RPG NO ENSINO DE HISTÓRIA: OS DETETIVES PRODIGIO E A ESCRAVIDÃO EM ROMA Juliano da Silva Pereira Universidade Estadual de Londrina [email protected] Resumo Assumindo como pressuposto que os alunos, para aprender história de forma significativa, têm que ligar os novos conceitos àqueles previamente formados na sua estrutura de conhecimento e que esse processo pode ser facilitado por uma abordagem dos temas nas aulas que valorize a compreensão de conceitos e não a simples memorização dos fatos, tomou-se como objeto deste estudo o RPG (Role Playing Game) como ferramenta pedagógica nas aulas de história. O objetivo geral da pesquisa é demonstrar como o RPG pode servir como estratégia para a aquisição de conceitos por parte dos alunos. Constitui-se de pesquisa bibliográfica, criação de material de ensino, análise das idéias dos alunos e reflexão acerca da experiência realizada. Participaram da pesquisa 83 alunos do ensino fundamental de um colégio estadual localizado em Londrina (PR). O estudo indica a necessidade de se pensar em novas formas de ensino que conduzam o aluno a uma aprendizagem mais significativa, mais voltada à compreensão de proposições do que à memorização tão comum em nossas escolas. Palavras-chave: conhecimento prévio; ensino de História; História e Ensino; Role Playing Game. Introdução Pensar o ensino de história hoje, como em outras áreas, passa pela consideração importante de repensar as práticas educativas mais tradicionais que priorizam um aprendizado voltado para a memorização. O professor hoje deve conjugar elementos variados na sala de aula, considerar não apenas o raciocínio, o desenvolvimento motor, mas também a criatividade e a imaginação no desenvolvimento da criança. É nessa perspectiva que foi realizado em 2009, em uma escola da rede pública estadual de ensino na cidade de Londrina – PR, um projeto onde o RPG, sigla para Role Playing Game, (sigla para jogo de representação de personagens) foi utilizado como ferramenta pedagógica no ensino de história. 788 Participaram do jogo 83 alunos da 6ª série do ensino fundamental na faixa etária de 11 a 12 anos. Não é de hoje que se pensa no uso do jogo na educação. Em 1996, Marcatto lança o livro Saindo do Quadro, cujo público alvo seria composto por educadores. Seu objetivo era ensinar ao leitor (educador) a criar “aventuras pedagógicas”. A idéia de sair do quadro e utilizar o jogo a serviço da educação nas várias áreas de atuação escolar. Para ele o RPG é uma ferramenta importante a ser usada, pois pode motivar o aluno a estudar ao mesmo tempo em que desenvolve habilidades cognitivas e sociais. Foi este, talvez, o primeiro passo para se pensar o RPG na sala de aula, apresentando ao professor uma metodologia básica para o uso do jogo. O foco principal da aventura didática ensinada no livro de Marcatto é a transmissão de dados. De fato, para o autor, educar seria transmitir conteúdo didático “útil” para o aluno. As aventuras pedagógicas devem ser realizadas pelo professor, colocando na história os dados que os alunos devem aprender. As vantagens do uso do RPG na educação se devem, segundo Marcatto (1996), ao fato do jogo não ser competitivo; incentivar a leitura, a escrita e a pesquisa; a redescoberta da arte de contar histórias e ser agradável ao aluno (aprender brincando). No entanto, o autor não realiza ou não mostra em seu livro qualquer estudo que ratifique todas estas vantagens. Mesmo sem um estudo mais aprofundado por parte de Marcatto, faz sentido pensarmos o jogo na educação, pois ele apresenta, como afirma Higuchi (2001, p. 202), “uma dialogicidade muito forte com as narrativas orais, ao mesmo tempo em que incorpora temas presentes em diversos meios de comunicação de massa, como o cinema, as revistas em quadrinhos, os jogos de videogame, etc.”. O jogo se insere dentro desse universo cultural adolescente e faz com que o aluno estabeleça outra relação com o conhecimento, uma relação que a escola às vezes deixa um pouco de lado, pois a escola não é o espaço do jogo, do brincar. Usando o RPG no ensino de história: questões a serem colocadas 789 Claro que para considerarmos o uso do RPG no ensino de história devemos resguardar certos limites. No jogo, tradicionalmente, temos uma ficção estimulada por pilhagens narrativas1. No caso da pesquisa e do ensino de História a narrativa se assenta em fontes e na sua crítica, em critérios de evidência, análise de dados, no reconhecimento e explicitação da relação entre o discurso do historiador e o seu objetivo de pesquisa. Enfim, enquanto o historiador busca a construção do conhecimento em bases científicas o jogador de RPG busca a narrativa ficcional. Há um caminho em que as duas podem se encontrar. Comecemos pensando no conceito de consciência