastreamento do câncer do colo uterino (LAPIN et al., 2000; BRINGHENTI et al., 2001), e é considerado como a melhor estratégia de Saúde Pública para detecção de lesões pré- neoplásicas e neoplásicas (KANESHIMA et al., 2001; JORDÃO et al., 2003), além de ser um dos recursos mais importantes já disponibilizados em medicina preventiva, tendo contribuído em muito para a redução da mortalidade por câncer do colo do útero em alguns países (CARNEIRO et al., 2004; CORDEIRO et al., 2005). Porém, muitos autores (LAPIN et al., 2000; NETO et al., 2000; BRINGHENTI et al., 2001; BIJO et al., 2002; JORDÃO et al., 2003; KANESHIMA et al., 2003; CARNEIRO et al., 2004; GONTIJO et al., 2004; CORDEIRO et al., 2005) citam vários problemas, como limitações e casos de falso-negativos (baixa sensibilidade) e falso-positivos (baixa especificidade) no uso do método, principalmente em países em desenvolvimento. Com isto, tem-se estudado a introdução de métodos de biologia molecular para detectar as mulheres com maior risco para lesões cervicais mais graves ou para auxiliar no diagnóstico e tratamento daquelas com anormalidades de baixo grau ou diagnóstico impreciso (LAPIN et al., 2000; NETO et al., 2000; YAMAMOTO et al., 2002; BIGIO et al., 2002; DOBO et al., 2002; BAGARELLI; 9 OLIANI, 2004). A eficiência e a conveniência deste método levam muitos a considerarem seriamente sua utilização em programas de prevenção do câncer cervical, até mesmo com potencial para substituir a triagem citológica. Seu papel, entretanto, ainda está por ser definido (CARNEIRO et al., 2005). Kaneshima et al. (2001) e Bigio et al. (2002) acrescentam que os testes de biologia molecular, dentre os quais a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) que é o método mais sensível, tornam as decisões na conduta clínica mais fáceis, baseando-as em critérios objetivos, ao invés de critérios morfológicos e colposcopia arbitrárias. Vários estudos e o FDA (Food and Drug Administration), órgão do governo dos Estados Unidos que fiscaliza alimentos e medicamentos, aconselham a captura híbrida para pesquisa do HPV juntamente com o exame Papanicolaou para o rastreamento primário de câncer do colo em mulheres acima de 30 anos (NICOLAU, 2003). O autor enfatiza que as pesquisas devem continuar na busca de métodos diagnósticos mais sensíveis e de menor custo, para dar cobertura a toda a população feminina susceptível e de risco. A inspeção visual do colo uterino, após aplicação de ácido acético, é sugerida por Carneiro et al. (2004), Gontijo et al. (2004) e Cordeiro et al. (2005) como método de rastreio alternativo para auxiliar na triagem do câncer cervical, com a finalidade de diminuir o número de falso-negativo pela citologia, principalmente em regiões com baixos recursos financeiros. É um método simples, de fácil aprendizado, rápido, sensível, de baixo custo, tem resultado imediato e pode ser realizado por pessoal de saúde não-médico, reduzindo os custos com mão de obra–especializada e ampliando a cobertura da população de alto risco. Discordância do diagnóstico de ASCUS/AGUS O Sistema Bethesda (TBS) foi criado para eliminar a confusão de diagnóstico, reduzir erros da CO e exames excessivos e desnecessários, pois traz um sistema de terminologia da citologia padronizada e simplificada, introduzindo os termos citológicos de lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LSIL) e lesão intraepitelial escamosa de alto-grau (HSIL). Em 1991, o TBS foi revisto e um nova classe foi criada, a da ASCUS (células escamosas atípicas de significado indeterminado). Porém, não houve redução dos falsopositivos com a introdução da nova terminologia (BIGIO et al., 2002). 10 Neto et al. (2000) e Kaneshima et al. (2001), citam que de 10% a 15% e 10% a 39%, respectivamente, das pacientes com diagnóstico de ASCUS tenham na verdade lesões de alto grau (NIC 2 ou 3) ou câncer, e que essas mulheres deveriam ser submetidas a exames complementares e testes biomoleculares para se excluir a presença de alterações mais importantes. Segundo Sebastião et al. (2004), devido às discordâncias no diagnóstico de ASCUS e AGUS (células glandulares atípicas de significado indeterminado) por múltiplos fatores como formação profissional, vários programas de prevenção do câncer do colo do útero em todo mundo começaram a utilizar programas de controle para garantir a credibilidade dos exames citopatológicos. Sugerem que, diante de dúvida diagnóstica, há a necessidade de consulta interpatologista como tentativa de maior asseguramento quanto ao controle de qualidade do diagnóstico e a diminuição da taxa de erros, que podem acarretar em tratamento clínico inadequado. Acrescentam também que o bom relacionamento e o entrosamento entre o ginecologista e o patologista contribuem para a melhora do diagnóstico. Importância da prevenção e do diagnóstico precoce De acordo com o INCA (2006), o câncer do colo do útero é o que apresenta um dos mais altos potenciais de prevenção e cura, chegando perto de 100%, quando diagnosticado precocemente. O conceito mais amplo de prevenção significa reduzir a mortalidade causada por determinada doença. Na prática, compreende ações que evitam que ela ocorra, que permitam detectá-la antes que se manifeste clinicamente e que reduzam os efeitos mórbidos quando a mesma já está instalada (NETO et al., 2000, p.39). O autor relata ser necessário constante informação para a população dos fatores de risco que estão associados ao HPV, em especial aqueles relacionados com o comportamento sexual; que municípios implementem programas permanentes e definam estratégias para aumento da cobertura dos exames citológicos periódicos e cita o Programa Saúde da Família como estratégia. Utagawa et al. (2000) reforçam a importância dos Programas de Prevenção do Câncer Ginecológico, entre eles a educação sexual para adolescentes, devido ao aumento progressivo de casos de lesões de baixo grau neste grupo. Alvarenga et al. (2000) e Nicolau 11 (2003) também citam as ações em saúde sexual para efetivar medidas de prevenção de infecção pelo HPV e para coibir infecções recorrentes. Segundo Gontijo et al. (2004), se a qualidade e a cobertura do rastreamento e seguimento forem altos, a incidência do câncer cervical pode ser reduzida em até 80%. Abordagens terapêuticas Nenhum tratamento erradica o HPV (NAUD et al., 2000; YAMAMOTO et al., 2002). Naud et al. (2000) esclarecem que o objetivo do tratamento é a remoção da lesão, a melhora clínica e evitar a transmissão do vírus. Não existe tratamento ideal, mas os autores apresentam alternativas de tratamento para lesões clínicas e sub-clínicas. Lapim et al. (2000) sugerem que lesões cervicais HPV induzidas de baixo grau (HPV/NIC 1) não necessitam de propedêutica e tratamentos agressivos e orienta repetir a coleta em 6 meses. Já as mulheres com NIC 2 e 3 deveriam ser adequadamente tratadas pelo alto risco de transformação para lesão cancerosa invasiva. Alvarenga et al. (2000) registram a urgente necessidade de tratar o parceiro sexual das mulheres, vez que, quando este é acometido pelo HPV, se constitui em fonte de transmissão, de recidivas ou de resistência ao tratamento. Já Nicolau (2003) relata que em relação ao parceiro, para o casal constituído, ainda não está clara quando investigar ou tratar a doença, especialmente quando subclínica. As evidências demonstram que a história natural da doença parece ter seu curso independente em cada um dos parceiros e não há risco de reinfecção. A vacina anti-HPV constitui uma das maiores vitórias já conseguidas na luta contra o câncer. No dia 08 de junho de 2006, o FDA dos Estados Unidos aprovou a liberação de uma vacina contra o HPV para ser aplicado em mulheres entre 9 e 26 anos de idade e que nunca tiveram contato com o HPV . O produto do laboratório fabricante Merck Sharp & Dohme, com o nome comercial Gardasil, foi testado em vários países, inclusive no Brasil. A proteção das mulheres que receberam as doses foi de 100% (Agência FAPESP, 2006). A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deverá aprovar o Gardasil até o final do ano de 2006. A vacina é feita de uma partícula semelhante ao HPV, mas sem a informação genética do vírus, aumentando a segurança do produto e protege contra os quatro tipos de vírus (6, 11, 16 e 18) mais comuns na população, reduzindo em 70% os casos de 12 câncer do colo do útero e em 90% os de verrugas genitais; requer três doses para ser eficaz, oferecendo proteção por cerca de 5 anos (INCA, 2006). CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos artigos evidenciou que atualmente é amplamente aceito o HPV como agente etiológico do câncer do colo uterino. Com a introdução da citologia oncótica cérvico-vaginal, houve uma importante redução da morbimortalidade por câncer cervical; porém, essa doença continua sendo um sério problema de saúde, principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil, devido a várias falhas nos programas de prevenção, em que apenas uma pequena parte da população é adequadamente triada. Atualmente, há uma grande preocupação em relação à melhoria do diagnóstico citopatológico. A utilização de técnicas de biologia molecular, baseadas na pesquisa viral, tem surgido como nova possibilidade de diagnóstico precoce; porém, seu papel ainda está por ser definido. Devem-se continuar as pesquisas na busca de métodos diagnósticos mais sensíveis e de menor custo para dar cobertura a toda população feminina. A vacina contra o HPV é um grande avanço, mas é prudente não admitir que essa seja a solução final, pois 30% dos tumores ainda estão descobertos pela vacina; a duração da imunidade é limitada e o custo elevado. O preço anunciado nos Estados Unidos é de US$ 120 cada dose. É de vital importância que os municípios implementem programas permanentes, definam estratégias para o aumento da cobertura dos exames citológicos periódicos, principalmente nos grupos com maior vulnerabilidade social onde se concentram as maiores barreiras de acesso à rede de serviços de saúde; realizem controle de qualidade desses exames e utilizem as ações em saúde sexual para efetivar medidas de prevenção de infecção pelo HPV, principalmente entre adolescentes. REFERÊNCIAS AGÊNCIA FAPESP. Coordenação de Heitor Shimizu. Desenvolvido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Apresenta textos sobre assuntos concernentes à política científica e tecnológica. Disponível em: <http//www.agencia.fapesp.br/boletim_ dentro. php? id=5621>. Acesso em: 27 jun. 2006. ALVARENGA, G. C. et al. Papilomavirus humano e carcinogênese no colo do útero. DST Jornal Brasileiro de Doenças Sexualmente Transmissíveis , v. 12, n. 1, p. 28-38, 2000. BAGARELLI,L, B.; OLIANI, A. H. 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Submissão: maio de 2006 Aprovação: agosto de 2006 1 MOTIVOS REFERIDOS PARA ABANDONO DE TRATAMENTO EM UM SISTEMA PÚBLICO DE ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL Reasons given for dropping out of treatment at a public Mental Health Care Service Mário Sérgio RibeiroI; José Luís da Costa PoçoII I Professor Adjunto de Psiquiatria da UFJF, Coordenador do Laboratório de Pesquisas em Personalidade, Álcool e Drogas da UFJF, Doutor em Filosofia pela UGF II Médico, funcionário da Prefeitura de Juiz de Fora e do Ministério da Saúde, especialista em Clínica Médica e pós-graduado em Saúde da Família Endereço: M. S. Ribeiro - Rua Severino Meireles, 325/902 - CEP 36025-040 - Juiz de Fora – MG E-mail: [email protected] Resumo O presente estudo avalia motivos de abandonos de tratamento em saúde mental em um sistema baseado no modelo da Atenção Primária à Saúde, o Sistema Municipal de Saúde Mental de Juiz de Fora (SMSM-JF). Inicialmente, foram ativamente buscados 224 pacientes referenciados por uma Unidade Saúde e que haviam, anteriormente, abandonado o tratamento. Foram localizados 119 pacientes, e a maioria (67,4%) foi entrevistada em seu domicílio. Dentre 113 pacientes e/ou responsáveis em condições de informar, 57,5% afirmaram não ter voltado a procurar atendimento em saúde mental. Entre os que retomaram tratamento, 33,3% voltaram ao SMSM-JF e 15,2% buscaram outros serviços ou especialistas do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre os motivos de abandono, cerca de 35% referiram que obtiveram melhora e/ou que o tratamento não seria mais necessário, enquanto 19% consideraram que o tratamento fora inadequado ou ineficaz. Solicitados a sugerir melhorias, houve 57 sugestões pertinentes, 49 (86%) indicando a necessidade de facilitar o acesso ao atendimento. Os resultados apontam para desejáveis e possíveis modificações estruturais do SMSM-JF e reforçam a importância de um acompanhamento mais próximo daqueles usuários que não comparecem às consultas agendadas. Palavras-chave: Saúde Mental. Serviços de Saúde Mental. Abandono de Tratamento. Motivos para Abandono de Tratamento. Abstract The present paper evaluates the reasons for treatment dropout in a Public Mental Health System (SMSM-JF) based on Primary Care in Juiz de Fora, Brazil. Initially, 2 researchers tried to locate 224 patients who had been referred by a Primary Care Unit and had previously abandoned treatment. 119 patients were located and most (67.4%) were interviewed at home. Of 113 patients and/or persons responsible for the patients who were able to respond, 57.5% admitted they were no longer seeking mental health care. Of those who resumed treatment, 33.3% went back to SMSM-JF and 15.2% went for non-mental health public services in the same city. The reasons for attrition included mental improvement and/or the evaluation that treatment was no longer necessary (35%) and the understanding that treatment did not suit patients’ needs (19%). When asked for suggestions to improve SMSMJF, 86% of the pertinent answers indicated the need to facilitate access to care. The results point to possible and desirable structural modifications to the SMSM-JF and stress the relevance of a closer follow-up of those individuals who do not show up for regular appointments. Key words: Mental Health. Mental Health Services. Treatment Dropout. Reasons for Treatment Dropout. Introdução Os sistemas de saúde mental vêm sendo reformados em diversos países, com ênfase na desinstitucionalização e no desenvolvimento de serviços com base na comunidade e integrados ao sistema geral de saúde. O Relatório sobre a Saúde no Mundo 2001 (WHO, 2001), especificamente focado na saúde mental, ressalta que o controle e tratamento dos transtornos mentais, no contexto da atenção primária, são fundamentais para que um maior número de pessoas obtenha acesso mais fácil e rápido aos serviços, melhorando a atenção e diminuindo desperdícios por investigações desnecessárias e tratamentos inespecíficos ou inapropriados. Starfield (2002) conceitua a Atenção Primária à Saúde como aquele nível de um sistema de serviços que oferece a entrada neste sistema para todas as necessidades e problemas de saúde, fornece atenção sobre a pessoa (não direcionada para a enfermidade) no decorrer do tempo, fornece atenção para todas as condições, exceto as muito incomuns ou raras, e coordena ou integra a ação fornecida em algum outro lugar ou por terceiros. A mesma autora, ao analisar as características da atenção referenciada a outros níveis identifica duas modalidades de atenção: por consultoria (curta duração) ou por encaminhamento (longa duração). 3 Especificamente em relação à saúde mental, Gask e Croft (2000) relacionam três modelos para atender as necessidades de atenção à saúde mental na atenção primária. No modelo substitutivo, o psiquiatra ou outro profissional de saúde mental torna-se o responsável pelo primeiro contato, por exemplo, em centros comunitários de saúde mental. No modelo de “aumento de fluxo”, os médicos generalistas são encorajados a aumentar a referência. Finalmente, no modelo de “consultoria-ligação”, os profissionais de saúde mental deixam o serviço especializado e tentam estabelecer ligação com os generalistas na comunidade. A estratégia de consultoria-ligação pode adquirir diversos formatos, que diferem entre si em função da intensidade do contato direto entre o paciente e os profissionais de saúde mental. Ao se avaliar programas ou sistemas de atenção à saúde, deve-se verificar se as metas estabelecidas pelos gestores foram atingidas e se as necessidades da população estão sendo atendidas. A avaliação de programas de atenção primária compreende, entre outros aspectos fundamentais, a qualidade clínica da atenção. As informações referentes aos processos e resultados da atenção podem ser obtidas nos prontuários, por observação, por entrevistas com os pacientes ou utilizando-se atores atuando como “pacientes simulados” (STARFIELD, 2002). Conforme sugerido por Hermann (2000), no terreno da saúde mental, a monitorização da atenção depende do desenvolvimento de “medidas de qualidade” que possam avaliar o atendimento e dar apoio às atividades do serviço. Ao rever as metodologias e estratégias de pesquisa para avaliação de serviços de atenção em saúde mental, Vasconcelos (1995) sugere a utilização da combinação de métodos quantitativos e qualitativos, recomendando os estudos de caso, ou estudos de casos comparados, como os mais apropriados, particularmente aqueles de corte longitudinal. A maior parte da pesquisa sobre modelos cooperativos de atenção à saúde mental no nível primário é descritiva (CRAVEN; BLAND, 2002). Para uma adequada enunciação das políticas para a atenção primária à saúde, há necessidade de criação de sistemas de informação que contenham dados coletados de maneira rotineira e uniforme nos serviços; ou de levantamentos sistemáticos de amostras da comunidade ou das unidades de saúde (STARFIELD, 2002). Administradores e planejadores no campo da saúde devem ter em mente o conceito de necessidade de atenção à saúde, sabendo converter os dados sobre os estados de saúde e condutas adotadas em medidas de necessidades e necessidades insatisfeitas, em termos atuais e futuros (DONABEDIAN, 1989). A avaliação dessas necessidades e dos resultados obtidos pelos pacientes incluídos em sistemas de saúde é fundamental para melhorar a efetividade dos programas (ALMEIDA; XAVIER, 1995). Todavia, tendo em vista as altas taxas de abandono de tratamento freqüentemente encontradas em programas de saúde mental, podem ocorrer distorções 4 importantes, se não forem incluídas informações sobre os pacientes que não se mantiveram em tratamento (YOUNG, 2000). Deve-se estar atento à mensuração das taxas de abandono e de rejeição, pois a intervenção deve ser considerada ineficaz se a população a considera inaceitável e a rejeita (PERKINS, 2001). A pesquisa de fatores associados ao abandono de tratamento em saúde mental em diferentes sistemas de saúde é freqüentemente realizada retrospectivamente, com base em dados de prontuários ou sistemas de informação (FUCIEC, 2003; HERINCKX, 1997; MELO; GUIMARÃES, 2005; PERCUDANI, 2002; ROSSI, 2002). Há poucos estudos de seguimento, com busca ativa e entrevista dos pacientes que abandonaram o tratamento (EDLUND, 2002; YOUNG, 2000). Este trabalho tem por objetivo avaliar os motivos de abandono de tratamento em saúde mental em um sistema de referência e contra-referência, pesquisar eventuais alternativas de tratamento utilizadas pelos pacientes e coletar, junto aos usuários, sugestões de melhorias para o processo de atendimento. Metodologia Contextualização da Pesquisa A partir de 1997, iniciou-se em Juiz de Fora a estruturação do Sistema Municipal de Saúde Mental (SMSM-JF), reorganizando a assistência à saúde mental e inserindo-a nas atribuições do nível primário de atenção, em um modelo hierarquizado, descentralizado e regionalizado (RIBEIRO, 2003). Nessa nova dinâmica, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) deixaram de ser apenas encaminhadoras de pacientes, passando a funcionar como primeira instância de diagnóstico e tratamento, fazendo também a seleção dos usuários que necessitam ser referenciados aos especialistas nos Centros Regionais de Referência em Saúde Mental (CRRESAM) e mantendo o tratamento dos pacientes contra-referenciados. Cada CRRESAM tem de 3 a 5 UBS´s sob sua responsabilidade e seus técnicos, após confirmar, modificar ou estabelecer diagnóstico e tratamento inicial, contra-referenciam os pacientes para a UBS de origem, com as orientações quanto ao tratamento a ser mantido, ou os encaminham para tratamento em Programas Especiais (PROESAM), específicos para cada grupo de transtornos mentais (RIBEIRO, 2000). A UBS São Pedro foi incluída no SMSM-JF desde o início do processo de reformulação da assistência, em setembro de 1997, fazendo parte do projeto piloto implantado na região oeste da cidade. O primeiro estudo que avaliou, a partir do nível primário, o processo de atendimento no SMSM-JF — daqui por diante identificado como Estudo de Referência (POÇO; AMARAL, 2005) — analisou os prontuários de 356 pacientes maiores de 5 12 anos incluídos pela UBS São Pedro no SMSM-JF, entre setembro de 1997 e maio de 2001. O elevado índice de abandonos de tratamento encontrado (226, ou 63,5%) indicava a necessidade de uma investigação específica que pudesse contribuir para melhorar a adesão ao tratamento. Abandono de tratamento foi então definido como a interrupção de tratamento por 3 ou mais meses, sem alta médica ou contra-referência, tomando-se o mês de novembro de 2001 como referência para a identificação dos abandonos. Desenho da Pesquisa Trata-se de um estudo de tipo corte transversal, tomando por base 226 pacientes que foram considerados como em abandono de tratamento — isto é, que interromperam unilateralmente seu processo de tratamento. Destes 226 sujeitos, foram excluídos 2 pacientes cujos prontuários não continham endereço ou telefone. Os 224 usuários localizáveis foram considerados como Grupo de Referência para o estudo. Os diagnósticos e as datas de inclusão no SMSM-JF foram obtidos a partir do banco de dados do Estudo de Referência (POÇO; AMARAL, 2005). Foi utilizado o diagnóstico formulado na UBS, já que uma parte dos pacientes abandonou o tratamento antes de ter o diagnóstico confirmado ou modificado pela equipe do CRRESAM. Este estudo, iniciado como um processo de avaliação institucional, obedece aos padrões normativos de manutenção do sigilo e confidencialidade, e à Declaração de Helsinki, apresentando-se apenas os dados agregados. Com o objetivo de avaliar os motivos de abandono do tratamento em saúde mental, procedeu-se a um processo de “busca ativa”, isto é, uma tentativa de contato por visita domiciliar ou por telefone dos pacientes que haviam abandonado o tratamento — ou de seus familiares ou responsáveis. Uma vez localizados, eram entrevistados por meio de um questionário com 3 perguntas abertas, em que pacientes, familiares ou responsáveis eram solicitados a informar: 1- os motivos do abandono; 2- a eventual manutenção, após o abandono, de tratamento em saúde mental em outros serviços; 3- sugestões de modificações no processo de atendimento que pudessem facilitar sua adesão ao tratamento no SMSM-JF. As entrevistas foram realizadas, entre abril e agosto de 2003, por uma estagiária — bolsista do Departamento de Saúde Mental do SUS-JF — da Faculdade de Administração da UFJF, evitando-se assim o viés que poderia ocorrer caso a coleta dos dados fosse feita por participantes do processo de atendimento. A entrevistadora foi orientada a registrar as respostas de forma literal, sem interpretações pessoais. Dentre os 224 usuários localizáveis, 174 haviam informado, além do endereço domiciliar, um número de telefone, próprio ou de terceiros, para contato. Visando, 6 secundariamente, comparar a efetividade das duas formas de busca ativa dos pacientes faltosos, esse contingente de pacientes com endereço e telefone foi dividido em dois subgrupos em relação à forma inicial de busca ativa: cerca de 50% (88) foram designados para entrevista telefônica e, para os demais 86 pacientes, foi programada a entrevista em visita domiciliar. A separação dos dois subgrupos de busca foi feita de forma aleatória, seguindo alternadamente a ordem de inclusão no banco de dados do grupo inicial de referência, que por sua vez fora determinada pela seqüência de localização dos prontuários no arquivo da UBS. Obviamente, todos os outros 50 pacientes que não haviam informado telefone, ou seja, aqueles em que a única forma de localização era o endereço residencial, foram designados para entrevista domiciliar. Em ambas as formas de busca foram feitas até três tentativas de contato, em diferentes horários e dias da semana. Quando o paciente não era localizado sob a forma de contato inicialmente programada, buscava-se a outra alternativa: assim sendo, os usuários programados para entrevista telefônica, e não localizados, foram visitados em seus endereços; e aqueles programados para entrevista domiciliar, e também não localizados, mas que haviam informado algum telefone, foram procurados por telefone. Note-se que todos os pacientes designados para entrevista telefônica tinham endereço informado e apenas 63,23% dos pacientes programados para entrevista domiciliar haviam indicado telefone de contato. A análise das respostas aos questionários obedeceu a uma adaptação da técnica de Análise de Conteúdo Temática-Estrutural (MINAYO, 2000; TURATO, 2003), mantida em duas fases distintas. A partir das respostas abertas, fornecidas pelos pacientes ou familiares/responsáveis, a estagiária fez uma transcrição inicial das respostas para o banco de dados, na qual se limitava a digitar o aspecto substantivo das respostas. Em seguida, os pesquisadores procederam à categorização das respostas. Realizou-se, então, a verificação das freqüências de respostas nas categorias identificadas. Na consolidação do banco de dados, tratamento estatístico dos resultados e confecção das tabelas foi utilizado o "software" EPI-INFO, versão 2000. Os métodos estatísticos de avaliação de significância, conforme indicado pelo próprio programa, são informados na apresentação dos resultados. Resultados A composição do grupo de referência é apresentada na Tabela 1. 7 Tabela 1 - Distribuição de diagnósticos de transtornos mentais, por sexo e idade, em pacientes atendidos na UBS São Pedro, entre setembro/1997 e maio/2001, que abandonaram tratamento (n = 224) Transt. Afetivos N % Gênero Feminino Masculino Faixa Etária 12-19 20-29 30-39 40-49 50-59 60 ou + Transt. Transt. Transt. Transt. Sub Não Total Ansiedade Orgânicos Psicóticos Psicoativa Registrado N % N % N % N % N % N % 40 15 72,7 27,3 53 34 60,9 39,1 2 1 66,7 33,3 8 9 47,1 52,9 25 30 45,5 54,5 5 2 71,4 133 59,4 28,6 91 40,6 4 13 16 6 10 6 7,3 23,6 29,1 10,9 18,2 10,9 9 19 30 16 8 5 10,3 21,8 34,5 18,4 9,2 5,7 0 2 0 1 0 0 0 66,7 0 33,3 0 0 3 1 4 6 2 1 17,6 5,9 23,5 35,3 11,8 5,9 4 9 17 17 5 3 7,3 16,4 30,9 30,9 9,1 5,5 1 1 3 1 1 0 14,3 14,3 42,9 14,3 14,3 0 21 45 70 47 26 15 9,4 20,1 31,3 21,0 11,6 6,7 O endereço domiciliar apresentou-se como forma de contato inicial mais confiável que o telefone. De forma estatisticamente significativa (p= 0,0001, pelo Teste do χ²) observou-se mais substituições no grupo originalmente programado para contato telefônico (52,3%) do que no grupo designado para contato por visita domiciliar (22,8%) (Tabela 2). Diversamente, entre os pacientes localizados e entrevistados, os contatos foram, significativamente (p=0,019 pelo χ²), realizados em maior proporção por via telefônica (Tabela 3). Tabela 2 – Formas de contato inicialmente programadas e efetivamente realizadas (n=224) Formas de contato Domiciliar Telefônico Total Inicialmente Programado Freq % Efetivamente Realizado Domiciliar Telefônico Freq % Freq % 60,7 105 136 39,4 88 46 100 224 151 (p = 0,0001, pelo χ²) 77,2 31 52,3 67,4 42 73 22,8 47,7 32,6 Dos 224 pacientes buscados, 105 não foram localizados, compreendendo 23 casos de mudança de endereço (informada geralmente por vizinhos ou novos moradores do exdomicilio); 34 casos em que o endereço e/ou telefone constantes nos prontuários estavam aparentemente incorretos, uma vez que os pacientes não eram conhecidos pelas pessoas contatadas; e ainda 48 situações em que a entrevistadora atingiu o número limite de tentativas sem conseguir contato com o paciente ou algum familiar ou responsável. Foram, portanto, localizados e entrevistados 119 pacientes ou seus familiares/responsáveis. A forma final de contato para a entrevista parece ter influenciado, de forma significativa, a possibilidade de sua realização (p=0,019 pelo χ²), conforme acima mencionado. O índice de entrevistados 8 manteve-se em torno de 50% para a maioria dos diagnósticos. As exceções significativas foram os portadores de Transtornos Psicóticos, com índice de entrevistados de 76,5% (p=0,045, pelo Teste do χ²) e os casos de Transtornos Mentais Orgânicos, em que todos os 3 pacientes foram entrevistados (p=0,148, pelo Teste de Fisher). As idades-médias, máxima, mínima e desvio-padrão foram bastante próximos nos dois subgrupos, isto é, de entrevistados e não-entrevistados. Ao contrário do que poderia ser esperado, não houve maior dificuldade de localização dos usuários com mais tempo de inclusão (e, provavelmente, de abandono). Deve ser ressalvado que não dispomos de uma data de abandono nos registros dos usuários e optamos por utilizar a data de inclusão no SMSM-JF como forma de distribuir os usuários ao longo do período estudado (Tabela 3). A rigor, pode-se afirmar que o subgrupo de pacientes entrevistados, exceto por parâmetros diagnósticos, é bastante semelhante ao de nãoentrevistados. Tabela 3 – Distribuição, por formato da entrevista, diagnóstico, idade média, gênero e ano de inclusão no SMSM, dos pacientes entrevistados e não-entrevistados ENTREVISTADOS (n= 119) ENTREVISTA ADOTADA (formato final) * Domiciliar Telefônica DIAGNÓSTICO Transt. Afetivo/de Humor Transt. Ansiedade/Neurótico Transt. Mental Orgânico ** Transt. Psicótico/Delirante *** Transt. Uso Subst. Psicoativa Não Registrado IDADE Média Mínima Máxima Desvio-Padrão GÊNERO Masculino Feminino ANO DE INCLUSÃO 1997 1998 1999 2000 2001 NÃOENTREVISTADOS (n= 105) Freq % Freq % 72 47 47,7 64,4 79 26 32 44 3 13 24 3 58,2 50,6 100 76,5 43,6 42,9 23 43 0 4 31 4 36,7 12 74 13,7 TOTAL (n= 224) Freq % 52,3 35,6 151 73 67,4 32,6 41,8 49,4 0 23,5 56,4 57,1 55 87 3 17 55 7 24,6 38,8 1,3 7,6 24,6 3,1 37,5 13 76 13,2 37,1 12 76 13,4 45 74 37,8 62,2 46 59 43,8 56,2 91 133 40,6 59,4 16 33 39 25 6 57,1 48,5 57,4 51,0 54,5 12 35 29 24 5 42,9 51,5 42,6 49,0 45,5 28 68 68 49 11 12,5 30,4 30,4 21,9 4,9 * (p=0,019 pelo χ2); ** (p= 0,148 pelo Fisher); *** (p= 0,045 pelo χ2) 9 Por motivos diversos, desde estados de desorientação — tanto de pacientes como de familiares — até informantes que nada sabiam sobre pacientes que não mais residiam no endereço fornecido, as informações relativas a 6 pacientes incluídos entre os localizados não foram consideradas nas análises que se seguem. Das 113 entrevistas efetivamente analisadas, 82 (72,6%) foram feitas com o próprio paciente e as outras 31 (27,4%) com familiares ou responsáveis. As respostas obtidas quanto às motivações para o abandono, às alternativas de tratamento utilizadas e às sugestões de melhorias para o SMSM-JF são apresentadas na Tabela 4. Tabela 4 - Motivos de Abandono, Alternativas de Tratamento e Sugestões de Melhorias Conjuntos de respostas Freq %(*) Motivo do Abandono Sem informações/ não recorda 29 25,6 ( - ) Falecido ou desaparecido 6 5,3 ( - ) Mudança de domicílio 3 2,7 ( - ) Obteve melhora/ tratamento não mais necessário 26 23 (34,7) O tratamento não foi adequado/eficaz 14 12,3 (18,7) Falta de tempo/coincidência com horário de trabalho 9 8 (12) Recusa ou desinteresse pelo tratamento 7 6,2 (9,3) Recebeu encaminhamento médico para outro local 7 6,2 (9,3) Problemas de saúde (próprios ou de familiares) 5 4,4 (6,7) Dificuldade para marcação das consultas 3 2,7 (4) Inadaptação aos profissionais 3 2,7 (4) Não se considerava doente 1 0,9 (1,3) Total 113 100 (100) Alternativas de Tratamento Utilizadas Sem informações/ não recorda 15 13,3 ( - ) Não voltou a procurar atendimento em saúde mental 65 57,5 (66,3) Voltou a tratar-se no SMSM-JF 11 9,7 (11,2) Outros serviços/especialidades do SUS em JF 5 4,4 (5,1) Serviços ambulatoriais conveniados/particulares fora do SUS 5 4,4 (5,1) Serviços ambulatoriais filantrópicos 4 3,5 (4,1) Serviços de outros municípios 3 2,7 (3,1) Solução religiosa e outras 3 2,7 (3,1) Internação psiquiátrica 2 1,8 (2) Total 113 100 (100) Sugestões de Melhorias Sem sugestões ou sugestões não-relacionadas ao SMSM-JF 56 49,5 ( - ) Facilitar/agilizar o acesso ao atendimento 49 43,4 (86) Melhorar o processo de atendimento 8 7,1 (14) Total 113 100 (100) * os percentuais entre parênteses se referem às respostas consideradas pertinentes à questão formulada. Cerca de 26% dos pacientes ou informantes não se recordavam do motivo do abandono e 3% interromperam o tratamento por mudanças de domicílio. Foram informados 1 desaparecimento, 1 suicídio, e 4 óbitos por outras causas. O desaparecimento foi de um rapaz 10 de 17 anos com diagnóstico de Transtorno por Uso de Substâncias Psicoativas e o suicídio — ocorrido durante internação psiquiátrica, segundo relato da família aos técnicos da UBS — foi de uma mulher de 38 anos, alcoolista. Dos que responderam de forma pertinente à pergunta, cerca de 35% referiram que obtiveram melhora e/ou que o tratamento não seria mais necessário, enquanto que cerca de 19% consideraram que o tratamento não teria sido adequado ou eficaz. Quanto às alternativas de tratamento utilizadas após o abandono no SMSM-JF, 15 dos entrevistados não souberam informar. Entre os que responderam, a maior parte (65, ou 66,3%) não voltou a procurar atendimento em saúde mental, enquanto os 33,7% restantes voltaram a se tratar, no próprio SMSM-JF (11,2%) ou em outros serviços (Tabela 4). Curiosamente, entre os que relataram ter voltado a procurar tratamento em saúde mental, estavam oito pacientes que disseram haver interrompido o tratamento por considerá-lo desnecessário, conforme foi possível observar através do cruzamento de respostas. Da mesma forma, dos quatorze usuários que informaram ter abandonado o tratamento por considerá-lo inadequado ou ineficaz, apenas um voltou a buscar tratamento no SMSM-JF e quatro voltaram a tratar-se em outros locais. Os três pacientes cujo motivo de abandono foi a inadaptação aos profissionais não retomaram tratamento em saúde mental. Quando solicitados a dar sugestões de providências que facilitariam a sua permanência em tratamento no SMSM-JF, cerca de 50% dos entrevistados não fizeram sugestões ou se referiram a aspectos não-relacionados ao atendimento em saúde mental, tais como aumentar o número de ginecologistas ou implantar atendimento odontológico na UBS, etc... Restaram 57 sujeitos que apresentaram sugestões pertinentes, isto é, diretamente relacionadas à dinâmica assistencial. Destes, 49 entrevistados (86%) apontaram a necessidade de facilitar o acesso ao atendimento, seja agilizando a marcação de consultas, ampliando o horário de atendimento ou aumentando o número de médicos disponíveis; 8 (14%) sugeriram melhorias no processo de atendimento, seja por maior oferta de medicamentos (6 usuários), seja por terapias mais individualizadas ou demoradas (2). Como é próprio da metodologia utilizada, a terminologia empregada pelos pacientes trouxe algumas dificuldades à categorização das respostas: foram registradas onze sugestões de “atendimento mais rápido”, que foram interpretadas como relacionadas ao acesso ao atendimento; mas é possível, apesar de pouco provável, que alguns dos respondentes estivessem sugerindo consultas mais breves, com menor tempo de contato entre o profissional e o paciente. 