A Alca e a Integração Econômica das Américas

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A ALCA e a Integração Econômica
das Américas - Realidade ou Mito?
Eugênio Emílio Staub
Presidente do Instituto de Estudos para
o Desenvolvimento Industrial - IEDI
Escola Superior de Guerra – julho 2001
A economia brasileira terá grandes desafios na presente década: deverá promover o ajuste de
seu setor externo que se mostra muito vulnerável a choques da economia internacional e terá
que completar sua industrialização com a implantação de setores de alta tecnologia. Esses
deveriam ser os principais objetivos da política industrial e da política comercial na qual se
insere a negociação para a formação da ALCA. Sustentaremos que o êxito das políticas
dependerá de determinantes internos, bem como de acordos internacionais, como a ALCA, a
qual, até o momento, ainda não apresenta perspectiva favorável àqueles objetivos.
Desafios da Economia e do Setor Externo Brasileiro
No ano de 2001 assistimos a uma demonstração dos efeitos negativos da vulnerabilidade
externa que vem determinando um profundo constrangimento ao crescimento econômico
brasileiro. De fato, a extrema sensibilidade com que nossos mercados financeiros reagiram à
crise na Argentina levaram o Banco Central a subir as taxas de juros, o que,
independentemente da crise de energia, já seria o bastante para interromper um crescimento
que se mostrava vigoroso até maio do corrente. Cresceríamos entre 4,5 e 5% em 2001, mas
com as duas crises que se apresentaram (energia e câmbio) cresceremos apenas 2%.
Não é a primeira vez que isso ocorre. Desde 1995, quando da crise do México, passando por
1997 (crise da Ásia), 1998 (crise da Rússia) e 1999, quando da nossa própria crise que
resultou na desvalorização cambial, o desempenho da economia vem sendo caracterizado por
uma pronunciada instabilidade, na qual um ano (ou, no máximo, dois) de bom desempenho é
seguido de um ano (às vezes dois) de baixo crescimento, o que, na média, deprime o
desenvolvimento.
Nos últimos sete anos, conseguimos a estabilidade e superamos a inflação alta que por mais
de uma década bloqueara o crescimento econômico. Contudo, devido à excessiva
vulnerabilidade externa, crescemos aproximadamente tão pouco quanto durante o período
inflacionário: apenas 2,5% em média por ano quando necessitaríamos crescer 2 ou 3 vezes
mais para que o desemprego diminuísse e nos aproximássemos um pouco mais do padrão de
renda per capita dos países desenvolvidos.
Segundo várias análises, para que a economia sustente um crescimento econômico de, por
exemplo, 5% ao ano e, simultaneamente, o país saia da zona de maior vulnerabilidade
externa, será necessário que as exportações cresçam a uma taxa média de 10% ao ano,
limitando-se as importações a um crescimento equivalente à metade desse percentual.
Isso representaria ao fim de 5 anos, uma contribuição do comércio exterior brasileiro de cerca
de 2% do PIB para reduzir o déficit em transações correntes. Hoje, esse déficit situa-se entre
4,5 e 5% do PIB todo ele constituído pelos gastos em serviços (transportes, seguros, viagens
internacionais) e, principalmente, por pagamentos de juros, lucros e dividendos, com
contribuição do resultado comercial próxima a zero. Em outras palavras, uma trajetória como
a simulada acima para o comércio exterior brasileiro é o que acenaria com condições mínimas
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para chegarmos ao momento previsto para a entrada em vigência de acordos como a ALCA,
com um setor externo mais robusto e uma economia menos vulnerável.
Um crescimento médio das exportações de 10% ao ano é possível, mas não será fácil,
sobretudo se persistirem os atuais desincentivos tributários para exportar e se a economia
mundial não se recuperar rapidamente da retração que atualmente a atinge. Mais improvável
será uma evolução das importações limitada ao percentual indicado. De fato, as relações
estabelecidas após a abertura entre produção interna e necessidade de importações de insumos
e bens de capital, de um lado, e, de outro, entre consumo (sobretudo da parcela de maior renda
da população) e importações de bens de consumo, determinam que as importações totais
cresçam mediante um múltiplo do crescimento do PIB.
