Absorção da glicose, glicólise e desidrogénase do piruvato

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Absorção da glicose, glicólise e desidrogénase do piruvato; Rui Fontes
Absorção da glicose, glicólise e desidrogénase do piruvato
1-
O amido é, habitualmente, o mais abundante componente glicídico da dieta. É um polímero
formado exclusivamente por resíduos de D-glicose ligados entre si por ligações glicosídicas
de tipo α. O amido natural é formado por dois tipos de estruturas distintas: a amilose e a
amilopectina. Na amilose as ligações são exclusivamente de tipo α-1,4 enquanto na
amilopectina também existem ligações do tipo α-1,6.
2-
Na hidrólise do amido participam duas isoenzimas (amílases salivar e pancreática) que
catalisam a rotura de ligações glicosídicas α-1,4 mas poupam as ligações α-1,6 assim como as
α-1,4 das extremidades das cadeias ou as que se situam na vizinhança das ligações α-1,6.
Assim, da acção das amílases digestivas sobre o amido, resulta a formação de maltose (α-Dglicopiranosil-(1→4)- D-glicose), maltotriose (trímero com 3 resíduos glicose) e dextrinas
limite (oligossacarídeo formado por vários resíduos glicose sendo que dois deles estão ligados
por uma ligação α-1,6).
3-
A hidrólise da maltose, maltotriose e dextrinas limite resulta na formação de glicose e é
catalisada por duas dissacarídases que estão ancoradas no pólo apical da membrana celular
dos enterócitos: a maltase (α-1,4 glicosídase) e a isomaltase (α-1,6 glicosídase).
4-
A absorção da glicose e outros monossacarídeos ocorre no duodeno e jejuno. No processo de
transporte transmembranar intervêm moléculas proteicas da membrana dos enterócitos (que se
designam como transportadores) e por isso o transporte diz-se mediado. O transporte pode
ocorrer a favor do gradiente (transporte passivo) mas nos casos da glicose e da galactose
existem mecanismos de transporte contra gradiente (transporte activo).
5-
No pólo apical dos enterócitos a absorção da glicose e da galactose pode ocorrer contra
gradiente de concentrações e, neste caso, está indirectamente dependente da hidrólise de
ATP (ATP + H2O → ADP + Pi). (a) A bomba de sódio-potássio (ou ATPase do Na+/K+) é
um proteído da membrana citoplasmática de todas as células do organismo que, usando a
energia libertada na hidrólise do ATP, promove a entrada de iões K+ do meio extracelular
para o citosol e a saída de iões Na+ do citosol para o meio extracelular. A bomba de sódiopotássio é uma máquina biológica que faz a acoplagem de um processo exergónico (a
hidrólise do ATP) com processos endergónicos (o transporte de iões Na+ e K+ contra
gradiente). Porque a energia usada no processo de transporte destes iões provém directamente
da hidrólise do ATP diz-se que este transporte activo é de tipo primário. (b) A acção da
bomba de sódio-potássio cria gradientes de concentração que explicam uma tendência para a
saída do K+ das células e a entrada do Na+ para dentro das células. No caso concreto do pólo
apical dos enterócitos do jejuno existe uma proteína que é capaz de transportar
conjuntamente Na+ e glicose na mesma direcção; por este motivo se designa um
“simporter”. O transportador de glicose (e galactose) existente no pólo apical dos enterócitos
faz a acoplagem entre um processo exergónico (o transporte de Na+ a favor do gradiente) e
outro endergónico (o transporte de glicose contra gradiente). A existência do gradiente de
Na+ que tende a mover este ião para dentro da célula fornece a energia que permite o
transporte de glicose contra gradiente. Este tipo de transporte activo diz-se secundário.
6-
No pólo basal dos enterócitos o transportador da glicose é um “uniporter” (designado de
GLUT2) e a energia envolvida no transporte da glicose é a corresponde ao seu gradiente de
concentrações. O transporte dá-se sempre a favor do gradiente: dos enterócitos para o sangue
durante o período absortivo e em sentido inverso quando a glicose escasseia nos enterócitos.
