- Sociedade Brasileira de Sociologia

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O Excesso do Real: uma leitura da mídia1 e da ideologia
Joana D'Arc Fernandes Ferraz
(Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.)
A mídia tem um papel fundamental em todos os fenômenos da vida social
contemporânea. Não se pode pensar o controle social, a formação dos valores, a regulação
dos comportamentos, sem salientar o poder da mídia e da ideologia. A forma como as
informações são conduzidas, o jogo de interesses políticos e econômicos dominantes, o
reforço de tendências preconceituosas, em particular, a visão deturpada do pobre e da
pobreza, a crescente banalização do sofrimento alheio, através da exposição da violência,
tudo isso reforça os seus poderes. Portanto, antes de analisar a forma como a chacina de
Vigário geral é representada pelos meios de comunicação de massa, é indispensável uma
prévia reflexão sobre as relações entre mídia e ideologia.
Embora o conceito de ideologia pareça estar um pouco em desuso e mesmo obsoleto,
cujo principal argumento é de que o conceito é tão amplo a ponto de possuir inúmeros
significados, chegando, pois, ao esvaziamento do termo, podemos argumentar que a
insistência na dimensão atual do termo se justifica, pois, nunca fomos tão aprisionados pelo
poder ideológico, uma vez que:
1
Por mídia entende-se todos os meios de expressão capazes de difundir as mensagens a um grupo. Por exemplo. O rádio, o
vídeo, a tv, a imprensa escrita, os livros, a internet, os satélites de comunicação, etc.
1-
é inegável a existência de um discurso dominante, trazido pelos produtos da
mídia, que tendem a universalizar os padrões de gosto, estética,
comportamento, etc;
2-
a dominação ideológica tomou novos contornos muito mais profundos e
invisíveis;
3-
é exatamente quando deixamos de questionar a existência do poder
ideológico que ele se torna cada vez mais atuante;
4-
não se pode negligenciar a existência da ideologia qua matriz geradora que
regula a relação entre o visível e invisível, o imaginável e o inimaginável,
bem como as mudanças nessa relação.(Slavoj Zizek, 1999:7)
A relação entre os elementos simbólicos contidos numa mensagem jornalística, a
produção, distribuição e a recepção destes para os atores, leva a uma discussão sobre o
papel e a importância da ideologia. Não se pretende esgotar o debate sobre ideologia, mas a
sua relação com a mídia levanta algumas questões que necessitam ser discutidas.
Diversos autores do pensamento sociológico dirigiram suas atenções para essa
reflexão. Um dos primeiros a fornecer os instrumentos conceituais para essa análise foram os
intelectuais da Escola de Frankfurt,a partir das décadas de 30 e 40, inicialmente com Max
Horkheimer e Theodor Adorno, depois passando por Walter Benjamin e atualmente Jürgen
Habermas.
A teoria crítica, inaugurada pelos primeiros pensadores da Escola de Frankfurt,
principalmente Max Horkheimer e Theodor Adorno, em Dialética do Esclarecimento, fazem
uma severa crítica à sociedade de massa, considerando que os meios de comunicação, uma
vez tornados mercadorias de consumo, transformam os sujeitos em objetos de uso no
mercado, colaborando para uma passividade social, pois essa indústria cultural só sobrevive
devido à ausência de pensamento autônomo, na medida em que iguala os gostos, os desejos
e evita a complexidade.2
Walter Benjamin, em Obras Escolhidas, volume 3. Charles Baudelaire – Um Autor
Lírico na Época do Alto Capitalismo, continua na mesma linha argumentando que o papel da
imprensa não é incorporar a informação à experiência do leitor, muito pelo contrário, sua única
preocupação é somente transmitir o conhecimento.
Segundo Benjamin,
Os princípios da informação jornalística (novidade, concisão, inteligibilidade e
sobretudo, falta de conexão entre uma notícia e outra) contribuem para esse
resultado, do mesmo modo que a paginação e o estilo lingüístico. (Benjamin, 1989:
107-108)
Da mesma forma, segundo infere Leonardo Avritzer sobre a obra de Habermas, 3 a
modernidade caracteriza-se por uma decadência do público, devido à “mercantilização da
cultura e a penetração de interesses privados no campo da política” (Avritzer, 2000: 65).
