Reciclando ideias - INPE

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[Folha de São Paulo, 24 de Maio de 2009, Caderno MAIS]
Reciclando ideias
Imagem da inovação como repentina e individual contrasta com a
evolução dos saberes, que é gradual e coletiva
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Muitas pessoas no mundo hoje, especialmente nos domínios dos negócios e da
ciência, se dedicam à inovação. Pensam, lecionam e escrevem sobre as maneiras
pelas quais se pode estimular, medir e gerir a inovação. Como e por que a
inovação acontece, perguntam. Por que existem lugares e momentos históricos
que parecem mais favoráveis do que outros à inovação?
Florença durante o Renascimento serve como exemplo ou a Inglaterra nos
estágios iniciais da Revolução Industrial -quando as máquinas têxteis e
locomotivas a vapor e tantas outras máquinas foram inventadas- ou o Vale do
Silício [EUA] na década de 1970.
Algumas pessoas acreditam que a inovação possa ser encorajada por meio da
criação de centros de pesquisa, outras preferem meditação, sessões de discussão
ou até mesmo softwares que facilitam a geração de ideias. Mas o que exatamente
é inovação? Suspeito que a visão da era do romantismo sobre a inovação
continue a prevalecer ainda hoje.
De acordo com ela, a inovação é trabalho de um gênio solitário, muitas vezes um
professor distraído que carrega uma ideia brilhante na cabeça -aquilo que meu tio,
um físico que trabalhava no setor industrial, costumava chamar de "onda
cerebral".
Einstein, por exemplo, ou Isaac Newton, que supostamente descobriu a
gravidade quando uma maçã caiu em sua cabeça, ou, no mais famoso dos
exemplos, Arquimedes, que saiu correndo nu pelas ruas de Atenas gritando
"eureca!".
No entanto existe uma visão alternativa sobre a inovação, da qual eu por acaso
compartilho.
De acordo com essa segunda visão, a inovação é gradual em lugar de súbita e
coletiva em vez de individual.
Não existe uma oposição acentuada entre tradição e inovação. É possível até
mesmo identificar tradições de inovação, sustentadas ao longo de décadas, como
no caso do Vale do Silício, ou de séculos, como nos campos da pintura e da
escultura durante a Renascença florentina.
Novos usos
Por isso, em lugar da metáfora da "onda cerebral", talvez fosse mais esclarecedor
usar como metáfora a reciclagem, o reaproveitamento ou o uso improvisado de
materiais.
O caso da tecnologia serve como exemplo.
Na metade do século 15, Johannes Gutenberg inventou as máquinas de
impressão. No entanto, prensas estavam em uso na produção de vinho havia
muito tempo na Renânia natal de Gutenberg e em muitos outros lugares. Sua
brilhante ideia não surgiu do nada; na verdade, representou uma adaptação da
prensa de vinho a uma nova função.
A invenção do telescópio por Galileu [1564-1642], da mesma forma, pode ser
mais precisamente definida como reinvenção. Ele havia ouvido falar de que
alguém na Holanda teria inventado um instrumento para fazer com que as
estrelas parecessem maiores. E, assim que obteve essa informação,
imediatamente descobriu uma maneira de produzir instrumento semelhante para
seu uso.
A inovação nas ideias, por exemplo em disciplinas acadêmicas, parece acontecer
de maneira semelhante, pela proposição de analogias e adaptação daquilo que já
existe a novos propósitos. Alguns historiadores falam em "deslocamento de
conceitos" de um campo intelectual a outro.
Por exemplo, a arqueologia se tornou disciplina científica no começo do século
19, quando as pessoas compreenderam que os objetos encontrados em
escavações podiam ser datados de acordo com sua profundidade na terra com os
"estratos" em que foram encontrados. A linguística, outra nova disciplina que
estava em desenvolvimento no começo do século 19, também precisou de
adaptação criativa.
Quando classificavam idiomas, alguns linguistas se deixaram inspirar pela
metodologia que Carl Linnaeus desenvolveu para classificar plantas, enquanto
outros seguiram o modelo de "anatomia comparativa" proposto pelo zoólogo
Georges Cuvier.
Uma vez mais, na metade do século 19, Charles Darwin desenvolveu sua ideia de
uma luta pela existência entre as coisas vivas e da sobrevivência dos mais aptos
depois de ler o trabalho de Thomas Malthus sobre população. Ele adaptou o que
Malthus tinha a dizer sobre os seres humanos ao mundo dos animais e das
plantas.
No começo do século 20, quando a antropologia se tornou uma disciplina
científica, ela era definida pelo método de "trabalho de campo" no seio de povos
"primitivos". Mas a ideia de trabalho de campo foi inspirada pela história natural,
já que os naturalistas se orgulhavam de observar diretamente os animais e plantas
em seus habitats naturais.
Tradução
Em todos esses casos, seria possível utilizar a expressão "tomado de
empréstimo", mas metáfora melhor seria "tradução", que enfatiza o trabalho que
é preciso realizar quando ideias se movimentam de um lugar ou domínio a outro.
As novas disciplinas oferecem oportunidades especiais para observação ou
inovação, já que os fundadores dessas disciplinas foram treinados em outros
campos. Por exemplo, os primeiros professores de línguas e literaturas vernáculas
foram treinados como estudiosos do grego e do latim clássicos.
Um dos fundadores da sociologia, Émile Durkheim, estudou filosofia, e outro,
Max Weber, era historiador. Os primeiros antropólogos foram recrutados de uma
variedade de disciplinas, entre as quais os estudos clássicos (James Frazer),
geografia (Franz Boas), medicina (W.H. Rivers), biologia, psicologia e até mesmo
geologia. Alguns dos primeiros estudiosos do campo hoje conhecido como
biologia molecular haviam estudado física, como Francis Crick, ou química,
como Max Perutz.
A inovação nas disciplinas mais estabelecidas muitas vezes segue o mesmo
caminho. Um antigo colega meu, o biólogo John Maynard Smith [1920-2004],
estudou engenharia. Quando mudou de ramo, passou a observar o corpo
humano do ponto de vista de um engenheiro, e isso permitia que visse coisas que
haviam escapado à atenção de biólogos anteriores.
Analogias e metáforas parecem desempenhar papel essencial no pensamento, da
física (vide a ideia de "ondas", por exemplo) à antropologia, na qual culturas
estrangeiras são muitas vezes comparadas a livros que precisam ser lidos.
Essas analogias são fundamentais na construção daquilo que o filósofo da ciência
Thomas Kuhn [1922-96] costumava designar como "paradigmas" intelectuais. Eu
duvido um pouco que seja possível fazer uma lista de regras para a inovação,
porque os inovadores muitas vezes quebram as regras em lugar de segui-las.
Tampouco estou certo de que seja possível desenvolver uma teoria da inovação.
Mas seria seguro afirmar que analogias e adaptações têm posição central no
processo de inovação.
A reciclagem intelectual é tão importante para a inovação quanto a reciclagem de
objetos materiais o é para nossa sobrevivência no planeta.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar).
Tradução de Paulo Migliacci.
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