11 Discussão A definição de abandono de tratamento em saúde mental não é tarefa simples. Não há uma padronização entre diversos estudos que abordam o tema (AMARAL, 1997; EDLUND, 2002; FUCIEC et al., 2003; ISERHARD; FREITAS, 1993; MELO; GUIMARÃES, 2005; PERCUDANI et al., 2002; ROSSI et al., 2002; TORRES; CERQUEIRA, 1992; YOUNG et al., 2000): o critério utilizado pode variar desde a falta a uma consulta (PERCUDANI et al., 2002) até a ausência por período superior a um ano (ROSSI et al., 2002). O indicador de abandono adotado para delimitar a amostra estudada — 3 meses de interrupção indevida ao tratamento — é semelhante ao adotado por Fuciec et al (2003). Se levarmos em conta o lapso de tempo decorrido entre os abandonos de tratamento e a busca ativa dos pacientes, que, no grupo estudado, pode ter sido de até 6 anos — pacientes incluídos entre 1997 e 2001, e busca ativa para as entrevistas, realizada em 2003 —, podemos considerar satisfatório o índice de localização de 53,13%. O estudo de Young et al. (2000), com desenho similar, atingiu a mesma taxa de localização (53,09%) entre pacientes que haviam abandonado o tratamento há não mais que 3 anos. Killaspy et al. (2000), ao entrevistarem pacientes psiquiátricos que haviam faltado à consulta, obtiveram, após um intervalo de 6 meses, uma taxa de localização de 85,63%; porém, conseguiram entrevistar apenas 55,85% do total. No Estudo de Referência (POÇO; AMARAL, 2005), as psicoses estiveram associadas às menores taxas de abandono de tratamento, confirmando resultados de outros pesquisadores (ISERHARD; FREITAS, 1993; AMARAL, 1997; PERCUDANI et al, 2002). No presente trabalho, os pacientes psicóticos que haviam abandonado o tratamento foram localizados em maior índice que os portadores de outros transtornos. Esse conjunto de achados parece indicar uma menor mobilidade dos portadores desse transtorno, e de suas famílias, em Juiz de Fora. Algumas considerações também devem ser feitas em relação às limitações do estudo. Além das limitações inerentes aos estudos descritivos, em que os resultados encontrados não podem ser diretamente generalizados, podem-se fazer algumas observações acerca das formas de entrevista e do instrumento utilizado para a coleta dos dados. Ao optar-se por separar um grupo para entrevista telefônica e outro para entrevista domiciliar, com o objetivo de avaliar a efetividade das duas formas de acesso aos pacientes, pode ter sido introduzido um pequeno viés de seleção no resultado final, já que apenas uma parte dos pacientes selecionados para entrevista domiciliar tinha informado também telefone para contato, enquanto todos os pacientes selecionados para entrevista telefônica tinham endereço informado, possibilitando uma tentativa posterior de entrevista domiciliar. Todavia, não se pode afirmar, a priori, que tal 12 viés possa, necessariamente, ter influenciado nos achados centrais da pesquisa. A inclusão das respostas fornecidas por parentes ou responsáveis, nos casos em que o paciente não era capaz de responder por si mesmo ou naqueles não localizados diretamente, embora necessária em um estudo de abandonos de tratamento em saúde mental, traz o risco de um viés de relato. Quanto ao instrumento adotado, se, por um lado, a adoção de um questionário aberto diminuiu a possibilidade de viés apriorístico na coleta dos dados, por outro, trouxe algumas dificuldades à interpretação das respostas e sua posterior análise quantitativa. Com a intenção de reduzir a possibilidade desse enviesamento a posteriori, evitou-se uma simplificação excessiva na apresentação dos resultados relativos aos motivos de abandono (nove categorias pertinentes) e às alternativas de tratamento utilizadas após o abandono (oito categorias pertinentes). Cabe aqui citar, como exemplo, o estudo de Killaspy et al. (2000), em uma área de Londres, que relaciona quinze razões apontadas pelos pacientes para o nãocomparecimento à consulta psiquiátrica. Nos limites de nossa busca, não encontramos referências de estudos anteriores, com desenho semelhante, no Brasil. A pesquisa em publicações de língua inglesa, via MEDLINE, também indicou poucos estudos recentes em que são avaliados os motivos, ou razões, relatados pelos pacientes para o abandono de tratamento em saúde mental. No trabalho de Edlund et al. (2002), com uma amostra de pacientes dos EUA e Canadá (Ontário), as razões para o abandono de tratamento foram questionadas apenas como uma forma de triagem, através da apresentação de opções, para que os pacientes escolhessem aquela que se aplicava a seu caso. Os pacientes que relataram a melhora dos sintomas como motivo para a interrupção do tratamento não foram considerados abandonos, para efeito daquele estudo, e não são mencionadas as outras razões indicadas pelos pacientes; tal pesquisa restringiu seus objetivos à identificação de prognosticadores de abandono entre as características sociodemográficas, diagnóstico, atitude dos pacientes em relação ao tratamento em saúde mental e características da terapia recebida. Já a abordagem de Young et al. (2000), ao avaliar o abandono de tratamento em um sistema público de saúde mental na Califórnia, mostra maiores semelhanças com a metodologia que adotamos: os pacientes que abandonaram o tratamento foram procurados e entrevistados quanto aos motivos da interrupção. O cotejamento dos resultados de Young et al. (2000) com os encontrados em Juiz de Fora revelou grandes semelhanças, conforme explicitado a seguir. Nesta pesquisa, cerca de um terço (34,7%) dos entrevistados que informaram o motivo para interromper o acompanhamento disseram tê-lo feito porque haviam melhorado ou porque 13 o tratamento não era mais percebido como necessário. Presumivelmente, muitos desses indivíduos se recuperaram de episódios agudos ou apresentavam sofrimento mental inespecífico e talvez não necessitassem da referência ao nível secundário. O estudo de Young et al. (2000), em que os 47 entrevistados puderam relatar mais de um motivo para o abandono, encontrou percentual semelhante (32%) nessa categoria — ter melhorado ou não mais sentir necessidade de tratamento. Obstáculos ao tratamento — custos, transporte, comorbidades, burocracia — foram apontados por 21% dos entrevistados na Califórnia. Em Juiz de Fora, os obstáculos citados foram dificuldades para marcação de consultas (4%), outros problemas de saúde (6,7%) e falta de tempo/coincidência com horário do trabalho (12%), totalizando 22,7%. Vale ressaltar que é de conhecimento dos pesquisadores o fato de uma parcela de pacientes e familiares fazerem referência, na rotina do atendimento ambulatorial, a dificuldades financeiras para o transporte: é possível que fatores culturais os tenham influenciado a não mencionar este aspecto dentre os motivos de abandono. A inadaptação aos profissionais foi apontada como motivo por 4% dos respondentes em Juiz de Fora e por 30% na Califórnia. Problemas com o tratamento foram citados por 23% dos entrevistados no trabalho norte-americano e foram o motivo de abandono de 18,7% em nossa avaliação. A análise das alternativas de tratamento utilizadas pelos pacientes após o abandono de tratamento no SMSM-JF reforça a percepção de que uma parcela importante desses abandonos poderia indicar a presença de sofrimento mental temporário e/ou inespecífico: sessenta e cinco pacientes (66,3% dos que responderam a esse quesito) não voltaram a procurar atendimento em saúde mental. Entre os 33 pacientes (36,7%) que retomaram tratamento em saúde mental, incluem-se 2 pacientes que relataram internação psiquiátrica após o abandono. No estudo californiano, 39% dos pacientes entrevistados estavam em tratamento de saúde mental por ocasião da entrevista e apenas 2 pacientes (4%) relataram estar em uma “instituição ou programa residencial”. No presente trabalho, a ampla maioria (86%) das sugestões colhidas foi relacionada à melhoria do acesso ao tratamento, indicando que há obstáculos que precisam ser removidos. Pela metodologia adotada, não nos foi possível identificar se as modificações sugeridas — facilitar marcação de consultas, ampliar horário de atendimento, aumentar o staff — se referem ao nível primário (UBS) ou secundário (CRRESAM, PROESAM). Provavelmente, em face das carências existentes, se referiam aos dois níveis. A importância da boa articulação intersetorial já foi ressaltada por outros estudos que avaliaram a atenção à saúde mental na rede básica em nosso país (AMARAL, 1997; MELO; GUIMARÃES, 2005). Craven e Bland (2002), em sua extensa revisão sobre a “atenção à 14 saúde mental compartilhada” em países de língua inglesa, também destacam esse aspecto e apontam o caráter fundamental, na determinação das políticas de serviço, de uma avaliação adequada das necessidades de atenção e recursos locais a fim de se obter um equilíbrio apropriado entre a atenção dedicada aos pacientes com doença mental grave — menos numerosos — e a que é dirigida aos casos mais leves, porém mais freqüentes. Apesar de os conceitos e práticas nem sempre serem suficientemente definidos, autores têm sugerido que a implementação do gerenciamento de casos em serviços de saúde mental — sob a forma de tratamento comunitário assertivo ou sob a forma de gerenciamento clínico de casos — tem obtido sucesso na redução dos abandonos de tratamento (CRUZ et al., 2001; HERINCKX et al., 1997; ZIGURAS et al., 2000). Considerações Finais Os achados obtidos em nossa avaliação apontam para desejáveis e possíveis modificações estruturais do SMSM-JF e reforçam a importância de um acompanhamento mais próximo daqueles usuários que não comparecem às consultas regularmente agendadas. Em Juiz de Fora, algumas iniciativas nesse sentido já estão em discussão, entre as quais ressalta-se a criação de Grupos de Apoio Psico-social (GAPS) nas UBS's, que visa, entre outros objetivos, melhorar a adesão dos usuários ao tratamento em saúde mental (RIBEIRO; HECKERT, 2005). Os resultados desta pesquisa, bem como a pequena disponibilidade — especialmente em nosso meio e com o desenho empregado — de estudos que abordem fatores relacionados ao abandono de tratamento, em saúde mental ou mesmo enfocando outros problemas crônicos de saúde, sugerem também a necessidade de que estudos desta natureza sejam desenvolvidos, a fim de fundamentar uma prática assistencial de maior efetividade. Agradecimento Os autores agradecem a colaboração da administradora Lilian Lima Quintão, graduanda à época da pesquisa, que, diligentemente, localizou e entrevistou os pacientes, com o apoio de bolsa do Departamento de Saúde Mental do SUS-JF Referências ALMEIDA, J.M.C.; XAVIER, M. Avaliação e garantia de qualidade dos serviços de saúde mental. Acta Médica Portuguesa, n. 8, p. 119-131, 1995. 15 AMARAL, M.A. Atenção à saúde mental na rede básica: estudo sobre a eficácia do modelo assistencial. Revista de Saúde Pública, v. 31, n. 3, p. 288-295, 1997. CRAVEN, M.A.; BLAND, R. Shared mental health care: a bibliography and overview. Canadian Journal of Psychiatry, v. 47 sup. 1, p.103, 2002. CRUZ, M. et al. Best practice for managing noncompliance with psychiatric appointments in community-based care. Psychiatric Services, v. 52, n. 11, p. 1443-1445, nov. 2001. DONABEDIAN, A. Educacion superior en salud - hacia una vision integradora de la investigación y la educacion en salud pública. 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Submissão: junho de 2006 Aprovação: outubro de 2006 1 NOMENCLATURA BRASILEIRA PARA LAUDOS CERVICAIS E CONDUTAS PRECONIZADAS: RECOMENDAÇÕES PARA PROFISSIONAIS DE SAÚDE Brazilian nomenclature for cervical reports and recommended conduct: recommendations for health professionals ORGANIZAÇÃO E REDAÇÃO FINAL Fátima Meirelles Pereira Gomes – MS/INCA/CONPREV/Divisão de Atenção Oncológica Giani Silvana Schwengber Cezimbra – MS/ Área Técnica de Saúde da Mulher José Antonio Marques – Fundação Oncocentro de São Paulo (FOSP) Jurandyr Moreira de Andrade – Federação Brasileira da Associação de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) Lucilia Maria Gama Zardo - MS/INCA/DIPAT/SITEC Luiz Carlos Zeferino – Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Universidade Estadual de Campinas (CAISM/UNICAMP) Marco Antonio Teixeira Porto - MS/INCA/Coordenação de Ações Estratégicas Maria Fátima de Abreu - MS/INCA/CONPREV/Divisão de Atenção Oncológica Neil Chaves de Souza – SMS-RJ - PAM Manoel Guilherme da Silveira Olímpio Ferreira Neto – MS/INCA/Hospital do Câncer II Endereço: Instituto Nacional do Câncer CONPREV - Coordenação de Prevenção e Vigilância Rua dos Inválidos 212 - 4° and. Centro / Rio de Janeiro - RJ E.mail: [email protected] Tel: (21)39707529 RESUMO O texto apresenta a edição revisada da Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas, publicada pelo Instituto Nacional de Câncer, em 2006. A revisão foi realizada a partir de amplo debate com profissionais de saúde, gerentes, gestores das secretarias estaduais e municipais, áreas técnicas do Ministério da Saúde, sociedades científicas e especialistas reconhecidos nacional e internacionalmente. O consenso foi baseado no Sistema de Bethesda desenvolvido no Instituto Nacional de Câncer dos Estados Unidos, atualizado em 2001. As diretrizes visam a orientar as condutas dos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) em relação a mulheres com alterações no exame citopatológico cervical. As recomendações aplicamse à maioria dos casos clínicos típicos e incorporam as recentes evidências científicas com o objetivo de qualificar as ações voltadas à atenção integral à mulher. Palavras-chave: Neoplasias do Colo do Útero Câncer cérvico-uterino. Condutas Clínicas. Nomenclatura Brasileira não encontrado nos descritores 2 The text presents the revised edition of Brazilian Nomenclature for Cervical Reports and Recommended Clinical Practice, published by the National Cancer Institute in 2006. The revision was based on a farreaching discussion among health professionals, managers, state and municipal agency administrators, technical areas within the Ministry of Health, scientific associations and renowned specialists, both inside Brazil and abroad. The consensus was based on the Bethesda system, developed at the National Institute of Cancer in the United States, and updated in 2001. The guidelines seek to orient the conduct of professionals in the Unified Health System (SUS) concerning women who present alterations in their cytopathological cervical exam. The recommendations apply to the majority of typical clinical cases and incorporate recent scientific evidence to identify actions focused on integral health care for women. Key words: Uterine Cervical Neoplasms só tem essa nos descritores APRESENTAÇÃO Os elevados índices de incidência e mortalidade por câncer do colo do útero no Brasil justificam a implementação das ações nacionais voltadas para a prevenção e o controle do câncer (promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos), com base nas diretrizes da Política Nacional de Atenção Oncológica. O número de casos novos de câncer do colo do útero esperado para o Brasil, em 2006, é de 19.260, com um risco estimado de 20 casos a cada 100 mil mulheres. Sem considerar os tumores de pele não-melanomas, o câncer do colo do útero é o mais incidente na região Norte (22/100.000). Nas regiões Sul (28/100.000), Centro-Oeste (21/100.000) e Nordeste (17/100.000) representa o segundo tumor mais incidente. Na região Sudeste é o terceiro mais freqüente (20/100.000) (BRASIL, 2005). Considerando a necessidade de incorporar novas tecnologias e conhecimentos clínicos, morfológicos e moleculares, com a atualização da Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas, o Instituto Nacional de Câncer, em parceria com os diversos segmentos da sociedade científica, vem promovendo, desde 2001, encontros, oficinas, seminários, grupos de trabalho e grupo focal, ampliando o fórum de discussão e reunindo as contribuições da sociedade para o seu aperfeiçoamento. Objetivando abrangência das discussões e contribuições dos diversos segmentos da sociedade, o Ministério da Saúde, por meio da Área Técnica da Saúde da Mulher e do Instituto Nacional de Câncer, submeteu à consulta pública o referido documento. 3 O texto final retrata o resultado desses encontros de trabalho e da consulta pública, buscando estabelecer, com base em evidências científicas, condutas destinadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, sabe-se que a incorporação de novas tecnologias ocorre de forma gradual e, basicamente, depende da adoção da nova terminologia na rotina diária dos profissionais de saúde, fonte de alimentação do conhecimento. Essas diretrizes visam a orientar as condutas preconizadas em mulheres com alterações no exame citopatológico cervical. É importante ressaltar que essas diretrizes são o resultado do consenso entre as sociedades científicas e especialistas na área e não têm caráter limitante, mas devem ser encaradas como recomendações que, à luz do conhecimento científico atual, aplicam-se à maioria dos casos clínicos típicos. Apesar disso, cabe sempre ao médico a decisão da conduta a adotar, com base na sua experiência profissional e nas melhores evidências científicas, tendo o compromisso com a boa prática clínica. Portanto, a recomendação de diretrizes para a prática clínica não deve diminuir a capacidade global de decisão e a responsabilidade do médico. Tendo em vista os contínuos avanços da ciência, tornam-se necessárias constantes revisões e atualizações dessas diretrizes. Agradecemos a todos os profissionais de saúde que contribuíram para essa publicação, nas várias etapas, e pelas valiosas contribuições técnicas que levaram à elaboração desse documento. Nosso reconhecimento especial aos colegas que, com as diferentes experiências profissionais, permitiram um amplo enfoque no seu conteúdo e uma seqüência didática na sua apresentação e à Fundação Oncocentro de São Paulo pela cessão de parte do conteúdo do documento. 1 INTRODUÇÃO O câncer do colo do útero é um grande problema de Saúde Pública no Brasil e no mundo. As mais altas taxas de incidência do câncer de colo do útero são observadas em países pouco desenvolvidos, indicando uma forte associação deste tipo de câncer com as condições de vida precária, com os baixos índices de desenvolvimento humano, com a ausência ou fragilidade 4 das estratégias de educação comunitária (promoção e prevenção em saúde) e com a dificuldade de acesso a serviços públicos de saúde para o diagnóstico precoce e o tratamento das lesões precursoras. Esta situação torna indispensáveis políticas de saúde pública bem estruturadas. Nos países desenvolvidos, a sobrevida média estimada em cinco anos varia de 59% a 69%. Nos países em desenvolvimento, os casos são encontrados em estágios relativamente avançados e, conseqüentemente, a sobrevida média é estimada em 49% após cinco anos. O Inquérito Domiciliar, realizado pelo Ministério da Saúde em 2002-2003, mostrou que para as 15 capitais analisadas e o Distrito Federal, a cobertura estimada do exame Papanicolaou variou de 74% a 93%. Entretanto, o percentual de realização desse exame pelo SUS variou de 33% a 64% do total, o que, em parte, explica o diagnóstico tardio e a manutenção das taxas de mortalidade, bem como as altas taxas de incidência observadas no Brasil. (BRASIL, 2004). Ainda como reflexo deste quadro adverso, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Saúde 2003, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2005, mostraram que, nos últimos três anos, a cobertura do exame citológico do colo do útero foi de 68,7% em mulheres acima de 24 anos de idade, sendo que 20,8% das mulheres nesta faixa etária nunca tinham sido submetidas ao exame preventivo. (IBGE, 2005). Como a pesquisa se baseia na informação concedida pela própria entrevistada, pode-se admitir que parte dessas mulheres, segundo certas condições socioeconômicas, possa confundir a realização de um exame ginecológico com a coleta de material cérvico-uterino para exame laboratorial. Embora o aumento de acesso ao exame preventivo tenha aumentado no país, isto não foi suficiente para reduzir a tendência de mortalidade por câncer do colo do útero e, em muitas regiões, o diagnóstico ainda é feito em estádios mais avançados da doença. O diagnóstico tardio pode estar relacionado com: (1) a dificuldade de acesso da população feminina aos serviços e programas de saúde; (2) a baixa capacitação dos recursos humanos envolvidos na atenção oncológica (principalmente em municípios de pequeno e médio porte); (3) a capacidade do Sistema Público de Saúde para absorver a demanda que chega às unidades de saúde; e (4) as dificuldades dos gestores municipais e estaduais em definir e estabelecer um fluxo assistencial, orientado por critérios de 5 hierarquização dos diferentes níveis de atenção, que permita o manejo e o encaminhamento adequado de casos suspeitos para investigação em outros níveis do sistema. A articulação de ações dirigidas ao câncer da mama e do colo do útero está fundamentada na Política Nacional de Atenção Oncológica (Portaria GM nº 2439 de 08 de dezembro de 2005) e no Plano de Ação para o Controle dos Cânceres do Colo do Útero e de Mama 2005-2007. Essa articulação trata das seguintes diretrizes estratégicas, compostas por ações a serem desenvolvidas, nos distintos níveis de atenção à saúde: aumento da cobertura da população-alvo; garantia da qualidade; fortalecimento do sistema de informação; desenvolvimento de capacitações; desenvolvimento de pesquisas e mobilização social. (BRASIL, 2005) A publicação denominada Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas foi elaborada com a finalidade de orientar a atenção às mulheres, subsidiando tecnicamente os profissionais de saúde, disponibilizando conhecimentos atualizados de maneira sintética e acessível que possibilitem orientar condutas adequadas em relação ao controle do câncer do colo do útero. Os gestores municipais e estaduais são os principais parceiros no desenvolvimento das ações contidas na Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas. Para tanto, necessitarão de apoio na organização da rede para a atenção oncológica, na estruturação de serviços e na sistematização, quando necessário, do processo de referência e contra-referência entre os níveis de atenção. Reforça-se, então, a participação estratégica do INCA, assessorando tecnicamente estados e municípios, além da parceria na construção de uma rede de educação permanente na atenção oncológica. Na estruturação e organização da Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas, foram preservados conceitos consensuais com descrição minuciosa. Em um formato mais específico, os diversos capítulos, abaixo sumarizados, sugerem orientações às ações a serem desenvolvidas a partir do ano de 2006, nos distintos níveis de atenção à saúde no âmbito do SUS. 6 Para que as estratégias, normas e procedimentos que orientam as ações de controle do câncer do colo do útero, no país, estejam em consonância com o conhecimento científico atual, o Ministério da Saúde tem realizado parcerias com sociedades científicas e considerado a opinião de especialistas nacionais e internacionais. Finalizando o processo de trabalho, o Ministério da Saúde, por meio da Área Técnica da Saúde da Mulher e do Instituto Nacional de Câncer, submeteu à consulta pública o referido documento. Na Metodologia de Trabalho são apresentadas todas as etapas do trabalho realizadas ao longo dos anos. O capítulo que trata da Nomenclatura Brasileira para Laudos Citopatológicos contempla aspecto de atualidade tecnológica, e sua similaridade com o Sistema Bethesda 2001 (SOLOMON et al., 2002) facilita a equiparação dos resultados nacionais com aqueles encontrados nas publicações científicas internacionais. São introduzidos novos conceitos estruturais e morfológicos, o que contribui para o melhor desempenho laboratorial e serve como facilitador da relação entre a citologia e a clínica. Sua estrutura geral facilita a informatização dos laudos, o que permite o monitoramento da qualidade dos exames citopatológicos realizados no SUS. Além disso, a anuência das sociedades científicas envolvidas com a confirmação diagnóstica e o tratamento das lesões tornam possível o estabelecimento de diretrizes para as condutas terapêuticas. Em Avaliação pré-analítica e Adequabilidade da amostra, destaca-se a introdução dos conceitos de Avaliação pré-analítica e conduta, em que a adequabilidade da amostra passará à classificação binária (satisfatória ou insatisfatória). Destaca-se ainda a recomendação nacional para o exame citopatológico cervical o qual deverá ser realizado em mulheres de 25 a 60 anos de idade, ou que já tiveram atividade sexual anteriormente a esta faixa etária, uma vez por ano e, após dois exames anuais consecutivos negativos, a cada três anos. Em Condutas preconizadas, tanto para resultado normal, alterações benignas e queixas ginecológicas como para Alterações pré-malignas ou malignas no exame citopatológico, encontra-se o desenho dos possíveis achados e das possibilidades de encaminhamentos, nos diferentes níveis de complexidade. O objetivo é auxiliar os profissionais de saúde, gerentes e gestores nas condutas a serem aplicadas e nas ações de organização de rede. 7 Para o acompanhamento e a avaliação do impacto da implantação da Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas é necessário um Sistema de Informação que permita monitorar o processo de rastreamento, o diagnóstico, o tratamento e a qualidade dos exames realizados na rede SUS. Para tanto, houve o aprimoramento do Sistema Nacional de Informação do Câncer do Colo do Útero (SISCOLO), tanto na vertente tecnológica como em decorrência da implantação da Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais. Atualmente o SISCOLO ainda não permite a identificação do número de mulheres examinadas, mas apenas a quantidade de exames realizados, dificultando o conhecimento preciso das taxas de captação e cobertura, essenciais ao acompanhamento das ações planejadas. Portanto, é indispensável o desenvolvimento de estratégias para estimular/ induzir estados e municípios quanto ao registro do número do Cartão SUS. É importante também melhorar o sistema de forma a desencadear o “módulo seguimento” do SISCOLO, o qual permitirá o acompanhamento das mulheres com exames alterados desde a sua entrada no sistema, através da coleta do exame até o seu desfecho, tratamento/ cura. Por fim, deve-se considerar o estímulo ao desenvolvimento de pesquisas na linha de prevenção e controle do câncer do colo do útero, uma vez que estas contribuem para a melhoria da efetividade, eficiência e qualidade de políticas, sistemas e programas. 2. METODOLOGIA DE TRABALHO A revisão da nomenclatura foi realizada a partir de amplo debate com profissionais de saúde, gerentes, gestores das secretarias estaduais e municipais, sociedades científicas e especialistas reconhecidos nacional e internacionalmente. O processo de discussão teve início em 1988 e ocorreu na forma de Oficinas, Grupo de Trabalho, aplicação das condutas preconizadas em Grupo Focal para avaliação qualitativa e consulta pública do documento final, pelo Ministério da Saúde, por meio da Área Técnica da Saúde da Mulher e do Instituto Nacional do Câncer (dez/2005 a jan/2006). 8 O consenso sobre a nova nomenclatura foi baseado no Sistema de Bethesda desenvolvido no Instituto Nacional de Câncer dos Estados Unidos, atualizado em 2001, e além da participação das áreas técnicas do Ministério da Saúde (Instituto Nacional de Câncer, Área Técnica de Saúde da Mulher, Coordenação de DST/AIDS) e de representantes das secretarias estaduais e municipais de saúde, contou com a participação da Sociedade Brasileira de Citologia (SBC), Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), Sociedade Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia (SBTGIC), Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Instituto Brasileiro de Controle do Câncer (IBCC), Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Hospital do Câncer A.C. Camargo, Fundação Oncocentro de São Paulo (FOSP), Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Universidade Estadual de Campinas (CAISM/UNICAMP). Esta revisão atualiza o documento anterior de normatização (Ministério da Saúde, 2003) e incorpora as recentes evidências científicas com o objetivo de qualificar as ações voltadas à atenção integral à mulher. 