Há, em outras palavras, uma elevada “elasticidade” das importações com relação à evolução
real da economia, que é, seguramente, superior a dois. Isto significa dizer que para um
crescimento médio do PIB como 5% ao ano, as importações crescerão acima de 10%, o que
compromete a meta do ajuste externo. Em nossa opinião, uma política industrial ou de
investimentos deve ter por objetivo complementar as ações voltadas a incentivar as
exportações, viabilizando um crescimento das importações inferior ao das exportações. Esta é
uma condição vital para o ajuste do setor externo.
As distorções do comércio exterior brasileiro acumuladas por uma abertura mal feita nos anos
90 e pelo desincentivo cambial e tributário aos investimentos em projetos tecnologicamente
mais avançados e mais voltados para exportação, moldaram uma peculiar composição do
resultado comercial brasileiro. Mesmo após a mudança do regime cambial em 1999, observase uma nítida polarização do resultado comercial. Os setores básicos, notadamente a
agricultura, geram praticamente o mesmo saldo – em torna a US$ 12 a 13 bilhões – que o
déficit registrado pelo setor de manufaturas. Neste, são os setores de alta e média-alta
intensidade tecnológica os responsáveis pela totalidade do déficit industrial. (ver a tabela a
seguir).
Em outras palavras, o resultado comercial brasileiro somente não é superavitário na medida
exigida pelo objetivo de conferir maior solidez ao setor externo porque o setor industrial é
altamente deficitário. E a indústria apresenta tão alto desequilíbrio devido ao déficit nos
setores intensivos em tecnologia, um resultado que apenas muito parcialmente o ajuste da taxa
de câmbio e os mecanismos convencionais de promoção de exportação puderam ou poderão
mudar.
Quanto ao setor superavitário, a agricultura e demais segmentos produtores de commodities,
inclusive industriais, este é afetado por distorções tão graves do comércio exterior (aqui, a
abertura e o comércio livre ainda não chegaram...), que as perdas são verdadeiramente
astronômicas. Segundo estimativa do IEDI, em 1999 e 2000, o Brasil deixou de obter divisas
equivalentes a US$ 6 bilhões por ano devido à queda dos preços internacionais dos produtos
básicos ocorrida entre 1998/99. Segundo a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do
Desenvolvimento, até meados de 2001, pelo mesmo motivo, as perdas somam nada menos do
que US$ 4 bilhões.
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Brasil
Resultado Comercial Brasileiro
Total
Valores em US$ milhões
1991
8.929
1994
8.048
1998
(9.673)
1999
(3.736)
Intensidade Tecnológica:
Alta
(1.051)
(3.143)
(6.151)
(5.310)
Média-Alta
(1.701)
(4.307)
(10.439)
(8.482)
Demais Setores (que não são de alta ou média-alta tec.)
11.682
15.498
6.917
10.056
Alta ou Média-Alta
(2.753)
(7.450)
(16.590)
(13.792)
Setores:
0 - Alimentos
3.930
6.006
5.261
6.824
1 - Bebidas e Fumo
815
983
1.383
855
2 - Mat.Primas, Exc. Combustíveis
3.157
3.444
6.048
5.472
3 - Combustíveis
(5.070)
(4.502)
(5.291)
(5.481)
4 - Óleos e Gorduras
216
610
552
533
5 - Produtos Químicos
(1.810)
(3.261)
(6.689)
(6.532)
6 - Manufaturas por Tipo de Material
7.035
7.576
3.537
4.718
7 - Máq. e Material de Transporte
(547)
(4.543)
(14.050)
(10.831)
8 - Artigos Manufaturados Diversos
846
1.088
(1.438)
(444)
9 - Outros
357
647
1.013
1.149
Total Alimentos e Mat. Primas, Exc. Comb.
7.087
9.449
11.309
12.297
Total Manufaturas (5 a 8)
5.524
860
(18.639)
(13.089)
(1) O resultado comercial difere dos dados usualmente divulgados no Brasil, porque os dados da ONU, a fonte dos dados
utilizados, registram as exportações pelo valor FOB - porto de embarque - e as importações pelo valor CIF - que inclui os
gastos com tran
(2) A definição dos setores de alta e média-alta tecnologia é da OCDE.