histórica, que, para Rüsen (1992) (...) funciona como um modo específico de orientação em situações reais da vida presente: tem como função nos ajudar a compreender a realidade passada para compreender a realidade presente (...). A consciência histórica serve como um elemento orientador chave, dando-lhe à vida prática um marco e uma matriz temporais, uma concepção do curso do tempo que flui através dos assuntos mundanos da vida diária. (RUSEN, 1992, p. 29. Tradução livre). Para o autor, esta consciência não é privilégio de especialistas, mas sim de todos os seres humanos. Ora, esta consciência se apresenta sob a forma de narrativa. Mais ainda, ela determina nossas narrativas, pois “(...) as operações pelas quais a mente humana realiza a síntese histórica das dimensões de tempo simultaneamente com as do valor e a experiência, se encontram na narração: o relato de uma história”. (RUSEN, 1992, p. 29. Tradução livre). E esta história, sua narrativa, é que nos orientam temporalmente e dão sentido ao nosso passado inserindo-o como orientador em nossa vida prática. Não podemos considerar a narrativa do aluno como igual à do historiador, no entanto, também não podemos negar a historicidade da construção narrativa do aluno. E é possível pensar esta narrativa como uma narrativa histórica escolar pelos elementos que são utilizados para sua construção seguindo as proposições acerca da cultura escolar e do conhecimento produzido na experiência escolar. Cerri (2001, p. 108) afirmou que o conhecimento histórico ensinado na escola é “(...) qualitativamente diferente daquele conhecimento produzido pelos 1 O termo é usado por MOTA (1997) para definir a incorporação por parte dos jogadores (o narrador, principalmente) de diversas referências culturais, populares e eruditas dentro de uma história “original”. 790 especialistas acadêmicos”. Mas, para o autor, ambos são apenas frações da experiência social de pensar historicamente (que atualmente tem o conhecimento histórico acadêmico como a sua principal referência). A exposição de Cerri é aclarada pela citação de Rüsen: Entre o ensinar e o aprender história na universidade e na escola há uma diferença qualitativa, que logo se evidencia quando se promove a reflexão sobre os fundamentos do ensino escolar de maneira análoga à que se faz com a teoria da história como disciplina especializada (RÜSEN, 2001, p. 50). Para Mattozzi (1998), o processo de construção de conhecimentos pelo historiador pode ser relacionado à experiência de construção de sentido pelo aluno. Para o autor: O historiador realiza um processo de construção do conhecimento – graças às suas próprias capacidades cognitivas, à sua consciência metodológica e ao valor que reconhece ao conhecimento histórico – e, através da investigação, chega ao texto historiográfico; o aluno, por sua vez, realiza um processo de construção do conhecimento mediante o uso das fontes ou mediante o estudo de textos e deve chegar a compreender não só o conhecimento, mas também como procede o historiador e como funciona o conhecimento (MATTOZZI, 1998, p. 38). Ou seja, dando ao aluno as ferramentas adequadas (documentos e metodologia de investigação) é possível que ele possa participar ativamente na construção de seu conhecimento e refletir sobre o conhecimento histórico. O conhecimento prévio e a aprendizagem significativa Alguns conceitos foram essenciais na instrumentalização da verificação dos resultados deste trabalho. O primeiro deles foi discutido acima, outro conceito não menos importante é o de conhecimento prévio. Não podemos considerar que o aluno chegue à escola como se fosse uma folha em branco a ser preenchida pelos mestres. Os alunos trazem uma bagagem cultural, conhecimentos que são adquiridos ao longo de sua vida e que dão a ela uma dimensão histórica. A este conhecimento, advindo da experiência, chamaremos de conhecimento prévio. 791 Pereira (2003) usa o termo idéias tácitas, ao invés de conhecimento prévio, para se referir se referir às idéias dos alunos sobre acontecimentos e conceitos históricos. Essas idéias, por sua vez, fornecem um quadro necessário à compreensão das pessoas do passado. Elas são componente importante de uma aprendizagem significativa. Entendo como aprendizagem significativa o conceito criado por Ausubel, nas palavras de Lima (2009, p. 5): (...) uma aprendizagem é significativa quando há uma ancoragem, na estrutura cognitiva do aluno, de uma nova informação. “(...) Na aprendizagem significativa há uma interação entre o novo conhecimento e o já existente, na qual ambos se modificam. À medida que o conhecimento prévio (Menandro usa o termo conhecimento espontâneo, grifo meu) serve de base para a atribuição de significados à nova informação, ele também se modifica” (LIMA, 