3 NOMENCLATURA CERVICAIS BRASILEIRA PARA LAUDOS CITOPATOLÓGICOS Desde que o Dr. George Papanicolaou tentou classificar as células que observava acreditando serem a representação de lesões neoplásicas, ocorreram diversas modificações que incorporaram progressivamente o conhecimento adquirido sobre a história natural dessas lesões, sempre na tentativa de melhorar a correlação cito-histológica. Deve-se notar que o objetivo do teste continua o mesmo, ou seja, a intenção é identificar alterações sugestivas de uma doença e, como conseqüência, também indicar ações que permitam o diagnóstico de certeza. Papanicolaou criou uma nomenclatura que procurava expressar se as células observadas eram normais ou não, atribuindo-lhes uma classificação. Assim, falava-se em Classes I, II, III, IV e V, em que a Classe I - indicava ausência de células atípicas ou anormais; Classe II citologia atípica, mas sem evidência de malignidade; Classe III - citologia sugestiva, mas não 9 conclusiva, de malignidade; Classe IV - citologia fortemente sugestiva de malignidade; e Classe V - citologia conclusiva de malignidade. Se essa classificação se preocupava pouco com os aspectos histológicos das lesões que sugeriam, a partir de então novas nomenclaturas surgiram, mais atentas a esse significado. Assim, o termo “Displasia” foi introduzido na classificação, levando em conta alterações histológicas correspondentes, identificando displasias leves, moderadas e severas. Todos os graus de displasias eram grosseiramente referentes à classe III de Papanicolaou, correlacionando também a Classe IV com carcinomas escamosos in situ. A Classe V continuou a indicar carcinoma invasor e, pela primeira vez, se deu ênfase a alterações celulares, devido à ação do vírus do Papiloma Humano (HPV), relatando-se a coilocitose (KOSS; MELANE, 2006). Em uma etapa posterior, estabeleceu-se o conceito de neoplasia intra-epitelial e no caso da cérvice uterina, de neoplasia intra-epitelial cervical (NIC) subdividida em três graus, que se mantém para os diagnósticos histológicos. A classificação citológica mais atual do esfregaço cervical é o Sistema de Bethesda, Maryland, Estados Unidos. Essa classificação incorporou vários conceitos e conhecimentos adquiridos que, resumidamente, são: o diagnóstico citológico deve ser diferenciado para as células escamosas e glandulares; inclusão do diagnóstico citomorfológico sugestivo da infecção por HPV, devido às fortes evidências do envolvimento desse vírus na carcinogênese dessas lesões, dividindo-as em lesões intra-epiteliais de baixo e alto graus, ressaltando o conceito de possibilidade de evolução para neoplasia invasora; e a introdução da análise da qualidade do esfregaço. Essa classificação foi revista em 1991 e 2001, porém sem mudanças estruturais. 3.1. TIPOS DA AMOSTRA Citologia: • Convencional • Em meio líquido 10 Nota explicativa: Com a recente introdução da citologia em meio líquido, em suas diferentes apresentações, é indispensável que seja informada a forma de preparo, uma vez que a adequabilidade do material é avaliada de forma diversa para cada meio. É, ainda, de fundamental importância que o laboratório informe, em caso de citologia em meio líquido, qual sistema foi usado. 3.2. AVALIAÇÃO PRÉ-ANALÍTICA Amostra rejeitada por: • Ausência ou erro de identificação da lâmina e/ou do frasco; • Identificação da lâmina e/ou do frasco não coincidente com a do formulário; • Lâmina danificada ou ausente; • Causas alheias ao laboratório (especificar); • Outras causas (especificar). Nota explicativa: Este conceito foi introduzido como uma inovação, visando estabelecer a diferença entre rejeição por causas alheias e anteriores à chegada ao laboratório e aquelas relacionadas à colheita, coloração ou análise microscópica. A causa da rejeição deverá ser identificada, de preferência, no momento da entrada da lâmina no laboratório e seu registro deverá ser feito. Contudo, é o profissional responsável pelo exame quem irá assinar o laudo contendo o motivo da rejeição. 3.3. ADEQUABILIDADE DA AMOSTRA • Satisfatória • Insatisfatória para avaliação oncótica devido ao: ▪ Material acelular ou hipocelular (< 10% do esfregaço) 11 • Leitura prejudicada (> 75% do esfregaço) por presença de: sangue; piócitos; artefatos de dessecamento; contaminantes externos; intensa superposição celular; outros (especificar). Epitélios representados na amostra: • Escamoso • Glandular • Metaplásico Nota explicativa: A questão da Adequabilidade da Amostra vem, ao longo do tempo, suscitando inúmeros questionamentos e modificações, dado o seu caráter de matéria conflitante e de difícil conceituação, plenamente aceitável. A disposição, em um sistema binário (satisfatória x insatisfatória), melhor caracteriza a definição da visão microscópica da colheita. No atual Sistema de Bethesda (2001), a Adequabilidade da Amostra também está colocada nesses dois parâmetros. Contudo, nesse sistema, a caracterização da junção escamo-colunar faz parte dessa definição, o que não ocorre aqui. Deve-se considerar como satisfatória a amostra que apresente células em quantidade representativa, bem distribuídas, fixadas e coradas, de tal modo que sua visualização permita uma conclusão diagnóstica. Observe-se que os aspectos de representatividade não constam desse item, mas deverão constar de caixa própria, para que seja dada a informação (obrigatória) dos epitélios que estão representados na amostra. A definição de Adequabilidade pela representatividade passa a ser da exclusiva competência do responsável pela paciente, que deverá levar em consideração as condições próprias de cada uma (idade, estado menstrual, limitações anatômicas, objetivo do exame etc). Insatisfatória é a amostra cuja leitura esteja prejudicada pelas razões expostas acima, todas de natureza técnica e não de amostragem celular. 12 3.4. DIAGNÓSTICO DESCRITIVO • Dentro dos limites da normalidade, no material examinado; • Alterações celulares benignas; • Atipias celulares. Nota explicativa: O acréscimo da expressão “no material examinado” visa a estabelecer, de forma clara e inequívoca, o aspecto do momento do exame. Aqui, também, ocorre uma diferença importante com o Sistema Bethesda (2001), no qual foi excluída a categoria das alterações celulares benignas. Tal manutenção deve-se ao entendimento de que os fatores que motivaram a exclusão não se aplicam à realidade brasileira. 3.4.1. Alterações celulares benignas • Inflamação • Reparação • Metaplasia escamosa imatura • Atrofia com inflamação • Radiação • Outras (especificar) Nota explicativa: Em relação à nomenclatura anterior, a única mudança ocorre pela introdução da palavra “imatura” em metaplasia escamosa, buscando caracterizar que é esta a apresentação que deve ser considerada como alteração. Assim sendo, a metaplasia matura, com sua diferenciação já definida, não deve ser considerada como inflamação e, eventualmente, nem necessita ser citada no laudo, exceto na indicação dos epitélios representados, para caracterizar o local de colheita. 3.4.2. Atipias celulares 13 Células atípicas de significado indeterminado: • • • Escamosas: Possivelmente não-neoplásicas; Não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau. Glandulares: Possivelmente não-neoplásicas; Não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau. De origem indefinida: Possivelmente não-neoplásicas; Não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau. Nota explicativa: Esta é mais uma inovação da nomenclatura brasileira, criando-se uma categoria separada para todas as atipias de significado indeterminado e, mais ainda, a categoria “de origem indefinida” destinada àquelas situações em que não se pode estabelecer com clareza a origem da célula atípica. Deve-se observar que foi excluída a expressão “provavelmente reativa”, a qual foi substituída pela “possivelmente não-neoplásicas”, e introduzida a expressão “não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau”. Com isso pretende-se dar ênfase ao achado de lesões de natureza neoplásica, diminuindo assim o diagnóstico dúbio. Objetiva-se identificar as células imaturas, pequenas e que, por sua própria indiferenciação, podem representar maior risco de corresponder a lesões de alto grau. Sempre que o caso exigir, notas explicativas devem ser acrescentadas, visando a orientar o responsável pela paciente nos procedimentos adotados. Deve-se observar a exclusão total dos acrônimos (ASCUS e AGUS), cujo uso é desaconselhado, devendo sempre constar por extenso os diagnósticos. Em células escamosas: • Lesão intra-epitelial de baixo grau (compreendendo efeito citopático pelo HPV e neoplasia intra-epitelial cervical grau I); 14 • Lesão intra-epitelial de alto grau (compreendendo neoplasias intra-epiteliais cervicais graus II e III); • Lesão intra-epitelial de alto grau, não podendo excluir microinvasão; • Carcinoma epidermóide invasor. Nota explicativa: Foi adotada a terminologia lesão intra-epitelial em substituição ao termo neoplasia, além de estabelecer dois níveis (baixo e alto graus), separando as lesões com potencial morfológico de progressão para neoplasia daquelas mais relacionadas com o efeito citopático viral, com potencial regressivo ou de persistência. Foi ainda incluída a possibilidade diagnóstica de suspeição de microinvasão. Recomenda-se enfaticamente que seja evitado o uso de outras nomenclaturas e classificações, além das aqui já contempladas, evitando-se a perpetuação de termos eventualmente já abolidos ou em desuso, os quais nada contribuem para o esclarecimento diagnóstico. Em células glandulares: • Adenocarcinoma in situ • Adenocarcinoma invasor: • Cervical Endometrial Sem outras especificações Outras neoplasias malignas • Presença de células endometriais (na pós-menopausa ou acima de 40 anos, fora do período menstrual) Nota explicativa: A introdução da categoria Adenocarcinoma in situ reconhece a capacidade de identificação morfológica desta entidade e acompanha a nomenclatura internacional. O item “sem outras especificações” refere-se exclusivamente a adenocarcinomas de origem uterina. Quando for identificada neoplasia de origem glandular extra-uterina, deve ser colocada no quadro das 15 outras neoplasias malignas, especificando o tipo, em nota complementar. As células endometriais somente necessitam ser mencionadas quando a sua presença possa ter significado patológico. Assim sendo, seu achado nos primeiros doze dias que sucedem ao período menstrual, apenas deverá ser referido se houver importância para a identificação de algum processo patológico. 3.5. Microbiologia • Lactobacillus sp; • Bacilos supracitoplasmáticos (sugestivos de Gardnerella/Mobiluncus); • Outros bacilos; • Cocos; • Candida sp; • Trichomonas vaginalis; • Sugestivo de Chlamydia sp; • Actinomyces sp; • Efeito citopático compatível com vírus do grupo Herpes; • Outros (especificar). Nota explicativa: Foram mantidas as informações de Chlamydia, cocos e bacilos por considerar-se a oportunidade, por vezes única, em um país continental e com grandes dificuldades geográficas e econômicas, de estabelecer uma terapêutica antimicrobiana baseada exclusivamente no exame preventivo. A introdução da expressão “Bacilos supracitoplasmáticos” busca indicar a apresentação morfológica de agentes microbianos de difícil distinção pelo exame corado e fixado pela técnica citológica, mas que, de modo geral, respondem aos mesmos tratamentos. 4. AVALIAÇÃO PRÉ-ANALÍTICA E ADEQUABILIDADE DA AMOSTRA 4.1. LAUDO CITOPATOLÓGICO 16 A nomenclatura brasileira utilizada para laudos citopatológicos tem sofrido constantes alterações. A adoção do Sistema de Bethesda, ainda que adaptado ao Brasil, facilita a comparação de resultados nacionais com os encontrados em publicações estrangeiras. É importante ressaltar que a introdução de novos conceitos estruturais e morfológicos contribui tanto para o desempenho do laboratório quanto para a relação entre a citologia e a clínica. Sabe-se, no entanto, que essas mudanças ocorrem de forma gradual e, basicamente, dependem da adoção da nova terminologia na rotina diária dos profissionais de saúde, fonte de alimentação de conhecimento para a mídia escrita ou falada e para a população em geral. Atualmente não é razoável que alguns laboratórios ainda emitam laudos de citopatologia somente com a nomenclatura ultrapassada, uma vez que a proposta de novas categorias de resultados impede que se estabeleça correlação pertinente entre Bethesda 2001 e Papanicolaou. Em contrapartida, também é conveniente que médicos ginecologistas ou não, ao receberem os resultados de exames, compreendam o diagnóstico. Portanto, pretende-se explicar aqui o significado deles, com vistas a uniformizar o uso da nomenclatura no Brasil, estabelecida por consenso entre experts no assunto. A seguir, será apresentada a possibilidade de associação de todos os resultados possíveis nos laudos dos exames e as respectivas condutas clínicas. 4.2. NOMENCLATURA BRASILEIRA 4.2.1. Avaliação pré-analítica (que ocorre antes da análise microscópica da lâmina) Este conceito foi introduzido como uma inovação, visando estabelecer a diferença entre a rejeição da lâmina por causas anteriores à sua entrada no laboratório de citopatologia e aquelas relacionadas à técnica de coleta, coloração ou análise microscópica. A causa da rejeição deverá 17 ser identificada no momento da entrada da lâmina no laboratório e de seu registro. O profissional responsável pelo registro é quem irá apontar o motivo da rejeição. Amostra rejeitada: • Ausência ou erro de identificação da lâmina; • Identificação da lâmina não coincidente com a do formulário; • Lâmina danificada ou ausente. Conduta Clínica: A paciente deverá ser convocada para repetir o exame, devendo ser explicado à mesma que o motivo é técnico e não por alteração patológica. 4.2.2. Adequabilidade da amostra Na atual nomenclatura utilizada para definir a Adequabilidade da Amostra, estabelece-se o sistema binário: satisfatório e insatisfatório. Portanto, o termo anteriormente utilizado “satisfatório mas limitado” foi abolido. Insatisfatória para Avaliação É considerada insatisfatória, a amostra cuja leitura esteja prejudicada pelas razões expostas abaixo, algumas de natureza técnica e outras de amostragem celular, podendo ser assim classificada: • Material acelular ou hipocelular (<10% do esfregaço) • Leitura prejudicada (>75% do esfregaço) por presença de: sangue; piócitos; artefatos de dessecamento; 18 contaminantes externos; intensa superposição celular. Conduta Clínica: A paciente deverá ser convocada para repetir o exame de imediato, devendo ser explicado à mesma que o motivo é técnico e não por alteração patológica. Satisfatória Designa amostra que apresente células em quantidade representativa, bem distribuídas, fixadas e coradas, de tal modo que sua visualização permita uma conclusão diagnóstica. Epitélios Representados na Amostra: • Escamoso • Glandular (não inclui o epitélio endometrial) • Metaplásico Embora a indicação dos epitélios representados na amostra seja informação obrigatória nos laudos citopatológicos, seu significado deixa de pertencer à esfera de responsabilidade dos profissionais que realizam a leitura do exame. Agora, eles respondem apenas pela indicação dos epitélios que estão representados. Todavia, deve-se alertar que a amostra adequada pode não ter a representação completa da junção escamo-colunar, o que deverá ser avaliado pelo ginecologista. A presença de células metaplásicas ou células endocervicais, representativas da junção escamo-colunar (JEC), tem sido considerada como indicador da qualidade do exame, pelo fato de as mesmas se originarem do local onde se situa a quase totalidade dos cânceres do colo do útero. 19 A presença exclusiva de células escamosas deve ser avaliada pelo médico responsável. É muito oportuno que os profissionais de saúde atentem para a representatividade da JEC nos esfregaços cérvico-vaginais, sob pena de não propiciar à mulher todos os benefícios da prevenção do câncer do colo do útero. 4.2.3. Periodicidade de realização do exame citopatológico * A realização do exame citopatológico de Papanicolaou tem sido reconhecida mundialmente como uma estratégia segura e eficiente para a detecção precoce do câncer do colo do útero na população feminina e tem modificado efetivamente as taxas de incidência e mortalidade por este câncer. A efetividade da detecção precoce do câncer do colo do útero por meio do exame de Papanicolaou, associada ao tratamento deste câncer em seus estádios iniciais, tem resultado em uma redução das taxas de incidência de câncer cervical invasor que pode chegar a 90%, quando o rastreamento apresenta boa cobertura (80%, segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS) e é realizado dentro dos padrões de qualidade (GUSTAFSSON et al., 1997). Em 1988, o Ministério da Saúde, por meio do Instituto Nacional de Câncer, realizou uma reunião de consenso, com a participação de diversos experts internacionais, representantes das sociedades científicas e das diversas instâncias ministeriais e definiu que, no Brasil, o exame colpocitopatológico deveria ser realizado em mulheres de 25 a 60 anos de idade, uma vez por ano e, após dois exames anuais consecutivos negativos, a cada três anos. Tal recomendação apóia-se na observação da história natural do câncer do colo do útero, que permite a detecção precoce de lesões pré-neoplásicas e o seu tratamento oportuno, graças à lenta progressão que apresenta para doença mais grave. * Texto publicado na Revista Brasileira de Cancerologia nº 48, vol.1, 2002 (BRASIL, 2002). 20 O câncer do colo do útero inicia-se a partir de uma lesão pré-invasiva, curável em até 100% dos casos (anormalidades epiteliais conhecidas como displasia e carcinoma in situ ou diferentes graus de neoplasia intra-epitelial cervical NIC), que normalmente progride lentamente, por anos, antes de atingir o estágio invasor da doença, quando a cura se torna mais difícil, quando não impossível. Barron e Richart (1968) mostraram que, na ausência de tratamento, o tempo mediano entre a detecção de uma displasia leve (HPV, NIC I) e o desenvolvimento de carcinoma in situ é de 58 meses, enquanto para as displasias moderadas (NIC II) esse tempo é de 38 meses e, nas displasias graves (NIC III), de 12 meses. Em geral, estima-se que a maioria das lesões de baixo grau regredirá espontaneamente, enquanto cerca de 40% das lesões de alto grau não tratadas evoluirão para câncer invasor em um período médio de 10 anos (SAWAYA et al., 2001). Por outro lado, o Instituto Nacional de Câncer dos Estados Unidos (NCI, 2000) calcula que somente 10% dos casos de carcinoma in situ evoluirão para câncer invasor no primeiro ano, enquanto de 30% a 70% terão evoluído decorridos 10 a 12 anos, caso não seja oferecido tratamento. Segundo a OMS, estudos quantitativos têm demonstrado que, nas mulheres entre 35 e 64 anos, depois de um exame citopatológico do colo do útero negativo, um exame subseqüente pode ser realizado a cada três anos, com a mesma eficácia da realização anual. Conforme apresentado na tabela abaixo, a expectativa de redução percentual no risco cumulativo de desenvolver câncer, após um resultado negativo, é praticamente a mesma, quando o exame é realizado anualmente (redução de 93% do risco) ou quando ele é realizado a cada 3 anos (redução de 91% do risco). Tabela 1: Efeito protetor do rastreamento para câncer do colo do útero de acordo com o intervalo entre os exames em mulheres de 35 a 64 anos Intervalo entre os exames Redução na incidência cumulativa 1 ano 93% 2 anos 93% 3 anos 91% 21 5 anos 84% 10 anos 64% Fonte: van Oortmarssen et al., 1992. In: BRASIL (2002). A experiência internacional tem mostrado uma importante redução nas taxas de incidência ajustadas pela população mundial, tal como apresentado na Tabela 2. Tabela 2: Redução nas taxas de incidência do câncer do colo do útero em programas de rastreamento em países nórdicos Países Nórdicos Redução nas taxas de incidência* entre 1986 e 1995 Islândia 67% Finlândia 75% Suécia 55% Dinamarca 54% Noruega 34% * Taxas de incidência ajustadas pela população mundial Fonte: European Commission Europe Against Cancer, 2000. In: BRASIL (2002). Com base nas evidências científicas disponíveis, a maioria dos países europeus e organismos norte-americanos vêm recomendando a realização do exame citopatológico do colo do útero a cada 3 anos. A periodicidade de realização do exame citopatológico do colo do útero, estabelecida pelo Ministério da Saúde do Brasil, em 1988, permanece atual e está em acordo com as recomendações dos principais programas internacionais. 22 5. CONDUTAS PRECONIZADAS 5.1. RESULTADO NORMAL, ALTERAÇÕES BENIGNAS E QUEIXAS GINECOLÓGICAS 5.1.1. Dentro dos limites da normalidade no material examinado Diagnóstico completamente normal. A inclusão da expressão “no material examinado” visa a estabelecer, de forma clara e inequívoca, aspectos do material submetido ao exame. Conduta Clínica: Seguir a rotina de rastreamento citológico. 5.1.2. Alterações celulares benignas (ativas ou reparativas) • Inflamação sem identificação de agente Caracterizada pela presença de alterações celulares epiteliais, geralmente determinadas pela ação de agentes físicos, os quais podem ser radioativos, mecânicos ou térmicos e químicos como medicamentos abrasivos ou cáusticos, quimioterápicos e acidez vaginal sobre o epitélio glandular. Ocasionalmente, podem-se observar alterações, em decorrência do uso do dispositivo intra-uterino (DIU), em células endometriais. Casos especiais do tipo exsudato linfocitário ou reações alérgicas, representadas pela presença de eosinófilos, são observados. Conduta Clínica: Havendo queixa clínica de leucorréia, a paciente deverá ser encaminhada para exame ginecológico. Os achados comuns são ectopias, vaginites e cervicites. O tratamento deve seguir recomendação específica. Seguir a rotina de rastreamento citológico, independentemente do exame ginecológico. • Resultado indicando Metaplasia Escamosa Imatura 23 A palavra “imatura”, em metaplasia escamosa, foi incluída na Nomenclatura Brasileira buscando caracterizar que esta apresentação é considerada como do tipo inflamatório, entretanto, o epitélio nessa fase está vulnerável à ação de agentes microbianos e em especial do HPV. Conduta Clínica: Seguir a rotina de rastreamento citológico. • Resultado indicando Reparação Decorre de lesões da mucosa com exposição do estroma e pode ser determinado por quaisquer agentes que determinam inflamação. É, geralmente, a fase final do processo inflamatório, momento em que o epitélio está vulnerável à ação de agentes microbianos e em especial do HPV. Conduta Clínica: Seguir a rotina de rastreamento citológico. • Resultado indicando Atrofia com inflamação Conduta Clínica: Após avaliação da sintomatologia e do exame ginecológico, podem ser utilizados cremes vaginais contendo estrogênios. Seguir a rotina de rastreamento citológico. • Resultado indicando Radiação Nos casos de Câncer do Colo do Útero, o exame citopatológico deve ser realizado para controle de possível persistência de neoplasia residual ou de recidiva da neoplasia após tratamento radioterápico. Conduta Clínica: Nos casos em que a citopatologia diagnosticar lesão intra-epitelial (LIE), previsível após tratamento radioterápico, a conduta deverá ser a mesma indicada para lesão intraepitelial em pacientes submetidas a esse tratamento, devendo ser seguida de acordo com o grau da LIE. 24 Ressaltamos a importância do preenchimento completo e adequado dos dados de anamnese constantes do formulário de “Requisição de Exame Citopatológico - Colo do Útero”. Achados Microbiológicos: • Lactobacillus sp; • Cocos; • Outros Bacilos; São considerados achados normais. Fazem parte da flora vaginal e não caracterizam infecções que necessitem de tratamento. Conduta Clínica: A paciente com sintomatologia deve ser encaminhada para avaliação ginecológica. Seguir a rotina de rastreamento citológico. Queixas Ginecológicas As queixas ginecológicas não só devem ser valorizadas, mas solucionadas, considerando que os laudos do exame citológico, na maioria das vezes, mencionam agentes microbiológicos que, quando associados às queixas clínicas, merecem tratamento específico. 5.2. ALTERAÇÕES PRÉ-MALIGNAS OU MALIGNAS NO EXAME CITOPATOLÓGICO A discussão das condutas preconizadas, apresentadas a seguir, foi baseada, principalmente, no Consensus Guidelines for the Management of Women with Cervical Cytological Abnormalities (WRIGHT et al. 2001), embora inúmeros trabalhos científicos tenham sido consultados pelos grupos de trabalho. 5.2.1. Células escamosas atípicas de significado indeterminado 25 Atualmente, as atipias escamosas de significado indeterminado representam a atipia citológica mais comumente descrita nos resultados dos laudos citopatológicos do colo do útero. Este achado citológico é de difícil reprodutibilidade entre citopatologistas experientes e são consideradas aceitáveis taxas inferiores a 5% do total de exames realizados (SOLOMON et al., 1998) . A repetição do exame citopatológico possui sensibilidade entre 67% e 85% (SOLOMON et al., 2001; FERRIS et al., 1998; MANOS et al., 1999; BERGERON et al., 2000 e WRIGHT et al., 1998). Não existem dados suficientes para definir o número e o intervalo entre as repetições das citologias, sendo definido pelo grupo de trabalho o intervalo de 6 meses. As atipias escamosas de significado indeterminado foram divididas em: alterações escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásicas (ASC-US de Bethesda) e em alterações escamosas atípicas de significado indeterminado em que não se pode afastar lesão de alto grau (ASC-H – Bethesda) (SOLOMON et al., 2002). 5.2.1.1. Células escamosas atípicas de significado indeterminado, possivelmente nãoneoplásicas Cerca de 5% a 17% das mulheres com esta atipia apresentam diagnóstico de neoplasia intra-epitelial II e III (SOLOMON et al., 1998; SOLOMON et al., 2001 e MITCHELL et al., 1998) e 0,1% a 0,2% de carcinoma invasor no exame histopatológico, demonstrando assim baixo risco de lesões mais avançadas (JONES e NOVIS, 2000a; LONKY et al, 1999). A colposcopia apresenta alta sensibilidade (96%) e baixa especificidade (48%), as quais causam alta taxa de sobrediagnóstico e de sobretratamento. Estudos têm mostrado desaparecimento dessas alterações (células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásicas) em 70% a 90% das pacientes mantidas sob observação e tratamento das infecções pré-existentes (JONES e NOVIS, 2000). A colposcopia é, portanto, um método desfavorável como a primeira escolha na condução das pacientes que apresentam 26 alterações escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásico. A conduta preconizada é a repetição da citologia, em 6 meses, na Unidade da Atenção Básica. Se dois exames citopatológicos subseqüentes semestrais, na Unidade da Atenção Básica, forem negativos, a paciente deverá retornar à rotina de rastreamento citológico. Porém, se o resultado de alguma citologia de repetição for sugestiva de lesão igual ou mais grave a células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásicas, a paciente deverá ser encaminhada à Unidade de Referência de Média Complexidade para colposcopia imediata. Apresentando lesão, deve-se proceder a biopsia, e recomendação específica a partir do laudo histopatológico. Caso a colposcopia não apresente lesão, deve-se repetir a citologia em 6 meses, na Unidade de Referência de Média Complexidade. Diante de duas citologias negativas consecutivas, a paciente deverá ser reencaminhada para a rotina de rastreamento citológico na Unidade da Atenção Básica. Se a citologia de repetição for sugestiva de células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásicas, a paciente deverá ser submetida a nova colposcopia. Essa rotina deve ser mantida, até que novo achado citológico diferente de atipias de células escamosas, de significado indeterminado possivelmente nãoneoplásicas ou lesão colposcópica, venha a aparecer. No caso de citologia de repetição positiva sugestiva de lesão mais grave, deverá ser adotada conduta específica. As condutas recomendadas, para as pacientes com laudo citopatológico de células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásicas, são apresentadas na Figura 1. Entrar figura 1 5.2.1.2. Células escamosas atípicas de significado indeterminado, quando não se pode excluir lesão intra-epitelial de alto grau Embora o diagnóstico de células escamosas atípicas de significado indeterminado, quando não se pode excluir lesão intra-epitelial de alto grau seja menos comum que o de células 27 escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásicas, o risco de lesão de alto grau (NIC II e NIC III) subjacente é alto (24% a 94%) (LONKY et al, 1999; RONNETT et al, 1999). Portanto, a conduta para todas as pacientes com esse laudo, na Unidade da Atenção Básica, é a de encaminhá-las à Unidade de Referência de Média Complexidade para colposcopia imediata. Caso a colposcopia mostre lesão, uma biopsia deve ser realizada com recomendação específica a partir do laudo histopatológico. Não se detectando lesão à colposcopia, deve-se proceder, sempre que houver possibilidade, à revisão de lâmina: • Revisão de lâmina, “possível e altera o laudo”, a conduta a ser tomada será baseada no novo laudo. • Revisão de lâmina, “possível, mas não altera o laudo, ou impossível”, nova citologia e colposcopia devem ser realizadas em seis meses. Duas citologias consecutivas negativas permitem que a paciente seja reencaminhada à Unidade da Atenção Básica para a rotina de rastreamento citológico. Se a citologia em seis meses for sugestiva de lesão de baixo grau ou menos grave com colposcopia negativa, deverá seguir conduta específica. Caso o resultado citopatológico seja igual ou sugestivo de lesão mais grave com colposcopia negativa, o procedimento excisional deve ser realizado. A biopsia se impõe, sempre que haja lesão colposcópica, independente do laudo citológico de repetição. As condutas recomendadas, para as pacientes com células escamosas atípicas de significado indeterminado, quando não se pode excluir lesão intra-epitelial de alto grau, são apresentadas na Figura 2. Entrar figura 2 28 5.2.2. Células glandulares atípicas de significado indeterminado, tanto para as possivelmente não-neoplásicas quanto para aquelas em que não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau As pacientes com atipias glandulares apresentam em 9% a 54% dos casos NIC II e III, 0% a 8% adenocarcinoma in situ e 1% a 9% adenocarcinoma invasor no exame histopatológico(LONKY et al, 1999; KENNEDY et al, 1996; VALDINI et al, 2001; DUSCA et al, 1998; TAYLOR et al, 1993; GOFF et al., 1992; ZWEIZIG et al, 1997 e JONES et al, 2000b). Portanto, a conduta preconizada é encaminhar a paciente à Unidade de Referência de Média Complexidade para a colposcopia imediata. Até nova discussão, as condutas preconizadas para atipias glandulares são iguais, independente das suas subdivisões, possivelmente não-neoplásicas em que não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau. As pacientes que apresentarem lesão visível à avaliação colposcópica devem ser submetidas à biopsia, e quando esta for positiva deverá seguir recomendação específica. No caso de resultado negativo e naquelas pacientes que não apresentem lesão visível na colposcopia, realizar-se-á coleta do canal cervical, imediata. O método recomendado para a coleta endocervical é o da escovinha (cytobrush), que apresenta maior sensibilidade e especificidade que a curetagem endocervical. Além do mais, a curetagem endocervical pode ocasionar alterações no epitélio do canal cervical que dificultarão a avaliação histopatológica da peça de conização, caso esta venha a ser realizada. A conduta subseqüente depende da avaliação do material obtido do canal cervical: se for negativo ou apresentar apenas atipias em células escamosas, as pacientes seguirão conduta específica. 