Estamos evidenciando com esta análise sobre o comércio exterior brasileiro como é complexa
a inserção de uma economia em desenvolvimento neste processo que vem recebendo a
denominação genérica de “globalização”. A conclusão é que, de um lado, fatores internos
aliados a esse processo levaram a uma forte dependência tecnológica que limita e torna
parcial o resultado de uma política de exportação; de outro, uma ordem internacional
verdadeiramente assimétrica desenvolvida com a globalização, restringe o comércio de
produtos em que somos capazes de gerar muito mais amplos superávits comerciais do que de
fato geramos. As observações a seguir procuram analisar as possibilidades brasileiras de
desenvolver uma nova industrialização e de usufruir mais amplamente as vantagens
comparativas que detemos em produtos tradicionais. O que a ALCA pode auxiliar ou
bloquear na concretização desses dois objetivos é uma indagação que faremos com
freqüência.
Nova Industrialização e ALCA
A maior dependência de importações de produtos de setores tecnologicamente mais
avançados foi construída nas duas últimas décadas de baixo crescimento e acentuada
instabilidade da economia interna, um período no qual, a nível internacional, desenvolveu-se
uma “nova industrialização” da qual o Brasil não participou. Os setores que vêm liderando
essa revolução – principalmente os segmentos da indústria eletrônica e os equipamentos, bens
e serviços relacionados às tecnologias de informação e telecomunicações – não encontram
paralelos na economia mundial como expressão do fenômeno da globalização.
De fato, não há caso de economias grandes produtoras de produtos eletrônicos e bens de
informática e telecomunicações, sem que, simultaneamente, sejam também grandes
exportadoras e grandes importadoras de bens desse mesmo setor. Por exemplo, destacados
A ALCA e a Integração Econômica das Américas - Realidade ou Mito?
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países produtores no cenário mundial como, Japão e Coréia, são também grandes
exportadores (cerca de 30% de suas exportações totais desses países), assim como grandes
importadores (representando 20 a 25% das importações totais). Outros países, como EUA,
Alemanha, França e Reino Unido, são grandes produtores, exportadores (representando entre
15 e 20% de suas exportações) e importadores (entre 15 e 25% de suas importações) desses
produtos.
Produzir nesse segmento é o mesmo que ter em foco o mercado comprador mundial, ou seja,
significa exportar; por outro lado, produzir e exportar nesse setor requer a importação de
produtos desse mesmo setor. A chave do avanço nos setores de nova tecnologia está, portanto,
em que um país reúna condições para produzir os produtos da nova indústria, podendo, assim,
usufruir os benefícios de seu dinamismo inovativo. As características já assinaladas
assegurarão que a economia e a indústria desse país serão correspondentemente mais voltadas
ao comércio exterior, ou seja, serão mais abertas, seja pelo lado das exportações, seja pelo das
importações.
As mesmas características que fazem da produção dos bens da nova tecnologia uma atividade
global determinam que apenas um seleto grupo de países apresentem condições de ser um
player importante nesse mercado. De fato, são as grandes empresas internacionais quem
detém parcela expressiva da produção, as técnicas de produção e a competitividade requerem
grandes escalas de produção, são exigidos elevados investimentos em P&D, há necessidade
de formação de mão de obra e de técnicos e profissionais de nível superior de elevada
qualificação e, por fim, a vinculação com o mercado internacional determina requisitos de
proximidade a mercados consumidores e de infra-estrutura de comércio exterior que deverão
ser preenchidos por qualquer país que almeje participar desse mercado como produtor. Isto
significa que muitos países deparam-se com barreiras quase que intransponíveis para
desenvolver internamente os produtos da alta tecnologia, sobretudo por não preencherem o
requisito da escala de produção requerida, o que levou alguns deles a desenvolverem políticas
muito agressivas de exportação.
O Brasil, dado o porte de seu mercado interno, é um candidato natural ao desenvolvimento da
produção interna desse setor, já que todas as economias maiores do que a brasileira (que é a 8ª
do mundo) além de várias outras de menor porte do que a brasileira o desenvolveram
internamente.
Alguns graves fatores internos impediram que o rápido desenvolvimento a nível mundial do
dessa indústria nas últimas duas décadas chegasse ao Brasil: os 15 anos de forte instabilidade
inflacionária e de baixo crescimento econômico geraram incertezas e restringiram o mercado
interno brasileiro; após a estabilização do real, a prolongada sobrevalorização da moeda
desincentivou os investimentos voltados para as exportações, dentre eles, os investimentos
para a produção de produtos de alta tecnologia. Por isso, apenas após 1999, quando mudou a
política cambial, o setor começa a ganhar um impulso maior. A privatização das
telecomunicações e a Lei de Informática foram fatores que também ajudaram na reativação da
indústria eletrônica e conferem boas perspectivas para o seu desenvolvimento futuro.
