1 “Cada pessoa que se dedica ao doente, com todo o seu humano, intelecto e coração, é sacerdote verdadeiro de si mesmo e do próximo”. D. Luigi M. Verzé Fundador do Monte Tabor 2 O QUE É CHOOSING WISELY? Em 2012, o American Board of Internal Medicine iniciou nos Estados Unidos a campanha Choosing Wisely, que poderia ser traduzido como “usando de sabedoria nas escolhas” ou “escolhendo sabiamente”. Esta iniciativa surge da percepção da falta de sabedoria na utilização exagerada ou inapropriada de recursos em saúde. Choosing Wisely é uma campanha que vai ao encontro do paradigma Less is More. Seria impositivo e mal recebido se o American Board of Internal Medicine iniciasse uma campanha contra condutas normalmente adotadas por especialidades médicas. Desta forma, ao invés de criticar os especialistas, foi solicitado a cada especialidade que apontassem condutas médicas correntes que não deveriam estar sendo adotadas. Isto obrigou os próprios especialistas a refletirem e contraindicarem suas próprias condutas fúteis. Agora, eles tinham a responsabilidade da autocrítica. Hoje, o Choosing Wisely se expandiu oficialmente para outros países, como Canadá, Inglaterra, Alemanha, Itália, Holanda, Suíça, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Estes países estão agrupados no denominado Choosing Wisely International, coordenado por Dra. Wendy Levinson. Esta iniciativa serve de inspiração para qualquer país que insiste em imitar o padrão americano de consumo de recursos pseudocientíficos. O Brasil é um deles. Outro aspecto enfatizado pelos organizadores é que as recomendações do Choosing Wisely não têm o intuito primário de economizar recursos, mais sim de melhorar a qualidade da assistência, que deve ser embasada em evidências, aumentando a probabilidade de benefício e reduzindo o risco de malefício à saúde dos indivíduos. 3 Sendo assim, o Choosing Wisely recomenda o que não devemos fazer. Traz um paradigma interessante, pois normalmente somos treinados a discutir o que devemos fazer. Os guidelines falam muito mais no que devemos fazer, do que não devemos fazer. E as recomendação do não fazer (recomendação grau III), normalmente, se limitam a condutas comprovadamente deletérias. No entanto, além da prova do dano, há outras razões para não adotarmos condutas. Ou colocado de outra forma, não significa que temos que fazer algo só porque não é deletério. O ônus da prova está no desempenho (eficácia) e utilidade (relevância) de uma conduta. Assim, os seguintes motivos podem justificar que não se adote certas condutas: 1) Terapia prejudicial - isso é óbvio, portanto não é o foco principal do Choosing Wisely. 2) Terapia desconhecida quanto à sua eficácia (não há demonstração) - há tantos exemplos de condutas que fogem à plausibilidade extrema, porém são adotadas, sistematicamente, baseadas em crenças. 3) Terapia comprovadamente ineficaz, embora segura - isso também se faz, pois muitas vezes ensaios clínicos negativos não são valorizados por irem de encontro a nossas crenças. 4) Testes diagnósticos ou prognósticos aplicados em situações inúteis (fúteis), trazendo resultados potencialmente prejudiciais (overdiagnosis). O pensamento choosing wisely é de vanguarda, combatendo o paradigma da mentalidade do médico ativo, onde fazer mais é sempre melhor. Algo muito prevalente, porém provavelmente obsoleto em 10-20 anos. Resta cada um saber que caminho escolher: um caminho reflexivo, de vanguarda ou o caminho tradicional e ultrapassado. 4 Certa feita, um dos líderes do Choosing Wisely nos Estados Unidos comparou essa iniciativa ao filme de Indiana Jones, onde o herói procura o Santo Graal. Na cena final, há vários cálices e apenas uma chance de escolher o cálice correto, aquele que seria o Santo Graal. O guardião dos cálices avisa aos personagens: Choose Wisely. O primeiro a escolher, de forma óbvia, escolhe o cálice mais bonito e precioso. Mas como sabemos, em ciência, nem sempre o plausível é o verdadeiro. Aquele não era o Santo Graal e o vilão se dá mal, sendo transformado em caveira. Por outro lado, Indiana Jones é um cientista, e usa sua mente científica para fazer a escolha mais sábia. Ele escolhe o cálice mais simples, mais condizente com os valores de Cristo. E acerta, conseguindo a conquista do Santo Graal. Como médicos, precisamos pensar sabiamente. Usar recursos sem comprovação científica ou de forma exagerada nos aproxima do vilão do filme e distancia de Indiana Jones, o nosso herói. Ser herói não é usar da mentalidade ativa, indicar procedimentos, exames, tratamentos fúteis ou incertos. Ser herói é saber quando não fazer as coisas, assumir nossas incertezas, alternando com momentos de postura mais ativa. 