2009, p. 5). A narrativa do RPG, apesar de suas diferenças da narrativa da História, evoca uma memória, através da qual o jogador pode vir a se perceber em seu papel duplo de criador e criatura, consciente de seu papel na produção desta memória que é jogo e da memória que é História. Levemos em conta a definição de jogo posta por Huizinga (2001), em que o jogo acontece em um tempo próprio, em um mundo a parte, podemos considerar que a narrativa do RPG pode envolver a memória dentro de sua ambientação e da história, enquanto disciplina escolar, quando o aluno se transporta para o jogo e cria a história esta criando também uma narrativa histórica. O que é RPG O RPG pode ser traduzido como jogo de personificação de papéis 2 que pode ser definido, principalmente, pela sua característica de representação. O jogador faz um exercício imaginativo, onde se coloca na pele de um personagem (criado especialmente para o jogo). 2 A maior parte das definições do que é RPG vem da internet e dos livros de jogos de RPG, no entanto, até mesmo entre estes há diferenças entre os conceitos. Entre os livros podemos citar: HAGEN, Mark Hein. Vampiro: A Máscara. 2ª ed. São Paulo: Devir, 1994; JACKSON, Steve. GURPS-Módulo básico. 2ª ed. São Paulo: Devir, 1994; PONDSMITH, Mike. Castelo Falkeinstein. São Paulo: Devir, 2004. 792 No jogo há um narrador que conduz a história, descreve o cenário e as situações de jogo. Os demais jogadores interagem com o cenário e a situação descritos. Desta forma, a história, por mais bem detalhada e interessante que seja por si só, sofre a influência dos jogadores. É uma narrativa criada coletivamente. A experiência No jogo realizado em aula cada detalhe foi pensado para facilitar a apreensão de conceitos por parte do aluno. Os alunos se dividiram em grupos e cada grupo interpretou um personagem, criado especialmente para o jogo. Os alunos-personagens viajaram através do tempo e chegaram à Roma antiga. Lá eles tiveram enigmas para resolver com o objetivo de voltar para nossa época. Chamo de enigmas as situações criadas em que eles têm que interagir com personagens da época para resolvê-los. Isto é feito através da leitura e interpretação de documentos (que aparecem no jogo como falas de outros personagens da época estudada). Foram criados para o jogo um grupo de personagens, os Detetives Prodígio, seis adolescentes que investigam mistérios na história, todos grandes conhecedores de história e prodígios em suas áreas específicas. Cada um possui uma habilidade específica que ajuda na elucidação dos enigmas colocados na aventura. Najub, por exemplo, tem conhecimentos de lingüística e sua habilidade lhe permite ler línguas arcaicas como grego e aramaico. Raquel é arqueóloga e pode descobrir vestígios materiais de povos antigos, seu funcionamento e seus usos. Romeu é especialista em documentos escritos e heráldica, auxilia o grupo na interpretação dos textos. Moema é antropóloga e tem a habilidade da empatia, podendo compreender a cultura de qualquer personagem antigo e desta forma, entende melhor suas ações. Helena é geógrafa e pode se localizar no tempo e no espaço com perfeição. Simão (caçula do grupo) é advogado especializado em Direito Civil. Como exemplo de um enigma, em determinada altura os personagens tiveram que agir como advogados de um garoto que seria vendido como escravo. Os personagens analisaram documentos de Roma sobre o tema e montaram uma defesa para o garoto. Estes passos foram encenados e os 793 personagens tiveram que imaginar a cena em que eles apresentam as suas conclusões diante do senado romano. Pode-se dizer que através do jogo o aluno vislumbrou uma possibilidade de passado. Estudou documentos e estabeleceu relações com o seu presente. Mais que isso, percebeu que o mundo romano é diferente do seu. Ao final, descobriram mais sobre o que significava ser escravo em Roma, passaram a relativizar a generalização da violência física nas relações entre senhores e escravos e deixaram de associar escravidão e homens negros. Aprenderam brincando. Os resultados Os resultados foram colhidos a partir da análise de um questionário prévio (respondido individualmente), a partida de RPG jogada pelos alunos e um questionário posterior. De início percebemos nos alunos vários conceitos sobre escravidão. Para alguns, a escravidão estava ligado ao trabalho compulsório, principalmente ao aspecto econômico. Outro grupo acreditava que o que determina a escravidão é ser maltratado pela pessoa que o faz trabalhar. Outra parcela acredita ser escravidão a obediência, traduzida por eles, muitas vezes, como sinônimo de respeito. Chamou atenção uma pequena parcela de alunos que relacionou a escravidão ao negro, para alguns, ser escravo é ser negro. Possivelmente esta idéia vem de seu cotidiano, pois o conteúdo sobre a escravidão no período colonial não havia sido ainda apresentado. De uma forma geral, escravidão para o grupo é trabalhar de graça, sendo maltratado e tendo que obedecer cegamente seu dono. É quase unânime a idéia da violência contra o escravo como característica da escravidão. Para refletir sobre essas idéias dos alunos é preciso considerar que a historiografia dos anos anteriores à década de 1970 sobre as relações entre negros e brancos no Brasil, ampara-se, sobretudo, nas idéias de Gilberto Freyre, para quem o negro já estava misturado ao branco de tal forma que não haveria no Brasil o conflito racial. 