29 Quando a avaliação do material do canal endocervical resultar em atipias em células glandulares, a conização se impõe, recomendando-se a conização a frio, até que novos trabalhos constatem a eficácia de outros procedimentos. Deve-se recomendar investigação endometrial e anexial, nas pacientes com mais de 40 anos mesmo sem irregularidade menstrual, assim como nas pacientes mais jovens com sangramento transvaginal anormal. As investigações endometrial e anexial devem ser feitas por amostragem endometrial e por exame de imagem. As condutas recomendadas para as pacientes com laudo citopatológico de células glandulares atípicas de significado indeterminado, tanto para as possivelmente não-neoplásicas quanto para aquelas em que não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau, são apresentadas na Figura 3. Entrar figura 3 5.2.3. Células atípicas de origem indefinida, possivelmente não-neoplásicas e que não se pode afastar lesão de alto grau A categoria origem indefinida é mais uma inovação da Nomenclatura Brasileira destinada àquelas situações em que não se pode estabelecer com clareza a origem da célula atípica. Essa categoria é rara, caracterizando-se como uma exceção e sua abordagem deve ser direcionada, inicialmente, ora para a conduta das células escamosas atípicas, ora para a conduta das células glandulares atípicas, de acordo com os resultados dos exames citopatológicos e colposcópicos subseqüentes. Como a colposcopia pode ser um direcionador de condutas, tanto para as escamosas atípicas como para as glandulares atípicas, a paciente que apresentar esta alteração citopatológica 30 na Unidade da Atenção Básica deve ser encaminhada à Unidade de Referência de Média Complexidade para colposcopia imediata. Caso a paciente mostre lesão colposcópica, a biopsia é imperiosa. Se positiva, adotar recomendação específica. Se negativa ou a colposcopia não mostrar lesão, deverá ser realizada uma nova citologia em 3 meses a contar da data da última coleta. Se o resultado da nova citologia for negativo ou sugerir atipias em células escamosas, será adotada conduta específica. Se sugerir células glandulares atípicas, a paciente deverá ser submetida à conização. Entretanto, se o resultado citopatológico mantiver laudo de células atípicas de origem indefinida uma investigação em Centro Especializado de Alta Complexidade deve ser realizada. Recomenda-se investigação endometrial e anexial nas pacientes com mais de 40 anos mesmo sem irregularidade menstrual, assim como nas pacientes mais jovens com sangramento transvaginal anormal, toda vez que apresentarem citologia com atipia de origem indefinida. As investigações endometrial e anexial devem ser feitas por amostragem endometrial ou por exame de imagem. As condutas recomendadas para as pacientes com laudo citopatológico de células atípicas de origem indefinida são apresentadas na Figura 4. Entrar figura 4 5.2.4. Lesão intra-epitelial de baixo grau A interpretação citológica de lesão intra-epitelial de baixo grau é mais reprodutível do que a de células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não-neoplásica, e apresenta 15% a 30% de chance de biopsia compatível com NIC II e NIC III (LONKY et al, 1999; RONNETT et al, 1999). 31 A conduta preconizada é a repetição do exame citopatológico em seis meses na Unidade da Atenção Básica, já que os estudos demonstram que na maioria das pacientes portadoras de lesão de baixo grau há regressão espontânea. A colposcopia como apresenta alta sensibilidade (96%), baixa especificidade (48%), alta taxa de sobrediagnóstico e de sobretratamento (JONES et al, 2000a), torna-se desfavorável como primeira escolha na condução das pacientes. Se a citologia de repetição for negativa em dois exames consecutivos na Unidade da Atenção Básica, a paciente deve retornar à rotina de rastreamento citológico. Se a citologia de repetição for positiva, com qualquer atipia celular, encaminhar à Unidade de Referência de Média Complexidade para colposcopia imediata. Se a colposcopia mostrar lesão, realizar biopsia e recomendação específica a partir do laudo histopatológico. Se a colposcopia não mostrar lesão, a repetição da citologia em seis meses se impõe. Duas citologias consecutivas negativas permitem reencaminhar a paciente à Unidade da Atenção Básica para a rotina de rastreamento citológico. Se algum resultado citopatológico for sugestivo de células escamosas atípicas e/ou glandulares, novamente a paciente deverá ser avaliada pela colposcopia. Se a colposcopia de repetição não mostrar lesão e a citologia de repetição mantiver laudo sugestivo de lesão de baixo grau ou de células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente nãoneoplásico, a paciente deve continuar em controle citológico e colposcópico semestrais, até que o achado citopatológico diferente do anterior ou a lesão colposcópica venha a aparecer. Outros achados citopatológicos sem lesão colposcópica deverão ser conduzidos de acordo com as condutas padronizadas para cada caso. As condutas recomendadas, para as pacientes com lesão intra-epitelial de baixo grau, são apresentadas na Figura 5. Entrar figura 5 5.2.5. Lesão intra-epitelial de alto grau 32 Cerca de 70% a 75% das pacientes com laudo citológico de lesão intra-epitelial de alto grau apresentam confirmação diagnóstica histopatológica e 1% a 2% terão diagnóstico histopatológico de carcinoma invasor (KINNEY et al., 1998; MASSAD et al., 2001; LAVERTY et al., 1988). Sendo assim, todas as pacientes que apresentarem citologia sugestiva de lesão de alto grau, na Unidade da Atenção Básica, deverão ser encaminhadas imediatamente para a Unidade de Referência de Média Complexidade, para colposcopia como conduta inicial. Quando a colposcopia for satisfatória e mostrar lesão totalmente visualizada e compatível com a citopatologia sugestiva de lesão intra-epitelial de alto grau, a conduta recomendada é a excisão ampla da zona de transformação do colo do útero, por Cirurgia de Alta Freqüência (CAF), procedimento “Ver e Tratar” que permite realizar o diagnóstico e tratamento simultâneo. Esse método elimina a necessidade de uma biopsia prévia e de consultas adicionais - pré-tratamento, já que todo o procedimento é realizado em uma única consulta. As condições para a realização do “Ver e Tratar” são uma colposcopia satisfatória com lesão totalmente visualizada, não ultrapassando os limites do colo do útero e concordante com a citopatologia sugestiva de lesão intra-epitelial de alto grau. Caso a colposcopia seja satisfatória e não contemple o “Ver e Tratar” ou mostre lesão não concordante com a citopatologia, uma biopsia deve ser realizada. Se a biopsia for negativa ou apresentar diagnóstico de menor gravidade, deve-se repetir a citologia em três meses a contar do dia da realização da biopsia e, adotar conduta específica de acordo com esse novo laudo citopatológico. Quando o resultado da biopsia for positivo com diagnóstico igual ou de maior gravidade, deve-se seguir recomendação específica. Se a colposcopia for insatisfatória ou satisfatória e não mostrar nenhuma lesão, recomenda-se, sempre que houver possibilidade, a revisão de lâmina. No caso da revisão ser possível e alterar o laudo, a conduta será baseada nesse novo laudo citopatológico. Porém, diante de revisão possível, mas não alterando o laudo ou impossível, uma nova citologia deve ser realizada após três meses a contar da data da coleta da citologia anterior. Se a citologia de repetição apresentar o mesmo resultado (lesão de alto grau), o procedimento 33 excisional deve ser realizado. Se o resultado de repetição do exame citopatológico for diferente de lesão de alto grau, seguir conduta de acordo com o novo laudo. Quando a colposcopia for insatisfatória e mostrar lesão, uma biopsia deve ser realizada. Se o resultado da biopsia for de lesão de alto grau ou de lesão de menor gravidade, a recomendação é a exerese por métodos excisionais, seja por cirurgia de alta freqüência ou conização a bisturi a frio. Se a biopsia demonstrar diagnóstico maior que lesão de alto grau, então a paciente deve ser referenciada para Centro Especializado de Alta Complexidade para procedimento específico. As condutas recomendadas para as pacientes com lesões intra-epiteliais de alto grau são apresentadas na Figura 6. Entrar figura 6 5.2.6. Adenocarcinoma in situ / invasor Cerca de 48% a 69% das mulheres com laudo citopatológico sugestivo de adenocarcinoma in situ apresentam confirmação da lesão à histopatologia e, dessas, 38% apresentam laudo de adenocarcinoma invasor (LEE et al., 1995; VAN ASPERT-VAN et al., 2004). Portanto, todas as pacientes com citologia sugestiva de adenocarcinoma in situ, encontrada na Unidade da Atenção Básica, deverão ser encaminhadas para a Unidade de Referência de Média Complexidade para colposcopia imediata, assim como as portadoras de laudo citopatológico sugestivo de adenocarcinoma invasor. Se a colposcopia mostrar lesão, a biopsia deve ser realizada apenas para excluir invasão. Se o resultado histopatológico da biopsia não demonstrar lesão invasora, realizar conização. Caso seja confirmada a invasão, a paciente deve ser encaminhada para o Centro Especializado de Alta Complexidade. 34 Se a colposcopia não mostrar lesão, indica-se a conização, preferencialmente com bisturi a frio. Aproximadamente 58% das pacientes com diagnóstico histopatológico de adenocarcinoma in situ apresentam concomitantemente lesão de alto grau (AHDOOT et al., 1998), fato que não altera a conduta a ser tomada, ou seja, mantém-se a indicação da conização. Recomenda-se a investigação endometrial e anexial nas pacientes com mais de 40 anos mesmo sem irregularidade menstrual, assim como nas pacientes mais jovens com sangramento transvaginal anormal, toda vez que apresentarem citologia com atipia glandular de significado indeterminado. As investigações endometrial e anexial devem ser feitas por amostragem endometrial ou por exame de imagem. As recomendações para as pacientes com lesões de adenocarcinoma in situ / invasor, são apresentadas na Figura 7. Entrar figura 7 5.2.7. Lesão de alto grau não podendo excluir microinvasão ou carcinoma epidermóide invasor Todas as pacientes que apresentem citopatologia sugestiva de lesão de alto grau não podendo excluir microinvasão ou carcinoma epidermóide invasor, na Unidade da Atenção Básica, devem ser encaminhadas imediatamente à Unidade de Referência de Média Complexidade para colposcopia como conduta inicial. A definição histopatológica de invasão se impõe na Unidade de Referência de Média Complexidade. Quando a colposcopia for satisfatória ou insatisfatória e mostrar lesão, a conduta recomendada é a biopsia. Se o resultado da biopsia for de carcinoma invasor, a paciente deverá ser encaminhada para o Centro Especializado de Alta Complexidade. Se o resultado de biopsia não confirmar carcinoma invasor, realizar conização, desde que não haja indícios clínicos de 35 invasão, situação na qual a paciente deverá ser encaminhada ao Centro Especializado de Alta Complexidade. Quando a colposcopia for satisfatória ou insatisfatória e não mostrar lesão, indicar conização e recomendação específica. As condutas recomendadas para as pacientes com lesões de alto grau não podendo excluir microinvasão ou carcinoma epidermóide invasor, são apresentadas na Figura 8. Entrar figura 8 5.2.8. Recomendações específicas de acordo com o laudo histopatológico Considerando-se os laudos histopatólogicos obtidos através dos métodos incisionais e/ou excisionais, realizados na Unidade de Referência de Média Complexidade, as recomendações específicas a serem adotadas são apresentadas na Figura 9. Entrar figura 9 5.3. SITUAÇÕES ESPECIAIS 5.3.1. Mulheres pós-menopausa A conduta a ser adotada na Unidade da Atenção Básica não se altera para as pacientes em pós-menopausa, exceto nas atipias celulares de significado indeterminado e neoplasia intraepitelial de baixo grau, quando associada à atrofia genital constatada pelo exame clínico e/ou citológico, já que nesses casos há uma incidência maior de citologia falso-positiva. Nessa situação, a estrogenização, caso não haja contra-indicação, e a repetição citológica se impõem na Unidade da Atenção Básica. A estrogenização pode ser feita mediante a administração oral de estrogênios conjugados por sete dias, com a realização do exame citopatológico em até uma semana após o término do 36 esquema ou a administração tópica de estrogênio creme por sete dias, com realização do exame citopatológico entre o 3º e o 7º dia após o término do esquema. As pacientes que apresentarem anormalidade citológica, após estrogenização, deverão ser encaminhadas à Unidade de Referência de Média Complexidade para colposcopia imediata e conduta. Naquelas que apresentarem resultado negativo, uma nova citologia deverá ser realizada em 6 meses, na Unidade da Atenção Básica. Depois de duas citologias consecutivas negativas a paciente deverá retornar à rotina de rastreamento. As pacientes em pós-menopausa, uma vez na Unidade de Referência de Média Complexidade, serão submetidas às condutas anteriormente apresentadas nesse documento. 5.3.2. Mulheres imunodeprimidas As mulheres imunodeprimidas, com resultado citológico alterado, têm risco aumentado de apresentarem lesão histopatológica mais grave, ou progressão da lesão, incluindo a evolução para o câncer do colo do útero. Recomenda-se, portanto, encaminhar à Unidade de Referência de Média Complexidade, para colposcopia imediata. Considera-se paciente imunodeprimida àquela portadora do HIV, usuária de corticóides, transplantada, entre outras. Nas mulheres portadoras do HIV, as lesões precursoras apresentam envolvimento cervical mais extenso e com mais freqüência envolvem outros órgãos do trato genital inferior, tais como a vagina, a vulva e a região perianal. A investigação da paciente com citologia sugestiva de lesões de baixo e alto graus e o respectivo tratamento devem ser acompanhados de introdução de terapia anti-retroviral eficaz. Isso reduz o risco de recorrências, de progressão de lesões existentes e de persistência pós-tratamento. As pacientes imunodeprimidas, uma vez na Unidade de Referência de Média Complexidade, serão submetidas às condutas anteriormente apresentadas nesse documento. 37 Quando de retorno à Unidade da Atenção Básica, deverão ser rastreadas anualmente por toda a vida, em decorrência de maior risco de recidiva. 5.3.3. Gestantes Estudos mostram que o risco de progressão de uma lesão de alto grau para carcinoma invasor, durante o período gestacional, é extremamente baixo e a regressão espontânea após o parto é relativamente freqüente (YOST et al., 1999; PARAKEVAIDIS et al., 2002; SIRISTATIDIS et al., 2002 e COMMONWEALTH OF AUSTRÁLIA, 2005) . Mulheres gestantes com o laudo citopatológico alterado devem seguir a conduta recomendada para as pacientes não-grávidas, na Unidade da Atenção Básica. Na Unidade de Referência de Média Complexidade, o objetivo principal é afastar a possibilidade de lesão invasora; portanto, diante de uma colposcopia satisfatória ou insatisfatória mostrando lesão sugestiva de invasão, a biopsia se impõe. Caso contrário, isto é, na presença de lesão colposcópica sugestiva de lesão de alto grau ou de menor gravidade, a paciente permanecerá em controle colposcópico e citológico na Unidade de Referência de Média Complexidade, trimestralmente, até o parto. Confirmada a invasão pela biopsia, a paciente deverá ser encaminhada ao Centro Especializado de Alta Complexidade. Se a colposcopia for insatisfatória não mostrando lesão, uma nova colposcopia deve ser realizada em três meses, pela possibilidade de a colposcopia se tornar satisfatória na evolução da gravidez. Toda lesão colposcópica associada à citologia de invasão deve ser biopsiada. A conduta obstétrica, em princípio, para a resolução da gravidez, não deve ser modificada em decorrência dos resultados colposcópicos, citopatológicos e histopatológicos, exceto nos casos de franca invasão ou obstrução do canal do parto. Após o parto, as reavaliações colposcópica e citopatológica deverão ser realizadas, entre seis e oito semanas, na Unidade de Referência de Média Complexidade. 38 5.3.4. Adolescentes De acordo com a Lei nº 8069, de 13/7/1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Os achados de anormalidades citopatológicas em adolescentes sexualmente ativas têm aumentado progressivamente, alterando-se de 3% na década de 70 para 20% na década de 90 (MOUNT; PAPILLO, 1999; WRIGHT, 2005). Nessa faixa etária, freqüentemente, observam-se fatores de risco, como a sexarca precoce, multiplicidade de parceiros e fatores de risco biológicos, que geram uma maior vulnerabilidade (MOUNT; PAPILLO, 1999; WRIGHT, 2005). . A conduta na Unidade da Atenção Básica não se altera na adolescente, devendo, portanto, seguir as recomendações anteriormente apresentadas nesse documento. Na Unidade de Referência de Média Complexidade, a adolescente deverá seguir as mesmas condutas recomendadas para as pacientes em pré-menopausa, exceto se o laudo histopatológico for de NIC I, em que a conduta deverá ser conservadora, não cabendo, portanto, a indicação de métodos excisionais na persistência citopatológica e/ou colposcópica. No caso de piora da lesão colposcópica e/ou da citologia de repetição, está indicada nova biopsia. Resultado histopatológico maior que NIC I, seguir recomendações específicas de acordo com o laudo. O método “Ver e Tratar” não foi recomendado para as pacientes adolescentes e, mesmo quando houver concordância cito-colposcópica, a biopsia se impõe. REFERÊNCIAS AHDOOT, D. et al. The effect of route of delivery on regression of abnormal cervical cytologic findings in the postpartum period. American Journal of Obstetrics and Gynecology, v. 178, n. 6, p. 1116-1120, 1998. 39 BERGERON, C. et al. 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NOTA: LISTA DOS PARTICIPANTES NAS DIFERENTES ETAPAS DO TRABALHO 42 Afrânio Coelho, Alexandre José Peixoto Donato, Alvaro Piazetta Pinto, Ana Cristina Lima Pinheiro, Ana Maria Castro Morillo, Andreia Xavier Polastro, Antonio Luiz Almada Horta, Carlos Alberto Fernandes Ramos, Carlos Alberto Ribeiro, Carlos Alberto Temes de Quadros, Carlos Eduardo Polastri Claro, Celso di Loreto, Claudia Jacinto, Claudia Marcia Pereira Passos, Claudio Aldila Oliveira da Costa, Claudio Bernardo H.Pereira Oliveira, Cleide Regina da Silva Carvalho, Clovis dos Santos Andrade, Deise de Carvalho Dias, Delia Maria Rabelo, Delly Cristina Martins, Denise Barbosa, Denise José Pereira, Élbio Cândido de Paula, Elias Fernando Miziara, Elizabeth Cristina de Souza Mendes, Elsio Barony de Oliveira, Elza Baia de Brito, Elza Gay Pereyra, Estefania Mota Araripe Pereira, Ethel Cristina Souza Santos, Euridice Figueiredo, Fabio Russomano, Fatima Edilza Xavier de Andrade, Fatima Meirelles Pereira Gomes, Fatima Regina Gomes Pinto, Fernando Azeredo, Francisco de Assis Leite Filho, Francisco José Batista da Silva, Gerson Botacini das Dores, Giani Silvana Schwengber Cezimbra, Gleyce Juventelles de Oliveira Anunciação, Gulnar Azevedo e Silva Mendonça, Gutemberg Leão de Almeida Filho, Henrique de Oliveira Costa, Hercílio Fronza Júnior, Ilsa Prudente, Ilzia Doraci Lins Scapulatempo, Isa Maria Mello, Isabel Cristina Chuvalis Doval, Ivana Porto Ribeiro, João Batista da Silva, Joel Takashi Totsugui, Jorge Henrique Gomes de Mattos, Jose Anselmo Cordeiro Lopes, José Antonio Marques, José Eluf Neto, José Guilhermo Berenguer Flores, José Helvécio Kalil, José Mauro Secco, Josefina de Andrade Monteiro de Barro, Jucelei Escandela, Jupira Mesquita, Jurandyr Moreira de Andrade, Katia Regina Santos Lima, Laudycéia de S. Oliveira, Leda Pereira de Barcelos, Leonel Ricardo Curcio Junior, Letícia Katz, Liana Ariza, Luciane Maria Oliveira Brito, Lucilia Maria Gama Zardo, Luiz Cálice Cintra, Luiz Carlos de Lima Ferreira, Luiz Carlos Zeferino, Luiz Claudio Santos Thuler, Luiz Fernando Bleggi Torres, Luiz Martins Collaço, Manoel Afonso Guimarães Gonçalves, Marco Antônio Oliveira Apolinário, Marco Antonio Teixeira Porto, Marcos André Félix da Silva, Marcus Valério Frohe de Oliveira, Maria Beatriz Kneipp Dias, Maria da Conceição Aguiar Lyra, Maria Diva Lima, Maria do Carmo Esteves da Costa, Maria Fátima de Abreu, Maria Isabel do Nascimento, Maria José Camargo, Maria José de Souza Ferreira, Maria Lúcia Prest Martelli, Maria Midori Piragibe, Maria Odete Abrantes Correia Lopes, Maria Raymunda de Albuquerque Maranhão, Marieta Maldonado, Marilene Filgueiras Nascimento, Marina Andrade Amaral, Marina Lang Dias Rego, Maristela V. Peixoto, Maura Raquel Ferreira Sousa Vidal, Midori Piragibe, Mônica de Assis, Morgana Martins dos Santos, Nabiha Taha, Neil Chaves de Souza, Nelson Cardoso de Almeida, Nelson Valente Martins, Ney da Silva Pereira, Nilza Maria Sobral Rebelo Horta, Norma Império Meyrelles, Olimpio F. de Almeida Neto, Paula Fernandes de Brito, Paula Maldonado, Paulo Giraldo, Paulo Sergio Peres Fonseca, Renata Aranha, Risoleide Marques de Figueiredo, Roberto Junqueira de Alvarenga, Ronaldo Correa F. da Silva, Ronaldo L. Rangel Costa, Roseli Monteiro da Silva, Rui Luzzaito, Sergio M. Bicalho, Sérgio Tavolaro Pereira, Sheila Rochelin, Sônia Maria Lima S. Marcena, Sueli Aparecida Maeda, Tânia Maria 43 Cruz Werton Veras, Terezinha Castelo Branco Carvalho, Therezinha Sanfim Cardoso, Valeria de Andrade, Valeria Hora de Mello, Vânia Reis Girianelli, Vera Lucia Motta da Fonseca, Virgílio Augusto G. Parreira, Virginia Borges Nassralla, Wanuzia Queila de Miranda, Wilhermo Torres, Wilna Krepke Leiros Dias. GLOSSÁRIO Centro Especializado de Alta Complexidade - considera-se como Centro Especializado de Alta Complexidade em Oncologia os hospitais definidos pela portaria SAS/MS nº741, de 19 de dezembro de 2005, como Unidades de Alta Complexidade em Oncologia, Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) e Centros de Referência de Alta Complexidade em Oncologia. Unidade de Alta Complexidade em Oncologia - “hospital que possua condições técnicas, instalações físicas, equipamentos e recursos humanos adequados à prestação de assistência especializada de alta complexidade para diagnóstico definitivo e tratamento dos cânceres mais prevalentes no Brasil.” CACON - “hospital com condições técnicas, instalações físicas, equipamentos e recursos humanos adequados à prestação de assistência especializada de alta complexidade para diagnóstico definitivo e tratamento definitivo para todos os tipos de câncer”. Centro de Referência de Alta Complexidade em Oncologia - “CACON que exerça o papel auxiliar, de caráter técnico, ao Gestor do SUS nas políticas de Atenção Oncológica.” Colposcopia - Método óptico para exame do trato genital inferior iluminado com magnificação intermediária entre o olho desarmado e o pequeno aumento do microscópio. Recomenda-se que a colposcopia seja sempre diferencial, isto é, não se restrinja à simples observação e descrição dos achados, mas que seja suficientemente rigorosa e pormenorizada para melhor dirigir o ato da biopsia localizando o epicentro da lesão, o ponto mais significante, aquele com maior probabilidade de corresponder ao substrato histopatológico sugerido pelo achado colposcópico. 44 Colposcopia insatisfatória - Considera-se colposcopia insatisfatória o exame que apresente, pelo menos uma, das seguintes condições: junção escamo-colunar não visível, inflamação severa, atrofia severa, trauma ou cérvice não-visível. Colposcopia satisfatória - Considera-se satisfatória a colposcopia que não apresente, pelo menos uma, das seguintes condições: junção escamo-colunar não-visível, inflamação severa, atrofia severa, trauma ou cérvice não-visível. Colposcopia sem lesão - Considera-se sem lesão o exame sem achados colposcópicos anormais ou sugestivos de câncer invasivo. Conduta Específica - qualquer medida tomada diante de um resultado citológico. Métodos Excisionais – estes métodos incluem tanto a exerese completa da Zona de Transformação, como a conização. Conização - remoção da zona de transformação e de parte variável do canal cervical. A extensão da excisão depende da gravidade da lesão em tratamento, da idade da paciente, da visualização da junção escamo-colunar, entre outros fatores. A decisão quanto à extensão deve ser tomada em função do texto de “Condutas preconizadas” e de acordo com o julgamento do médico para cada caso. Recomendação Específica - qualquer conduta tomada diante de um resultado histopatológico. Terminologia colposcópica - nomenclatura para laudos colposcópicos, sendo recomendada a adoção da Terminologia Colposcópica da IFCPC – Barcelona 2002. Unidade da Atenção Básica - unidades que compõem a estrutura básica de atendimento aos usuários do SUS. Pode ser: • Unidade Saúde da Família - unidade pública específica para a prestação de assistência em atenção contínua programada nas especialidades básicas e com equipe multidisciplinar para desenvolver as atividades que atendam às diretrizes da estratégia Saúde da Família do Ministério da Saúde. 45 • Posto de Saúde - unidade destinada à prestação de assistência a uma determinada população, de forma programada ou não, por profissional de nível médio, com presença intermitente ou não de profissional médico; • Centro de Saúde/ Unidade da Atenção Básica - unidade para a realização de atendimentos de atenção básica e integral a uma população, de forma programada ou não, nas especialidades básicas, podendo oferecer assistência odontológica e de outros profissionais de nível superior. A assistência deve ser permanente e prestada por médicos generalistas ou especialistas nessas áreas. Pode ou não oferecer SADT e pronto atendimento 24 horas; • Unidade móvel fluvial - barco/navio, equipado como unidade de saúde, contendo, no mínimo, um consultório médico e uma sala de curativos, podendo ter consultório odontológico. • Unidade terrestre móvel para atendimento médico/odontológico - veículo automotor equipado, especificamente, para prestação de atendimento ao paciente. • Unidade mista - unidade de saúde básica destinada à prestação de atendimento em atenção básica e integral à Saúde, de forma programada ou não, nas especialidades básicas, podendo oferecer assistência odontológica e de outros profissionais, com unidade de internação, sob administração única. A assistência médica deve ser permanente e prestada por médico especialista ou generalista. • Ambulatório de Unidade Hospitalar – serviço de atenção básica que funciona em hospitais. Unidade de Referência de Média Complexidade - Unidade de Referência para o tratamento e acompanhamento das Condutas Preconizadas de alterações pré-malignas ou malignas no exame citopatológico A média complexidade é um dos três níveis de atenção à Saúde, considerados no âmbito do SUS. Compõe-se por ações e serviços que visam a atender aos principais problemas de saúde e agravos da população, cuja prática clínica demande disponibilidade de profissionais especializados e o uso de recursos tecnológicos de apoio diagnóstico e terapêutico. A atenção 46 média foi instituída pelo Decreto nº 4.726 de 2003, que aprovou a estrutura regimental do Ministério da Saúde. Suas atribuições estão descritas no Artigo 12 da proposta de regimento interno da Secretaria de Assistência à Saúde. Os grupos que compõem os procedimentos de média complexidade do Sistema de Informações Ambulatoriais são os seguintes: 1) procedimentos especializados realizados por profissionais médicos, outros de nível superior e nível médio; 2) cirurgias ambulatoriais especializadas; 3) procedimentos traumato-ortopédicos; 4) ações especializadas em odontologia; 5) patologia clínica; 6) anatomopatologia e citopatologia; 7) radiodiagnóstico; 8) exames ultra-sonográficos; 9) diagnose; 10) fisioterapia;11) terapias especializadas;12) próteses e órteses; 13) anestesia. O gestor deve adotar critérios para a organização regionalizada das ações de média complexidade, considerando a necessidade de qualificação e especialização dos profissionais para o desenvolvimento das ações; os dados epidemiológicos e sociodemográficos de seu município; a correspondência entre a prática clínica e a capacidade resolutiva diagnóstica e terapêutica; a complexidade e o custo dos equipamentos; a abrangência recomendável para cada tipo de serviço; economias de escala e métodos e técnicas requeridas para a realização das ações. Submissão: junho de 2006 Aprovação: setembro de 2006 Trauma mamilar e a prática de amamentar: estudo com mulheres no início da lactação Nipple trauma and breast-feeding: a study of women in the early stages of lactation. Aida Victoria Garcia Montrone 1; Cássia Irene Spinelli Arantes 2 ; Ana Carolina S. Nassar 3; Thaisa Zanon 4 Resumo Este estudo foi desenvolvido com o objetivo de identificar a ocorrência de trauma mamilar em mulheres no início da lactação, relacioná-lo com outras dificuldades e com o tipo de aleitamento materno; descrever e analisar as condutas adotadas pelas mulheres para o tratamento do trauma mamilar e compreender a influência dessa dificuldade na percepção das mulheres sobre a prática de amamentar. Trata-se de um estudo descritivo com análise quantitativa e qualitativa dos dados. Foram selecionadas mulheres atendidas pelo SUS de São Carlos com recém-nascidos a termo, em fevereiro de 2005. Realizaram-se 84 entrevistas entre o 13° e 15° dia pós-parto, identificando 40 mulheres com trauma mamilar. Para análise dos dados foram utilizados o Programa Epi-Info 2000 e os passos da pesquisa 1 Universidade Federal de São Carlos - SP, Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Metodologia de Ensino. Enfermeira Obstétrica, Doutora em Educação, Professora Adjunta do Departamento de Metodologia de Ensino. Endereço: Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Metodologia de Ensino, Via Washington Luiz, km 235, Caixa Postal 676 CEP: 13565-905 – São Carlos, SP. Telefone: (16) 33518373; Fax: (16) 33518372. E-mail: [email protected] 2 Universidade Federal de São Carlos - SP, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Departamento de Enfermagem. Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem. 3 Universidade Federal de São Carlos - SP, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Aluna do Curso de Graduação em Enfermagem. Pesquisadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica-PIBIC/CNPq/UFSCar 4 Universidade Federal de São Carlos - SP, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Aluna do Curso de Graduação em Enfermagem. Pesquisadora do Programa Unificado de Iniciação CientíficaPUIC/UFSCar qualitativa. Os resultados obtidos mostram que 47,6% das mulheres apresentaram trauma mamilar. A maioria ocorreu na primeira semana pós-parto e 25% logo após a primeira mamada. Das 40 mulheres entrevistadas, 47,5% apresentaram também outras dificuldades, principalmente o ingurgitamento mamário. 10% das mães já haviam introduzido outro leite na alimentação do bebê. As condutas mais utilizadas para resolução das lesões foram: utilização de leite materno (55%) e exposição ao sol (47,5%). Na percepção das mulheres, a prática de amamentar com trauma mamilar foi uma experiência dolorosa, marcada por conflitos de sentimentos. A proporção de trauma mamilar em mulheres no início da lactação é alta e se constitui em um importante fator de risco para o desmame precoce. Há necessidade de profissionais capacitados atuarem junto às mulheres, tanto no manejo clínico da amamentação quanto na dimensão afetiva, emocional e social dessa vivência. Palavras-chave: aleitamento materno. Abstract The objective of this study is to identify the incidence of nipple trauma in women at the beginning of lactation, to relate it to other difficulties and to the type of maternal breastfeeding; to describe and analyze the practices adopted by women for the treatment of nipple trauma and to understand the influence of such difficulty in women’s perceptions of breastfeeding practices. The research methodology was a descriptive study with quantitative and qualitative analysis of data. Women with newborn babies from the SUS in São Carlos were selected in February 2005. Eighty-four (84) interviews were held on the 13th and 15th postpartum day, and 40 women with nipple trauma were identified. For data analysis, the Epi-Info 2000 Program and qualitative research steps were used. The results obtained show that 47.6% of the women presented nipple trauma. Most of the cases occurred in the first week postpartum, and 25% soon after the first suckle. Of the 40 women interviewed, 47.5% presented other difficulties as well, mainly mammary ingurgitation. 