7-
O metabolismo energético dos seres vivos pode ser interpretado como um processo no qual os
nutrientes são oxidados pelo O2 (catabolismo) gerando a energia necessária para a síntese de
ATP (a partir de ADP + Pi) ao mesmo tempo que o ATP formado é hidrolisado (a ADP +
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Pi) fornecendo a energia utilizada na síntese de múltiplas substâncias (anabolismo), na
actividade muscular e na manutenção dos gradientes iónicos. Juntamente com outros
mecanismos, a fome é um importante mecanismo homeostático: a ingestão de alimentos
fornece ao organismo substâncias cuja oxidação permite manter a concentração de ATP
praticamente constante (“estacionária”). Numa determinada célula do organismo a
concentração de ATP praticamente não varia mesmo quando a sua velocidade de hidrólise
aumenta porque, quando isto acontece (por exemplo, nas fibras musculares, durante o esforço
físico), aumenta de forma igual a sua velocidade de síntese (formação de ATP a partir de ADP
e Pi). Este aumento da velocidade de síntese de ATP implica um aumento da velocidade do
catabolismo: um aumento na velocidade de oxidação dos nutrientes.
8-
A glicólise é uma via metabólica do citosol das células (de todas as células) em que a glicose
é, num processo exergónico, convertida em piruvato (ou lactato) e se forma,
concomitantemente e num processo endergónico, ATP a partir de ADP + Pi. As enzimas da
glicólise são, no seu conjunto, “a máquina” que permite a acoplagem dos dois processos.
9-
Na maioria das células do organismo a entrada da glicose do sangue para o citoplasma dá-se a
favor do gradiente e o transporte é catalisado por proteínas da membrana que são uniporters.
Estes uniporters designam-se por GLUTs e podem ser produtos de genes distintos em órgãos
distintos. Nos casos do pólo basal dos enterócitos e nos hepatócitos a concentração de glicose
pode, em certas condições, ser mais alta no citoplasma que no sangue: nestas condições o
GLUT (nestes casos, GLUT2) catalisa a saída de glicose da célula. Noutras condições ocorre
o inverso e a glicose entra para estas células. No caso dos músculos porque toda a glicose que
entra é imediatamente fosforilada a glicose-6-P (catálise pela cínase das hexoses; ATP +
glicose → ADP + glicose-6-P) e não existem, aqui, enzimas capazes de converter a glicose-6P em glicose, o gradiente de concentrações favorece sempre a entrada de glicose. Nos
músculos o transporte de glicose é catalisado pelo GLUT4 mas o número de transportadores
nas membranas de uma fibra muscular varia consoante o estado hormonal e a actividade
contráctil da fibra muscular. O número de GLUT4 e, consequentemente, a velocidade com
que uma fibra muscular capta a glicose do sangue aumenta quando aumenta a concentração
de insulina no sangue ou quando aumenta a actividade contrátil da fibra muscular em
questão [1].
10-
As enzimas da glicólise são: (1) a cínase da glicose ou das hexoses1 (glicose + ATP →
glicose 6-P + ADP), (2) a isomérase das fosfohexoses (glicose-6-P ↔ frutose-6-P), (3) a
cínase-1 da frutose 6-P (frutose-6-P + ATP → frutose-1,6-bisfosfato + ADP), (4) a aldólase
(frutose-1,6-bisfosfato → gliceraldeído-3-P + dihidroxiacetona-P), (5) a isomérase das
trioses-P (dihidroxiacetona-P ↔ gliceraldeído-3-P), (6) a desidrogénase do gliceraldeído 3P (gliceraldeído-3-P + Pi + NAD+ ↔ 1,3-bisfosfoglicerato + NADH), (7) a cínase do 3fosfoglicerato (1,3-bisfosfoglicerato + ADP ↔ 3-fosfoglicerato + ATP), (8) a mútase do
fosfoglicerato (3-fosfoglicerato ↔ 2-fosfoglicerato), (9) a enólase (2-fosfoglicerato ↔
fosfoenolpiruvato + H2O) e (10) a cínase do piruvato (fosfoenolpiruvato + ADP → piruvato
+ ATP). Tal como em todas as vias metabólicas um dos produtos formados pela acção
catalítica de uma enzima é substrato de uma outra enzima permitindo compreender que se
possa desenhar uma cadeia sequenciada de reacções e que, no seu conjunto, as enzimas da
glicólise convertam glicose em piruvato.
11-
A aldólase é a enzima da glicólise que catalisa a cisão (lise) da molécula de frutose-1,6bisfosfato (6C) em gliceraldeído-3-P (3C) e dihidroxiacetona-P (3C). A transformação da
dihidroxiacetona-P em gliceraldeído 3-P e a posterior transformação deste composto em
1
A cínase da glicose (também chamada hexocínase IV) é uma enzima mais específica para a glicose e existe no fígado,
rim e células β dos ilhéus pancreáticos; a cínase das hexoses existe noutras células e é uma isoenzima menos específica
funcionando também outras hexoses como substratos aceitadores de fosfato.