5 CHOOSING WISELY NO HOSPITAL SÃO RAFAEL A reflexão coletiva promovida pelo Choosing Wisely converge para uma mudança de paradigma em prol da qualidade assistencial e segurança do paciente. Desta forma, a Coordenação de Pesquisa alinhou-se com o Núcleo de Qualidade deste Hospital para lançar de forma pioneira no Brasil o primeiro Choosing Wisely realizado em uma unidade hospitalar terciária. Inicialmente, fizemos uma primeira reunião de sensibilização com os líderes de grupos assistenciais do Hospital. Em seguida, este tema foi debatido em um dos Encontros da Qualidade, que envolve potencialmente todos os colaboradores. Neste encontro, falamos do princípio menos é mais em medicina, corroborado pelo pensamento gerencial lean, que foi apresentado por nosso líder estratégico Jaime Gama. Após estas sensibilizações, cada grupo assistencial foi orientado a reunir suas equipes e trazer 2 recomendações (“não fazer”) referentes a suas especialidades. Estas recomendações foram apresentadas e debatidas em uma tarde no auditório Luigi Faroldi, com presença maciça do corpo clínico. Esta discussão envolveu também a alta gestão do hospital (Laura Ziller, Presidente, Alfredo Martini, Diretor Geral, Liliana Ronzoni, Diretora Médica), além dos demais gerentes estratégicos e do capelão do HSR, Padre Bento Viana. Após esta discussão, os líderes foram orientados a revisar as recomendações para gerar suas versões finais, apresentadas neste documento. 6 Vale salientar que estas recomendações não têm o intuito de cercear as condutas médicas. A expectativa é que o próprio processo de criação tenha influenciado a mente de nossos colaboradores em prol do paradigma da escolha sábia. O presente documento se presta a registrar nossa experiência, promovendo uma contínua reflexão a respeito da necessidade de diferenciar atos médicos úteis de fúteis. Luis Correia Coordenador de Pesquisa do HSR 7 RECOMENDAÇÕES Anestesiologia Responsável: Luiz Teixeira 1) Evitar realização de exames laboratoriais em pré-operatório de pacientes candidatos a cirurgia de baixo risco e classificados como ASA I ou II. Justificativa: conduta não reduz risco de complicações cirúrgicas, promovendo overdiagnosis, atraso ou impedimento inapropriado do procedimento cirúrgico. 2) Evitar utilização de rotina de catéter de artéria pulmonar durante cirurgia cardíaca para paciente sem risco elevado de instabilização hemodinâmica. Justificativa: procedimento que pode gerar complicações, sem confirmação de benefício em geral, devendo ser reservado para pacientes com claro benefício potencial. Arritmologia Responsáveis: Alessandro Rabelo e Ricardo Sobral 1) Não realizar exame de imagem do encéfalo como investigação de síncope em pacientes sem alterações neurológicas ou trauma crânioencefálico. Justificativa: baixa probabilidade pré-teste de causa neurológica, predispondo ao overdiagnosis de achados incidentais. 2) Não indicar desfibrilador implantável para prevenção de morte súbita em pacientes com insuficiência cardíaca sistólica avançada, menos de 6 meses de expectativa de vida, sem perspectiva de transplante cardíaco ou uso de dispositivos de assistência circulatória. Justificativa: expectativa de vida limitada por falência cardíaca, que pode ocorrer em período superponível à morte súbita , representando apenas uma troca do mecanismo de morte, à custa de choques que podem levar a desconforto extremo. 8 Cardiologia Responsável: Márcia Noya 1) Não realizar pesquisa não invasiva de doença coronariana obstrutiva como rastreio de indivíduos assintomáticos e com função ventricular preservada. Justificativa: overdiagnosis, pois não há benefício de estratégia de revascularização. 2) Não realizar de rotina intervenção coronária percutânea em indivíduos assintomáticos e com boa função ventricular esquerda. Justificativa: ausência de benefício clínico. Cirurgia Geral Responsável: Paulo Amaral 1) Não realizar tomografia de abdome de rotina para “afastar apendicite” em pacientes com baixa probabilidade pré-teste. 2) Evitar ampla gama de exame laboratoriais não alinhados à suspeita clínica. Justificativas: Overdiagnosis por incidentalomas. Cirurgia Pediátrica Responsável: Soraya Fernanda 1) Evitar exames pré-operatórios de rotina, em crianças de baixo risco cirúrgico. Justificativa: conduta não reduz risco de complicações cirúrgicas, promovendo overdiagnosis, atraso ou impedimento inapropriado do procedimento cirúrgico. 