10% of the mothers had already introduced another type of feeding to their babies. The most commonly used practices to resolve lesions were: using maternal milk (55%) and sun exposure (47.5%). The practice of breast-feeding with nipple trauma, according to the women, was a very painful experience full of feelings of conflict. The percentage of nipple trauma in women at the beginning of breast-feeding is high and accounts for an important risk factor that leads to precocious weaning. There is a need for trained professionals to work alongside these women in the clinical handling of breast-feeding, as well as in the affective, emotional and social aspects of this experience. Keywords: Breast Feeding. Introdução É consenso na literatura os benefícios que a amamentação oferece para a criança, para a mulher, para o estabelecimento do vínculo afetivo entre mãe e filho, para família e até mesmo para a sociedade (ALMEIDA, 1999; ALMEIDA; NOVAK 2004; NÓBREGA, 2002; REA, 2004; TERUYA; COUTINHO, 2002). Porém, somente a exaltação desses benefícios não tem determinado um aumento significativo da amamentação exclusiva, pois o desmame precoce continua a ocorrer de forma predominante, ainda que as investigações mostrem uma elevação da prática de amamentar nas três últimas décadas. No Brasil, estudos têm verificado que a tendência da amamentação teve um incremento entre 1975 e 1989, quando a mediana da amamentação passou de 2,5 meses para 5,5 meses. No entanto, este aumento foi mais acentuado para a área urbana e para as regiões centro-oeste e sudeste (VENÂNCIO; MONTEIRO, 1998; VENÂNCIO, 2003). Trabalhos realizados no final da última década mostram que, apesar de a maioria dos bebês (96,4%) serem amamentados quando saem da maternidade, somente 40% deles recebem aleitamento materno exclusivo até os quatro meses de idade (REA, 1998). No entanto, apesar da tendência ascendente da prática da amamentação no Brasil, estamos longe de atingir a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde, de amamentação exclusiva até os seis meses, continuando o aleitamento materno até os dois anos de idade ou mais (BRASIL, 2002). Sendo assim, o desmame precoce ainda caracteriza-se como uma tendência presente entre as crianças brasileiras. Montrone e De Rose (1996), em estudo realizado para avaliar a eficácia de um programa educacional de estímulo ao aleitamento materno, encontraram no grupo de mães-controle que um dos principais motivos alegados pelas mães para a introdução de mamadeira foi o “leite secou” e “pouco leite”. Ramos e Almeida (2003), num estudo qualitativo que buscava compreender as razões para o desmame, constataram que o segundo fator de interferência sobre o processo de amamentação foi a intercorrência com a mama puerperal durante o período de lactação. Nakano (2003), investigando quais os problemas na amamentação apontados pelas mulheres, identificou que 73% das entrevistadas alegaram problemas mamários, 10,2% dificuldades com as mamas e com o bebê, 8,4% problemas com o bebê, 4,5% outros motivos. Dentro de problemas mamários, os traumas mamilares apresentam-se como uma dificuldade que influencia na manutenção da amamentação. Vinha (1988) diferenciou a denominação dos traumas mamilares de acordo com o tipo de lesão. São encontradas, ainda, outras denominações como fissuras ou lesões, e popularmente também são conhecidos como rachaduras. Os traumas mamilares são lesões nos mamilos causadas principalmente por posicionamento incorreto e pega inadequada (GIUGLIANI, 2004; THOMSON, 2002;). São extremamente dolorosos e desconfortáveis, podendo contribuir para a interrupção do processo de amamentação. Nessa perspectiva, há relevância em se conhecer a incidência desse tipo de lesão entre as mulheres em lactação e quais as condutas adotadas para sua solução. Os objetivos deste estudo consistiram em identificar a ocorrência de trauma mamilar em mulheres no início da lactação, relacioná-lo com outras dificuldades e com o tipo de aleitamento materno; descrever e analisar as condutas adotadas pelas mulheres para o tratamento do trauma mamilar e compreender a influência dessa dificuldade na percepção das mulheres sobre a prática de amamentar. Métodos Foi realizado um estudo descritivo com abordagem quantitativa e qualitativa. Participaram do estudo mulheres da zona urbana de São Carlos atendidas nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e que tiveram recém-nascidos a termo no mês de fevereiro de 2005, na Maternidade Dona Francisca Cintra Silva, única conveniada ao SUS que atendeu neste período 89,2% de todos os partos realizados no município. Foram selecionadas aquelas mulheres que realizaram pré-natal e que teriam posterior acompanhamento nas unidades de atenção básica da Secretaria Municipal de Saúde de São Carlos. Nesse mês, foram registrados 191 nascidos vivos, dos quais 137 atendidos pelo SUS. Duas alunas do curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de São Carlos, previamente capacitadas, abordaram 99 mulheres durante o período de recuperação pós-parto e as convidaram para participar da pesquisa. Um total de 96 mães aceitou o convite, assinando termo de autorização para visita no domicílio. Dessas, 12 mulheres não foram entrevistadas devido à mudança de endereço, por não terem sido encontradas no domicílio, ou pelo fornecimento de endereço incorreto. Foram entrevistadas 84 mulheres, entre o 13º e o 15º dia após o nascimento do bebê das quais 40 apresentaram traumas mamilares e constituíram o universo deste estudo. As entrevistas foram realizadas seguindo roteiro semi-estruturado (Anexo), gravadas e numeradas conforme a ordem de realização. Para identificar o tipo de aleitamento materno que os bebês estavam recebendo foram seguidas às definições preconizadas pela OMS (OMS, 1991): -Amamentação exclusiva: aleitamento materno como único alimento, podendo o lactente receber também vitaminas, minerais ou medicamentos; -Amamentação predominante: aleitamento materno mais água, sucos, chá, soro de rehidratação oral; -Amamentação: recebe leite materno, independente do consumo de qualquer complemento, lácteo ou não. Foi considerado desmame, quando os bebês não recebiam mais leite materno. Para o cálculo da freqüência e porcentagens de trauma mamilar e dificuldades associadas, foi utilizado o programa Epi-Info 2000, versão 3.2 para Windows, que possibilitou a criação de um banco de dados, análise de freqüência simples e cruzamento das variáveis, com intervalo de confiança de 95%. Na análise qualitativa, as informações das entrevistas foram transcritas para interpretação das percepções das mulheres sobre a influência do trauma mamilar na prática de amamentar, seguindo os passos propostos por Minayo (1992): ¾ Ordenação das informações: é o mapeamento das informações; ¾ Classificação das informações: consiste na leitura exaustiva do material para identificação de temas relevantes e estabelecimento de categorias temáticas e, ¾ Análise final: é a realização de articulações entre as informações e as referências teóricas adotadas. Este trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (nº 131/04). Resultados e Discussão Caracterização da população de estudo Em relação à idade, 20% das mulheres apresentavam-se na faixa etária inferior a 20 anos, 72,5% encontravam-se entre 20 e 35 anos e 7,5% tinham idade acima de 35 anos. Quanto à escolaridade, identificou-se a seguinte distribuição: Ensino Fundamental, 10%; Ensino Fundamental incompleto, 22,5%; Ensino Médio, 40%; Ensino Médio incompleto (25%) e apenas 1 (2,5%) completou Ensino Superior. A maioria das mulheres (80%) referiu residir com o pai da criança; e apenas 20% relataram estarem inseridas no mercado de trabalho. Análise quantitativa A porcentagem de mulheres que apresentaram trauma mamilar foi de 47,6%, caracterizando-se como uma dificuldade importante no início da amamentação e podendo ser considerada a principal dificuldade a ser enfrentada pelas mulheres durante a primeira quinzena pós-parto. Thomson (2002), em um estudo realizado na Clínica de Lactação do Ambulatório do Hospital das Clínicas de Londrina, constatou que 48,5% das consultas realizadas num período de 17 meses (maio de 1995 a agosto 1996) foram por fissuras mamilares. Estes resultados apontam para a necessidade de a equipe de saúde ter competência técnica para atuar na prevenção e no tratamento precoce dos traumas mamilares de forma a que as mulheres possam vivenciar uma prática de amamentar mais positiva. A Tabela 1 mostra a freqüência de outras dificuldades na amamentação relatadas pelas mulheres com trauma mamilar. Das 40 mulheres entrevistadas, 19 (47,5%) apresentaram também outras dificuldades na amamentação e a principal foi o ingurgitamento mamário. De acordo com Giugliani (2004), esta dificuldade, caracterizada pelo aumento excessivo das mamas e sensibilidade dolorosa, pode comprometer a pega correta do bebê, sendo considerada um fator de risco para o surgimento de traumas mamilares. Algumas condutas utilizadas para a resolução do ingurgitamento mamário como o uso de bombas de extração de leite, também podem favorecer a ocorrência de lesões nos mamilos. Inserir Tabela 1: Outras dificuldades e trauma mamilar A distribuição do tipo de aleitamento recebido pelos bebês das mulheres que apresentaram trauma mamilar apresentou a seguinte proporção: amamentação exclusiva, 70%; amamentação predominante, 20%; amamentação, 97,5% e desmame, 2,5%. Das crianças que estavam em amamentação, 7,5% já recebiam complemento lácteo. A introdução de fórmulas lácteas foi atribuída pelas mulheres à dor decorrente do trauma mamilar. Estes resultados evidenciam que a experiência dolorosa do trauma mamilar pode favorecer o início do processo de desmame, logo na segunda semana de vida do bebê. O Gráfico 1 apresenta as condutas adotadas pelas mulheres para a resolução dos traumas mamilares. Ressalta-se que muitas mulheres utilizaram mais de uma conduta no tratamento das lesões. Inserir: Gráfico 1: Condutas adotadas pelas mulheres para resolução dos traumas mamilares Nota-se que a conduta mais adotada foi a utilização do próprio leite materno na região mamilo-areolar (55%). Esta conduta vem sendo indicada no tratamento úmido das fissuras mamilares (GIUGLIANI, 2004), já que o leite forma uma película protetora que impede a desidratação das camadas mais profundas da derme, facilitando a cicatrização dessas soluções de continuidade. A autora citada afirma que as propriedades antiinfecciosas do leite materno ajudam a prevenir a mastite, importante complicação dos traumas mamilares. A recomendação é que as mulheres espalhem o próprio leite pela região mamilar após cada mamada sem a necessidade de qualquer limpeza do mamilo na mamada seguinte. Outra conduta bastante utilizada pelas mulheres para a resolução dos traumas mamilares foi a exposição ao sol (47,5%). Apesar de não ser mais indicada para o tratamento do trauma mamilar, mas sim para sua prevenção, grande parte das mulheres (42,5%) referiu que esta conduta foi recomendada por profissionais de saúde. Isto evidencia a necessidade de atualização das equipes de saúde para o manejo dos traumas mamilares. A correção da pega foi apontada como conduta para solucionar os traumas mamilares por apenas 10% das mulheres, apesar de ter sido reconhecida como causa para a ocorrência dos mesmos. Essa é a principal conduta a ser adotada na prevenção e tratamento das lesões. Várias mulheres relataram que ao corrigir a pega do bebê houve diminuição da dor e maior conforto durante a amamentação com o mamilo lesado, entretanto, não relacionaram a pega adequada com a resolução deste problema. O uso de óleos a base de ácidos graxos essenciais (AGE) tem demonstrado eficácia no tratamento de soluções de continuidade. Esses óleos ricos também em vitamina A e D têm sido considerados eficientes para o tratamento dos traumas mamilares, sem a necessidade de ser retirado para a sucção do bebê (GIUGLIANI, 2003; GIUGLIANI, 2004). Neste estudo, 10% das mulheres referiram ter recebido orientações sobre o uso dessa substância. Outras condutas não recomendadas no tratamento das lesões mamilares foram utilizadas pelas mulheres: pomadas (10%) e hidratantes comuns (5%). Este tipo de conduta não é indicado para resolução de traumas mamilares, devido à necessidade de retirar o produto antes da mamada, dificultando a cicatrização (GIUGLIANI, 2004). Verificou-se, ainda, o uso de intermediários (5%) conhecidos como “bicos de silicone” para amamentar, prática que também não é recomendada já que prejudica a pega correta do bebê e interfere no processo de amamentação. O uso da casca de banana foi apontado por algumas mulheres (5%), o que não é mais indicado para tratamento das lesões mamilares, devido ao grande risco de infecção mamária causado pelos altos níveis de microorganismos encontrados nessas substâncias (NOVAK, 2003). A maioria das mulheres (95%) apresentou trauma mamilar durante a primeira semana pós-parto, sendo que 25% iniciaram logo na primeira mamada. Este fato aponta para necessidade de ações de apoio à mulher nas primeiras mamadas de forma a garantir a pega adequada do bebê antes da alta da Maternidade. O tempo de cicatrização das lesões variou entre 2 e 10 dias, com média de 6,1 (±2,09), quando consideradas todas as condutas utilizadas pelas mulheres para solucionálas. Análise qualitativa A análise das informações permitiu identificar as seguintes categorias temáticas: Renunciando aos próprios sentimentos na experiência de amamentar; O profissional de enfermagem na resolução do trauma mamilar; Conhecimentos das mulheres sobre o manejo dos traumas mamilares. Renunciando aos próprios sentimentos na experiência de amamentar A análise das falas das mulheres sobre a percepção da prática de amamentar na ocorrência de trauma mamilar foi considerada uma experiência dolorosa, marcada por conflitos de sentimentos e permeada pela resignação de seu bem estar em favor do bem estar do seu filho. A dor é considerada pela mulher como algo que torna o momento da amamentação difícil, tenso, gerador de angústia e ansiedade. O choro e o grito são explosões emocionais que demonstram a tensão que caracteriza o momento da amamentação com trauma mamilar. ... a dor é terrível, eu não desejo pra ninguém, você quer chorar, gritar... a gente não desiste por qualquer coisa não... (28) ... é uma das piores, nunca tinha sentido [...] parecia que meu bico ia cair... (32) ... dava vontade de chorar e de sair gritando. Só de pensar [...] 5 minutos antes da amamentação dava vontade de gritar ... (24) Para algumas mulheres, no entanto, desempenhar sua função de boa mãe exige sacrifícios, por isso consideram a dor como passageira e sem significado frente à importância da amamentação para seu bebê: ... a gente acaba acostumando... a gente sabe que vai ser bom pro nosso nenê [...] a gente acaba agüentando a dor ali quietinha ... (7) ... falo: ninguém fala comigo, porque eu to amamentando [...] de tanta dor, mas eu coloco ele pra mamar mesmo assim ... (18) ... pensando em mim [..] ai dói demais! Eu vou dando de mamá e vou chorando junto [...] ela chora e eu também, mas prefiro eu chorando do que ela ... (36) De acordo com Nakano (2003, p.362), amamentar é a “emblemática de ser uma boa mãe” e ainda, é a fase em que se estabelecem e fortalecem os vínculos afetivos entre a mãe e seu filho, por isso “o objeto de seu desejo é corresponder às necessidades do filho, priorizando o seu bem-estar, em detrimento do próprio”. Neste estudo, a experiência de amamentar se mostrou permeada pelo sofrimento que é superado pelas mulheres com resignação devido aos benefícios do leite materno para a saúde e crescimento do bebê. Tudo isso sintetiza a busca das mulheres em cumprirem seu papel de boa mãe, independente de suas próprias necessidades e sentimentos. O profissional de enfermagem na resolução do trauma mamilar As mulheres relataram que as orientações recebidas pela equipe de enfermagem tanto da maternidade, quanto das unidades de atenção básica à saúde foram importantes na resolução dos traumas mamilares. ... “As enfermeiras da maternidade... porque elas têm mais experiência, e eu por ser mãe de primeira viagem”... (5) ... a enfermeira lá do postinho e da maternidade. Porque elas que me orientaram... o óleo, a tomar sol... foram elas que falaram... (39) ...foi realmente essa enfermeira que me orientou [...] o dia que eu fui fazer consulta com ela, eu pedi uma orientação, porque eu não sabia o que fazer... (19) Estes relatos mostram a importância do apoio à mulher pela equipe de saúde, durante sua estadia na maternidade, assim como no atendimento nas Unidades de Atenção Básica à Saúde. É necessário garantir o acesso para atendimento com a enfermeira nas unidades de saúde sempre que a mulher em processo de amamentação necessite e, especialmente, quando ela se encontra diante de dúvidas e/ou dificuldades na prática de amamentar. Conhecimentos das mulheres sobre o manejo dos traumas mamilares Os conhecimentos das mulheres sobre o manejo dos traumas mamilares foram escassos e insuficientes para a prevenção e resolução rápida dessas lesões. A maioria das mulheres entrevistadas reconheceu a pega inadequada como causa dos traumas mamilares, entretanto, apenas uma pequena parte considerou a correção da pega como forma de prevenir e tratar as lesões mamilares. ...eu acho que foi no pegar dela...ela pega errado, ela pega muito o bico [...]ela pega muito a pontinha, então foi rachando (33). Elas citaram diversas condutas que não são mais indicadas e muitas vezes favorecem a ocorrência das lesões mamilares, como preparar os mamilos com toalhas e buchas durante a gestação. ...porque eu não preparei ele antes, [...] esfregar com buchinha, cortar o sutiã, deixar o bico para fora pra raspar na blusa (9). Muitas mulheres atribuíram a elas próprias a ocorrência do trauma mamilar: ... acho que é porque ela não sabia pegar e eu não sabia dá, acho que a culpa foi minha, porque se eu soubesse dá ela saberia pegar (30). Essa fala evidencia que além da renúncia aos próprios sentimentos frente à amamentação com trauma mamilar, as mulheres também trazem para si toda a responsabilidade e culpa pela sua ocorrência. Considerações finais Este trabalho evidenciou que a proporção de trauma mamilar em mulheres no início da lactação é alta e se constitui em um importante fator de risco para o desmame precoce. A principal dificuldade associada foi o ingurgitamento mamário. Os resultados desta investigação apontaram tanto para a necessidade imediata de estratégias de apoio e auxílio à mulher com trauma mamilar, quanto para a importância da capacitação da equipe de saúde, de modo que esteja preparada para atuar na prevenção, na resolução dos traumas mamilares e na promoção de ações educativas que possibilitem à população o acesso a informações atualizadas sobre amamentação. Também é importante que sejam trabalhados, junto às mulheres, os sentimentos de culpa, de resignação, de ambigüidade, de angústia, entre outros, presentes no momento da maternidade e que são oriundos do papel atribuído às mulheres na nossa sociedade. É preciso garantir os direitos das mulheres diante das dificuldades vivenciadas e desmitificar o valor sócio-cultural que a dor possui na experiência de amamentar. Referências ALMEIDA, J.A.G.; NOVAK, F.R. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 80 supl. l5, p.119-25, 2004. ALMEIDA, J.A.G. 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Tese (Livre Docência)Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 1988. Submissão: junho de 2006 Aprovação: outubro de 2006 ANEXO ROTEIRO ENTREVISTA – TRAUMA MAMILAR Entrevista Nº_______ DATA:___/___/____ Entrevistadora:____________________ Nome da Mãe:____________________________________________DN:___/___/___ Endereço:_____________________________________________________________ Telefone:______________Escolaridade:_________________Companheiro: S( ) N( ) Trabalha: S( ) N( ) Local:____________________ Registro em Carteira: S( ) N( ) Nº filhos vivos:_________ Nº Partos: Normal_____ Cesárea______ Outros______ Alimentação atual do bebê: ( )LM ( )Água ( )Chá ( )Suco ( )Outro leite:________ Quando iniciou: ___________Por quê? Experiência anterior de amamentação: S( ) N( ) Tempo máximo:_________ Pré-natal: ( )S ( )N Onde:________________________________________________ Orientações amamentação: No Pré-Natal: ( )S ( )N Onde:_____________________Quem:____________________ Maternidade: ( )S ( )N Quem:______________________________________________ Outros:__________________________________________________________________ Data do último parto: ____/____/___ Tipo:___________________ Sexo RN: F( ) M( ) Peso (g):_________ Altura (cm):________ Apgar:__________ Intercorrências - mãe:_____________________________________________________ _______________________________________________________________________ Intercorrências - bebê:____________________________________________________ _______________________________________________________________________ 1ª mamada: ( ) minutos ou ( ) horas após parto Consulta Puerperal: ( )S ( )N Onde:________________________________________ Dificuldades na amamentação: ( ) Leite empedrado ( ) Rachadura ( ) Pouco leite ( ) Leite fraco/leite não sustenta ( ) Muito leite ( ) Bebê chora muito ( ) Bebê não pega ( ) Não tem bico ( ) Bebê dorme muito ( ) Mastite Outros: _____________________________________________________________________ Trauma Mamilar: ( ) mamilo esquerdo ( ) mamilo direito Quando iniciou ?_________________________ Tempo cicatrização: ______________________ Condições atuais do mamilo:_________________________________________________ ____________________________________________________________________ A Senhora poderia me contar tudo o que aconteceu a partir do momento em que apareceu a rachadura no seu peito ? Na sua percepção, quem foi a pessoa que mais ajudou na solução da rachadura no mamilo? Por quê? Por que a senhora acha que o mamilo rachou? O que a senhora acha que as mulheres que amamentam devem fazer para não rachar o mamilo? Como tem sido a experiência de amamentar com trauma mamilar ? EXPERIMENTANDO A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO COM BASE EM DIFERENTES SABERES Constructing understanding based on different kinds of knowledge Vera Joana Bornstein1 RESUMO O presente artigo relata uma experiência de trabalho em saúde por meio da qual se pretende ilustrar o enfoque de educação popular em saúde que possibilitou a construção compartilhada do conhecimento e o fortalecimento da organização grupal para a intervenção na realidade. A experiência parte da iniciativa de agentes comunitários que detectam uma situação problema na comunidade e conseguem mobilizar pessoas com diversos vínculos institucionais. Palavras-chave: Conhecimento. Conhecimentos, Atitudes e Práticas em Saúde. Medicina Tradicional. Educação da População. Educação Em Saúde. Ensino. ABSTRACT This paper presents a health-related work experience through which we intend to illustrate the focus of popular health education that made it possible to “construct shared knowledge” and to strengthen the organization of the group, in order to change reality. The experience has its starting point in the initiative of community agents who detect a problematic situation in the community, and are able to involve people with various institutional connections to help find the solution. Key words: Knowledge. Health knowledge, Attitudes, Practice. Population Education. Medicine, Tradicional. Health Education. Teaching. INTRODUÇÃO A educação popular é entendida como um meio de transformação da sociedade na medida em que pretende fortalecer a autonomia do educando na busca de soluções para suas problemáticas. Surge em contraposição às correntes condutivistas, que no campo da saúde buscam a modificação do comportamento ou das condutas da população, consideradas pelos profissionais como prejudiciais à saúde, pautados no 1 Doutoranda da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ; Mestre em Administração em Saúde; Endereço: Rua Joaquim Murtinho, 756 apto. S-302; Santa Teresa; CEP 20241-320 Rio de Janeiro - RJ. E-mail: [email protected], telefone (21) 91164998. 1 modelo biomédico de concepção do processo saúde/doença. Stotz (1993, p.21) aborda os enfoques sobre educação e saúde e menciona que apesar das evidências epidemiológicas de que os fatores responsáveis pelas melhorias de saúde são sociais, comportamentais e ambientais, “[...] o modelo médico ainda constitui a base filosófica da educação em saúde, orientando o enfoque dominante nos serviços de saúde, a saber, o preventivo”. Com relação à atitude de transmissão de conhecimento de forma unilateral presente nesta corrente educativa, Paulo Freire destaca o fato de nela estar implícito o entendimento de que o educando não tem conhecimentos anteriores e que, portanto, nele devem ser depositados os conhecimentos do educador. Refere-se a este tipo de educação como “educação bancária” em que o saber é entendido como “uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber”. (FREIRE, 1970, p.67). Eymard Vasconcelos (2001, p.123) se refere a este tipo de educação como “toca boiada”, reportando-se à imposição de normas e comportamentos considerados adequados pelos técnicos, que conduzem a um caminho previamente determinado. Estabelece-se uma relação vertical e autoritária entre o profissional e a população, baseada na crença de que quem detém o saber é o educador e que é ele quem deve transmitir suas informações e ensinamentos. Paulo Freire (1970, p.34) comenta que “toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência ‘hospedeira’ da consciência opressora”. A educação popular parte do princípio de que o educando tem um saber prévio, adquirido através de sua história de vida, de sua prática social e cultural e de que este é o ponto de partida para a aquisição de novos conhecimentos. A relação que se estabelece entre educador e educando é necessariamente dialógica, baseada no reconhecimento da existência de diferentes saberes e na possibilidade de aprendizagem mútua. Outro elemento fundamental na metodologia de educação popular é o entendimento da educação como um processo de busca e de invenção ou reinvenção que parte da ação e da reflexão do homem sobre o mundo para transformá-lo. A problematização das experiências ou situações vividas se constitui em desafio para a transformação e, portanto, também em fonte para a organização do conteúdo 2 programático do processo educativo: “... a incerteza como caminho de ganhar a certeza.”. (FREIRE; BETTO, 1991, p.76). A construção do conhecimento através do compartilhamento de saberes faz parte do diálogo de acordo com Carvalho et al (2001, p.103) “... todos os sujeitos são docentes de saberes diferentes”. Este entendimento incorpora a visão de Santos (1989) em que a caracterização do senso comum não tem como referência a contraposição ao conhecimento científico. O senso comum ou o saber popular expressam a experiência da população, suas estratégias de vida; por outro lado, a ciência é fruto de estudos e experimentos realizados durante anos. Carvalho et al. (2000) ressaltam como fundamento para a relação entre conhecimento científico e senso comum, os limites do conhecimento científico sobre saúde no que se refere às causas das doenças e à sua cura, e sobre a importância da experiência da enfermidade e do conhecimento comum das pessoas; a concorrência entre diferentes sistemas médicos; a medicalização de comportamentos sociais e a complexidade do adoecer humano. Apresenta-se a seguir, uma experiência de trabalho em saúde com o objetivo de ilustrar algumas das características da educação popular, principalmente o estabelecimento de uma relação dialógica entre sujeitos com diferentes saberes que possibilitou a construção compartilhada do conhecimento e o fortalecimento da organização grupal para a intervenção na realidade. A experiência parte da iniciativa de agentes comunitários pertencentes a uma equipe do Programa de Agentes Comunitários de Saúde do Complexo da Maré – RJ, que no seu contato diário com a população e por meio de sua própria vivência no local, detectaram uma situação problema que possibilitou a mobilização de vários setores da comunidade. Segue o relato da experiência na qual estão presentes características da Educação Popular na busca de ilustrar também que Esse jeito de pensar e de fazer saúde pautados na experiência favorece uma forma de expansão e de crescimento que exerce grande fascínio sobre quem se depara, como é o caso dos profissionais de saúde, com as limitações do tecnicismo da formação e da orientação normativa da ação face à complexidade da vida. (STOTZ et al., 2005, p.2) A EXPERIÊNCIA NO MERCADO POPULAR 3 O Complexo da Maré situa-se numa área originalmente pantanosa e em grande parte aterrada, que se constituiu desde 1988 na XXX Região Administrativa (RA) da Cidade do Rio de Janeiro. Seus limites são definidos pela Avenida Brasil e Linha Vermelha, as duas principais vias de acesso da cidade. É composto por 16 comunidades e sua população, segundo o Censo Maré realizado em 2000 (CEASM, 2000, p.7), era de 132.176 habitantes. É considerado o mais populoso complexo de favelas do Rio de Janeiro e o bairro de maior concentração de população de baixa renda. Na extremidade da ciclovia de Vila Pinheiros, uma das comunidades da Maré, a Prefeitura resolveu construir um Mercado Popular, diminuindo o espaço de lazer em troca de um espaço para o comércio local. A obra foi embargada pela Justiça em função de um processo movido pelo Governo do Estado. O resultado foi: nem ciclovia nem Mercado Popular e, de presente, a comunidade ganhou um macro foco da dengue! Chegaram a ser construídos aproximadamente 40 cubículos de 06 m² que serviriam como lojas e onde estavam previstos porões para guardar mercadoria. A água da chuva juntou-se nesses “porões” e não tinha como ser escoada. Fora isso, existia uma grande cisterna destampada que, além de poder se transformar em foco do mosquito da dengue, representava um perigo devido à possibilidade de acidentes. Os agentes de saúde ouviram de vários moradores a queixa sobre a presença de larvas de mosquito no local e foram orientados por um ex-funcionário da FUNASA a colocarem óleo queimado na água para, desta forma, deixar as larvas sem oxigênio. Juntaram o óleo queimado de várias oficinas de carro próximas ao Mercado e, junto com alguns garis comunitários da Associação de Moradores, espalharam o óleo nos “cubículos” que haviam se transformado em depósitos de água. Ao comentarem a situação com uma sanitarista da equipe e mostrarem orgulhosamente as fotos, surgiu a dúvida sobre a possibilidade de uma repercussão negativa para o meio ambiente que poderia ser contaminado com o óleo queimado. Além disso, com as novas chuvas, grande parte do óleo já tinha transbordado e a água novamente limpa voltou a ser local ideal para a reprodução dos mosquitos. Feito contato com funcionários do setor de controle de vetores, estes relataram já estarem monitorando o local, no qual haviam sido colocados peixinhos que comeriam as larvas do mosquito. Na época da estiagem vários depósitos tinham secado, os peixinhos morreram e, ao chegarem as novas chuvas, já não havia peixes. Por outro lado, explicaram que a “petrolagem” (colocar óleo na água) já não era um método utilizado hoje em dia devido à contaminação do meio ambiente. A proposta inicial destes 4 funcionários foi a de “peixar” novamente o local, só que seria necessário tirar o óleo queimado e fazer uma limpeza nos “cubículos” que haviam virado depósitos de água cheios de lixo. Em alguns lugares, os peixinhos ainda estavam presentes e esta poderia ser a fonte para sua multiplicação. Os agentes de saúde, junto com jovens de um projeto existente na comunidade, conseguiram serragem que seria colocada nos cubículos com óleo para absorvê-lo, depois esta serragem seria retirada com puçá a fim de que os peixes pudessem ser colocados nos depósitos limpos. Posteriormente seria necessário fazer a manutenção para garantir a presença dos peixinhos nos cubículos com água. Buscou-se a ajuda da Associação de Moradores e da Região Administrativa a fim de mobilizar um maior número de pessoas e marcar um dia para iniciar o trabalho. No dia da ação conjunta, compareceram dois funcionários dos “Guardiães do Rio”, sendo que um estava sem pagamento há alguns meses. Traziam um puçá em mal estado e uma roupa que deveria ser impermeável, mas deixava passar água. Da Associação vieram dois garis com suas enxadas e da equipe de controle de vetores compareceram três pessoas com larvicida e pequenas peneiras para pegar os peixes; do Posto de Saúde vieram cinco agentes de saúde e uma sanitarista. Não existia um responsável pela ação e inicialmente não ficou claro o que cada um deveria fazer. Um dos Guardiães estava com má vontade e reclamava todo o tempo, mas o trabalho foi iniciado com a limpeza dos depósitos. Ao ser discutida a solução do “peixamento” entre todos os que estavam envolvidos na ação, foi levantada a dificuldade de fazer a manutenção do local e, neste sentido, continuaria a possibilidade de perigo constante. Considerou-se mais adequado retirar a água de todos os “cubículos” e buscar uma solução para mantê-los secos. Pensou-se em conseguir uma bomba de sucção junto à CEDAE, mas logo de início foi visto que seria difícil conseguir uma bomba para esvaziar todos os depósitos. Um morador que trabalhava em frente ao mercado, ao ver o movimento de todos que procuravam resolver o problema do macro foco de mosquitos, contou que já havia furado alguns cubículos e a água havia escoado rapidamente para a terra. A proposta dele foi a de furar todos os depósitos e assim acabar com o armazenamento de água, inclusive no caso de futuras chuvas. Na primeira tentativa feita com uma picareta, não se conseguiu furar o concreto e a solução não parecia viável, mas o morador insistiu dizendo que a camada de concreto era fina. Depois de limpar uma parte dos cubículos, todos sentiram que o trabalho era pesado e que havia necessidade de buscar reforço. 