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piruvato (3C) permite compreender que uma molécula de glicose (6C) dê origem a duas de
piruvato (2 * 3C). Antes da lise da frutose-1,6-bisfosfato duas moléculas de ATP servem
como substratos dadores de fosfato em reacções de fosfotransferência catalisadas pelas
cínases da glicose e da frutose-6-P. Depois da lise da frutose-1,6-bisfosfato ocorre a formação
de ATP em duas reacções de fosfotransferência em que o substrato aceitador é o ADP e os
substratos dadores são o 1,3-bisfosfoglicerato (cínase do 3-fosfoglicerato) e o
fosfoenolpiruvato (cínase do piruvato). A este tipo de reacções de formação de ATP a partir
de ADP através de reacções de fosfotransferência é comum denominarem-se de
“fosforilações ao nível do substrato” (por contraponto com a “fosforilação oxidativa”
mitocondrial). Também já depois da lise da frutose 1,6-bisfosfato ocorre a redução do NAD+
(e consequente formação do NADH) numa reacção em que, concomitantemente, com a
reacção de oxiredução ocorre a adição de fosfato inorgânico (Pi): esta reacção é a catalisada
pela desidrogénase do gliceraldeído-3-P.
12-
O somatório das reacções envolvidas na formação do piruvato pode ser expressa pela seguinte
equação:
glicose (C6H12O6) + 2NAD+ + 2ADP + 2Pi →
2 ác. pirúvico (C3H4O3) + 2NADH + 2ATP + 2H2O
(1)
A energia libertada no processo de cisão e oxidação de um mole de glicose pelo NAD+
permite a formação de 2 moles de ATP (a partir de ADP e Pi). O processo oxidativo envolve
um par de electrões que são cedidos pela glicose (que se oxida a piruvato) e aceites pelo
NAD+ (que se reduz a NADH).
13-
Os eritrócitos são as células mais simples do organismo. Porque não têm mitocôndrias toda o
ATP que hidrolisam (por exemplo, por acção da ATPase do Na+/K+) formando ADP e Pi é
reposto na reacção expressa pela equação (1): a glicólise. Existe assim, tal como em todas as
células do organismo, um ciclo de formação e hidrólise de ATP que mantém as concentrações
de ATP, ADP e Pi estacionárias. A concentração de NAD+ (e NADH) dentro dos eritrócitos é
(como em todas as células) muito baixa (78 µM; [2]) e, na ausência de um mecanismo que
permitisse reoxidar o NADH a NAD+, todo o NAD+ do eritrócito se esgotaria em cerca de 1
minuto2. De facto a concentração de NAD+ (e NADH) é estacionária porque cada molécula de
NADH que se forma na glicólise é imediatamente oxidada a NAD+ por acção catalítica da
desidrogénase do lactato:
2 NADH + 2 ác. pirúvico ↔ 2 NAD+ + 2 ác. láctico
(2)
A somatório das equações (1), (2) e uma outra (equação 3) que representa todos os processos
que no eritrócito hidrolisam ATP à mesma velocidade com que se forma permite escrever a
equação (4).
2 ATP + 2 H2O → 2 ADP + 2 Pi
(3)
glicose (C6H12O6) → 2 ác. láctico (C3H6O3)
(4)
Assim os eritrócitos consomem glicose e libertam continuamente ácido láctico que vai ser
metabolizado por outras células do organismo. À glicólise que tem como produto o ácido
láctico (= lactato + protão) chama-se glicólise anaeróbia porque não consome oxigénio. A
equação (4) mostra que o processo não é globalmente oxidativo: o número de oxidação dos
carbonos da glicose e do ácido láctico são iguais (em ambos os casos, 0). Nos mamíferos, a
única reacção em que o ácido láctico é substrato é a que é catalisada pela desidrogénase do
lactato (equação 2), uma enzima que catalisa uma reacção fisiologicamente reversível. Nos
Temos 2 L de eritrócitos que oxidam 70 µmol de glicose por minuto (e reduzem 140 µmol de NAD+ no mesmo
tempo).
2
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órgãos para onde é exportada (fígado e coração, por exemplo) a única reacção em o ácido
láctico intervém é a que é expressa pela equação 2 mas, agora, desenvolve-se no sentido de
formar ácido pirúvico que será depois oxidado nas mitocôndrias desses órgãos ou,
eventualmente, sofrer outras transformações.
