EPISTEMOLOGIA E ESCRITA DA HISTÓRIA: ABORDAGEM TEÓRICA Josias José Freire Jr. – (Universidade Federal de Goiás) A teoria da história é o campo da disciplina histórica que se ocupa do trabalho de conceitualização, fundamentação e crítica permanente da história enquanto ciência. Jörn Rüsen em seu livro Razão Histórica (RÜSEN, 2001), a primeira parte do trabalho que o tornou famoso em todo mundo como um dos mais importantes teóricos da história, se ocupa de construir, consolidar e explicitar os fundamentos da ciência da história. Rüsen a partir da tradição alemã historicista (Gustav Droysen, Rickert e Dilthey, como exemplos) e de estudos contemporâneos da teoria da ciência, isto é, a epistemologia (a disciplina que se ocupa do estudo das ciências), na tradição de T. Kuhn (história e epistemologia das ciências exatas) e J. Habermas (epistemologia das ciências humanas) desenvolve um modelo paradigmático para a ciência da história. Tal modelo paradigmático é sustentado pela Matriz Disciplinar da ciência da história (desenvolvida no capítulo I). Matriz teórica e paradigma científico são sinônimos neste contexto. A seguir farei uma leitura de alguns pontos de considero relevantes na obra Razão Histórica com o objetivo de inserir um debate acerca da epistemologia da história e suas possibilidades de expansão. A matriz disciplinar da ciência da história é composta de duas partes: a parte do pensamento histórico que corresponde à história enquanto processo cotidiano (a idéia de orientação no tempo – identidade no tempo, isto é, nos reconhecermos enquanto submetidos a fluxo do tempo – frente às contingências, agindo e sofrendo). A outra parte da matriz corresponde as operações mentais em relação ao tempo vinculadas à construção da ciência da história: a parte da história que a torna científica. Essas duas partes são compostas por cinco fundamentos, que explicitarei de forma sintética a seguir. O primeiro elemento da matriz disciplina da ciência da história são os interesses. “Trata-se do interesse que os homens têm – de modo a poder viver – de orientar-se no fluxo do tempo, de assenhorar-se do passado, pelo conhecimento, no presente.” (RÜSEN, 2001: 30). Esta função representa o nosso interesse e a nossa necessidade de orientação no tempo para podermos viver. Significa perceber que precisamos entender o tempo para podermos viver, somos carentes de orientação no tempo. Por isso nos interessamos pelo passado. “O primeiro fator da matriz disciplinar da ciência da história é formado. Por conseguinte, pelas carências fundamentais da prática humana da vida no tempo, que reclamam o pensamento histórico, carências de orientação que se articulam na forma de interesses cognitivos pelo passado.” (RÜSEN, 2001: 30). Em segundo lugar na matriz proposta por Rüsen temos as idéias. As déias são os critérios de sentidos: “Para tanto, são decisivos determinados pontos de vista supraordenados, que articulam essas carências como interesses em conhecer o passado historicamente. As carências de orientação no tempo são transformadas em interesses precisos no conhecimento histórico na medida em que são interpretadas como necessidade de uma reflexão específica sobre o passado. Essa reflexão específica reveste o passado de caráter de história.” (RÜSEN, 2001: 31). As idéias são os “critérios de sentidos”, os “pontos de vista supra-ordenados [...] critérios segundo os quais os significados produzem [na] práxis vital, somente com base nos quais os homens podem agir”. (RÜSEN, 2001: 31). São as idéias que transformam os interesses em busca pela história enquanto ciência. Quando percebemos que precisamos no orientar no tempo, buscamos sentido no passado e daí, a história surge como necessidade vital para a práxis (as ações e paixões, isto é, quando somos passivos às ações de outros). O terceiro elemento da matriz disciplinar são os métodos. A história como disciplina científica encontra nos métodos de pesquisa o esteio de sustentação de contato com a realidade empírica. “É dessa inclusão da experiência concreta do tempo do passado que constitui propriamente o processo do conhecimento histórico.” (RÜSEN, 2001: 33). É aqui que nasce a história como ciência. Até aqui tínhamos as operações básicas de orientação no tempo, que qualquer um faz, aliás, que todos