2) Evitar esquemas antibiótico excessivamente amplos em relação ao que se espera do patógeno para o quadro infeccioso. Justificativa: evitar resistência bacteriana por uso indiscriminado de antibiótico. 9 Cuidados Paliativos Responsável: João Gabriel 1) Evitar sedação profunda para controle de sintomas que não sejam refratários aos tratamentos habituais. Justificativa: A manutenção do estado vigil e participativo permite melhor avaliação do resultado de medidas habituais, que podem ser suficientes. 2) Evitar contenção física como primeiro recurso no controle da agitação em pacientes frágeis com delirium. Justificativa: não existe evidência da eficácia da utilização de contenção física nessas situações. Contenções físicas podem levar a piora da agitação e delirium e acarretar lesões graves. Abordagens comportamentais e organizacionais, envolvendo observação constante, modificações do ambiente da internação e a participação de familiares no cuidado podem ser mais seguros e eficazes. Contenções físicas devem ser utilizadas como último recurso, após avaliação de um profissional de saúde qualificado, da maneira menos restritiva e pelo menor tempo possível. Enfermagem Responsável: Margareth Trabuco e Lúcia Ferreira 1) Evitar excesso de itens de prontuário, gerando dados redundantes por atividade consumidora de tempo. Justificativa: a preocupação está na burocratização da assistência em detrimento da qualidade. 2) Evitar reesterilização de materiais com utilidade expirada. 10 Farmácia Responsável: Sandra Hernandes 1) Não prescrever laxantes em pacientes constipados sem antes avaliar os medicamentos prescritos que causam obstipação e que poderiam ser retirados ou substituídos. 2) Não administrar Plasil® (metoclopramida) a pacientes pediátricos. Fisioterapia Responsável: Thelso Silva 1) Não realizar hemogasometria após o teste de respiração espontânea indicar boa condição para o desmame. Justificativa: este procedimento doloroso não influencia no sucesso do desmame. 2) Não aplicar ventilação mecânica não invasiva na unidade de internação. Justificativa: esta conduta por retardar a assistência respiratória intensiva e promover riscos ao paciente, que serão tratados sem a adequada vigilância. Gastro-hepatologia Responsável: André Lyra 1) Não solicitar TC de crânio em pacientes cirróticos com encefalopatia hepática, sem déficit localizatório, antes de completar 24h a 48h de terapia. Justificativa: desnecessário, podendo gerar overdiagnosis por incidentalomas; habitualmente os pacientes melhoram dentro de 48h após iniciadas medidas para encefalopatia. 11 2) Não solicitar TC de abdome na pancreatite aguda dentro das primeiras 48h, exceto se houver dúvida diagnóstica. Justificativa: exame não agrega valor diagnóstico, podendo haver complicação do contraste. Ginecologia/Obstetrícia Responsável: Omar Darzé 1) Evitar a remoção de ovários na histerectomia em mulheres prémenopáusicas sem risco para câncer de ovário. Justificativa: Há evidências de estudos observacionais de que a menopausa cirúrgica possa afetar negativamente a saúde cardiovascular. A conservação dos ovários antes da menopausa é particularmente importante, principalmente entre aquelas com história pessoal ou familiar de doença cardiovascular ou acidente vascular cerebral. A decisão de realizar o procedimento deve ser individualizada e após consentimento apropriado. 2) Não tratar pacientes que têm displasia leve de colo uterino (NIC 1) com menos de dois anos de duração. Justificativa: a displasia leve de colo uterino (NIC 1), esáa, na maioria das vezes associada com uma infecção transitória do vírus do papiloma humano (HPV), que, normalmente, irá regredir em menos de 12 meses e, portanto, não requer tratamento. Geralmente, são mulheres jovens, em idade reprodutiva, e os procedimentos de excisão podem resultar em resultados obstétricos adversos. 12 Infectologia Responsável: Ana Verena Mendes 1) Não tratar bacteriúria assintomática. Justificativa: overtreatment. 2) Não coletar cultura de ponta de cateter sem critério clinico de infecção. Justificativa: culturas positivas sem contextualização clínica e sem benefício de tratamento. Medicina Intensiva Responsável: Paulo Benigno 1) Não sedar profundamente pacientes em terapia intensiva, sem indicação específica. Justificativa: risco de overdiagnosis e overtreatment de condições não necessariamente relacionadas ao sintoma. 