14-
Ao contrário dos eritrócitos todas as células têm mitocôndrias e em condições “normais” não
exportam ácido láctico. Nestas células, cada molécula de NADH que se forma durante a
glicólise é imediatamente oxidada, não por acção da desidrogénase do lactato, mas sim pelo
O2 na cadeia respiratória das mitocôndrias:
2 NADH + O2 → 2 NAD+ + 2 H2O
(5)
Desta forma as concentrações de NADH são mantidas baixas na célula ao mesmo tempo que
o NAD+ é regenerado. O somatório das equações (1) e (5) expressa a acção conjugada das
enzimas da glicólise e da cadeia respiratória oxidando o NADH formado durante a oxidação
citoplasmática da glicose: a glicólise aeróbia (equação 6).
glicose (C6H12O6) + O2 + 2ADP + 2Pi → 2 ác. pirúvico (C3H4O3) + 2ATP + 2H2O
15-
(6)
Em condições de aerobiose, o ácido pirúvico entra para a mitocôndria onde, por acção
catalítica da desidrogénase do piruvato se converte em acetil-CoA. A reacção catalisada
pela desidrogénase do piruvato é fisiologicamente irreversível e é descrita pela equação (7):
piruvato + CoA + NAD+ → acetil-CoA + CO2 + NADH
(7)
O processo catalítico é frequentemente descrito como uma “oxidação descarboxilativa”
porque a par de uma reacção de oxi-redução ocorre uma descarboxilação (saída de CO2) de tal
forma que o número de carbonos do resíduo acetilo da acetil-CoA (dois) é menor que o do
piruvato (três). Permitindo a oxidação das novas moléculas de ácido pirúvico formadas
durante a oxidação da glicose, cada molécula de NADH formada é imediatamente oxidada a
NAD+, na esmagadora maioria dos casos pelo O2 na cadeia respiratória (ver equação 5). O
resíduo acetilo do acetil-CoA é oxidado a CO2 no ciclo de Krebs e neste processo também se
formam ATPs.
16-
A desidrogénase do piruvato (ver equação 7) é de facto um complexo multienzímico
composto por 5 tipos diferentes de proteínas que se designam por (1) desidrogénase do
piruvato, (2) transacetílase do dihidrolipoato, (3) desidrogénase do dihidrolipoato, (4) cínase
da desidrogénase do piruvato e (5) fosfátase da desidrogénase do piruvato. Estas proteínas
estão organizadas em agregados dentro da mitocôndria, sendo que as proteínas (1), (2) e (3)
são colectivamente responsáveis pela catálise expressa pela equação (7) e contêm, como
grupos prostéticos tiamina-pirofofato, ácido lipoico e FAD. A cínase da desidrogénase do
piruvato promove a fosforilação (e consequente inactivação) do complexo catalisando a
transferência do fosfato γ do ATP para o complexo (ATP + desidrogénase do piruvato →
ADP + desidrogénase do piruvato-P). A fosfátase da desidrogénase do piruvato catalisa a
hidrólise da desidrogénase do fosfato fosforilada (desidrogénase do piruvato-P + H2O →
desidrogénase do piruvato + Pi) e, consequentemente, a sua activação.
17-
Num coração normal cada molécula de ácido pirúvico formado durante a oxidação da glicose
é imediatamente oxidada formando-se CO2: a glicólise do miocárdio normal é aeróbia.
Contudo, em situações em que o fluxo sanguíneo está perturbado (situações de isquemia
como o infarto ou angina de peito) o fornecimento de O2 não é suficiente para oxidar todas as
moléculas de NADH formadas. Assim, ocorre aumento da concentração intracelular de
NADH (e diminuição na de NAD+) que faz com que a reacção catalisada pela desidrogénase
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do lactato (equação 2) passe a evoluir no sentido da formação de lactato. Ao contrário do que
acontece no coração saudável, o coração isquémico produz ácido láctico: parte da glicólise
do coração isquémico é anaeróbia [3]. Uma situação semelhante acontece em tumores
sólidos mal irrigados.