fazem para viver. Quando as idéias (os critérios de sentidos) se tornam pesquisa empírica é por que a história se torna ciência, matéria de pesquisadores. Métodos são os procedimentos cientificamente controlados e controláveis: tornar idéias sobre o passado históriaciência. Pesquisar algo que faz sentido para você e para sua sociedade, através das fontes. Aqui o rigor científico se concentra e faz da história uma disciplina científica. As formas de apresentação compõem o quarto elemento da matriz disciplinar. É neste momento que historiador, após interpretar as carências de orientação por meio das idéias, e após lidar com a realidade empírica de maneira cientificamente controlável – pelos métodos - apresenta sua produção no sentido de suprir as demandas que o tempo impõe no que se refere a constituição de sentido e identidade histórica (RÜSEN, 2001: 156). “A obtenção de conhecimento histórico empírico através das fontes, pela aplicação dos métodos, orienta-se, por princípio, a tornar-se historiografia.” (RÜSEN, 2001: 34) As formas de apresentação como fundamentos da ciência da história é a historiografia, a produção do conhecimento histórico materializada. Por fim temos o quinto elemento da matriz disciplinar da ciência da história: a orientação existencial – funções de orientação existência. “Pois se são carências de orientação no tempo que provocam o pensamento histórico e lhe conferem uma função relevante na vida, então a história como ciência e sua pretensão de racionalidade não podem ser explicitadas e fundamentadas sem levar em conta esta função.” (RÜSEN, 2001: 34). A última função se refere às orientações existenciais mediante o conhecimento histórico. São as respostas aos interesses materializadas em conhecimento histórico que nos orientam no tempo. Exemplos: I) Identidade: somos brasileiros por que conhecemos a história de ‘certo’ Brasil onde nascemos. II) O mundo hoje é deste jeito ou de outro por causa do nosso passado. III) Se fizermos algo podemos mudar o futuro. Como sabemos nos últimos anos a idéia de ciência tem sofrido algumas mudanças. É o que alguns chamam de pós-modernidade. O modelo (paradigma) de ciência baseado nas ciências exatas sofreu grandes abalos por críticas vindas de diversas direções, principalmente dos pós-estruturalistas e representantes da filosofia analítica da linguagem – a ‘tradição inglesa’. Essas críticas, a grosso modo, se resumem à idéia que todas as ciências, principalmente as exatas, estão submetidas à linguagem, e a linguagem é precária. A linguagem possui grandes problemas em comunicar seu conteúdo. Isto que escrevo jamais será compreendido por meus leitores como eu gostaria, por exemplo. Quando escrevemos algo a obra deixa de nos pertencer e passa a uma nova ordem, de leituras, interpretações. Perdemos o domínio sobre nosso próprio escrito e nunca podemos saber com certeza de que maneira ele será interpretado. (radicalizo o exemplo das leituras e interpretações para fazer de minhas explanações as mais claras possíveis). A complexidade do paradigma narrativista se inicia aqui. As teorias narrativistas apareceram para dizer que a história é narrativa. Isso significa que a história está submetida às precariedades da linguagem. Um historiador tem apenas a linguagem para ler o passado e nós temos apenas a linguagem para ler o historiador. Isso espalhou a idéia que a história não poderia ser uma ciência, pois ela não era racional. Isso por que está, a história, submetida à linguagem, que é precária. Fora essa questão, apareceu outro tema delicado. Com a queda do muro de Berlim – e a dissolução da utopia comunista da URSS – muitas concepções políticas, como a de que a sociedade caminha inevitável para o socialismo foram arrasadas. E os historiadores acusados de escreverem a história como instrumento de manipulação. Os pós-estruturalistas apontaram como o discurso histórico é um poderoso instrumento político. Em termos gerais as considerações a seguir se ocupam de abordar e discutir algumas questões do paradigma narrativista. Perante as acusações de que a história não é racional, de que a história é a mesma coisa que literatura aparece a idéia de questionar o próprio estatuto da ciência. Isso para mostrar que não existe A Ciência racional, mas sim que existe As ciências e