Para esses autores é inegável a existência da produção da informação como
mercadoria para o consumo do leitor. Essa mercadoria-informação é uniformemente
trabalhada no sentido da unanimidade de sua apresentação, tanto na imprensa falada como
escrita., passando a idéia de que existe um único conjunto de informações a serem
divulgadas.
Outros pensadores contemporâneos também pensam de forma bastante crítica o poder
da mídia. Pierre Bourdieu, em Sobre a Televisão, por exemplo, faz uma critica feroz à
2
3
Análise presente no livro Dialética do Esclarecimento. São Paulo: Zahar, 1983.
The Structural Transformation of the Public Sphefe. Cambridge:MIT Press, 1992
televisão. Para ele a televisão é o “maior dos males” produzidos pela mídia, por ser o mais
difuso e, portanto, o mais propenso à opressão simbólica.
A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita
dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que
uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la (Bourdieu, 1997:22).
Constata-se que o poder da mídia, seja ela visual ou televisiva, vem crescendo
enormemente com a globalização, fenômeno imperioso nas sociedades modernas. Os
assuntos cotidianos giram em torno do jornal apresentado na televisão. Da mesma forma, as
capas dos jornais também referem-se constantemente aos assuntos apresentados na
televisão.
A percepção do poder da informação de impor significados leva à concepção de uma
rede totalitária, controladora da vida social, que determina o sentido unilateral da informação,
isto é, o que deve ser consumido pelo leitor-consumidor, há um consenso legitima as
informações recebidas e mostram determinada informação como a única e mais importante a
ser divulgada.
Esse consenso é uma criação, ele não é despretensioso. Isso ocorre porque a
produção embora seja dirigida para o público, é recebida individualmente, mesmo a televisiva.
Existe sempre uma individualização da informação, por isso é mais difícil de ser desarticulada,
percebida em seu poder, uma vez que ela não é discutida. É como se houvesse uma
coletividade de indivíduos recebendo as informações e não indivíduos coletivamente dividindo
as informações.
Essa “coincidência” das informações-mercadorias apresentadas à sociedade é
formadora de um consenso. No entanto, numa sociedade tão dividida, a “ditadura do
consenso” ocorre devido a algumas precondições fundamentais, como afirma Bernardo
Kunciski (2002):
“a) um alto grau de concentração da propriedade dos meios de comunicação,
em especial o controle de tipos diferentes de mídia por um mesmo grupo;
b) o sinegismo entre os vários tipos de mídia (rádio, televisão e mídia impressa)
no plano operacional, sem o quê não haveria o predomínio de uma visão em
detrimento das demais;
c) intensa mediação inframídia, ou aquilo que Gaye Tuchman chamou, ao se
referir aos jornalistas norte-americanos, de „rede de factibilidade‟, fenômeno pelo
qual os jornalistas se apóiam uns nos outros com medo dos riscos da cobertura
individualizada e para adicionar legitimidade aos seus relatos, e
d) alto grau de promiscuidade entre os jornalistas e o establishment, incluindo as
fontes oficiais, os lobbies dos grupos de pressão, que hoje caracterizam a cena
brasileira, e as assessorias das grandes empresas. (Kucinski:2002:41)
Ainda que o receptor seja capaz de elaborar uma outra argumentação sobre a
informação recebida (essa informação pode ser visual ou escrita), diferente da intenção do
produtor; ainda que o produtor não tenha, a priori, uma clara intenção sobre a informação por
ele fornecida, determinada informação será, digamos, a “vencedora” dentre tantas outras
produzidas pela mídia.
A predominância de determinado tipo de informação será sempre aquela que mais
agrada ao leitor ou a que mais agrada ao grupo que detém o controle da informação.
Normalmente há uma afinidade entre a informação que mais agrada ao leitor e aquela que
mais agrada aos controladores dos meios de comunicação de massa, de forma que é quase
impossível que os controladores dos meios de comunicação de massa exponham/publicizem
algo que venha a lhes ofender, ou negar a sua existência enquanto grupo. Da mesma forma,
não seria possível a freqüente recepção de informações que venha causar dano ou prejuízo
ao receptor, seja esse prejuízo material ou moral. Isso ocorre porque existe também uma
“coincidência”
entre os desejos dos donos dos meios de comunicação de massa e dos
receptores.