A constituição recente de fatores positivos para o desenvolvimento do setor caracteriza a
indústria de produtos de tecnologia como uma indústria nascente na economia brasileira, o
que significa que embora sejamos um mercado promissor, presentemente somos apenas um
produtor modesto desses produtos, e, conseqüentemente, um país exportador também apenas
modesto, sendo o mercado interno abastecido, sobretudo, por importações.
A ALCA e a Integração Econômica das Américas - Realidade ou Mito?
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As exportações da indústria eletrônica corresponderam em 2000 a 8% do total da exportação
brasileira, enquanto as importações representavam 21%. O baixo desenvolvimento desse setor
na economia é o fator destacado para que o Brasil esteja tão distanciado de outros países de
renda alta e média na exportação de manufaturados de alta tecnologia, segundo dados do
Banco Mundial. (ver o gráfico abaixo)
Exportação de Produtos de Alta Tecnologia - % da Exportação de Manufaturados
40
35
35
32
30
30
27
25
23
22
21
21
20
17
17
15
15
13
10
8
6
4
5
Ba
ixa
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da
M
éd
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da
de
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da
C
de
Fonte: Banco Mundial
Pa
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em
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Ja
EU
A
0
A dimensão do déficit comercial é uma das principais características da indústria eletrônica no
Brasil. O resultado negativo foi de US$ 7,5 bilhões em 2000, devendo chegar a US$ 8 bilhões
em 2001 e ultrapassar US$ 11 bilhões até 2004. Nos últimos 5 anos, o déficit acumulado
elevou-se a US$ 38 bilhões, o equivalente a quase 2 vezes o déficit comercial acumulado
entre 1996 e 2000, a 170% do que o Brasil enviou em lucros e dividendos para o exterior no
mesmo período, a 62% do pagamento de juros da dívida externa ou ainda a quase o dobro
(190%) do déficit em petróleo e derivados.
O que todas essas evidências querem dizer é que o Brasil não só pode e deve desenvolver os
setores intensivos em tecnologia em sua economia, o que o permitiria completar a
industrialização e usufruir os benefícios da inovação, desenvolvimento tecnológico e do
emprego qualificado, como precisa fazê-lo como condição para reduzir o desequilíbrio
externo sem que isso signifique recuo em seu processo de abertura.
A nosso ver, uma política industrial deveria ser concebida para acelerar o nascente
desenvolvimento desta nova indústria no país. Devemos considerar uma característica geral
das políticas industriais, qual seja, a de que não se deve concebê-las em um curto horizonte. É
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adequado tomar o período de 5 anos como o prazo ao longo do qual uma política dedicada e
perseverante instale no país os segmentos da nova indústria, outros 5 anos para que esta
alcance maturidade e 5 anos adicionais para a plena competitividade em mercados
internacionais. O prazo inicial corresponde à data fixada para o início da ALCA, de forma que
a política industrial pode ser considerada também como uma política preparatória para a
ALCA, bem como, para outros acordos como Mercosul-UE, além de uma possível nova
rodada de liberalização promovida pela OMC.
A política industrial aqui defendida apresenta certas características que convém ressaltar para
evitar interpretações equivocadas:
– primeiramente, ela não se confunde com a antiga e tão criticada substituição de
importações, pois sua implementação, não excluindo a capacitação (dos pontos de vista
tecnológico e financeiro) da empresa nacional, deverá conferir alta prioridade à atração do
capital estrangeiro;
– também não se destina meramente a conter importações ou “fechar” a economia, como no
passado fizera a política de substituição de importações, mas, sim, coloca-se como
condição para que tanto as exportações quanto as importações venham no futuro a crescer
a taxas elevadas;
– a política para a nova indústria não deve apoiar-se na reserva de mercado permanente e na
concessão de incentivos indiscriminados – os ingredientes que marcaram negativamente a
antiga substituição de importações –, não se justificando, portanto, o imobilismo pelo
temor de que toda política industrial seja sinônimo de ineficiência e favorecimentos;
– por fim, não se trata de substituir importações como no passado porque as escalas de
produção dos setores da nova industrialização requererão como complemento ao mercado
interno, um elevado conteúdo de exportações.