As racionalidades típicas dessas ciências. A narrativa é um tipo específico de racionalidade da ciência da história (RÜSEN, 2001: 153). A história pode ser acientífica para as ciências matemáticas, com seu modelo de racionalidade. Por isso a teoria da história se ocupar em fundamentar e explicitar os pressupostos racionais da ciência da história. Para construir um modelo de racionalidade da história. Um desses modelos é o da narrativa: “Para entender o que a narrativa realiza, é necessário caracterizar melhor a categoria de sentido. A constituição de sentido produzida pela narrativa histórica a partir da experiência do tempo opera-se em quatro planos: a) no da percepção de contingências e diferenças no tempo; b) no da interpretação do percebido mediante a articulação narrativa; c) no da orientação da vida prática atual mediante os modelos de interpretação das mudanças temporais plenos da experiência do passado, e por fim, d) no da motivação do agir que resulta dessa orientação. ‘Sentido’ articula percepção, interpretação, orientação e motivação, de maneira que a relação do homem consigo e com o mundo possa ser pensada e realizada na perspectiva do tempo.” (RÜSEN, 2001: 156). Isso é a “identidade histórica”. (RÜSEN, 2001: 156). O pensamento do autor alemão Walter Benjamin é constantemente citado como referencial para os debates acerca das mudanças do paradigma historiográfico que se operaram do período do pós-guerra até nossos dias. Nas linhas a seguir, farei a título de conclusão deste trabalho algumas considerações sobre potencialidades teóricas de seu pensamento imbricadas com o paradigma disciplinar da ciência da história, elaborado por Rüsen em sua obra, e resumidamente explanadas até agora. Trabalharei estas potencialidades, no esquema da matriz disciplinar da ciência da história, o que se refere às formas de representação do conhecimento histórico (RÜSEN, 2001: 163-164), que são as configurações da narrativa historiográfica, propostas por W. Benjamin. Partirei da questão narrativa – forma de representação – como diretriz de interpretação (RÜSEN, 2001: 162), que possibilita uma análise com base na articulação teórica e elementos da vida prática. Engastando o pensamento do filósofo alemão com o paradigma narrativista proposto por J. Rüsen evidenciarei, de forma esquemática, como pode ser explorada a racionalidade típica daquelas propostas. Longe de nivelar seu pensamento, acredito que este procedimento é produtivo no que se refere a evidenciar a sua legitimidade como proposta teórica de escrita da história. Apenas localizar tais critérios em um trabalho também não garante a sua plausibilidade, sua confiabilidade e o reconhecimento como disciplina científica. Destarte desenvolverei e possibilitarei a reconstituição da articulação proposta, como pistas em um caminho que – apesar de já iniciado – tem muito a ser percorrido. Os próprios escritos de Benjamin nos indicam a necessidade de desenvolver e experimentar seu pensamento objetivando uma teoria sólida, mas que possa se adaptar às mudanças que, a cada dia, se apresentam de forma mais brusca. Enquanto estratégia política de memória coletiva (RÜSEN, 2001: 163), a proposta de Walter Benjamin é apresentada sob a idéia da redenção. Estudando a historia da modernidade o filósofo alemão percebeu a barbárie escondida sob os pés do cortejo do discurso triunfalista dos ideólogos do progresso. Enquanto os historiadores de sua época escreviam a história de forma empática – uma empatia com os vencedores – um número incalculável de pessoas, fatos e idéias se amontoavam na vala comum do esquecimento: vítimas das guerras, vítimas da fome, operários destroçados pelo sistema de exploração da força de trabalho, entre tantos outros exemplos. O passado rememorado pela história se livra do esquecimento e transforma o presente. A utopia de uma sociedade sem classes e a redenção messiânica se transformam em ação quando é colocada em prática uma proposta da história que ouve as súplicas dos que não possuem história. A irrupção revolucionária é o momento da oportunidade de corrigir injustiças perpetradas pela história que tudo explica. Por isso Benjamin atribui ao passado, trazido enquanto história e utilizado como conhecimento das injustiças, a função de conscientizar o “historiador