18-
Apesar do seu baixo rendimento “energético” (apenas 2 moles de ATP formadas por mole de
glicose cindida), a glicólise anaeróbia tem um papel essencial na sobrevivência dos
indivíduos e, em última análise, na sobrevivência das espécies. Nas fibras musculares
esqueléticas a glicólise pode aumentar explosivamente de velocidade em situações em que a
velocidade de hidrólise do ATP aumenta de forma dramática (subir a uma árvore, por
exemplo). Numa situação deste tipo embora a velocidade de oxidação do piruvato pela cadeia
respiratória aumente, este aumento de velocidade não é suficiente para acompanhar o aumento
explosivo da velocidade da glicólise. A actividade da desidrogénase do lactato das fibras
musculares permite este aumento explosivo da velocidade da glicólise porque converte o
NADH e o ácido pirúvico em NAD+ e ácido láctico (equação 2): em situações deste tipo uma
parte substancial do ATP formado na fibra muscular (essencial para manter a sua síntese à
mesma velocidade com que se hidrolisa) resulta da glicólise anaeróbia [4].
19-
Durante o trabalho anaeróbio a concentração de lactato nas fibras musculares pode aumentar
cerca de 30 vezes e é comum afirmar-se que é esta acumulação do ião lactato que provoca a
fadiga. Contudo as evidências experimentais demonstram que embora a concentração de
lactato esteja directamente relacionada com o grau de fadiga o ião lactato não interfere na
actividade contráctil. Como mostra a equação 4, na glicólise anaeróbia uma substância
aprótica (a glicose) transforma-se numa outra que emite protões (ác. láctico). O pKa do
ácido láctico (≈4) é mais baixo que o pH do citoplasma das fibras musculares (≈7) e, por isso,
a esmagadora maioria das moléculas de ácido láctico dissocia-se formando o ião lactato e
provocando uma descida do pH (de cerca 7 para valores tão baixos como 6,5). No esforço
muscular contráctil em regime anaeróbio a descida do pH inibe a actividade muscular
contráctil e é um dos factores envolvidos no processo de fadiga que impede um sprinter de
continuar a correr depois de terminar a sua prova. Durante os processos isquémicos esta
descida do pH também contribui para a diminuição da capacidade contráctil e este efeito tem
uma enorme importância clínica: no coração isquémico a capacidade de bombeamento está
diminuída.
20-
Pelo menos nos órgãos ditos “excitáveis” (como, por exemplo o músculo esquelético) a
velocidade de hidrólise do ATP pode sofrer variações muito marcadas (no estado de esforço
pode ser mais de 100 vezes superior à do estado de repouso) mas, em condições fisiológicas, a
velocidade de síntese sobe de forma paralela. Isto só é possível porque a velocidade de
consumo de nutrientes, incluindo o de glicose na glicólise (e subsequente oxidação do
piruvato) também aumenta marcadamente em situações de esforço. Os mecanismos
moleculares que, nos mamíferos, permitem explicar estas subidas de velocidade da glicólise
são ainda mal compreendidos e, por isso, são actualmente objecto de intensa investigação e
especulação [4]. (a) Um dos mecanismos que se crê terem importância nesta adaptação do
consumo de glicose às necessidades de ATP já foi referido acima: o esforço muscular
contráctil induz o aumento do número de moléculas de GLUT 4 na membrana das fibras
musculares e o consequente aumento na velocidade da entrada de glicose para a célula. Esse
aumento dá-se de forma muito rápida porque não implica a síntese de novas moléculas de
transportador nos ribossomas mas sim a fusão de vesículas intracelulares que já contêm
GLUT4 com a membrana celular. (b) Um outro mecanismo que poderá ser importante na
adaptação do consumo de glicose às situações de esforço é o ião Ca2+. Quando uma fibra
muscular é excitada pelo seu nervo motor aumenta a concentração citoplasmática e
mitocondrial de Ca2+: no caso do citoplasma este aumento pode ser de 100 vezes (de 0,1 µM
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para 10 µM) [5]. A fosfátase da desidrogénase do piruvato é o componente do complexo
desidrogénase do piruvato que catalisa a sua desfosforilação e consequente activação do
processo de conversão do piruvato em acetil-CoA (ver equação 7). A fosfátase da
desidrogénase do piruvato é activada pelo Ca2+ e, consequentemente, quando a concentração
de Ca2+ aumenta em resposta ao estímulo nervoso aumenta também a velocidade de oxidação
do piruvato a acetil-CoA.