Da mesma forma, a insistência, através da repetição de determinado tipo de
informação sobre outras, a insistência da informação digamos “dominante” até mesmo sobre
as informações interiores que os receptores produzem sobre a mensagem recebida, anulam,
dificultam ou mesmo impossibilitam, a resistência sobre a informação dominante. Fazendo
com que só se tenha voz a produção dirigida pela mídia.
No entanto, diversos pensadores argumentam que o receptor das informações
fornecidas pela mídia não são tão passivos, como os intelectuais da Escola de Frankfurt
pensam, ou melhor, que os intelectuais da Escola de Frankfurt negligenciaram o papel crítico
do receptor das mensagens. Portanto, não existe uma relação direta entre os bens materiais
produzidos pela sociedade de consumo, que são colocados sobre os atores sociais e os bens
culturais produzidos pela mídia, conforme argumentam os frankfurtianos.
Segundo Avritzer outros autores já afirmam que existe uma capacidade reflexiva dos
atores sociais4, uma capacidade crítica do receptor que promove um desequilíbrio entre o
produtor e o receptor. “Esse desequilíbrio variaria de mídia para mídia: ele é maior no caso do
rádio, menor no caso da televisão e quase inexistente no caso da Internet.” (Avritzer, 2000:
71).
Embora possamos pensar nos limites da Escola de Frankfurt no que se refere à forma
como as mensagens chegam aos receptores, não podemos negar o papel fundamental que
4
Incluem-se nessa análise da reflexividade Ulrich Beck, Antony Giddens e Scott Lash.
seus intelectuais estabeleceram na relação entre mídia e ideologia. Devemos, no entanto,
alargar a análise não somente para o aspecto ideológico da cultura superior, como fizeram os
frankfurtianos, mas para uma análise que envolva todos os tipos de cultura, conforme defende
Douglas Keller, em A Cultura da Mídia.
Sem negar a existência da ideologia presente nos discursos produzidos pelos meios de
comunicação de massa, podemos argumentar que nem sempre esses discursos chegam com
a mesma intensidade de quem os produziu. Ainda que possamos pensar que não exista, a
priori, uma intencionalidade na produção desse discurso, o poder da ideologia está no fato
dela EXISTIR, mesmo quando a sua intencionalidade não é racionalmente/conscientemente
produzida. Se houvesse e/ou havendo uma clara intencionalidade na produção desse
discurso seria/é fácil perceber a sua “verdadeira” intenção. Mas como nem sempre existe
uma “real” intenção, o discurso ideológico fica muitas vezes camuflado, quase imperceptível,
dando uma impressão de que ele não existe.
Antes de se pensar no aspecto ideológico contido nas formas simbólicas apresentadas
pela mídia, é necessário que se organize a discussão sobre os diversos significados do termo
ideologia.
O conceito de ideologia sofreu modificações em seu significado ao longo da história. A
princípio, com o seu criador Antoine Destutt de Tracy (1796), ideologia significava a ciência
das idéias, idéias estas que sustentam a vida social. Segundo Karl Mannheim, em Ideologia e
Utopia, “a concepção moderna de ideologia nasceu quando Napoleão opôs-se ao grupo de
De Tracy achando que este grupo se opunha a suas ambições imperialistas, rotulando-os
desdenhosamente de „ideólogos‟.” (Mannheim 1986:98)
Para Terry Eagleton, em Ideologia, “se Napoleão denuncia os ideólogos, é porque
estes são os adversários juramentados da ideologia, empenhados em desmistificar as ilusões
sentimentais e a religiosidade divagante com a qual ele esperava legitimar seu governo
ditatorial.” (Eagleton, 1997:69) Esta nova conotação do termo, influenciada pelo viés político,
produz uma nova formulação do conceito de ideologia, no lugar de significar ciência das idéias
passa a representar as próprias idéias entendidas como ilusórias e abstratas, esta nova
representação do termo está presente também em Karl Marx.