2) Evitar transfusão de concentrado de hemácias com base apenas em hemoglobina moderadamente baixa, na ausência de instabilidade clínica. Justificativa: ausência de benefício clínico, restando risco das transfusões. Medicina Interna Responsável: Rogério Passos 1) Não solicitar exames de imagem para pacientes com dor lombar inespecífica. Justificativa: risco de overdiagnosis e overtreatment de condições não necessariamente relacionadas ao sintoma. 13 2) Não solicitar exames laboratoriais de rotina, em intervalos regulares, a menos que exista uma questão clínica específica a ser respondida. Justificativa: risco de overdiagnosis e overtreatment de condições não necessariamente relacionadas ao sintoma. Medicina Nuclear Responsável: Lucas Vieira 1) Não utilizar PET / CT para rastreamento de neoplasia (indivíduos assintomáticos). Justificativa: a probabilidade de encontrar neoplasia em adultos saudáveis é excessivamente baixa. Imagens duvidosas em exames sem indicação clínica são possivelmente achados inofensivos e que levam a mais exames, biópsia ou cirurgia desnecessária. 2) Não utilizar PET/CT cerebral na avaliação de pacientes com demência sem que o paciente tenha sido encaminhado/avaliado por um especialista. Justificativa: sem evidência objetiva de demência, o benefício potencial do PET não justifica custo ou exposição à radiação. Alguns subtipos de demência têm padrões de imagem semelhantes no PET/CT. A avaliação clínica e da imagem em conjunto permitem um diagnóstico confiável e melhor planejamento de conduta. 14 Nefrologia Responsável: Paulo Benigno 1) Não utilizar anti-inflamatórios não hormonais em pacientes hipertensos, diabéticos, cardiopatas ou nefropatas. Justificativa: narcóticos e acetaminofen podem ser tão eficazes e são menos tóxicos. 2) Não utilizar cateter venoso periférico com intuito único de manter acesso venoso, em pacientes internados com insuficiência renal ou transplantados renais. Justificativa: evitar infecção de corrente sanguínea neste tipo de pacientes susceptíveis a complicações infecciosas. Neurologia Responsável: Aroldo Bacelar 1) Não indicar monitoração invasiva da pressão intracraniana em pacientes com acidente vascular cerebral. Justificativa: não há confirmação científica de que este procedimento invasivo mude o desfecho de pacientes em coma de qualquer etiologia. 2) Não proceda trombólise endovascular mecânica sem antes realizar a intravenosa com rtPA, exceto quando esta última esteja contraindicada. Justificativa: não há evidência de benefício do tratamento mecânico como alternativa primária. 15 Ortopedia Responsável: Marcus Ferracini 1) Evitar exame de imagem para pesquisa de dor lombar com < 6 semanas, na ausência de sinais de alerta. Justificativa: Overdiagnosis e overtreatment de condições não necessariamente relacionadas ao sintoma. 2) Não utilizar Condroitina ou Glucosamina para tratamento de artrites sintomáticas de quadril e joelho. Justificativa: O efeito destes tratamentos não superam o placebo. Patologia Clínica Responsáveis: Luciana Estrella e Agnaluce Moreira 1) Não repetir exame laboratorial devido a resultado alterado e dissociado de suspeita clínica. Justificativa: estes exames usualmente consistem de falso positivo e eventuais confirmações de sua veracidade definiriam overdiagnosis por incidentaloma. Pediatria Responsável: Roberto Salponik 1) Evitar dosagem seriada de VHS/PCR em crianças com pneumonia comunitária. Justificativa: desconforto de punção, sem benefício clínico de monitoramento neste tipo de pneumonia. 16 2) Evitar utilização de rotina de corticoterapia em bronquiolite aguda Justificativa: ausência de benefício clínico em casos não complicados, restando o malefício de efeitos adversos. Pneumologia Responsável: Guilherme Montal 1) Não realizar angiotomografia de tórax para avaliar suspeita diagnóstica de tromboembolismo pulmonar em pacientes de baixa probabilidade clinica, mesmo se D-dímero positivo pelo método Elisa. Justificativa: baixa probabilidade pré-teste implicará em resultados falso positivo, assim como o teste muito sensível implicará em diagnósticos de tromboembolismo subsegmentar, de relevância clínica questionável (overdiagnosis). 2) Não realizar screening com tomografia de tórax de baixa dose para pacientes de baixo risco para câncer de pulmão. Justificativa: a baixa probabilidade pré-teste implicará em resultados falso positivo, assim como o teste muito sensível implicará em diagnósticos de tromboembolismo subsegmentar, de relevância clínica questionável (overdiagnosis). 17 19 20 ASCOM-HSR | 0716