21-
É comum escrever-se que nas situações fisiológicas em há aumento do consumo de ATP nas
células a sua concentração estacionária desce. De facto é possível observar descida da
concentração de ATP em condições experimentais que não parecem reflectir situações
fisiológicas [3, 6, 7]. Actualmente, crê-se que essas descidas são artefactos experimentais ou
reflectem condições extremas dificilmente observáveis num ser vivo saudável; no actual
estádio do conhecimento pensa-se que, em condições fisiológicas, a concentração de ATP não
sofre qualquer variação apreciável dentro das células [6, 8-11]. No caso do músculo
esquelético, parece poder ocorrer em situações de esforço, aumentos na concentração de ADP
e AMP [4, 9, 10]. Pode parecer estranho que, resultando o ADP da hidrólise do ATP (ATP +
H2O → ADP + Pi) e que o AMP da conversão do ADP (2 ADP ↔ AMP + ATP; catálise pela
cínase do adenilato) possam ocorrer aumentos de concentração do ADP e AMP sem que,
praticamente, ocorram variações na concentração de ATP. Em repouso a concentração de
ATP pode ser cerca de 100 vezes superior à de ADP e cerca de 10000 vezes superior à de
AMP [9]. Assim, tendo em conta a reacção de hidrólise do ATP, à descida de 1% na
concentração de ATP corresponde a subida para o dobro na concentração de ADP. Por sua
vez, tendo em conta o equilíbrio químico da reacção catalisada pela cínase de adenilato, a uma
subida percentual modesta no ADP corresponde uma variação percentual mais marcada no
AMP [12]. Quer o AMP quer o ADP são potentes activadores alostéricos de uma das enzimas
da glicólise que se pensa ter maior importância na regulação da velocidade da glicólise: a
cínase-1 da frutose 6-P. Curiosamente, esta enzima tem como substrato o ATP (frutose-6-P
+ ATP → frutose-1,6-bisfosfato + ADP) mas, em concentrações fisiológicas, o ATP pode
ligar-se ao centro alostérico inibindo a actividade da enzima. A acção activadora do ADP e do
AMP resulta da sua capacidade para competir com o ATP pelo centro alostérico da enzima;
quando as concentrações de AMP e/ou ADP aumentam substituem o ATP no centro
alostérico e impedem a sua acção inibidora.
22-
No que se refere à regulação da glicólise no fígado destacaríamos o papel da glicemia
(concentração de glicose no sangue) e das hormonas pancreáticas insulina e glicagina.
Quando se ingere uma refeição rica em glicídeos a concentração de glicose aumenta no
sangue e de forma muito marcada na veia porta; nesta veia, que irriga o fígado e o pâncreas, a
concentração de glicose pode subir de 4 mM para 14 mM. Este aumento na glicemia provoca
aumento da síntese e secreção de insulina e efeitos inversos no caso da glicagina. Quer
directamente, quer através das acções destas hormonas (a insulina é activadora da glicólise e
glicagina é inibidora) o aumento da glicemia vai estimular a velocidade de oxidação de
glicose no fígado. Quando, pelo contrário, a glicemia baixa o fígado deixa de oxidar glicose (e
passa a oxidar ácidos gordos).
23-
Ao contrário do que acontece nos músculos, a concentração de glicose dentro dos hepatócitos
é semelhante à do sangue: o transportador GLUT2 tem grande actividade e permite manter
uma situação de “quase equilíbrio” entre as duas faces da membrana. Assim quando aumenta
a concentração de glicose no sangue também aumenta de forma paralela a concentração de
glicose dentro do hepatócito. Quando a glicemia é baixa grande parte da glicocínase (glicose
+ ATP → glicose 6-P + ADP) está sequestrada dentro do núcleo ligada a uma outra proteína
que a inibe. A ligação da glicose ao complexo induz a dissociação da glicocínase da
proteína inibidora e a sua deslocação para o citoplasma onde inicia a glicólise [13]. O
aumento da concentração plasmática da insulina (que acompanha a da glicose) também
estimula a glicólise: no fígado, os efeitos activadores da insulina na velocidade da glicólise
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resultam, pelo menos em parte, da indução da síntese de enzimas chave da glicólise, como a
cínase da frutose-6-P e a cínase do piruvato.
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A glicagina é uma hormona que é produzida no pâncreas em situações de jejum e que exerce
os seus efeitos no fígado, o órgão que contém, na face externa da membrana celular dos
hepatócitos, os seus receptores. A subida da glicagina durante o jejum faz parte dum
mecanismo homeostático que permite poupar glicose no fígado neste estado nutricional; em
jejum a glicagina vai diminuir a concentração de uma substância (frutose-2,6-bisfosfato) que é
um potente activador alostérico de uma enzima da glicólise: a cínase-1 da frutose 6-P. Desta
forma, a glicagina, diminuindo a actividade desta enzima da glicólise vai diminuir a
velocidade de consumo de glicose. Por um mecanismo diferente a glicagina também induz a
inibição da cínase do piruvato, outra enzima da glicólise.
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