materialista” de sua responsabilidade. Esta é sua estratégia cognitiva da produção do saber histórico (RÜSEN, 2001: 163), onde seu método e as diretrizes de interpretação fazem o levantamento daquilo que até então fora excluído por seus contemporâneos, e que agora, será seu tema. A percepção do tempo de exceção, as fantasmagorias da metrópole moderna e o desencantamento mistificador da razão instrumental, fazem o passado reclamar outras versões sobre si para o presente, de onde vem o compromisso de mudar a ordem das coisas através da escrita da história e de seus métodos peculiares propostos. Para esta percepção algumas prerrogativas são imprescindíveis segundo Benjamin: a organização do pessimismo, a abertura ao diferente, ao descontínuo e ao silenciado. Da percepção dos problemas de seu tempo, passando pela necessidade da intervenção salvadora do passado e do presente, por aquele que tem consciência das injustiças de ontem e de hoje, impregnando seu método das características de seus objetos, chegamos ao local da escrita da história proposta por Benjamin pela atenção voltada à sua obra hoje. A “estratégia estética da poética e da retórica da representação histórica” (RÜSEN, 2001: 163). O ato de narrar enquanto “tipo de explicação que corresponde a um modo próprio de argumentação racional” (RÜSEN, 2001: 154) recentemente tem despertado interesse enquanto possibilidade de representação das ações do homem no passado conforme as experiências vividas em nossos tempos. A falta de sentido aos poucos vem sendo reconhecida como estratégias de narração, de produção e política de memória coletiva. Estes interesses, enquanto teoria e método podem ser verificados na obra de J. Rüsen – que contribuiu de forma determinante para este trabalho – ao demonstrar os potenciais de racionalidade típicos da narração histórica, contra uma idéia de Razão enquanto bloco. De forma prática esses interesses são trabalhados no livro organizado pelo professor Wander Melo Miranda (MIRANDA, 1999), onde a professora Nelly Richard (RICHARD, 1999: 321) desenvolve em seu belo texto a complexidade de pensar a memória e a história dos desaparecidos políticos. Os problemas levantados pela professora são questões práticas do tema deste trabalho. Como evitar que a lembrança destrua a memória? Como escrever uma história dos desaparecidos, se não há provas do desaparecimento? Como fazer justiça aos que silenciaram sob o peso da história oficial? Questões semelhantes são tratadas na problemática do Holocausto. (GIZNBURG, 2006: 211.) Enquanto feitura e representação do histórico, a radicalização do método benjaminiano é sustentada por um arcabouço teórico que tem sido bastante discutido enquanto proposta válida, mas como as questões acima mostram, oferece ainda muitos problemas e territórios a serem explorados. Essa teoria implícita em seus textos, tanto teoria da historiografia – dando prosseguimento a críticas já existente no pensamento de Nietzsche – quanto teoria da história que propõe a humanização, o comprometimento – “o reconhecimento do político enquanto ação estratégica dedicada à transformação social” (BHABHA, 2003: 48). As propostas teóricas de Walter Benjamin visam um método que consiga acompanhar as modificações e reatualizações do pensamento acerca da história, suas possibilidades e validade. Abrir-se aos fragmentos, à falta e ao incompleto, fazer justiças e salvar a memória através de uma história desmistificada, tanto dos novos quanto velhos mitos. Esses são os objetivos de suas propostas. Estes são os motivos que nos obrigam a pensar, com urgência, a natureza e o sentido do que fazemos quando escrevemos a história. Mesmo que para isso, precisemos negá-la. Referências bibliográficas GINZBURG, Carlo. O extermínio dos judeus e o princípio da realidade. Tradução de Henrique Espada Lima. In: MALERBA, Jurandir (organização). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. MIRANDA, Wander Melo (Org.). Narrativas da Modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. RICHARD, Nelly. Políticas da memória e técnicas do esquecimento, p.321. In: MIRANDA, Wander Melo (organização). 1999. RÜSEN, Jörn, Razão Histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Tradução: Estevão Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001.