Um comentário adicional diz respeito à política tarifária como instrumento de proteção da
nova indústria. Já observamos que a política industrial deve descartar a proteção excessiva e
permanente, mas é importante preservar momentaneamente uma certa proteção para os
setores-alvo da política industrial. Para os BITs – bens de informática e de telecomunicações
– há um cronograma de redução da TEC estabelecido até 2006, o qual é preciso manter. Para
bens intermediários e bens finais (como computadores) as tarifas que, atualmente, são de 19 a
28%, devem cair para 12 a 16% em 2006. Após essa data, será ainda necessário manter algum
grau de proteção ao menos para alguns segmentos, o que também pode ser estabelecido em
bases cadentes partindo das tarifas de 2006 por um período adicional de 10 ou até 15 anos.
A ALCA pode servir ao objetivo da política industrial? Teoricamente, sim, se forem
observadas rigorosamente certas condições; na prática, no entanto, até o presente momento
das negociações a perspectiva é negativa.
O lado atraente da ALCA para a produção dos bens da nova indústria é que os EUA são
grandes consumidores e apresentam um elevadíssimo déficit de produtos da indústria
eletrônica e outros segmentos da indústria de tecnologia. Isto, em parte beneficia seus
parceiros do NAFTA, porém são os grandes produtores asiáticos que se aproveitam muito
mais ainda para obterem elevados saldos comerciais. Trata-se, portanto, de um mercado
potencial gigantesco, mas, evidentemente, a ele só nos habilitaremos como fornecedores se
for bem feita a nossa “lição de casa” que, nesse caso, é precisamente a execução da política
industrial cujas linhas básicas acabamos de ver.
A ALCA e a Integração Econômica das Américas - Realidade ou Mito?
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A ALCA pode também inviabilizar o projeto da nova industrialização brasileira, residindo aí
um dos maiores temores com relação à integração econômica das Américas. Os pontos a
considerar a esse respeito dizem respeito a tarifas e mercados.
Do ponto de vista tarifário, uma associação de livre comércio como a ALCA pressupõe tarifa
zero nas transações entre os países associados. Para certos produtos pode haver exceções, mas
o que se admite como fruto de negociações que, em qualquer caso, serão difíceis e complexas,
é o prolongamento no tempo para que seja alcançada a tarifa zero. É evidente que os setores
pertencentes ao que temos chamado de nova indústria não prosperarão no Brasil se as tarifas
de importação caírem a zero já na partida da ALCA devido à concorrência não só das
empresas norte-americanas, mas também das empresas dos demais países da NAFTA, Canadá
e México, mais avançados do que o Brasil em alguns segmentos desses setores. Já
assinalamos que a política tarifária será importante para a política voltada a esta indústria
nascente na economia brasileira e que a observância de um cronograma longo de reduções de
tarifas será uma condição necessária (embora não a condição suficiente) para o êxito da
política industrial.
Convém observar que o mesmo temor é pertinente para outros setores da indústria mais
sensíveis diante de uma concorrência do porte e do poderio de uma economia que, como a
norte-americana, é 15 vezes maior do que a economia brasileira. Nesse sentido, cabe lembrar
que a produtividade média da indústria nacional, embora tenha evoluído intensamente nos
anos 90, ainda corresponde, segundo estimativas de alguns estudos, a 40% da produtividade
média da indústria norte-americana. Por isso, seja para os segmentos da nova indústria, seja
para segmentos que já alcançaram um certo desenvolvimento na economia brasileira, mas que
podem ser duramente afetados pela concorrência da economia líder mundial, os produtos que
comporão as listas de exceção e os prazos para a remoção das barreiras tarifárias serão pontos
decisivos da negociação da ALCA.
No primeiro caso, está em jogo o desenvolvimento de uma indústria que simboliza um novo
rumo da industrialização e que pode nos ajudar a reduzir uma forte dependência tecnológica e
uma custosa vulnerabilidade externa; no segundo, a questão fundamental é o risco de que a
ALCA venha a ter o mesmo efeito de desindustrialização parcial que teve a mal conduzida
abertura unilateral das importações dos anos 90. Dependendo, portanto, da negociação em
torno a tarifas, que é apenas um dos múltiplos itens e acordos que comporão o ALCA, o
desenvolvimento com que muitos acenam como decorrência da integração das Américas não
será mais do que um mito.