5 Ainda assim, jogou-se a serragem na água e marcou-se um novo dia para dar continuidade. Em uns 15 tanques a quantidade de água chegava a um metro de profundidade, o que impedia o trabalho de perfuração. Novamente, a Região Administrativa e a Associação de Moradores foram procuradas para pedir reforço de pessoal e uma bomba de sucção a fim de esvaziar os tanques. A ação implicava em alguns riscos, como o contato com água provavelmente contaminada e a grande quantidade de mato onde estavam escondidos vergalhões. Na verdade, não se sabia qual era o perigo existente no local e não havia equipamento de trabalho que permitisse chamar mais voluntários. No dia anterior à ação, os agentes de saúde passaram na Associação de Moradores para confirmar o trabalho e foram informados de que a bomba da CEDAE já se encontrava no local. O Administrador Regional também informou que a bomba iria provavelmente naquele dia mesmo ou no dia seguinte. Ao chegar ao local, para a surpresa de todos, a cisterna já havia sido esvaziada e o tratorzinho com a bomba da CEDAE já estava de saída. Naquela cisterna haviam permanecido bastantes peixes da ocasião anterior em que havia sido feita uma ação de controle de foco da dengue e, por outro lado, não haveria como furá-la devido à sua profundidade, mas com a retirada da água, a maioria dos peixinhos haviam sido jogados fora. Infelizmente a ação havia sido feita de forma descoordenada! O operador do trator disse que voltaria no dia seguinte para esvaziar os depósitos. No dia seguinte, por diversos motivos, do Posto de Saúde só estavam presentes duas agentes de saúde e a sanitarista. Um dos agentes de saúde que nem pode comparecer à ação, havia dito que não faria os buracos no chão, apesar de ninguém ter dito que ele teria que fazer. Da Associação de Moradores não compareceu ninguém e a bomba da CEDAE não voltou. Contava-se com duas equipes de “Guardiães do Rio” num total de 5 homens com sua supervisora, e um supervisor do setor de controle de vetores, além das três pessoas do Posto de Saúde. Inicialmente os presentes diziam que não queriam começar o trabalho sem a presença dos garis comunitários. A tentativa de fazer contatos para conseguir maior adesão de participantes não surtiu efeito. Diante da situação, combinou-se que o melhor seria cada um fazer a sua parte, independente da presença de mais equipes e os trabalhos foram iniciados. O morador que havia sugerido fazer os furos no chão estava presente e diante do desafio de conseguir furar o concreto, fez a demonstração num depósito com pouca água. O resultado foi incrível: a água escoava como se houvesse um ralo no local. Todos ficaram animados e dois homens da 6 equipe de “Guardiães” tomou a si a tarefa de fazer buraco nos depósitos onde não havia muita água e os outros três iam limpando os cubículos. Ainda restava o problema dos depósitos cheios de água. Um dos homens resolveu fazer uma conexão entre um depósito onde o chão já havia sido furado e outro que estava ainda cheio de água. Feliz com a descoberta, chamou todos para verem o resultado: a água passou do cheio para o vazio que estava furado e daí escoava para de baixo da terra. Pronto! O caminho para a solução havia sido encontrado. Assim foi sendo feita a conexão entre os vários depósitos que estavam num mesmo bloco. De qualquer maneira, era necessário fazer buracos em todos porque haveria novas chuvas e era necessário garantir da melhor forma possível o escoamento da água. O esforço foi muito grande. Em dois blocos com 6 depósitos cada, ficou difícil começar o trabalho porque nenhum estava vazio. Em um deles os homens começaram a tirar a água com um balde para poder iniciar o trabalho. A água era imunda e havia a preocupação com a saúde do pessoal. Naquele dia não foi possível terminar o serviço por falta de pessoal, mas o caminho das pedras já havia sido conhecido e seria mais fácil continuar. O esforço feito por aquela equipe foi reconhecido e, através do Administrador Regional e da Associação de Moradores, foi possível conseguir novamente a bomba de sucção para terminar de esvaziar os depósitos. Uma equipe da COMLURB veio para fazer a limpeza do entorno e furar o restante dos cubículos. Do mato surgiu o esqueleto do que seria o mercado popular e deixou de ser a ciclovia, como que a pedir uma solução! CONCLUSÃO Com o presente artigo procurou-se ilustrar um trabalho orientado pela educação popular sendo este, no entanto, um corte pontual no cotidiano da comunidade, que foi destacado pela sua importância na indicação de um método de integração entre moradores e profissionais de diferentes origens e por apontar caminhos que fortalecem a participação da comunidade na construção de soluções para os problemas vivenciados. Não são objetos deste artigo os desdobramentos posteriores de iniciativas coletivas que puderam surgir após esta experiência, mas o próprio fato da obra inacabada ter ficado à mostra de toda a comunidade e também dos transeuntes que passam pela Linha Amarela, importante via de acesso na cidade do Rio de Janeiro, sem dúvida deixou o problema à vista de todos. 7 Um ponto forte do trabalho foi a construção de uma solução para o problema do macro foco entre todos participantes, de diferentes origens institucionais e socioculturais. As possibilidades de solução apresentadas por ex-técnicos e técnicos do setor de controle de vetores, foram sendo avaliadas com base na experiência da população e do próprio avanço do conhecimento técnico que juntos puderam encontrar um novo caminho. Desde o início, o esvaziamento dos cubículos era considerado por todos a solução ideal, mas haviam duas dificuldades: uma era o acesso à bomba de sucção para retirar a água e a outra era a manutenção dos cubículos sem água quando ocorressem novas chuvas. A dificuldade de acesso a um recurso tecnológico foi superada em parte pela criatividade dos participantes que souberam aproveitar o conhecimento adquirido com a experiência local e acrescentaram novos conhecimentos como foi a perfuração dos cubículos em cadeia. Este processo de construção compartilhada do conhecimento criou um clima de euforia e um sentimento de vitória entre todos. Por outro lado, o esforço coletivo comprometeu os representantes institucionais, aqueles que tinham acesso aos recursos necessários, sendo possível completar, desta forma, a ação. REFERÊNCIAS CARVALHO, M.A.P.; ACIOLI, S.; STOTZ, E.N. O processo de construção compartilhada do conhecimento: uma experiência de investigação científica do ponto de vista popular. In: VASCONCELOS, E.M. (Org.). A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. São Paulo: HUCITEC, 2001. cap. 4, p.101-114. CEASM – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. Censo Maré 2000: Quem somos nós? Disponível em: www.ceasm.org.br/abertura/05redes/05observ/censo.htm. Acesso em: 01 jul. 2006. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. 220p. FREIRE, P.; BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. São Paulo: Ática, 1991. 95p. SANTOS, B.S. Ciência e senso comum. In: ______. Introdução a uma ciência pósmoderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. Cap.2, p. 31-45. STOTZ, E.N.; DAVID, H.M.S.L; WONG UN, J.A. Educação popular e saúde: trajetória, expressões e desafios de um movimento social. Revista de APS, Juiz de Fora, v 8, n 1, p. 49-60, 2005. 8 STOTZ, E. N. Enfoques sobre educação e saúde. In: VALLA, V.V.; STOTZ, E.N. (Org) Participação popular, educação e saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. p. 13-22. VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de saúde a partir de experiências de educação popular nos serviços de saúde. Interface – Comunic., Saúde, Educ., Botucatu, v.5, n.8, p.121-126, 2001. Submissão: julho de 2006 Aprovação: setembro de 2006 9 10 11 A BUROCRACIA E OUTROS ATORES SOCIAIS FACE AO PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: ALGUNS APONTAMENTOS Bureaucracy and other social agents and their role in the Brazilian Family Health Program Flavio A. de Andrade Goulart1 RESUMO O Programa de Saúde da Família foi construído mediante o papel exercido por uma burocracia e também por outros atores sociais, sobre cujo comportamento algumas variáveis são discutidas. Discute-se também o papel de uma burocracia não necessariamente típica, a partir de verificação empírica, a saber: (a) os novos estratos de gerentes públicos – os executivos da saúde; (b) a nova burocracia, representada pelos gestores públicos da carreira de Estado; (c) os quadros técnicos não pertencentes à carreira formal tradicional, contratados de forma terceirizada. Os atores-usuários do SUS mostramse, cada vez mais, como agentes propagadores de interesses representados, sobretudo nos Conselhos de Saúde. É considerado, ainda, o caso dos prefeitos e de outros agentes políticos, sobre os quais costuma haver uma tradição de desconfiança, mas que constituem um contingente, cuja posição, face às políticas, pode ser progressista e engajada na defesa de interesses coletivos. Considera-se, ainda, a emergência da figura do empreendedor público na condução de políticas e programas, fato sem dúvida notável na implementação de programas como o PSF. Palavras-chave: Administração Pública. Administração de Serviços de Saúde. Saúde da Família. Programa Saúde da Família. Atenção Primária à Saúde. ABSTRACT At the present time both government bureaucracy and other social agents play a part in structuring the Brazilian National Family Health Program. Empirical observations of the bureaucracy (rather than written norms) show it to be composed of new layers of public management. These are: health executives, who are responsible for the implementation of health policy; a new bureaucracy composed of government career administrators, and subcontracted temporary staff. This paper also looks at the roles played by mayors and other politicians who were distrusted in the past but now represent a progressive group engaged in the protection of the public interest. Patient representatives are becoming more active in defending the public interest in Local Health Councils. The emergence of “health entrepreneurs” among community leaders and politicians at different levels of government administration in the formulation and implementation of policies and programs within the National Family Health Program as an important new development is also discussed. 1 Doutor em Saúde Pública. Professor Titular(aposentado) – Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília – Área de Medicina Social. E-mail: [email protected]. Endereço: CLN 406 – E – 105 – CEP 70 847 550 - Brasília-DF 1 Key Words: Public Administration. Health Services Administration. Health Family. Family Health Program. Primary Health Care. INTRODUÇÃO O Programa de Saúde da Família (PSF) no Brasil, como de resto toda política estatal, foi construído sem escapar de algumas contradições e polaridades. Entre estas a de representar um embate entre o caráter racionalizador e focal nos moldes preconizados pelos organismos internacionais financiadores ou incentivadores de programas sociais no terceiro mundo, versus o de constituir-se uma política social pautada pelos princípios de eqüidade, integralidade e universalidade. E ainda: ter sua inserção dentro dos marcos ideológicos e conceituais gerados em contextos políticos, econômicos e culturais diferentes do brasileiro, em contraposição a ser formulado e implementado como processo legítimo de construção social dentro de um quadro conceitual e político gerado e adequado à realidade nacional. Muitas são as contribuições de autores que destacam e aprofundam as contradições dos componentes estruturais e ideológicos do PSF, podendo-se citar: Paim (1986); Misoczki (1992), Cordeiro (1996); Trad (1998), Franco (1999), entre outros. O papel exercido pelos atores sociais, entre estes a burocracia pública, no âmbito das políticas sociais, deve ser compreendido e aprofundado, de forma a delimitar o quadro de determinantes culturais, políticos, teóricos e ideológicos que caracterizam o processo de formulação e implementação dessas mesmas políticas. A intenção do presente artigo é, justamente, debruçar-se sobre os papéis e o conteúdo da ação de alguns atores sociais no desenvolvimento dos processos de formulação da agenda e de implementação do PSF, aqui tomado como paradigma de política pública. O enfoque nos atores sociais e institucionais constitui o fio condutor de um projeto de estudo mais amplo sobre o PSF, conduzido por Goulart (2002), mediante o qual se procurou elucidar as estruturas e os processos da ação e interação de tais atores. O objetivo do referido estudo foi o de analisar a implementação do PSF no País, observando as relações entre os aspectos normativos explicitados no processo de formulação pelo Ministério da Saúde de um lado e, de outro, as inovações locais decorrentes de sua (re)formulação e implementação descentralizada. A hipótese central era de que o PSF surgiu no âmbito de um conflito entre a normatização dura, realizada pelo governo federal, e as iniciativas dos governos municipais, nas quais prevaleceram a flexibilidade e as 2 inovações de caráter local. Foram destacados os componentes essenciais que unem os conceitos de Atenção Primária à Saúde aos de Saúde da Família, quais sejam: (a) práticas de saúde como objeto da intervenção do Estado; (b) processos de trabalho caracterizados pela intervenção de uma equipe de saúde dentro de um âmbito generalista; (c) atenção voltada não apenas para indivíduos-singulares, mas para coletivos; (d) desenvolvimento de vínculos administrativos, geográficos, culturais e éticos entre a clientela e os prestadores de serviços. Foram também analisados os processos de formulação e de implementação de diferentes casos de PSF, a saber: o programa nacional brasileiro e os programas desenvolvidos em Contagem, Curitiba, Ibiá, Niterói (no caso, uma variante do mesmo, o Programa Médico de Família, inspirado no modelo cubano), Vitória da Conquista e mais em duas experiências pioneiras do Sul do País (Grupo Conceição e S. J. Murialdo). Procurou-se, também, revelar alguns fios condutores que perpassariam tal conjunto de casos, tais como: as características geopolíticas; o modo de inserção no sistema de saúde; o contexto político; os conteúdos técnicos e ideológicos; os atores sociais influenciadores; a dinâmica dos processos de implantação; a cultura institucional, dentro de uma ótica de fatores facilitadores, obstáculos e lições. Algumas conclusões a respeito do que se denominaram boas práticas de implementação foram inferidas, entre elas: (a) capacidade de tomada de decisões, dada por liderança, carisma, espírito empreendedor, embasamento ideológico, qualificação técnica e continuidade; (b) qualificação das equipes técnicas, traduzida por acesso a conhecimentos, tradição de discussões, base ideológica, empreendedorismo associado à militância; (c) boas práticas sociais que se traduzem por práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além do campo da saúde, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública; (d) articulação externa, ou a prática de um cosmopolitismo político e sanitário; (e) investimento em padrões efetivamente substitutivos dos modelos de atenção, buscando a neutralização da competição e do antagonismo com os elementos estruturais e ideológicos dos velhos regimes de práticas; (f) desenvolvimento de inovações gerenciais ou assistenciais; (g) sustentabilidade em termos financeiros, de estrutura e de processos, mas também nos planos culturais, simbólicos e políticos; (h) efeito espelho: difusão entre pares e outros interlocutores externos, mediante uma pedagogia do exemplo. (GOULART, 2002) 3 O trabalho referido acima, assim como diversas verificações empíricas subsidiadas pela literatura, permite aventar a hipótese de que existem hoje, no panorama das políticas públicas brasileiras, novos e diferenciados atores, seja dentro do aparelho de Estado ou na sociedade civil. Entre os primeiros destacam-se os personagens pertencentes ao que se poderia chamar de uma nova burocracia, representada pelos executivos da gestão pública, pelos gestores públicos da carreira de Estado e pelos segmentos técnicos encarregados da condução atual de parte das políticas públicas no governo federal, vinculados ao Estado, estes últimos, mediante contratos pontuais ou de maior duração, efetivados através de organismos internacionais, como PNUD, UNESCO e OPAS. Entre os atores não-estatais, podem ser citados os usuários e segmentos aliados, cada vez mais organizados nos conselhos de saúde e outras instâncias sociais. Destaca-se, ainda, uma outra categoria, que pode ter vínculo governamental ou não – a dos empreendedores da saúde, cuja explicação, em termos empíricos e teóricos, será fornecida adiante. Além destes, outros agentes políticos tradicionais, como os prefeitos municipais e membros do Legislativo, também parecem demonstrar interesses e ação diferenciados no que tange à saúde, não só levando em conta o que propaga o senso-comum, bem como avaliações mais formais de suas práticas, em perspectiva histórica. SOBRE A BUROCRACIA PÚBLICA São diversas as variáveis que modelam o comportamento da burocracia, podendo ser citadas: as tendências da política em geral; o que querem os mandatários (rulers); a estratificação social (classe, etnia, rede de lealdades); as intenções declaradas, ou não, dos agentes externos financiadores e outros apoiadores, além da dimensão e da qualidade corporativas. Percebe-se, entretanto, na literatura corrente, como acentuam Walt e Gilson (1994), que os estudos freqüentemente se concentram nas elites políticas, mais do que nos atores comuns, o que desperta a crítica às análises que buscam modelos mecanicistas de relacionamento entre a política, sua implementação e seus resultados. Em contrapartida, advogam tais autores que os estudos sobre as políticas façam da perspectiva do ator seu real ponto de partida. 4 Segundo os autores citados são muito diversificadas as possibilidades de interação de atores dentro do campo das políticas, com uma gama de reações, seja de cooperação, conformidade, oposição ou desinteresse. Da mesma forma estes podem estabelecer entre si interações bastante complexas e ramificadas, constituindo redes organizacionais, que resultam em determinados estados de equilíbrio, interação e coordenação cooperativa entre atores, fundadas em consenso normativo e respeito mútuo. Alguns desses agentes são certamente mais influentes do que outros, o que de maneira geral, no caso da saúde, aponta para as elites médicas e acadêmicas, mas também para a burocracia de Estado, economistas e administradores em geral, além de outras comunidades epistêmicas, que possuem interesses estruturados no campo das políticas. Configura-se e reforça-se, assim, um modelo de elites na formação da agenda das políticas de saúde, dentro do qual os consumidores ou usuários, além de grupos comunitários, estariam virtualmente fora das arenas do processo decisório. (WALT ; GILSON, 1994). Ilustração da importância da ação de atores sociais na manutenção das políticas sociais é dada, exemplarmente, pelo chamado ataque neoliberal aos sistemas europeus de proteção social, que teve no thatcherismo seu emblema.(VIANNA, 1997) Os resultados teriam sido, entretanto, menos desastrosos do que se previa, em primeiro lugar, pelas tradições arraigadas naquele continente a respeito do papel do Estado na proteção social e também pelo sentimento de direito social que a sociedade construiu e se preparou para defender, ao longo de séculos.(PUTNAN, 1993; BOBBIO, 1992). Ao analisar o fenômeno, Vianna (1997) caracteriza um embate da política contra a economia, com desvantagem para esta última, fazendo com que, pelo menos naquela parte do mundo, o propalado desmonte das estruturas de bem-estar social acumule muito mais alarde do que evidências. No caso do sistema britânico, demonstra-se o vigor e a pertinência das mobilizações políticas dos beneficiários do mesmo – e também de sua burocracia – em torno da causa do bem-estar, verificando-se que a possível irreversibilidade do modo economicista de intervir nos sistemas de bem estar social e de saúde era apenas aparente. A conclusão é de que provavelmente as reformas da proteção social têm sido mais lesivas às conquistas sociais justamente onde falta uma tradição corporativa, independente do tipo de welfare state existente. A comparação, neste caso, entre os dois lados do Atlântico (Norte) é inevitável. Não é por acaso que nos Estados Unidos, onde predominam 5 influências mais focais de grupos de interesse (lobismo) sobre as decisões públicas, se apresentem o empobrecimento e a perda de status de forma mais acentuada. (VIANNA, 1997). Contudo, a questão da participação dos atores sociais, particularmente da burocracia, nos processos de formulação e implementação, favorecimento e resistência às políticas sociais no Brasil ainda é pouco estudado, como acentuam Paim (1995) e Luz (1995). Certas análises, mesmo quando não ignoram o sentido weberiano do termo burocracia, costumam primar por uma visão sombria e negativa, reforçando a visão do senso-comum sobre a mesma. Nestas se enfatiza o caráter cooptado (ou “cooptador”) da burocracia, suas disfunções conhecidas, os anéis burocráticos espúrios, o autoritarismo de suas práticas, etc. – veja-se, por exemplo, Luz (1995). Torna-se preciso, contudo, resgatar a complexidade e a variação do papel da burocracia face às políticas, de forma eqüidistante de uma visão ingênua e de uma visão satanizada da mesma. Paim (1995), por exemplo, admitindo a possibilidade contemporânea (e advertindo ser esta “nem sempre virtual”) de forças progressistas terem maior acesso e poder de decisão nas políticas públicas brasileiras, coloca com clareza o desafio e a necessidade de se promover um salto de qualidade na apreensão da relação entre burocracia e políticas. Para tanto julga importante fazer as indagações de: (a) como os governos formulam políticas para seus órgãos subordinados; (b) como adequar a consistência das políticas de governo no processo de implementação pelos órgãos subordinados; (c) como os órgãos administrativos de execução percebem as políticas e de que modo as reforçam ou as obstaculizam. Considerando o resultado das eleições de 2002, pelo menos para o Governo da República, aquela “virtualidade” de que fala este autor foi, aparentemente, neutralizada e o país se viu diante do fato real de ter um governo de discurso bastante progressista, não só em relação à saúde como em outros campos. Assim, as indagações referidas passam a adquirir, sem dúvida, nova força e pertinência. A burocracia pública e, particularmente, a burocracia da área social seria sempre uma “força do mal”? Luchesi (1989) traz importantes contribuições a esta questão ao analisar o relativo atraso de certos setores, como é o caso da saúde e da área social de governo, em organizar sua burocracia em moldes mais racionais-legais. Para este autor, a área das políticas sociais tem sido, dentro dos governos, o espaço preferencial para a 6 proliferação de práticas clientelistas, ao contrário de outros setores estruturados mediante um paradigma de eficiência administrativa, como tem sido o caso dos órgãos do fisco, por exemplo, nos quais tais práticas são mais dificilmente aceitas e incorporadas. Trata-se, sem dúvida, de uma questão que possui raízes políticas e culturais, contudo não se constituindo numa característica intrínseca da ação burocrática ou mesmo da ação estatal. Um dos aspectos destacados da chamada racionalidade burocrática é a existência dos “anéis fisiológicos burocráticos”, descritos por Cardoso (1975), autor aqui lembrado não obstante o fato de que o mesmo tenha publicamente sugerido que se esquecesse aquilo que um dia escreveu... Trata-se de um mecanismo de caráter fisiológico, clientelista e também autoritário, mediante o qual a burocracia estatal realiza atendimento diferenciado das demandas de setores empresariais e outros de maior vocalização junto ao aparelho de Estado. Entretanto, cabe indagar se o fenômeno dos anéis, descrito com fundamento no Estado autoritário, não teria assumido características novas na redemocratização, de forma a agravá-lo, já que encoberto agora com um manto de legitimidade. Mas ao mesmo tempo, alternativamente, pode-se pensar que o mesmo tenha se convertido em um instrumento legítimo de canalização e resposta a demandas sociais. Jacobi (1987) duas décadas atrás, já havia analisado tal fenômeno em relação às demandas por saneamento básico na cidade de São Paulo. A BUROCRACIA E O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA Com relação à política aqui analisada, ou seja, o Programa de Saúde da Família, um processo de canalização de demandas pela burocracia estatal parece ter curso, na medida em que um segmento de gerentes e técnicos – típico quanto a alguns aspectos, embora atípico com relação a outros, como se verá adiante – tem estado na dianteira da condução do processo de formulação e implementação do Programa, nos organismos de níveis nacional, estaduais e municipais do SUS. Cabe, assim, buscar a compreensão do papel de tal burocracia, relativa à maneira como esta se organiza, num exercício que, sem deixar de se pautar na crítica, não deve resvalar para teorias conspiratórias ou satanizadoras. De qualquer ângulo que se observe, a burocracia não é nem jamais foi monolítica, nem mesmo nos regimes autoritários. Nos regimes democráticos estabelecidos ou em vias de construção, com todas as limitações conhecidas, como é o caso do Brasil, a burocracia 7 não institui para a sociedade como também é instituída por ela. Assim ela transita, permanentemente, dentro de um sistema de contradições e brechas, de equilíbrios que se refazem a cada momento, de concessões, imposições e ajustes negociados. Melhor sociedade, melhor burocracia? Mesmo colocada de forma simplista, como aforismo, a questão é provocativa. Respondê-la obriga também a conjeturar sobre os atores sociais que se mantêm do outro lado do bureau, mas que talvez tenham responsabilidades omitidas ou não suficientemente exploradas, concretizadas através da participação política. Insistindo no caso brasileiro e, particularmente, na construção do PSF, alguns indicativos, favoráveis ao envolvimento da burocracia nas políticas de forma não compatível com o modo “desencantado” com que alguns autores analisam o fenômeno, podem ser vislumbrados. Tal é o caso, por exemplo, dos novos estratos de gerentes com papéis de formulação e acompanhamento de políticas dos órgãos gestores públicos do SUS, principalmente nos municípios, onde, aliás, o poder conquistado por partidos progressistas tem deixado de ser apenas uma “virtualidade”. Muitos de tais atores estão hoje profissionalizados em suas funções, seja por intermédio da academia, ou (principalmente) no âmbito dos próprios serviços, a ponto de virem se transformando em autênticos executivos da saúde, até mesmo disputados em um mercado de trabalho competitivo, embora eminentemente público. Os casos de secretários municipais de saúde que assumem o cargo novamente em municípios diferentes após o término de seu mandato, ou mesmo de equipes inteiras que fazem o mesmo percurso, são bem conhecidos no panorama da gestão municipal da saúde. Da mesma forma, pode-se verificar uma migração dessas pessoas até mesmo entre as esferas de governo, não sendo rara, na direção nacional do PSF, a presença de técnicos com passagens pela gestão do programa em municípios. O fenômeno dos executivos da saúde, um movimento provavelmente inédito na burocracia de Estado brasileira, não é o único a anunciar a existência do que se poderia chamar, sem muito exagero, de uma nova burocracia. Há outros, entre os quais pode ser citada a formação dos gestores públicos de carreiras de Estado pela Escola Nacional de Administração Pública-ENAP nos últimos anos. Tal pessoal constitui um segmento jovem e bem preparado na condução das políticas – aspecto particularmente destacável no Ministério da Saúde – onde indivíduos dessa extração ocupam postos em praticamente todos os setores do órgão. Deve ser, também, registrado o fato de que a burocracia, 8 particularmente no sentido vulgar e pejorativo que por vezes lhe atribuem, seria, cada vez menos, a mesma de ontem. No próprio Ministério da Saúde, o caso do Departamento de Atenção Básica, locus da direção nacional do PSF, é paradigmático: grande parte da condução da política de saúde é realizada hoje por técnicos que não se enquadram na carreira burocrático-formal tradicional: são pessoas autônomas, ex-funcionários e eventualmente funcionários licenciados de estados e municípios prestando serviços em Brasília, mediante contratos de tempo definido, mediados por organismos internacionais (OPAS, PNUD, UNESCO, entre outros). Aliás, não por acaso, os recursos para pagamento deste pessoal provêm, justamente, dos empréstimos internacionais contraídos pelo Brasil, seja no Banco Interamericano ou no Banco Mundial. Seria o caso de indagar se esses novos estratos aqui caracterizados como nova burocracia não constituiriam uma versão local correspondente àquela “comunidade epistêmica” de que fala Haas (1992), produtores e difusores que são de conhecimento e idéias. Algumas características podem ser vislumbradas em tal nova burocracia. O fenômeno dos executivos, por exemplo, destaca a questão da liderança bem como do empreendedorismo como fatores de grande impacto nas organizações. Este é um tópico do qual vem se ocupando, com relativa intensidade nos últimos anos, a literatura em administração. Tendler (1998), por exemplo, destaca o fato de que a presença de líderes com as características de carisma, voluntarismo, “personalidade”, entre outras, chega a ser indispensável para a sobrevivência dos programas que lideram e que é um desafio compreender as maneiras como tal dependência do líder às vezes é superada. Na experiência estudada pela autora, relativa à implementação de políticas públicas no Ceará, algumas lições a respeito do papel da liderança foram destacadas, entre elas: (a) nem sempre é possível afirmar como intencional o papel exercido pelo líder; (b) a compreensão interna das equipes e das lideranças a respeito de seus acertos, igualmente, nem sempre se dava como muita clareza; (c) a visão de futuro é um atributo importante do líder; (d) boas experiências administrativas não devem ser interpretadas como resultados diretos e unívocos do surgimento idiossincrático de lideranças destacadas, mas sim como o resultado de circunstâncias muito mais abrangentes. 