794 Na década de 1980 os avanços dos movimentos pelos direitos dos negros, do processo de “redemocratização” da sociedade brasileira, dos debates em torno da escola, da história e do ensino de história, fazem com que na escola se modifiquem os conteúdos das disciplinas. As novas orientações historiográficas centradas na história “vista de baixo” davam maior importância às perspectivas de grupos menos favorecidos. No entanto, os livros didáticos não mostravam a história da África, tampouco a influência da cultura africana para a formação do povo brasileiro. Por muito tempo ainda, nos livros se perpetuará a idéia do negro mal tratado, humilhado e espancado por seu dono. Se considerarmos o conhecimento prévio, enquanto construção pessoal formada através do que o aluno percebe do mundo à sua volta nas diversas instâncias sociais (entre os amigos, família, escola) e o conhecimento que é compartilhado com os outros, fica mais fácil entendermos as respostas dos alunos. Além disso, a violência faz parte do cotidiano desses alunos, seja de modo explícito ou implícito. Os alunos negros sofrem o preconceito através das “brincadeiras” entre as crianças. Por este motivo a violência física aparece em todos os questionários, até mesmo porque eles não diferenciam a violência física da violência moral. Não seria possível medir o que foi aprendido pelo aluno através do jogo, tampouco saber se vem dele as diferenças nas respostas dadas ao segundo questionário. No entanto, embora não desapareça a ideia de violência no que se refere à escravidão, podemos afirmar que uma nova característica, no contexto da escravidão em Roma, é compreendida pelos alunos quanto ao tratamento entre dono e escravo: torna-se negociável e diferente caso a caso, conforme a relação entre eles. Os grupos continuam acreditando que há violência e maus tratos, no entanto estes elementos podem ocorrer ou não dependendo do tipo de relação entre o dono e o escravo (que pode ser amigável ou não). Desta forma, mais tarde ao entrar em contato com o conteúdo sobre o Brasil colonial, este aluno poderá lançar mão de seu conhecimento do 795 assunto na antiguidade e traçar comparações que possibilitem um melhor entendimento do conceito. Conclusão No século XIX, em meio a embates pela hegemonia do processo de constituição da história enquanto disciplina escolar surgiu um grupo de historiadores que defenderam a constituição de uma consciência histórica como “um recurso fundamental na crítica dos mecanismos de dominação perpetrados pela sociedade capitalista” (DIAS, 2007, p 1). De lá para cá, o conceito de consciência histórica se desenvolveu e se tornou centro de pesquisa no campo do ensino de História. Podemos afirmar hoje que há uma relação entre esta consciência e a identidade do indivíduo, considerando que os alunos não chegam à escola como tábulas rasas, vazios de conteúdos. Muito pelo contrário, trazem idéias baseadas em suas experiências de vida e com opiniões sobre as coisas. E as organizam no tempo. Para Pozo (1998) o conhecimento pessoal do aluno, base de uma consciência histórica, é chamado de conhecimento prévio e constitui um fator fundamental para a ocorrência da chamada aprendizagem significativa, onde o aluno confronta o conhecimento que possui com o novo conhecimento e pode então modificá-lo à medida que lhe atribui novo sentido. Rüsen quando fala sobre o efeito do saber histórico sobre a vida prática chama a atenção para a atuação do profissional de história (seja ele pesquisador ou professor) quer com seu trabalho produzir efeitos. Muitos tentam disfarçar esta intenção sob uma capa de neutralidade, coisa que há muito já se sabe não existir, “(...) em sua vida em sociedade, os sujeitos tem de se orientar historicamente e tem que formar sua identidade para viver – melhor: para poder agir intencionalmente” (RÜSEN, 2007, p. 87). Dito de outra forma, o aprendizado de história só terá sentido num contexto onde a experiência do passado corresponda a uma demanda do presente. Podemos dizer, então, que para que o aluno aprenda de forma significativa o conhecimento tem que