A questão dos mercados é igualmente decisiva. Abordaremos o tema pelo ângulo do mercado
latino-americano que é muito relevante para a indústria brasileira. Mais de 1/3 das
exportações brasileiras de manufaturados dirigem-se a esse mercado, sendo que o Mercosul
absorve 22% e os demais países da ALADI (Associação Latino-Americana de Integração)
outros 14%. Essa alta absorção foi sendo construída pelas relações comerciais brasileiras
juntamente com os países latino-americanos, o que conferiu ao Brasil margens de preferência
para os países da ALADI e, no caso do Mercosul, acesso livre de tarifas aos mercados de seus
parceiros, ao passo que para os demais países não pertencentes a esta união aduaneira vigora
TEC, a tarifa externa comum.
As observações acima já seriam suficientes para mostrar que é acertada a política brasileira de
apoiar o desenvolvimento e a ampliação do Mercosul como uma condição de fortalecimento
seu e dos demais países do grupo nas negociações da ALCA. No entanto, gostaríamos de
salientar ainda um ponto adicional. Diz respeito ao fato de que a ALCA elimina as margens
de preferência que temos para os países da ALADI e remove a proteção que a TEC confere
aos produtos manufaturados brasileiros, igualando, nos mercados latino-americanos, as
condições de concorrência entre o Brasil e EUA (além de Canadá e México), o que pode levar
a graves perdas de mercados para importantes produtos da indústria brasileira, como a
indústria de máquinas e a indústria automobilística, bem como para os setores nascentes da
nova indústria, como produtos de informática e telecomunicações.
A ALCA e a Integração Econômica das Américas - Realidade ou Mito?
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Considerando esses casos, a perspectiva é de que a formação da ALCA leve a perdas de
mercados para os produtos brasileiros de maior valor agregado e intensidade tecnológica.
Uma forma de minimizá-las seria, primeiramente, negociar alguma forma de compensação
dessas perdas, o que, evidentemente, é difícil; em segundo lugar, cabe reforçar a tese do
governo brasileiro, segundo a qual nas negociações de tarifas e listas de exceção, bem como
em outros pontos, os países do Mercosul devem participar como um bloco único.
Produtos Primários, Indústria Tradicional e a ALCA
Para produtos agrícolas e da indústria tradicional a ALCA pode facilitar o acesso, sobretudo,
ao gigantesco mercado norte-americano? A resposta a essa pergunta é fundamental porque,
como vimos, nesse caso há segmentos em que o Brasil tem alta competitividade, faltando-lhes
maior acesso a mercados. O mais amplo acesso poderia alavancar exportações, o que, a
despeito de certas características que esses produtos apresentam – principalmente, por serem
produtos de baixo dinamismo em mercados internacionais, que, de resto, sofrem distorções de
subsídios e protecionismo dos países desenvolvidos, seus preços apresentam alta instabilidade
e tendência de queda –, poderia auxiliar na correção do desequilíbrio das contas externas.
As observações pertinentes sobre a questão devem partir da análise de uma primeira
possibilidade: o acesso ao mercado norte-americano encontra obstáculos em barreiras
tarifárias? Se a resposta for positiva, a ALCA – que, como devemos lembrar, pressupõe tarifa
zero – seria um passo decisivo para abrir mercados a produtos tradicionais brasileiros.
Infelizmente a análise não leva a essa conclusão. A média das tarifas norte-americana é uma
das mais baixas do mundo (4,8% em 1998), razão pela qual a economia dos EUA tem sido
definida como uma economia aberta.
De fato, os dados mostram isso (ver os gráficos a seguir), embora mostrem também que para
produtos agrícolas há uma significativa margem de proteção seletiva na estrutura tarifária dos
EUA derivada do alto desvio padrão (diferencial entre mínimos e máximos tarifários) das
tarifas norte-americanas.
T arifa Méd ia - Média Sim p les - %
18
17,5
17
16
15
* Dados Para 1999
**Dados Para1998
Fonte: Banco Mundial.
Para o Brasil a estimativa
é do IEDI.
14
13
12
13,5
13,3
13,0
11
10
9,4
9,1
9
7,5
8
6,6
7
5,6
6
5
4,8
4
3
2
1
0
EUA*
Japão*
EU*
Canadá**
Coréia*
Brasil**
Argentina**
A ALCA e a Integração Econômica das Américas - Realidade ou Mito?