Embora de Tracy tenha sido o criador do termo ideologia, seu significado está ligado
ao que o termo passou a significar mais tarde, primeiro, com Napoleão, tomando um sentido
negativo, presente também em Karl Marx e depois nas análises de Karl Mannheim, tomando
um sentido de neutralidade.
Ideologia, no sentido de neutralidade é analisada por Karl Mannheim como algo que
deve ser pensado em sua generalidade. Ela não deve ser vsta como privilégio de uma classe.
Devemos, portanto, observar como ela funciona empiricamente, evoluindo para a Sociologia
do Conhecimento. E o próprio observador tem que se identificar nesse elemento ideológico no
qual ele também está ligado. E, portanto, ele também está preso à ideologia.
Como Mannheim sai dessa armadilha que criou? Para Paul Ricoeur (1990), ele não sai.
Ele não consegue concluir o que seria efetivamente um sentido neutro de ideologia e parte,
como saída para a análise da oposição entre utopia e ideologia.
Segundo Terry Eagleton, em Ideologia, Mannheim sai de uma análise pós-marxista de
ideologia para uma visão pré-marxista, ao afirmar a definição de ideologia como um
“pensamento socialmente determinado”, correndo o risco de generalizar tanto o conceito,
podendo mesmo a chegar a uma idéia de que ideológica possa significar qualquer forma de
pensamento, anulando totalmente esse conceito. (Eagleton, 1997:102)
A característica mais difundida do conceito de ideologia, apresenta-o como negação,
tem inicio com Napoleão e chega até Karl Marx, quando aprimorando-se o sentido de
negação para o sentido de “falsa consciência”. O termo “aprimorando-se” parece o mais
apropriado para designar uma mudança sutil de sentido, pois a falsa consciência não deixa de
ser uma negação dessa, mas, é mais que isso.
Entre os marxistas, o conceito de ideologia como uma falsa representação da
realidade, deve ser pensado como sinônimo de ilusão, e portanto, como algo que se nega a si
mesmo. Pois o que o caracteriza enquanto tal é a sua negação, no sentido de que ela só
existe porque a sua realidade é externa a si mesma.5
Primeiro, no amadurecimento da obra de Karl Marx, observa-se uma mudança de
sentido da localização da relação do sujeito com as suas condições reais de existência, isso
promove também uma igual mudança no sentido que esse sujeito terá do mundo e na forma
como ele o percebe, promovendo uma mudança no sentido do termo ideologia.
Em A Ideologia Alemã tratava-se de não ver as coisas como se apresentavam, Em O
Fetichismo da Mercadoria, no primeiro volume de O Capital, é uma questão de a própria
realidade ser dupla e enganadora. A ideologia, assim, não pode ser desmascarada
simplesmente por uma atenção límpida sobre o “processo da vida real”, já que esse processo,
à semelhança do inconsciente freudiano, exibe um conjunto de aparências de certa maneira
estruturais a ele, inclui a sua falsidade na sua verdade.
O conceito de ideologia deslocou-se da superestrutura para a base, ou, pelo menos,
sinaliza alguma relação particularmente próxima entre elas, como afirma Eagleton (1997:
83). Pois, enquanto o conceito de ideologia localizava-se na superestrutura, ele parecia
apontar para algo isolado, particular, característico de pequenos grupos sociais. Na medida
em que ele se desloca para a análise da própria realidade do sistema capitalista, ficam mais
5
Essa formulação está presente na obra de Louis Althusser: Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado…
claros os seus efeitos reais sobre toda a sociedade. No entanto, o seu sentido negativo
permanece em todo o trabalho de Marx.
Embora considere o conceito negativo de ideologia, Antonio Gramsci pensa a ideologia
menos como um conjunto de idéias do que como prática, e é nesse sentido que devemos
pensar a noção de hegemonia. Embora não se possa confundir os dois conceitos, é
necessário que se estabeleça os seus limites. Hegemonia está vinculada a forma como um
poder do Estado consegue o consentimento e a aquiescência do indivíduo. O conceito de
ideologia, em Gramsci, está vinculado à força, à imposição. Portanto, o conceito de
hegemonia á mais abrangente.