fazer sentido para ele. 796 Rüsen pressupõe uma didática própria à história, primeiro por considerar o fato de que o aprendizado de história não ocorre apenas na escola, mas em todos os momentos de nossa experiência. Esta experiência vivida determinará a consciência histórica do aluno. Em outras palavras, o modo como ele entende a experiência histórica, a forma como ele se encaixa e se vê em seu tempo, determinará as ações do aluno, dará sentido a elas. O ponto de partida para um aprendizado eficaz, ao considerarmos estes pressupostos, é a análise do conhecimento prévio trazido pelo aluno através das respostas dadas no questionário inicial. Descobrimos que, de uma forma geral, o significado de escravidão para o grupo observado é trabalhar de graça, sendo maltratado e tendo que obedecer cegamente seu dono. É quase unânime a idéia da violência contra o escravo como característica da escravidão. Se considerarmos o conhecimento prévio enquanto construção pessoal formada através do que o aluno percebe do mundo à sua volta nas diversas instâncias sociais (entre os amigos, família, escola) e o conhecimento que é compartilhado com os outros, fica mais fácil entendermos as respostas dos alunos. Além disso, a violência faz parte do cotidiano desses alunos, seja de modo explicito ou implícito. Os alunos negros sofrem o preconceito através das “brincadeiras” entre as crianças. Por este motivo a violência física aparece em todos os questionários, até mesmo porque eles não diferenciam a violência física da violência moral. Ao analisarmos as respostas obtidas no segundo questionário percebe-se uma mudança no modo como é visto o tratamento dado ao escravo. Ele torna-se negociável e diferente caso a caso, conforme a relação entre o escravo e seu amo. Mesmo se considerarmos o fato do jogo ser uma ficção e a história trabalhar com documentos, ambos tem em comum a construção narrativa. No jogo, os alunos ao analisarem os documentos em busca das pistas necessárias para decifrar o enigma precisam questionar as pistas (documentos) interpretando-as. Mesmo que eles possam não ter em mente a distinção bem clara entre a história e 797 a ficção na aventura jogada, os alunos perceberam que as respostas aos seus questionamentos vieram dos documentos apresentados. Ora, sabendo que estes documentos são verdadeiros, suas conclusões (tiradas através de sua análise) possibilitaram aos alunos imaginar a idéia de que o historiador investiga, descobre pistas, compara, pergunta, imagina... A experiência realizada indica ser possível em práticas futuras oferecer aos participantes orientações mais precisas e aprofundadas que os ajudem a superar a visão mágica sobre a origem dos conteúdos históricos ensinados. A aventura sobre Roma foi criada a partir do conhecimento prévio dos alunos, com a intenção de confrontá-lo. Considerando os resultados obtidos (as mudanças conceituais sobre o tema proposto), podemos dizer que houve por parte do aluno uma aprendizagem significativa. Os novos conceitos foram formados a partir do que eles sabiam sobre escravidão. O novo conhecimento faz sentido para o aluno, pois foi usado e praticado, mesmo que de forma fictícia. A estrutura na qual o jogador torna-se autor e participante da narrativa facilita ao aluno uma melhor compreensão dos conceitos históricos e de como se constitui a narrativa histórica, além do exercício da empatia e da imaginação. O exercício empático do aluno de se colocar no lugar de outro para resolver os problemas apresentados facilita a compreensão dos conceitos propostos. O exercício da imaginação estabelece-se a partir das pistas e documentos apresentados. Permanecer nesses limites não compromete o prazer do jogo. É como se o conteúdo estudado pudesse ser “experimentado”. Ainda, quanto aos elementos da narrativa, e da narrativa histórica em particular, inferimos que possam ser problematizados por meio do jogo. Nessa perspectiva o RPG constitui-se como uma ferramenta pedagógica segundo a concepção de Vigotski, uma ferramenta de mediação com a finalidade de facilitar a apreensão daquilo que se quer ensinar ou aprender de forma mais significativa. REFERÊNCIAS 798 CERRI, Luis F. Os conceitos de consciência histórica e os desafios da Didática da História. Revista de História Regional. Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 93-112, 2001. DIAS, Maria Aparecida. Relações entre a língua escrita e consciência histórica em produções textuais de crianças e adolescentes. Tese (Doutorado em Educação) - USP, São Paulo, 2007. HIGUCHI, Kazuco Kojima. RPG: o resgate da história e do narrador. In: Outras linguagens na escola. São Paulo: Cortez, 2001. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001. 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