China**
México**
Malásia**
8
Desvio Padrão de Tarifas - %
55
55
* Dados Para 1999
**Dados Para1998
50
Fonte: Banco Mundial
45
40
Produtos Primários
Produtos Manufaturados
35
29
30
25
25
22
19
20
17
15
14
11
10
11
8
8
7
6
6
6
8
7
6
4
5
2
0
EUA*
Japão*
EU*
Canadá**
Coréia*
Brasil**
Argentina**
China**
México**
Malásia**
Contudo, aí não está o problema maior, pois a proteção dos EUA para produtos agrícolas e
certos produtos industriais não está estruturada em torno a tarifas, mas, sim, tem por base as
barreiras não-tarifárias, como subsídios à produção e exportação de produtos agrícolas,
estabelecimento de quotas de importação e preferências, barreiras fitossanitárias,
certificações, licença prévia, picos tarifários, direitos anti-dumping.
A propósito, uma comparação com o Brasil pode ser ilustrativa de nossas diferenças com
relação aos EUA na questão tarifária. A tarifa média de importação brasileira (cerca de 13%)
é maior do que a norte-americana, mas este é, virtualmente, o único mecanismo de proteção
utilizado pelo Brasil, ao contrário dos EUA. Isto significa que caso seja implantada a ALCA,
é certo que (salvo possíveis exceções específicas) as tarifas baixem a zero, o que para um país
como o Brasil representará a remoção completa de suas barreiras à importação e a abertura de
seu mercado para poderosos concorrentes, sem que o mesmo ocorra com os EUA, para quem
a remoção de barreiras e a abertura de seu mercado para produtos brasileiros não será
automática, mas, sim, resultado de negociações em torno às barreiras não tarifárias.
Para ilustrarmos a discussão do tema, vejamos quais instrumentos são utilizados para a
proteção contra exportações brasileiras para o mercado dos EUA e como essas barreiras
afetam nossas exportações. Um exaustivo levantamento realizado pela Embaixada Brasileira
em Washington (“Barreiras aos Produtos e Serviços Brasileiros no Mercado NorteAmericano”) serve de base para o resumo apresentado a seguir:
– Açúcar – barreira: quotas. Acima da quota que protege a indústria local vigora uma tarifa
de US$ 338,70 por tonelada. A quota brasileira é pequena para seu porte como produtor e
exportador do produto.
– Camarão – barreira: técnica (certificação renovada anualmente).
A ALCA e a Integração Econômica das Américas - Realidade ou Mito?
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– Carnes bovina e suína – barreira técnica (fitossanitária). Padrões sanitários proíbem as
exportações de carne crua ou congelada sob alegação de ocorrência de febre aftosa em
carnes bovina e suína no Brasil.
– Frango – barreiras: técnica e subsídios. A primeira impede as exportações para os EUA;
os subsídios fazem com o produto norte-americano concorra com o brasileiro em terceiros
mercados, como os países do Oriente Médio para onde se destinam 40% das exportações
brasileiras.
– Frutas e Legumes – barreiras: técnica (fitossanitária), lentidão e burocracia de certificação
(caso do mamão cujo processo levou 5 anos), aumentos sazonais de tarifas aduaneiras e
licença prévia de importação. As barreiras limitam exportações brasileiras que em 1999,
atingiram apenas US$ 17 milhões.
– Madeiras tropicais – barreira por motivos ambientais.
– Soja – barreiras: subsídio à produção e exportação e tarifa elevada (19%) para o produto
transformado (óleo de soja).
– Tabaco – barreiras: tarifa e conteúdo doméstico (75%) para a fabricação de cigarros.
– Calçados – barreiras: tarifas e picos tarifários (podendo chegar a quase 80%).
– Etanol – barreiras: subsídio à produção local e tarifa para o produto brasileiro que é o
maior produtor mundial.
–
Laticínios – barreiras: quotas e subsídios. Quotas limitam exportações para os EUA e os
subsídios ao produtor e às exportações deprimem preços nos mercados internacionais de
produtos lácteos.
– Suco de laranja – barreira: quotas tarifárias. Para o suco de laranja brasileiro a tarifa é de
US$ 0,785 por litro acima da quota (para o México é US$ 0,462) equivalente a uma tarifa
ad valoren de 56%.
–
Suco de limão – barreira: tarifa. Correspondente ad valoren a 50%.