Já em Althusser, existem dois tipos opostos de ideologia: as que surgem com a
instauração dos Aparelhos Ideológicos do Estado e as que surgem nas formações sociais. De
maneira geral, o conceito de ideologia, caminha não para a noção de falsa consciência, mas
para a idéia de representação, ou seja, a ideologia corresponde a uma determinada
representação do mundo, e como não há uma única representação do mundo, podemos
pensar em ideologia no plural. Para ele existe uma ideologia que surge com a instauração dos
Aparelhos Ideológicos do Estado, ela é realizada e se realiza através deste, tornando-se
ideologia da classe dominante. E ideologias que nascem nas classes sociais, através das
condições de existência destas, que se manifestam através da luta de classes e se
confrontam com a ideologia dominante.
Deslocando a análise da base marxista vemos, com Pierre Bourdieu, em Um Mapa da
Ideologia, a existência da dominação, sem contudo, a afirmação do conceito de ideologia.
Para este autor, conceito ideologia é insuficiente, uma vez que foi tão utilizado e abusado
que não funciona mais, pois, os agentes não estão visando conscientemente às coisas nem
são erroneamente guiados por representações falsas, conforme argumentam os marxistas.
Ou seja, para Bourdieu não existe uma oposição entre o sentido do mundo social e a
reprodução da ordem social. Ele substitui o conceito de ideologia pelo de conflito. Bourdieu
procura verificar como os conflitos operam na sociedade
e as maneiras como eles são
negociados pelos diversos agentes sociais.
Pois, continua Bourdieu,
Os símbolos são os instrumentos por excelência da
„integração social‟ :
enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o
consensus (grifo do autor) acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração „lógica‟ é a
condição da integração „moral‟.
O termo doxa, segundo Bourdieu, é o mais adequado, porque ele pressupõe a
aceitação das coisas sem conhecê-las. Nela, o sujeito não se sente pressionado,
a
dominação está em todo lugar e em lugar nenhum, no ar que ele recebe, por isso, a
dominação é simbólica. Segundo Bourdieu os termos falsa consciência, consciência,
inconsciência não são suficientes para captar os efeitos ideológicos. (Um Mapa da Ideologia,
1996:264-278)
Ao pensar o mundo social em termos de práticas, mecanismos e dominação simbólica,
Pierre Bourdieu parece renomear o que Marx já havia definido, substituindo o nome ideologia
por doxa, dominação simbólica, sem acrescentar novos elementos a abordagem. Se a
dominação está em todo lugar, como afirma Bourdieu, Marx já definia ideologia dessa forma,
em, O
Fetichismo da Mercadoria, ao afirmar que a ideologia está na própria realidade,
compondo-a.
Embora se possa pensar nos diversos significados do termo ideologia, seja como
negação, falsa consciência, força ou imposição, parece se desenhar uma outra análise, que
longe se de desvincular da base marxista, traz à tona uma de suas maiores questões, a
saber, a afirmação da ideologia compondo o real.
Slavoj Zizek, e Terry Eagleton, entre outros, procuram novas definições para o termo
ideologia. Afirmando a importância deste conceito, Žižek faz uma crítica à idéia de integração,
desintegração, autolimitação e autodispersão que este conceito veio adquirindo. Para ele, a
crítica à ideologia, baseia-se na crença de que existem outros mecanismos no sistema, como
a coerção, as normas legais e do Estado que se encarregam da reprodução do sistema,
suprimindo a ideologia. No entanto, estes argumentos são insuficientes, porque,
no momento em que examinamos mais de perto esses mecanismos
supostamente extra-ideológicos que regulam a reprodução social, vemo-nos atolados
até os joelhos no já mencionado campo obscuro em que a realidade é indistinguível
da ideologia. O que aqui encontramos é a… inversão da não-ideologia em ideologia
(Um Mapa da Ideologia, p.20.).