9 Amado e Brasil (1997) procuram definir com mais nitidez o que chamam de “categorias hermenêuticas” para a identificação e qualificação das lideranças organizacionais no Brasil. Estes autores procuram se afastar da mera consideração do “jeitinho” como explicação do fenômeno e esboçam um possível perfil do líder organizacional nacional, em perspectiva comparada com outras culturas. Assim, assumem posição dianteira características como um caráter autoritário-benevolente (versus deliberativo-consultivo em outras culturas); um comportamento ao mesmo tempo receptivo-associativo e sedutor, calcado em um sistema de relações pessoais. Na mesma linha, Barbosa (1996) levanta as características do “herói organizacional”, às vezes também fundador, para o qual é relevante o peso de dimensões simbólicas de atuação, fundadas em uma ética do trabalho. Outras características de tal herói são constituídas pela atuação em horizontes de largo prazo, assunção de responsabilidades compartilhadas em trabalho grupal, gestão baseada em fatos e evidências, além de uma lógica da qualidade de resultados. Morgan (1986) coloca especial ênfase no que chama de “papel crucial dos que estão no poder” e sua capacidade em modelar os valores que guiam a organização. Para ele, o estilo de liderança e a cultura organizacional se complementam, pois mesmo os líderes mais notáveis e formais não chegam a ter o monopólio da criação. Dessa forma, a liderança, cujos múltiplos estilos devem ser reconhecidos e apreendidos em busca da verdadeira compreensão da vida organizacional, constitui uma das características da metáfora da cultura nas organizações, em outras palavras, o grande fator responsável pela administração do sentido dentro das instituições. A combinação de produção de conhecimentos, seja por especialistas locais ou assessores externos, associada a uma base ideológica e militante, remete, ainda, à categoria gramsciana dos intelectuais orgânicos, ou seja, pessoas dotadas de uma função organizacional relativa às crenças e relações institucionais e sociais, capazes de formular e propor projetos de hegemonia, tanto do ponto de vista técnico como político. (BOTTOMORE, 1988) Sobre o fenômeno do empreendorismo, um aspecto também a ser considerado na discussão relativa aos executivos da saúde, destacam-se ainda algumas reflexões dignas de nota. Barbosa (1996) sublinha o fato de que, no caso brasileiro, a relativa ausência das noções de meritocracia e self-reliance faz com que as responsabilidades gerenciais se 10 atenham a indicadores de posição social e estabilidade. Entretanto, pode se legitimar uma figura especial, a do herói-fundador empreendedor, a partir de influências externas, em função do como e dos contextos em que aparece. Para Filion (2001), este personagem é aquele que “define contextos organizacionais em torno de fios condutores por ele estabelecidos”, pessoa apta a realizar inovações, fazer coisas diferentes e, além do mais, dotado de comportamentos diferenciados em relação ao grupo, de natureza pró-ativa e criativa e acima de tudo capaz de definir “o objeto que vai determinar seu próprio futuro, diferente de outras pessoas na organização”, com exigência de análise e imaginação. Já Amado e Brasil (1997) apontam outras particularidades do empreendedor brasileiro, em termos comparativos com outras culturas: hierarquia; centralização; social approach; controle da incerteza; preocupação com a qualidade de trabalho; atitudes de cuidado frente aos menos favorecidos. De Masi (1999) estabelece algumas características essenciais de tal ator social, dentro do referencial que denomina de fenomenologia do criativo. A figura típica do empreendedor é marcada não só por habilidades intelectuais como também por forte envolvimento emocional com o objeto, além de correção profissional, senso de união e espírito de grupo, iniciativa, confiança recíproca, vontade firme, dedicação, flexibilidade, entre outras características. Mas o que dá mais destaque a esta figura, segundo o autor, é a sua proeminência de líder-fundador, sua capacidade de “dedicação quase-heróica”, sua excepcional eficácia em “criar um set psicosocial” (ou seja, um clima e um fervor extremos em torno das atividades do grupo), além de carisma, competência técnica e capacidade de “transformar conflitos em estímulos para a idealização e a solidariedade”. Portanto, compreender os papéis desta nova burocracia, bem como alguns de seus traços de atuação, como a liderança e o empreendedorismo, é fundamental. Confirmar a hipótese de que ela realmente seja nova, ou pelo menos de o que ela tem de novo e ao sabor de que tipo de interesse e motivação ela se move, constituem desafios ainda a serem enfrentados em termos teóricos e empíricos. Com todo respeito pela contribuição de Luz (1995) e outros autores cépticos com relação à burocracia, talvez seja, hoje, cada vez mais difícil encontrar o tipo ideal de burocrata que revela: discricionário, cooptado, kafkaniano, ritualístico, imperial, arrogante, etc, até porque talvez esteja também mais difícil encontrar 11 cidadãos que aceitem tal tipo de comportamento. A Era dos Direitos de que fala Bobbio (1992) já não teria alcançado, ao menos parcialmente, a sociedade brasileira? SOBRE OUTROS ATORES No caso do PSF, a questão da influência dos atores sociais, tanto governamentais como extra-governamentais, é de extrema relevância. No âmbito municipal, pelo menos formalmente, ter o PSF equivale a ter o conselho de saúde em funcionamento, associado a diversos outros instrumentos de gestão, conforme as determinações normativas. Mas sob o manto da formalidade, sabe-se, esconde-se muita coisa mais. Há evidências de que nem sempre a mudança de governo nos municípios, com alteração concomitante de orientação política referente ao programa, com o intuito de minimizá-lo ou até mesmo extingui-lo, tenha provocado grandes mobilizações entre conselheiros ou movimentos comunitários. Esta foi sabidamente a situação ocorrida no Distrito Federal, aqui tomado como exemplo, na transição de governo de 1998-1999, mas tem se repetido em muitos municípios e estados brasileiros. Tal carência de mobilização social poderia ser apenas aparentemente um paradoxo, que certamente mereceria tentativas no sentido de aprofundar determinadas questões não-esclarecidas sobre as potencialidades do controle social e sua capacidade de influir sobre as políticas. Assim, por exemplo, a organicidade e a composição dos conselhos de saúde, bem como seus mecanismos de funcionamento, deveriam ser apreendidos em sua gama de correlações com as especificidades políticas e técnicas dos programas eventualmente sob risco de interrupção, como no caso citado acima. Os usuários do SUS vêm deixando de ser, a cada dia, uma massa amorfa de pessoas, sujeitas a manobras. Embora ainda exista muito caminho a andar, avaliações recentes sobre o processo de controle social no Brasil dão margem a certo otimismo. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Carvalho (1995), corroborado pelos estudos encomendados pelo Conselho Nacional de Saúde. Estão se tornando mais freqüentes os casos em que determinados interesses de usuários representados nos conselhos ascendem até o estatuto de resolução, daí chegando a serem implementados como políticas públicas, via portarias ministeriais ou instrumentos congêneres. Nem sempre são interesses universalistas, está claro, mas traduzem um fato certamente inédito na política de saúde, e também na política 12 de qualquer outro setor: um interesse legítimo da sociedade, embora pontual, ser contemplado na política graças a mecanismos formais de participação social. Merece também consideração especial o caso dos Prefeitos e outros agentes políticos. É certo que a tradição em relação aos mesmos é de desconfiança, seja no sensocomum, na mídia ou na literatura. Assim, por exemplo, o personagem emblemático que é Odorico Paraguassu, genial criação de Dias Gomes, atravessa as décadas como o tipo ideal do prefeito de interior, ignorante, autoritário e pouco afeito ao zelo pela república. São preconceitos compartilhados até mesmo por analistas supostamente mais credenciados, como se o monopólio do clientelismo e da corrupção no país pertencesse a esses agentes. Contudo, o cenário das recentes eleições municipais, tanto no Executivo como no Legislativo mostram alguns aspectos inéditos no país. Por exemplo, com a reeleição, que aconteceu em cerca de 40% das prefeituras do país em 2002, que de certa forma confere legitimidade aos escolhidos (embora possa haver divergências quanto à interpretação deste fato: influências econômicas, uso da máquina administrativa, etc). Além disso, a chegada ou a manutenção do poder de partidos de esquerda, isoladamente ou coligados às forças de centro, vem se transformando em realidade cada vez mais habitual. Os prefeitos municipais têm, além do mais, ao longo dos últimos anos se engajado em movimentos supra-partidários nacionais, de natureza permanente (via entidades representativas e “frentes”) ou pontual (mobilizações em favor de assuntos financeiros e normativos de interesse municipal). São aspectos que, por si só, falam do aparecimento de um ator social com características renovadas. Aqui se insere, ainda, o destaque que tem recebido a pauta da saúde nas eleições municipais, fruto sem dúvida da transferência de encargos e poder decisório aos municípios, derivados diretamente da Constituição de 1988 e da legislação do SUS. Nos recentes processos eleitorais, tanto nos estados como nos municípios, tem sido, aliás, relativamente comum a inserção na pauta dos candidatos nos debates eleitorais, do PSF, além de outros tópicos de saúde até certo ponto ignorados no passado. Este acúmulo de evidências fala, favoravelmente, de uma participação cada vez mais intensa, seja qualitativa ou quantitativa, dos prefeitos, legisladores e outros agentes políticos nas discussões referentes à saúde, o que representa um marco histórico e inédito(GOULART, 1996). E diz mais: trata-se de um contingente cuja posição, face às 13 políticas, parece ser de cunho mais progressista, ou pelo menos engajado na defesa de interesses coletivos, já que aspectos como a descentralização, a assunção de responsabilidades locais, o controle legislativo e social local estão diretamente em jogo. Um último aspecto merece ser destacado, fruto de uma lição que a realidade recente do país tem mostrado: o aparecimento do empreendedor público seja ele prefeito, secretário, técnico ou outro membro do Executivo municipal ou mesmo alguém sem vinculações com os governos ou o Estado; pessoas como um empresário, uma liderança comunitária, religiosa, etc. A atuação desses agentes se faz cada vez mais marcante no campo da saúde. O imaginário popular já os tem consagrado, embora possam ocorrer aí alguns “desvios” personalistas e clientelistas. A mídia dedica a eles páginas e minutos preciosos – a lembrança do programa de TV Gente que faz certamente ainda está presente. Há certamente fazedores que estão meramente em busca de prestígio político-eleitoral, de isenções fiscais, de presença na mídia, de resolver sua vaidade pessoal... Mas, apesar de tudo, o assunto merece maior aprofundamento. Freqüentes eventos de premiação e apoio a experiências bem sucedidas e inovadoras em saúde, patrocinados pelo Ministério da Saúde, pelo CONASEMS e pela UNICEF (CONASEMS, 2000; CONASEMS, 2001), além de outros, têm demonstrado que, por trás de muitas experiências bem sucedidas em saúde, seja na gestão ou na atenção, estão as figuras de empreendedores, vinculados de maneira formal ou informal ao projeto ou programa. É inquestionável, também, a influência de uma proposta ideológico-partidária, geralmente (mas não exclusivamente) à esquerda do espectro político. Contudo, mesmo em tais experiências ancoradas em programas partidários, a figura central de uma pessoa-quefaz, um empreendedor criativo, na liderança, mesmo de forma até certo ponto personalista, constitui um aspecto relevante. Cabe indagar como surgem tais figuras: são meramente frutos de esforço pessoal, no estilo self-made, ou se representam o produto de circunstâncias, associando a fortuna e a virtù maquiaveliana? Qual o perfil ideológico que apresentam? Qual a importância que eles realmente têm na viabilização e na condução das políticas? Que formas de inserção existem entre eles e os órgãos executores estatais? Que risco correm os programas diante das maneiras de inserção por vezes temporárias e informais dessas pessoas? Mas tudo isso, com certeza, deve ser tema que mereça maior aprofundamento empírico. 14 CONCLUSÕES O estudo das políticas sociais constitui um terreno movediço, que muda de configuração rapidamente, autêntico marco de uma era de incertezas e de transições de diversas naturezas: cultural, epidemiológica, demográfica, política, paradigmática. Certezas neste campo podem ser confortáveis, mas possuem poder explicativo limitado face à própria natureza do objeto que pretendem abarcar. Além disso, nem tudo é linearidade e relação direta de causa e efeito quando o tema é a relação entre formulação e implementação das políticas sociais, a distância entre intenção e gesto que fatalmente permeia tal processo. Ao se tratar da presença, no cenário, da burocracia e de outros atores sociais, as relações de causa e efeito devem ser mediatizadas e não submetidas a fórmulas mecanicistas singelas ou apoiadas no senso-comum. Da mesma forma, as teorias conspiratórias de diversas naturezas e matizes ideológicos impedem o desvelamento do que se esconde por trás do que é apenas aparência e fragmento ao invés de ser o fato real e total. O certo é que a política social é sempre complexa e determinada de forma múltipla, com seus componentes de legitimação, reprodução econômica, mobilização social, racionalidades humanistas, ideológicas, libertárias, partidárias, religiosas, etc. É sob estes focos que a ação dos atores sociais deve ser compreendida, pois a chamada questão social é, acima de tudo, um fato político entranhado em uma vasta gama de mecanismos representativos, de ações estatais, do produto das relações entre Estado, sociedade e mercado, gerando dinâmicas próprias como as articulações entre público e privado; direito e benefício; legitimação e conquista social. No caso da política de saúde no Brasil, tomando o PSF como exemplo, estaríamos hoje colocados dentro de um cenário pessimista? As evidências indicam que, mesmo sem perder o realismo, pode-se vislumbrar no momento atual de implantação do SUS, com o grau de descentralização alcançado, a institucionalização do controle social e a incorporação de novos atores no cenário da saúde, que nem tudo é perversidade, cooptação, americanização, compaixão pós-fordista, para utilizar expressões utilizadas por algumas correntes interpretativas mais pessimistas das políticas sociais. No caso do PSF, 15 pode-se até suspeitar de que existam certos “ovos de serpente”, como por exemplo a sua utilização eleitoreira, seu possível caráter paliativo, sua “pobreza” técnica. Mas, com certeza, esta política apresenta outras facetas que permitem também categorizá-la como pautada pelos princípios de eqüidade, integralidade e universalidade, também sustentada conceitualmente e ideologicamente por marcos construídos a partir da realidade local, afigurando-se como um processo legitimamente formulado e implementado de maneira adequada ao momento político atual da sociedade brasileira. E neste processo a ação da burocracia e dos demais atores sociais aqui citados, apesar das contradições inerentes, tem sido impulsionadora e criativa. É bom ter em consideração, ainda, que o conceito de Saúde da Família, no Brasil, ainda é um processo em formação e são muitas ainda as nuanças representadas ideologicamente ou praticadas dentro do mesmo. À guisa de conclusão, pode-se dizer que existem novos cenários e novos atores em jogo nas políticas sociais do Brasil. As análises de políticas de saúde e particularmente aquelas referentes ao PSF, correm o risco permanente de desatualização, pela marcante dinâmica do processo de implementação da estratégia. O sistema de saúde, como um todo, que até há poucos anos voltava-se apenas para as populações urbanas vinculadas ao mercado de trabalho, atinge hoje novos contingentes de usuários: rurais, indígenas, minorias, portadores de necessidades especiais, populações marginalizadas e tantos outros. O PSF com sua expansão marcante, com seus componentes de eqüidade, integralidade e participação – mesmo chocando-se contra tradições políticas, profissionais e culturais desestabilizadoras – pode ser mais um destes novos cenários desconhecidos até poucos anos atrás. Da mesma forma se comportariam seus atores. É preciso evitar o risco de tratamento excessivamente dicotômico das questões ora em pauta. O PSF poderia englobar, ao mesmo tempo, componentes emancipadores e conservadores; integralizadores e restritivos; resolutivos e apenas preventivos; transformadores e cosméticos; ser um produto genuíno da criatividade brasileira e também objeto importado. O que pode transformá-lo nisso ou naquilo é o modo como está sendo implementado; a capacidade formuladora e crítica de seus atores; as circunstâncias que o rodeiam; as tradições políticas e institucionais; a história; a força da “comunidade cívica” e, até mesmo, o concurso de fatores “imponderáveis”, pelo menos para o grau de conhecimento do momento. 16 REFERÊNCIAS AMADO, G.; BRASIL, H. V. Brazil. In:------. Exploring management across the world. New York: Penguin Books, 1997. BARBOSA, L. N. H. Cultura administrativa: uma nova perspectiva das relações entre antropologia e administração. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 6-19,1996. BOBBIO, N. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 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Atividades propostas: organização do serviço centrado no usuário – acolhimento como gerenciador das relações terapêuticas; organização das demandas: linhas de cuidado e condição de vida; resolubilidade no projeto terapêutico; ações de promoção e proteção em saúde bucal: ações coletivas; educação em saúde bucal. A intenção deste trabalho é debater novas perspectivas no horizonte das ações em saúde bucal coletiva. Palavras-chave: Saúde Bucal. Serviços de Saúde Bucal. Programa Saúde da Família. Atenção Primária à Saúde. ABSTRACT The goal of this paper is to propose actions based on relational (reception, link) and selftransforming (autonomy, belonging, empowerment) arrangements with respect to the organization of oral health care services. The individual actions need to include all the perspectives of the health-disease process, giving answers on how to promote and protect health, as well as actions of recovery and rehabilitation. Such achievements depend on the committed forms of comprehension of the work process of health care and on the adoption of a model with a basis in integrality in order to transform the complex world of oral health care needs. The proposed activities are the following: a user-centered organization of the service – reception seen as a therapeutic relation creator; organization of the demands: lines of care and life condition; resolvability in the therapeutic project; actions of promotion and protection in oral health care: collective actions; oral health care education. The intent of this paper is to discuss new perspectives in the horizon of the actions to be taken in collective oral health care. Key Words: Oral Health. Dental Health Services. Family Health Program. Primary Health Care. Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Mestre em Saúde Coletiva e Especialista em Saúde da Família. Professor do curso de Odontologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisa Integrado em Saúde Coletiva (NUPISC). Endereço: Rua C, Caminho 05, Casa 05, Conjunto Feira IV, Bairro – Tanque da Nação Cep – 44.085-060 Feira De Santana – Bahia E-Mail – [email protected] Telefone – (75) 88063114 1 2 1 INTRODUÇÃO Este artigo busca refletir sobre a experiência vivenciada no Programa de Saúde da Família (PSF) no município de Alagoinhas – BA, tendo como objetivo propor ações baseadas em dispositivos como o acolhimento, o vínculo, a autonomia, o pertencimento e o empoderamento, na perspectiva da organização dos serviços de saúde bucal, balizado pela matriz da integralidade, tendo o usuário como centro das ações de saúde. A principal motivação surgiu após conclusão do Mestrado em Saúde Coletiva, do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), em 2005, que teve como um dos objetivos analisar a prática de saúde bucal no PSF em Alagoinhas – BA, de 2001 a 2004 (SANTOS, 2005). Para tanto, buscou-se compreender como eram estabelecidas as relações entre os diferentes sujeitos da prática (trabalhadores de saúde, usuários, gestores) e a organização das ações individuais e coletivas, a partir das tecnologias leves (MERHY, 1997) envolvidas, direta ou indiretamente, na produção dos serviços de saúde bucal. As Equipes de Saúde Bucal (ESB) em Alagoinhas foram implantadas em 2001, juntamente com a expansão das Equipes de Saúde da Família (ESF) (ALAGOINHAS, 2002). Naquele momento, tomou-se como diretriz organizativa a Portaria 1444 (BRASIL, 2000) que orientava a implantação de uma ESB para cada duas ESF, e seguiu-se a composição de um cirurgião-dentista (CD) e uma auxiliar de consultório dentário (ACD), na modalidade I. Os estudos realizados por Santos (2005) e Rodrigues (2005) revelaram dificuldades na organização do processo de trabalhos das ESB do referido município, bem como mostraram a necessidade de novas abordagens em saúde, pautados em dispositivos institucionais, para superar as práticas fragmentadas em saúde bucal nas ações individuais e coletivas. Na perspectiva de avançar, o Ministério da Saúde publica a Portaria 673/GM (BRASIL, 2003) na qual sugere uma relação de uma ESB para cada ESF. No entanto, apesar de apontar para uma alteração quanto à ampliação no número de ESB, a proposta não avança nas questões de financiamento, deixando a cargo dos municípios a opção de arcar com os novos investimentos. Tal atitude, por um lado, suscita a defesa pela ampliação em número de equipe e, por outro, coloca na pauta de discussão a necessidade de modalidades de financiamento que possibilitem novas implantações de ESB. 3 Nesse sentido, a perspectiva do presente artigo é descrever algumas propostas nascidas num cenário particular que foram aprofundadas em duas dissertações de mestrado em Saúde Coletiva, em 2005, e socializar o referido conhecimento para criar novos caminhos e novas discussões. 2 O PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE BUCAL E AS PROPOSTAS PARA AS AÇÕES INDIVIDUAIS E COLETIVAS. As ações individuais necessitam incluir todas as perspectivas do processo saúde-doença, ou seja, dar respostas de promoção e proteção à saúde, ações de recuperação e reabilitação (BRASIL, 2004). Para tanto, precisará articular-se a uma rede de serviços hierarquizada, possibilitando a resolubilidade das diferentes demandas apresentadas pelos usuários. Paralelamente, não poderá ser construída sem a participação dos diferentes sujeitos trabalhadores da saúde (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agente comunitário de saúde, entre outros), bem como só terá legitimidade se houver a compreensão e participação da comunidade (em suas várias representações), e do usuário individual no momento da busca por um serviço de saúde bucal. Historicamente, a sociedade brasileira teve a saúde bucal excluída do cardápio de opções no cenário da saúde pública; por conseguinte, acumulou uma demanda por ações de recuperação e reabilitação (doenças e seqüelas) que precisará ser revertida rapidamente. Por conta disso, o Ministério da Saúde, com as Diretrizes da Política de Saúde Bucal, sinaliza para a necessidade de maximização da hora clínica do CD – “75% a 85% das horas contratadas devem ser dedicadas à assistência” (BRASIL, 2004, p. 4). Nesse sentido, as ações individuais e coletivas, na prática cotidiana, poderão organizar-se a partir da seguinte proporção: sete turnos de atividades clínicas (ações individuais) e três turnos em outras atividades (educação em saúde; visitas domiciliares; reuniões e capacitações; planejamento e programação; dentre outras). No entanto, aumentar a carga horária ou a permanência do CD no consultório não garante, por si, um aumento no número de procedimentos, nem significa, necessariamente, ganho em qualidade das atividades desenvolvidas. Tais conquistas dependem de formas comprometidas de compreensão do próprio processo de trabalho em saúde e utilização de dispositivos relacionais (acolhimento, vínculo) e dispositivos instituintes (autonomia, pertencimento, empoderamento) 4 para transformar o complexo mundo de necessidades odontológicas, além do desenvolvimento de uma ética profissional pautada no compromisso com o produto (intervenção), com a comunidade (sujeitos) e com o Sistema Único de Saúde - SUS (gestão, modelo, instituição). Nessa direção, Campos (2003, p. 111) sinaliza que “a política e a gestão são importantes instrumentos para operar essa conversão. As diretrizes do SUS (universalidade, integralidade e eqüidade) são importantes instrumentos indutores de mudanças de modelo. Essas diretrizes mudaram a agenda brasileira, constrangendo governantes e sociedade civil a encararem desafios antes considerados irrealizáveis”. Portanto, a definição de metas, quantidades e tipo de atividades a serem realizadas não propõe a normatização em práticas programáticas acríticas ou limitantes; pelo contrário, parte do pressuposto da necessidade de uma ação planejada e programada, circunscrita em parâmetros revelados em levantamentos epidemiológicos e em estudos teóricos realizados em outros municípios e que balizam com suas experiências exitosas as considerações aqui delimitadas. Tais orientações, na organização do serviço, possibilitam um contato mais orgânico por parte das coordenações com o processo de trabalho das ESB, por meio de métodos de acompanhamento e avaliação compartilhada (convisão) (REIS; HORTALE, 2004). A partir das considerações apresentadas, propõem-se, a seguir, questões a serem discutidas com os trabalhadores de saúde, gestores e sociedade acerca da organização e das formas de atenção à saúde bucal, tendo como cenário inspirador o município de Alagoinhas, Bahia. As propostas têm como documentos norteadores a Lei 8080/90 (BRASIL, 1990), a NOAS/SUS 2002 (BRASIL, 2002), as Diretrizes de Saúde Bucal (BRASIL, 2004) e o relatório final da 3ª Conferência Nacional de Saúde Bucal - CNSB (BRASIL, 2005). 