– Têxteis – barreiras: quotas globais e por produto e tarifas. A proteção norte-americana
combina restrições quantitativas, elevadas tarifas de importação (que podem chegar a 38%
“ad valorem” mais 48,5 centavos de dólar por quilograma) e alterações de critérios (como
regras de origem e novas exigências técnicas, como requerimentos de etiquetagem e/ou de
documentação).
– Aço, Ferro Liga – Anti-dumping. A cobrança de direitos compensatórios é uma efetiva e
uma das mais importantes barreiras utilizadas pelos EUA.
Segundo ainda o citado trabalho da Embaixada em Washington, “a retirada de barreiras pelos
EUA sobre apenas nove produtos brasileiros – suco de laranja, produtos siderúrgicos, açúcar,
calçados, fumo, gasolina, camarão, álcool etílico e óleo de soja em bruto – implicaria em
ganho para o Brasil de cerca de US$ 831 milhões, o que representaria um aumento de mais de
50% sobre o valor médio das exportações desses produtos no período 1997/98”. (página 9)
A princípio, o livre comércio pressupõe, além de tarifa zero, a remoção de quaisquer barreiras
não-tarifárias, incluindo todas as relacionadas acima que os EUA utilizam contra produtos
brasileiros. Mas, quais são as perspectivas que podemos delinear hoje para que isso
efetivamente ocorra no âmbito da ALCA? Como é sabido, até o momento os EUA insistem na
tese de que os subsídios agrícolas e a política anti-dumping são temas globais que
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transcendem o âmbito mais restrito da ALCA, sendo, por isso, atinentes a futuras negociações
da OMC. Além de não acenar com perspectivas de remoção de suas barreiras não-tarifárias,
os EUA se empenham em, possivelmente, ampliá-las mediante a aplicação de regras relativas
a meio ambiente e legislação trabalhista na regulação do comércio na ALCA.
Ora, se estas posições estão aparentemente consolidadas pelos EUA, ficam reforçadas duas
teses contrárias a ALCA. A primeira é que as negociações para a revisão de acordos e para
uma nova rodada de liberalização da OMC são mais importantes e podem resultar em maiores
vantagens para o comércio exterior brasileiro do que a formação da ALCA. A segunda, é que
do ponto de vista comercial a ALCA representará mais perdas do que ganhos para o Brasil –
perda de mercados latino-americanos para produtos industriais de maior valor agregado e
conteúdo tecnológico, sem que se amplie o seu acesso aos mercados de bens agrícolas e
produtos da indústria tradicional dos EUA, embora sua economia se abra para os países do
NAFTA.
Somos de opinião que os negociadores brasileiros acabarão por conquistar concessões que
implicarão em alguma efetiva queda de barreiras para a exportação de produtos brasileiros.
Isto virá de encontro aos anseios de segmentos empresariais representativos da produção
nacional que, justamente, vêem na ALCA uma possibilidade de ampliação de vendas
externas, já que têm competência e produtividade para enfrentar uma concorrência em
igualdade de condições. Contudo, isso não pode ser assegurado a priori e nem há perspectiva
de que venha a ocorrer de uma forma geral, beneficiando a economia brasileira como um
todo. Para que isso ocorresse teria de haver um maior entendimento por parte dos EUA sobre
o que a criação da ALCA pode representar para um país como o Brasil em termos de seu
padrão histórico de relações comerciais e de investimentos com a América do Sul e com o
mundo, suas perspectivas de avançar a industrialização e a necessidade de superar um grave
desequilíbrio externo em sua economia.
A ALCA envolve muitos outros temas fundamentais como os acordos de investimentos,
serviços, compras governamentais e propriedade intelectual. As questões comerciais aqui
abordadas, mesmo sendo uma amostra da complexidade do tema considerado em sua
totalidade, dá a indicação segura de que o Brasil necessita definir sua estratégia de
desenvolvimento para nela apoiar sua linha de negociação. Entendemos como fundamental
nesta estratégia de desenvolvimento a nova industrialização brasileira e a ampliação dos
mercados para produtos da agricultura e da indústria tradicional. Segundo nosso
entendimento, estas são condições para o necessário ajuste do setor externo brasileiro. Pelo
que é possível antecipar das posições e convicções dos principais condutores da ALCA,
devemos concluir que sua contribuição à concretização desses objetivos não é positiva.
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