Slavoj Zizek propõe uma redefinição do conceito de ideologia em Marx, dialogando com
a psicanálise (principalmente com Lacan) e deslocando a ilusão situada no saber (Marx) para
a ilusão (hoje) situada no fazer. A questão central para Zizek não está na falsa consciência da
realidade (presente na Ideologia Alemã), mas na maneira como a própria ideologia compõe a
realidade (em, O Capital, capítulo 1: Para a Crítica de Economia Política). Embora Zizek
desconsidere essa segunda abordagem sobre ideologia em Marx e prefira pensar na
superação do que ele denominou ser o seu conceito clássico de ideologia. Ou seja,
Se o nosso conceito de ideologia continuar a ser o conceito clássico, no qual a ilusão
é situada no saber, (referindo-se à formulação marxista: „disso eles não sabem, mas o
fazem‟ ), a sociedade de hoje deverá afigurar-se pós-ideológica: a ideologia vigente é a
do cinismo; as pessoas já não acreditam na verdade ideológica; não levam a sério as
proposições ideológicas. O nível fundamental da ideologia, entretanto, não é de uma
ilusão que mascare o verdadeiro estado de coisas, mas de uma fantasia
(inconsciente) que estrutura nossa própria realidade social. A distância cínica é
apenas um modo – um de muitos modos - de nos cegarmos para o poder estruturador
da fantasia ideológica: mesmo
que não levemos as coisas a sério, mesmo que
mantenhamos uma distância irônica, continuaremos a fazê-las…Se a ilusão estivesse do
lado do saber, a postura cínica seria realmente pós-ideológica, simplesmente uma
postura sem ilusões: „eles sabem o que estão fazendo e o fazem‟. Mas, se o lugar da
ilusão está na realidade do próprio fazer, essa fórmula pode ser lida de uma maneira
totalmente diversa: „eles sabem que, em sua atividade, estão seguindo uma ilusão, mas
fazem-na assim mesmo‟. Por exemplo, eles sabem que sua idéia de Liberdade mascara
uma forma particular de exploração, mas, mesmo assim, continuam a seguir essa idéia
de Liberdade (Slavoj Zizek, 1999:316).
Nesse sentido, Terry Eagleton e Slavoj Zizek propõem redefinir este conceito, sem,
contudo, negar dele a herança marxista, mas atualizando-a à luz das recentes mudanças
ocorridas na sociedade moderna e globalizada6.
Portanto, para Eagleton, ideologia é menos um conjunto de idéias estático e mais um
conjunto de efeitos complexos interiores ao discurso. Para este, “ mais ou menos como um
bebê lacaniano identifica-se com seu reflexo imaginário, assim o sujeito falante efetua uma
identificação com a formação discursiva que o domina” . (Terry Eagleton, Ideologia, 1997:
173)
6
Há várias definições para o termo globalização, no entanto a definição de John B. Thompson (1998: 135) é a que melhor
define este fenômeno. Segundo o autor, o termo globalização refere-se a um amplo processo de interconexão, que ocorre
além das fronteiras dos estados nacionais, e tem um alcance global, assumindo formas complexas de interação e
interdependência.
Essas abordagens sobre ideologia e muitas outras não escolhidas para esse ensaio, mas
igualmente importantes para a análise do tema7, devem ter como referência central a
experiência cotidiana da vida social, sem a qual o conceito tende a se esvaziar e perder seu
sentido. Porém, a experiência cotidiana é muito complexa e muitas vezes o conceito de
ideologia tende a reduzir-se às determinações teóricas muito fechadas. Portanto, entendo ser
possível pensar como a ideologia opera na vida social a partir de questões que estão além da
análise puramente sociológica.
Entendemos, também, que os atores sociais são seres individuais e que as suas ações
não são racionalmente planejadas o tempo todo, e nem a noção que eles têm de coletivo é
única, harmoniosa e perfeita. Os atores são indivíduos contraditórios, egoístas e solidários,
coerentes e incoerentes. Na vida são apresentados, os recalques, as fantasias, os medos,
individuais e coletivos, as histórias individuais e as representações coletivas, não há uma
coerência que delineie o campo e o momento em que cada uma dessas tensões se
apresenta. Nem sempre nos sentimos parte desse Todo que se convencionou chamar de
sociedade, no entanto, queiramos ou não, a nossa natureza é fundamentalmente social.