2.1 Organização do serviço de saúde bucal centrado no usuário: acolhimento como gerenciador das relações terapêuticas. Baseando-se em Merhy (1997; 2002) e Campos (1994; 2000; 2003) compreende-se que os serviços de saúde precisam, necessariamente, situar suas práticas tendo o usuário como centro do processo terapêutico. Para tanto, os referidos autores apresentam dispositivos – acolhimento, vínculo, autonomia, responsabilização e resolubilidade – que juntos potencializam o processo de 5 trabalho em saúde e, paralelamente, contribuem para a construção do cuidado, tendo como matriz a integralidade. ¾ Recepção O município precisará reorganizar as estruturas físicas das unidades de saúde. As recepções deverão ser amplas, com assentos adequados e suficientes, aparelhos audiovisuais (televisão, som ambiente, vídeos educativos, etc.), pintura agradável, arquivos informatizados, ou seja, a infra-estrutura, também deve ser entendida como elemento constituinte do cuidado. As ESB deverão criar cartazes informativos sobre os cuidados em saúde bucal e disponibilizar na recepção, os horários de atendimento, os serviços realizados, o número de vagas disponibilizadas diariamente, os critérios de agendamento e priorização (protocolos ou fluxogramas), tudo isso, de forma clara e acessível. Santos e Assis (2005, p. 321) sintetizam essa análise inspirados em Matumoto (1998) e Fortuna (1999) “antes mesmo do encontro formal entre usuário e trabalhador, os espaços preparam-se para essa relação. O preparo diz respeito à organização, higiene, estética, conforto, sinalização, informação do espaço físico, bem como à maneira como os trabalhadores preparamse para aguardar os usuários. Para tanto, são levados em conta a aparência, a paramentação e o comportamento”. Portanto, a ESB deverá acolher os usuários e perceber as priorizações (idosos, gestantes, pessoas com necessidades especiais, crianças) que devem extrapolar o critério de ordem de chegada. Deve-se prezar pela apresentação (aparência) e pela entonação adequada da voz; dessa forma, a terapêutica deve começar nesse espaço privilegiado. Sugere-se que a Secretaria de Saúde disponibilize jalecos adequados e padronizados, criando uma imagem positiva em toda a rede de atenção. As recepções deverão possuir área adequada para atividade educativa e pré-consulta, na qual se pode desenvolver salas temáticas, exibição de vídeos educativos, escovações supervisionadas, explicações acerca do funcionamento da unidade, etc. Essas atividades poderão ser desempenhadas pelos diferentes trabalhadores da unidade, potencializando a interdisciplinaridade e a co-responsabilização dos demais membros da ESF com o processo de adoecimento relacionado à boca. 6 ¾ Marcação de consultas: o ponto nevrálgico A demanda, historicamente excluída, faz surgir necessidades que vão além da governabilidade das ESF/ESB. Em Alagoinhas, por exemplo, no atual recorte temporal, apresentam-se inúmeras dificuldades sócio-econômicas que a posicionam como uma cidade de médio desenvolvimento humano. Segundo o IBGE, em 2005 (IBGE, 2006), tratava-se do sexto município baiano, em área territorial, possuindo uma extensão de 734 km2, uma população de 138.366 habitantes. Em relação às condições sócio-econômicas da população, têm-se os seguintes indicadores: 86,43% residem na zona urbana; possui uma taxa de analfabetismo na população adulta de 17,1%; sendo que 43,8% da população é classificada como pobre. É nesse cenário, portanto, de franca desigualdade social, que os aspectos econômicos, sociais, demográficos, culturais e epidemiológicos perpassam o processo saúde-doença, constituindo um quadro complexo e heterogêneo que termina determinando o padrão de qualidade de vida das pessoas. E tudo isso produz um tipo de demanda – demanda reprimida – que se materializa para as pessoas quando, mesmo tendo algum tipo de acesso aos serviços de saúde, têm sua resolubilidade limitada pelas questões que orbitam o campo da saúde e da doença. A contextualização acima possibilita uma compreensão mais aproximada de algumas das possíveis razões explicativas para a existência de filas. Nesse sentido, sinalizam-se algumas formas de acesso que estão sendo exploradas pelas unidades de saúde ao longo dos últimos cinco anos, no cenário em estudo. Faz-se mister considerar-se que não existem fórmulas, existem caminhos possíveis de superação das filas, existem construções de acesso aos serviços que precisam ser amplamente discutidas nas localidades por conta das diferenças em cada microespaço. Atualmente, podem-se encontrar, sinteticamente, as seguintes modalidades de acesso: 1. Urgências – nos casos de dor, traumatismo, infecções, hemorragias, dentre outros; 2. Encaminhamentos internos – trabalhadores da própria unidade fazem a solicitação para o atendimento; 3. Agendamento de crianças – realizado nas escolas após triagem realizada pelo CD ou pelo ACS; 4. Agendamento nas microáreas – realizado pelo ACS (idosos, gestantes, portadores de necessidades especiais, portadores de patologias crônicas); 7 5. Livre demanda – busca pelo serviço baseado na necessidade percebida pelo usuário, através de “fichas” de atendimento em dias programados na unidade; 6. Retornos programados – após a primeira consulta, o CD faz um aprazamento para o retorno, baseado na necessidade ou risco do usuário; 7. Levantamento de necessidades em reuniões coletivas; 8. Outros – encaminhamentos externos (Secretaria de Saúde, contra-referência, outros serviços de saúde), “favorecimento de conhecidos”. A diversidade encontrada revela as várias facetas de um mesmo problema – dificuldade no acesso ao serviço de saúde bucal. Por sua vez, a cidade não difere de outros municípios nordestinos em relação à problemática apontada. No caso específico, compete analisar a relação direta entre serviços implantados e demandas apresentadas, o que quer dizer que, anterior à gestão atual, havia as necessidades; no entanto, a falta de serviço levava as filas, o que possivelmente tem ocorrido é a constatação de que existem problemas de saúde acumulados e estes precisam ser resolvidos. Panizzi et al (2004) salientam que o acesso aos serviços de saúde bucal é um problema, pois existe uma demanda acumulada e, historicamente, excluída desse tipo de atenção. Como conseqüência, as necessidades apresentadas pelos usuários não são atendidas a contento, mesmo com o aumento da oferta, fazendo surgir a “ficha” que se configura como desafio para os gestores dos serviços. O primeiro passo para a organização dos serviços será a sua ampliação e adoção do critério de uma ESF para cada ESB, garantindo serviços básicos de saúde bucal em todas as unidades de saúde, incluindo áreas rurais de difícil acesso. Posteriormente, a inclusão de novos trabalhadores de saúde como o técnico de higiene dentária (THD) ampliará a resolubilidade das ações, pois o CD poderá dedica-se a atividades mais complexas (BRASIL, 2005). Na prática cotidiana, recomenda-se buscar a superação da fila através do pré-agendamento. Algumas alternativas possíveis são: a) Levantamento de necessidades em reuniões coletivas em cada microárea – reúne-se a comunidade em um local de fácil acesso em cada microárea de abrangência, após ampla divulgação. Neste local, utiliza-se uma ficha de levantamento de necessidades odontológicas e faz-se uma lista de espera de acordo com os índices encontrados. Essa ferramenta acaba com a fila “formal”, pois gera um outro tipo de espera, uma fila “virtual”. No entanto, permite a utilização do critério da eqüidade (priorização de quem mais precisa), as pessoas passam a 8 saber, previamente, quando serão atendidas (não precisam disputar uma vaga durante a madrugada), viabiliza o acesso de donas de casa e pessoas com dificuldades de disputarem uma vaga no modelo tradicional de “quem chega mais cedo é que consegue”. O código de levantamento de necessidades pode ser adaptado às características epidemiológicas de cada área. Essa modalidade de agendamento precisa ser discutida com a população adscrita para que a mesma seja parceira. Requer, ainda, avaliações periódicas e novas reuniões semestrais (ou prazo específico em cada local). O levantamento de necessidades é uma possibilidade, principalmente, para áreas em que existe a relação 1:1. b) Urgências – nos casos de dor, traumatismo, infecções, hemorragias, dentre outros. Nesses casos, o atendimento deve ser imediato, com disponibilização do arsenal tecnológico mais apropriado e possível para aquele momento, objetivando a finalização do sofrimento. Não pode ser restrito a um número pré-determinado e a hora de chegada. Para tanto, todos os casos devem ser acolhidos na unidade e deve ser explicitado na comunidade o que vem a ser urgências odontológicas – o bom senso e a ética devem mediar esse momento. c) Agendamento nas microáreas – realizado pelo ACS (idosos, gestantes, portadores de necessidades especiais, portadores de patologias crônicas) – uma alternativa para garantir o acesso de pessoas que tradicionalmente ficam distantes dos serviços. Pode ser aliado em locais cuja marcação tradicional – por filas – ainda é preponderante. Torna o serviço mais universal e eqüitativo. No entanto, apresenta o fator negativo de responsabilizar o ACS pela priorização. Nesse sentido, pode gerar conflitos nas áreas, portanto, precisa ser cercado de amplo esclarecimento nas áreas e entre os membros da equipe. d) Misto – para contemplar a diversidade de necessidades e possibilitar mudanças gradativas, uma das opções é a inserção de uma das modalidades citadas ou uma alternativa gestada coletivamente na comunidade, paralelamente à marcação tradicional, até que se possa transformar o modelo vigente de difícil acesso a um novo modelo que supere a exclusão social. Após definida uma alternativa de marcação, a unidade deverá ofertar diferentes turnos de atendimento clínico (manhã e tarde). Quando possível, o agendamento deverá ser por hora marcada; contudo, dada à dificuldade na maioria das vezes, sugere-se marcar por bloco de horário, sempre visando diminuir o tempo de permanência dos usuários na unidade de saúde. 9 ¾ Tipo de tratamento: ponto de divergências Atualmente, a maioria das necessidades de saúde bucal poderia ser resolvida nas Unidades de Saúde da Família, se o requisito fosse capacidade técnica dos profissionais. Na realidade, a forma como se organizam as práticas em saúde bucal obedecem ao seguinte conflito fazer ou não o tratamento completado, ou seja, concluir todas as necessidades que cada usuário apresenta, pelo menos em relação aos procedimentos básicos, ou resolver apenas os problemas demandados em cada consulta. O tratamento não completado gera, de um lado, uma maior rotatividade de usuários que utilizam os serviços, mas, por sua vez, cria um círculo vicioso, no qual a baixa resolubilidade acaba por gerar a permanência dos usuários por muito tempo no serviço, sem a garantia de que concluirão o tratamento ou conseguirão resolver seus problemas. A prerrogativa compete ser colocada na pauta de discussões nos diversos cenários (Conselho Municipal de Saúde, Secretaria Municipal de Saúde e sociedade civil), pois a opção deve estar pautada em critérios técnico-científicos e em políticas de saúde com perspectivas de superação de um modelo pouco resolutivo e fragmentado, para um outro que garanta o cuidado e a consolidação da saúde individual e coletiva. Desde 2005, algumas ESB do município já vêm adotando turnos para o tratamento completado. A perspectiva dessa opção, no processo de trabalho, é diminuir, ao longo do tempo, as necessidades acumuladas e possibilitar visitas programadas ao serviço odontológico. Tem-se clareza que será uma revolução a longo prazo que precisa-se de investimento e de coragem para disparar tamanha ousadia em tempos de imediatismo por serviços de saúde. Vislumbra-se o ganho na qualidade dos serviços, a resolubilidade nos procedimentos, a diminuição nos gastos a longo prazo, a satisfação dos usuários a medida que compreendam os benefícios de não precisarem ir ao serviço odontológico disputar uma vaga para cada procedimento. Acredita-se que essa estratégia deva ser inserida no cotidiano das práticas paulatinamente, pois, em conseqüência da grande demanda acumulada, não se pode engessar o serviço com o tratamento de apenas alguns indivíduos. ¾ Organização das demandas: linhas de cuidado e condição de vida Para superar o acesso descontextualizado das necessidades dos diferentes grupos populacionais, concorda-se com as Diretrizes das Políticas de Saúde Bucal (BRASIL, 2004, p.20) quando aponta duas formas de inserção: a) por linha de cuidado e b) por condição de vida. 10 Segundo o documento, são assim compreendidas: “a primeira prevê o reconhecimento de especificidades próprias da idade, podendo ser trabalhada como saúde da criança, saúde do adolescente, saúde do adulto e saúde do idoso. Já a proposta de atenção por condição de vida compreende a saúde da mulher, saúde do trabalhador, portadores de necessidades especiais, hipertensos, diabéticos, dentre outras”. Para tanto, as ESB e ESF precisarão conhecer os dados de suas respectivas áreas (população por faixa etária, condições de saneamento, doenças prevalentes, entre outros) e, a partir de então, definir formas de inserção dos diferentes grupos de forma eqüitativa e ética. Não há sobreposição entre essas inserções e os critérios de marcação, pois ambos podem complementar-se e servir para justificativas acerca do acesso de um ou outro grupo. As ESB podem organizar turnos para gestantes (juntamente com a enfermeira da unidade - no momento do pré-natal) e para grupos específicos (idosos, crianças, adolescentes - no dia da vacina, no momento das consultas de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, simultâneo as consultas de planejamento familiar, entre tantas possibilidades). Os turnos não precisam ser semanais, podem ser quinzenais, ou até mensais (critério de risco e necessidade). O referido documento aponta os seguintes grupos a serem atendidos: grupo de 0 a 5 anos; grupo de crianças e adolescentes (6-18 anos); grupo de gestantes; grupo de adultos; grupo de idosos. Acredita-se que haja necessidade de criação de protocolos e projetos terapêuticos que respondam às necessidades específicas de cada grupo. Esta necessidade ficou explicitada no relatório final da 3ª CNSB (BRASIL, 2005, p. 121) que preconiza “estabelecer protocolos cientificamente validados para padronização dos procedimentos de atenção e assistência em saúde bucal”. ¾ Projeto terapêutico: o desafio da resolubilidade. a) Adequação do meio bucal e tratamento restaurador atraumático (TRA) As sessões clínicas devem contemplar as necessidades mais imediatas – exodontias indicadas; eliminação de focos infecciosos; escariação de cavidades profundas e inserção de material provisório (preferência pelo ionômero de vidro); raspagem e alisamento radicular; motivação sobre técnicas de higiene bucal e controle da placa. 11 Essas ações devem ser realizadas (quando necessário) em todos os grupos antes do início do tratamento restaurador definitivo. Tais procedimentos precisam estar pautados em normas técnico-científicas que visem o benefício do usuário e a otimização das ações curativas. No caso de crianças, nas unidades decíduas preconiza-se a técnica do TRA que poderá inclusive ser realizada fora do ambiente da unidade de saúde (nas visitas domiciliares, nas escolas e creches). Deve-se dar fundamental atenção aos molares permanentes. Em crianças pequenas com alto índice de cárie agudas, deve-se utilizar o cariostático em sessões bem definidas de acordo com as necessidades de cada caso. A utilização do flúor, também, contempla essa etapa no tratamento (gel e/ou verniz fluoretado), em sessões planejadas sob o critério de risco individual e/ou coletivo. Após a conclusão dessa etapa, devem-se agendar visitas periódicas para as restaurações definitivas ou acompanhamento a partir do risco individual. b) Tratamento restaurador definitivo Inicia-se tão logo a cavidade bucal tenha condições de recebê-la, podendo ser paralela à adequação do meio (restaurações em resina, caso de estética). Nas unidades dentárias posteriores (molares e pré-molares) devem-se priorizar o amálgama como material definitivo e a resina fotopolimerizável para as unidades anteriores (incisivos e caninos) e posteriores com indicação para tal (cavidades pequenas ou nas quais a estética é imprescindível). Ressalta-se o esclarecimento ao usuário acerca do material escolhido, dando a ele autonomia para opinar no processo terapêutico. Recomenda-se contemplar todos os grupos para tratamento restaurador completo definitivo, sendo que os dentes permanentes devem ser sempre priorizados em relação aos decíduos. A Secretaria de Saúde deverá fornecer os materiais mais adequados para essa finalidade em quantidade e qualidades condizentes com as necessidades da população assistida. A técnica clínica utilizada para os procedimentos é de total responsabilidade dos profissionais cirurgiões-dentistas, sempre balizados pela condução ética e o conhecimento técnico mais adequado nos diferentes procedimentos preventivos e curativos. c) Descentralização das endodontias de dentes anteriores e pré-molares para as unidades básicas 12 Pretende-se inserir na atenção básica alguns procedimentos de média complexidade, ampliando o campo de ações do CD e a resolubilidade das ações curativas. Essa ação “contribuirá para aumentar o vínculo, ampliar a credibilidade e o reconhecimento do valor da existência do serviço público odontológico em cada local, aumentando-lhe o impacto e a cobertura”. (BRASIL, 2004, p.20). Para Campos (2003, p. 110), o projeto terapêutico deve refletir uma mudança no modelo de atenção à saúde na busca de maior eficácia, o que o autor define como sendo a capacidade dos modelos de produzir saúde, de promover, prevenir, curar, reabilitar e aliviar o sofrimento. Refere-se a resultados concretos, trabalhando com evidências, com a melhoria dos indicadores e com a diminuição do risco e da vulnerabilidade epidemiológica e clínica. Cada sistema, serviço, programa e equipe deveriam ser reorganizados sempre buscando o melhor resultado possível. e) Visita domiciliar A visita domiciliar é um procedimento rotineiro, preferencialmente, realizado pelo ACS. A ampliação e qualificação das ações de saúde bucal também se fazem através de organização de visitas da equipe de saúde bucal às pessoas acamadas ou com dificuldades de locomoção, visando à identificação dos riscos e propiciando o acompanhamento e tratamento necessário (BRASIL, 2004). O critério para visitas domiciliares é criticado por Franco e Merhy (2003), no sentido de que não deve ter o caráter compulsório. Segundo os autores, a visita domiciliar só faz sentido se estiver pautada numa necessidade explícita, sendo que o papel de vigilantes da saúde deve ser designado aos ACS. Complementam dizendo que há necessidade de otimização dos recursos humanos em saúde, não sendo, portanto, admissível que um trabalhador (médico, enfermeira, dentista) realize uma visita sem mesmo saber o que vai, ou para que vai, fazer (n)uma visita. Entende-se a visita domiciliar como sendo um espaço do encontro, em que a valise das relações (MERHY, 2002) deve operar em sentido maior, apenas complementada pelas demais valises estruturais e sempre balizadas pela real necessidade/demanda que é manifestada pela família. Até porque as demandas podem ser por promoção, prevenção, tratamento, reabilitação ou morte e, em cada caso, as diversas tecnologias deverão estar operando, no sentido de garantir o 13 acolhimento, a autonomia e a resolubilidade do que se apresenta ancorados pelo dispositivo do vínculo. O município tem inúmeras experiências em visitas domiciliares. As potencialidades neste campo são enormes, mas deverão ser otimizadas. Num primeiro momento, as visitas devem ter o caráter de reconhecimento da área de abrangência, mas, posteriormente, deve aliar a ampliação das ações terapêuticas (intervenções clínicas domiciliares) restringindo apenas aos usuários impossibilitados de locomoverem-se até a unidade de saúde. A visita domiciliar não precisar acontecer em turnos pré-fixados, mas ser livre para acontecer sempre que necessário (gestante, acamado, recém nascido, idoso, pessoas com necessidades especiais) agendando-se previamente com o ACS e comunicado a família sobre a visita. Cada localidade deve planejar a melhor estratégia para sua comunidade. 2.2 Ações de Promoção e Proteção em Saúde Bucal: ações coletivas A implantação do Sistema Único de Saúde desencadeou inúmeros desafios, principalmente em relação a sua capacidade de ofertar serviços capazes de garantir a universalização das ações e a integralidade ao cuidado das demandas e necessidades historicamente acumuladas na sociedade brasileira. A Lei 8080/90 legitima a saúde como um direito de todo cidadão, devendo o Estado garantir/ prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (BRASIL, 1990). Compreende a saúde como qualidade de vida e, portanto, circunscrita em seus vários espectros – biológico, social, econômico, político, cultural e ideológico. Nesse sentido, a saúde bucal é apenas um fragmento dessa totalidade complexa e, irremediavelmente, imbricada. A saúde bucal é a qualidade de saúde que se apresenta na cavidade bucal e, também, é sócio-culturalmente construída. Nesse sentido, saúde bucal é um conceito genérico, utilizado para organizar um núcleo de conhecimentos específicos, mas dependente de outros campos de saberes. Portanto, a saúde bucal configura-se como matriz da formação dos cirurgiões-dentistas, mas só efetiva-se no encontro com as ações desenvolvidas por diferentes sujeitos (médicos, enfermeiros, técnicos, agentes comunitários, gestores/ políticos, professores, entre outros), tendo o sujeito usuário como centro do cuidado. 14 As ações de saúde bucal devem inserir-se na estratégia planejada pela equipe de saúde numa inter-relação permanente com as demais ações da unidade de saúde, aliando a intersetorialidade e a participação e o controle social. As ações coletivas são aquelas desenvolvidas com o intuito de atingir o maior número de pessoas, através da promoção e proteção da saúde em diferentes espaços sociais (escolas, clubes, associações, unidades de saúde, entre outras), ou seja, confere um caráter não formal ao processo de ensino/ aprendizagem em saúde. A não formalidade frisa-se no sentido de não privilégio e de não rigidez para o desenvolvimento das práticas em saúde, contudo, percebe-se como imprescindíveis o planejamento e a utilização de ferramentas adequadas a cada atividade e para cada grupo social (criança, adolescentes, adultos, gestantes, idosos, etc.). Nesse sentido, é mister o conhecimento estruturado (fundamentação teórica), a interdisciplinaridade, a intersetorialidade, o respeito às diferenças, a utilização do acolhimento e do vínculo, tudo isso em prol da construção de sujeitos autônomos e capazes de coresponsabilidade e co-participação na construção da saúde, verdadeiramente coletiva. Inspirados nas Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (BRASIL, 2004) destacamse as seguintes ações para o desenvolvimento da saúde bucal coletiva: ¾ Educação em Saúde Bucal: uma breve reflexão. Para realmente mudar a forma de cuidar, tratar e acompanhar a saúde das pessoas é preciso mudar também os modos de ensinar e aprender. O conceito de educação tem passado por fortes transformações – desafios gerados pela globalização e novas tecnologias e seu grande desafio é superar as desigualdades sociais, promover eqüidade e justiça social. Para Brandão (1995, p. 47), “a educação do homem existe por toda parte e, muito mais que a escola, é o resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre os seus participantes. É o exercício de viver e conviver o que educa. E a escola de qualquer tipo é apenas um lugar e um momento provisório onde isto pode acontecer”. Nesta direção, sinaliza-se a necessidade de ações educativas em diferentes espaços dentro de cada área adscrita para as ESB nas ESF: creches, escolas, associações, fábricas, unidade de saúde, entre outros espaços apontados junto com a comunidade como adequados para as atividades educacionais. Carmo (2005) ressalta que a educação deve ter como base a 15 emancipação dos sujeitos, daí a necessidade do envolvimento do educador com a realidade dos educandos. Assim, para estabelecer o processo de aprendizagem, há necessidade de uma relação horizontal (vínculo) entre o sujeito que educa e o sujeito que se propõe educar, valorizando a fala e a escuta, avançando para além das tradicionais técnicas de transmissão (palestras). O objetivo é a construção de novos valores, adquiridos a partir da reflexão de problemas concretos, em espaços reais, ou seja, baseados na problematização sobre o cotidiano de cada território-processo, nos quais as pessoas vivem, trabalham, relacionam-se, adoecem, são felizes ou tristes, na perspectiva de autonomização dos sujeitos, ou como diria Freire (1998), uma educação para libertação. Desenvolver novas práticas de educação em saúde exige mudanças que envolvem um processo complexo que passa pela formação de pessoas na área da saúde (universidade e escolas técnicas); modelo de atenção à saúde proposto para o município (gestão, política); educação dos trabalhadores de saúde (educação permanente); acesso à educação formal dos cidadãos (fundamental, médio e superior); educação de sujeitos-chave em saúde (professores, ACS, merendeiras, etc.); inserção da educação em saúde em currículos escolares formais (livros e cartilhas); implantação nas escolas e unidades de saúde de espaços adequados para algumas atividades em saúde bucal (escovódromos); disponibilização de material (escovas, creme dental, fio dental) para higiene bucal (em quantidade e qualidade adequado às necessidades locais); adequação da merenda escolar (dieta balanceada); adequação da comercialização de produtos cariogênicos nas escolas municipais; inserção de novos técnicos para desenvolvimento de ações coletivas em saúde bucal (Técnico em Higiene Dental – THD); divulgação dos índices epidemiológicos para os diferentes sujeitos da comunidade (informação/ comunicação em saúde); divulgação na mídia escrita, falada e eletrônica de ações positivas em saúde bucal (criação de audiovisual sobre saúde bucal envolvendo a comunidade); entre outras ações (BRASIL, 2004; 2005). No artigo em questão não se ousou abordar a totalidade das questões mencionadas acima. O objetivo é apontar proposições para a organização dos serviços de saúde, bem como sugerir algumas ações intersetoriais que viabilizem em curto prazo mudanças consideráveis no processo de educação em saúde bucal. 16 i) Educando os sujeitos-chave: a co-responsabilidade As ESB deverão identificar quais os sujeitos-chave da área de adscrição que exercem interface direta com a saúde bucal. De um modo geral, alguns grupos deverão estar contemplados: professores, merendeiras e ACS. Para tanto, recomenda-se a realização de oficinas (problematização e construção) com o tema saúde bucal. Nas oficinas devem-se apresentar os índices sócio-econômicos da comunidade e discutir dialeticamente o papel de cada sujeito no processo de promoção da saúde. Problematizar a realidade da comunidade em seus vários aspectos, procurando superar a dicotomia entre a saúde bucal e os outros elementos associados ao processo saúde-doença, de forma a perceber que as condições de saúde bucal não são determinadas pelos sujeitos individualmente, mas pela soma de inúmeros fatores (condições de moradia, saneamento básico, emprego, acesso aos serviços de saúde, entre outros), que geram situações de saúde/ doença que se manifestam no corpo, na alma, na boca. A construção coletiva deve permitir a ampliação da clínica e re-significação do conceito de cuidar a partir dos dispositivos instituintes (autonomia, pertencimento, empoderamento) e integradores (responsabilização, participação e vínculo). As oficinas devem incluir abordagens sobre os fatores de risco ou de proteção às doenças bucais, formas adequadas e alternativas de higienização e alimentação. ii) Higiene bucal supervisionada em escolas e creches: o auto cuidado A Higiene Bucal Supervisionada (HBS) é parte fundamental da educação em saúde, podendo ser realizada em diferentes espaços. Contudo, as escolas e creches são espaços adequados para realização desse procedimento pela presença constante das crianças (pelo menos um turno/dia). Contudo, realizá-la adequadamente exige aprendizado e abordagens criativas no processo de ensino. A referida ação visa à prevenção das principais doenças bucais (cárie e gengivite) através do emprego de técnicas adequadas de escovação e uso do fio dental. Deve ser realizada diariamente nas escolas e creches do município sob a supervisão dos professores de cada espaço educacional. Recomenda-se cautela na definição de técnicas “corretas” e “erradas”, evitando-se estigmatização (BRASIL, 2004). O ideal é uma técnica simples e eficaz que seja aceita por um maior número de crianças. 17 Os professores são orientados a reservar quinze minutos em cada turno após a merenda escolar para a realização da escovação, diariamente. Os próprios alunos fazem a escovação com o objetivo de desenvolver a motricidade da técnica. Geralmente, a nova maneira de escovar é diferente do que eles estavam acostumados e, por isso, requer um certo tempo para seu domínio. Os professores supervisionam, estimulam e orientam. Segundo Brasil (2004, p. 17), “considerando a importância de que o trabalho do CD não se restrinja apenas a sua atuação no âmbito da assistência odontológica, limitando-se exclusivamente à clínica, sugere-se cautela no deslocamento freqüente deste profissional, para a execução das ações coletivas. Estas devem ser feitas, preferencialmente, pelo THD, pelo ACD e pelo ACS. Compete ao CD planejá-las, organizá-las, supervisioná-las e avaliá-las sendo, em última instância, o responsável técnico-científico por tais ações”. Diante do exposto, Manfredini (2004) complementa, dizendo que deve caber aos dentistas o papel de planejar com os diversos sujeitos, coordenar e supervisionar as atividades coletivas, não que seu papel deva ser centrado no atendimento individual, mas seus turnos extra-muros devem ser utilizados de maneira mais resolutiva. iii) Organograma das ações coletivas em saúde bucal Figura 1 Cirurgião-dentista (CD) Educação dos sujeitos – chave THD, ACD, ACS, professores, merendeiras, entre outros. Discute com os diferentes sujeitos para planejar, organizar, supervisionar e avaliar. Executam tecnicamente a ação. Supervisionam a higiene bucal, faz as aplicações programadas de flúor, percebem as necessidades individuais e coletivas em saúde bucal e informam ao CD. 18 iv) Aplicação Tópica de Flúor: bom senso O flúor reduz a incidência de cárie e recupera lesões não cavitadas (cáries iniciais – manchas). Portanto, o flúor tem uma função preventiva e terapêutica. O flúor tópico está difundido através dos dentifrícios fluoretados e na água de abastecimento, por isso deve-se ter cautela na utilização de outras formas de aplicação de flúor. A aplicação tópica de flúor visa à prevenção e controle da cárie, através da utilização de produtos fluoretados (soluções para bochechos, gel fluoretado e verniz fluoretado) em ações coletivas. (MENEZES, 2006). Considerando-se que a maioria da população está exposta a, pelo menos, uma fonte de flúor, seja pela água fluoretada e/ou pelo dentifrício fluoretado, a indicação desse método deve seguir critérios técnicos bem definidos. Nesse sentido, entende-se como prioridade para a aplicação do flúor nos seguintes casos: água de abastecimento sem flúor; baixos teores de flúor na água (<0,54 ppm); baseado em levantamento epidemiológico que indique alta incidência de cárie dentária; pessoas com dificuldades motoras, ou outras deficiências que justifiquem uma maior vigilância à cárie; pessoas que apresentam deficiência na escovação; ação impactante nas escolas/ creches que apresentam crianças com alta incidência de cárie (BRASIL, 2004; NARVAI et al, 2002). 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A intenção deste artigo foi divulgar novas perspectivas no horizonte das ações em saúde bucal. Percebe-se que existe um grande número de estudos que apontam sugestões para a saúde bucal, mas a grande maioria apóia-se, preferencialmente, no levantamento epidemiológico como eixo orientador das práticas. Segundo Nadanovsky (2006, p. 886), “estudos sobre a prevalência da cárie dentária em uma determinada localidade têm poucas chances de contribuir para o desenvolvimento científico. Apesar disso, vários artigos publicados pela odontologia brasileira na saúde pública, nos últimos anos, foram relatos desse tipo ou similares”. Nesse sentido, ousou-se apontar direções que fossem desencadeadas por dispositivos instituintes, relacionais e integradores na organização do processo de trabalho da ESB nas suas ações individuais e coletivas. 19 À luz das análises realizadas nas dissertações de mestrado de Santos (2005) e Rodrigues (2005), resultado aproximado da realidade, trouxe o desafio: propor mudanças operativas à prática de saúde bucal, no PSF de Alagoinhas. Destaca-se que as proposições, aqui delineadas, são produtos do encontro entre os sujeitos que vivenciam a prática (dados empíricos), os sujeitos que teorizam e experienciam o fazer/agir em saúde/saúde bucal em outros cenários (referencial teórico) e os sujeitos que propuseram tal encontro (pesquisadores, por conseguinte, também, pesquisados). Acredita-se que o debate em torno das práticas em saúde bucal perpassa pelo modelo de atenção mais adequado, que possibilite agregar as diversas tecnologias disponíveis da maneira mais adequada sem reduzi-las, nem tão pouco dimensioná-las para além de suas possibilidades. Até porque não seria coerente com as propostas estudadas reduzir a prática em saúde bucal a determinismos pragmáticos ou funcionalistas, nem excluir a legitimidade construída, historicamente, no seu arcabouço técnico-científico. A proposta defendida aqui é a re-significação dos modelos de atenção em saúde bucal, para que sejam convergentes com a integralidade à saúde. Nesta perspectiva, espera-se a inclusão dos usuários como autores/protagonistas, ou seja, responsáveis, também, pela defesa da vida individual e coletiva. REFERÊNCIAS ALAGOINHAS. Secretaria Municipal de Saúde. Relatório de Gestão 2001. Alagoinhas: SESAU, 2002. BRANDÃO, C.R. O que é educação?. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE BUCAL, 3., Brasília, DF, 2005. Acesso e qualidade superando a exclusão social: relatório final. Brasília, DF, 2005. BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Diretrizes da política nacional de saúde bucal. Brasília, DF, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 673/GM, de 3 de junho de 2003. Atualiza e revê o incentivo financeiro às ações de saúde bucal, no âmbito do programa de saúde da família, parte integrante do Piso de Atenção Básica – PAB. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 4 jun. 2003. Seção 1. p. 44. 20 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 373/GM, 27 de fevereiro de 2002. Aprovar a Norma Operacional da Assistência à Saúde – NOAS-SUS 01/2002. Brasília, DF, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 1.444, de 28 de dezembro de 2000. Estabelece incentivo financeiro para a reorganização da atenção prestada nos municípios por meio do programa de saúde da família. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 29 dez. 2000. Seção 1. p. 85. BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF, 1990. CAMPOS, G.W.S. Saúde Paidéia. São Paulo: HUCITEC, 2003. CAMPOS, G.W.S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: HUCITEC, 2000. CAMPOS, G.W.S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas: o caso da saúde. In: CECÍLIO, Luiz Carlos de (Org.). 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Supervisionam a higiene bucal, faz as aplicações programadas de flúor, percebem as necessidades individuais e coletivas em saúde bucal e informam ao CD. 24