Portanto, os fenômenos da vida social e as características individuais fazem parte de
uma teia invisível em que os indivíduos estão presos. A forma como cada indivíduo reagirá
aos percalços e alegrias de sua vida irá variar de acordo com as suas crenças, culturas,
neuroses, recalques e com as construções sociais que outros indivíduos lhe impuseram; bem
como as respostas que as sociedades darão aos seus fenômenos serão relativos às suas
construções coletivamente construídas, de acordo com a sua história, mas também de acordo
7
Refiro-me particularmente às abordagens de Louis Althusser, em Aparelhos Ideológicos do Estado; Antonio Gramsci, em
Obras Escolhidas, vol. I e II ;Ernesto Laclau eChantal Mouffe, em Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism,
Fascism, Populism. Londres, New Left Books, 1977.
com as construções individuais. De forma que, na vida social há uma prevalência do coletivo
sobre o individual, mas nesse coletivo também estão presentes as potencialidades individuais.
Por isso consideramos ser possível pensar a contribuição da psicanálise no
entendimento das questões sociais, mais especificamente da ideologia enquanto estruturando
o real. Alguns conceitos como o de fantasia, recalque, neurose, gozo, podem ser pensados,
tanto como uma construção individual quanto coletiva. Isso ajuda a alargar o campo da
sociologia, na medida em que infere novos elementos para a análise, a fim de procurar
responder algumas questões que a própria complexidade da sociedade moderna demanda.
É neste ponto em que Marx encontra-se com Lacan. A noção de ideologia proposta por
Marx, em O Capital, capítulo 1: Para a Crítica de Economia Política, entende-a como algo que
faz parte do real e não como uma falsa consciência desse, define-a como algo presente na
vida social, e portanto, compondo o real. Embora Marx não forneça em sua obra uma clara
definição sobre o que ele entende como o real, sabemos que, para ele o real é o lugar da
produção e reprodução dos bens materiais e afetivos, emocionais. Então, por real
entendemos que é algo que só existe enquanto produção e reprodução de sentidos. E a
ideologia é, por excelência, onde esses sentidos se apresentam.
Porém, esse real não é manifestado, ele opera através das representações imaginárias
e simbólicas. E como representação, ele sempre se apresentará como falta, pois nunca estará
completamente representado. Se podemos afirmar que a realidade é portadora de significado,
o significante nunca será totalmente identificado, pois, como afirma Derrida, em Gramatologia,
criticando F. Saururre, existe um vazio produzido entre o significado e o significante8 que nem
a imagem e nem a palavra dão conta de explicar.
8
Segundo F. Saussure (1996), a linguagem tem um significado que se relaciona com o significante. Para Jacques Derrida,
esta relação não é tão perfeita assim. Há algo entre o significado e o significante, ou seja, a realidade não é consumida
É nesse sentido, que a noção de “real”, em Jacques Lacan parece aproximar-se
bastante da mesma noção, em Marx. A argumentação fundamental de Lacan sobre o “real” é
de que ao real não falta nada. O real é o esteio da simbolização,
para que as coisas tenham sentido, esse sentido tem que ser confirmado por um
pedaço contingente do Real que possa ser tomado como um „signo‟. A própria
palavra „signo‟, em sua oposição à marca arbitrária, faz parte da „resposta do real‟: o
„signo‟ é dado pela própria coisa, e indica que, pelo menos num certo ponto, o abismo
que separa o real da rede simbólica foi transposto, isto é, que o próprio real se
conformou ao apelo do significante (Nasio, 1993:158).
A forma como a ideologia nos interpela, enquanto sujeitos individuais e coletivos,
depende, fundamentalmente, de como o significado dado à realidade seja incorporado ao
indivíduo como algo interior (na sua fantasia), como se fizesse parte da própria formação do
seu self, fazendo parte do seu cotidiano.
Pode-se, então, verificar que o
verdadeiro suporte do efeito ideológico (ou seja, a maneira como uma rede
ideológica de significantes nos „prende‟) é o núcleo fora de sentido. Na ideologia,
„nem tudo é ideologia (isto é, sentido ideológico)‟, mas é precisamente esse excesso
que constitui o derradeiro esteio da ideologia (Žižek, 1992: 121-122).
È nesse sentido que procuramos entender, como a ideologia pode ser pensada em sua
relação com a fantasia. A noção de fantasia entra no campo da ideologia, na medida em que
é ela quem encobre o buraco deixado pelo campo simbólico e imaginário. Portanto, a fantasia
entra no lugar desse buraco, mascarando esse „nada‟. Ou seja, a fantasia é um meio de a
totalmente pelo significado. Ou, falando de outra forma, o significado não e a representação pura da imagem. Há um vazio
que não se explica, há algo que fica além do processo de significação. (Gramatologia: )
ideologia levar antecipadamente em conta sua própria falha, conforme argumenta Slavoj
Žižek, em Eles Não Sabem o Que Fazem. (1992:124 Grifo do autor).
É nessa direção que observa-se que o sentido ideológico não funciona somente com a
neutralização do real, mas a percepção de que o real é mais do que real, ele se apresenta
sempre como excesso, é aí que reside o seu sintoma, no excesso do real.
Por isso, a ideologia opera como a própria realidade, ou seja, a própria realidade é
ideológica no sentido de que não existe uma realidade acima do que se vê. Não existe a
máscara, a própria realidade opera como uma ilusão, pois não há algo acima dela. É quando
a ideologia é capaz de nos fazer ADERIR, de nos transformar, de mudar a nossa própria
forma de vê-la.
Segundo Zizek, “uma ideologia logra pleno êxito quando até os fatos que à primeira
vista a contradizem começam a funcionar como argumentos a seu favor.” (1996.326) Isso é,
ela ocorre na mídia, por exemplo, devido a aceitabilidade de determinados tipos de
informação pelos agentes sociais, atingindo um alto grau de subjetividade, ou seja, seus
desejos, suas fantasias, seus recalques. Essa aceitabilidade ocorre quando elas se realizam
como fantasia, pode não ocorrer de forma consciente, consentida, mas pelo próprio silêncio,
pelo descaso, pela omissão.
Há uma aceitação/subordinação que não se revela. Isso mostra que, mesmo nos casos
em que a falsa consciência parece existir, ela só existe para camuflar o sentido fantasioso da
ideologia. Ou seja, a falsa consciência só existe porque ela representa a fantasia dos que a
aderem.
O que se narra ao se mostrar a imagem da violência na mídia não é um ato isolado de
significados.
A partir do registro e transmissão mediáticos destas imagens de extrema
violência é que irrompem, na cena pública, a existência de crianças morando nas
ruas, exibidos no episódio da Candelária; a complexa convivência entre moradores
de favelas, traficantes e policiais, expostas nas imagens de Vigário Geral e de Nova
Brasília; e existência dos recônditos presídios superlotados e de condição subumana,
revelados em Carandiru; a certeza da impunidade policial que leva a prepotentes
assassinatos como o do Rio-Sul (Rondelli, 1997:143).
Há um sistema de dependência e de obediência que está sendo construído em cima da
violência institucionalizada e naturalizada. Esses episódios também são reveladores do
impasse da sociedade em minimamente controlar seus conflitos e suas ambigüidades.
Há que se pensar também sobre o que as imagens das cenas de violência revelam.
Pois, o controle da imagem representa também o controle sobre o mundo social.
O modo como a mídia fala sobre a violência faz parte da própria realidade da
violência – as interpelações e os sentidos sociais que serão extraídos de seus atos, o
modo como certos discursos sobre ela passarão a circular no espaço público e a
prática social que passará a ser informada cotidiana e repetidamente por estes
episódios narrados (Rondelli, 1997:147).
A imagem não faz parte de uma representação da realidade, ela é a própria realidade.
Por isso, a forma como os mortos da chacina de Vigário Geral são apresentados na mídia,
revela o lugar que estas pessoas ocupam na ordem social. Esses corpos estão enfileirados,
em caixões de madeira, jogados no chão da favela. São corpos que não têm identidade, não
tem rosto, não têm projeto de futuro, nem sonhos e nem desejos. Existem apenas corpos,
mas neles não existem pessoas. Por isso, não se fala em reparação moral, em obrigação
moral do Estado. Essas pessoas já não existiam, ainda que vivas. Portanto, estudar a forma
como a mídia apresenta a imagem da chacina de Vigário Geral é também estudar a forma
como a própria sociedade se vê.
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