1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ - PUCPR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM BIOÉTICA ESCOLA DE CIÊNCIAS DA VIDA MARIEL MANNES VULNERABILIDADE MORAL: UMA PROPOSTA DE FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA EM BIOÉTICA NA PERSPECTIVA LATINO AMERICANA CURITIBA 2016 2 MARIEL MANNES VULNERABILIDADE MORAL: UMA PROPOSTA DE FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA EM BIOÉTICA NA PERSPECTIVA LATINO AMERICANA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Bioética da Escola de Ciências da Vida, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Bioética. Orientador: Prof. Dr. Thiago Rocha da Cunha CURITIBA 2016 Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central M282v 2016 Mannes, Mariel Vulnerabilidade moral: uma proposta de fundamentação teórica em bioética na perspectiva latino americana / Mariel Mannes; orientador, Thiago Rocha da Cunha. -- 2016 90 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2016. Inclui bibliografias 1. Bioética. 2. Pluralismo. 3. Conduta. 4. Igualdade. 5. Direitos humanos. 6. Direitos sociais. 7. Estigmatização. I. Cunha, Thiago Rocha da. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Bioética. III. Título CDD 20. ed. – 174.9574 4 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a todos aqueles que contribuíram e fizeram com que o mesmo fosse revestido de sentido e significado. Em especial, dedico a todos os autores, pesquisadores e intelectuais, que direta ou indiretamente neste trabalho foram referência. O acesso ao conhecimento e produção destes que colocam o bem comum e a justiça social como prioridade em suas investigações, provocaram-me a avançar e ajudaram-me a dar o direcionamento desta investigação. Almejo que esta não seja uma produção independente, isolada e solitária, mas que seja uma parte que instigue e provoque ainda mais pesquisadores a incluírem como opção fundamental em suas produções aqueles indivíduos e grupos que são vulnerabilizados, estigmatizados e discriminados negativamente. Se os contextos oprimem e excluem a estes, que nas investigações sejam os privilegiados, e que provoquem o poder público, as instituições e as pessoas de boa vontade a promoverem a dignidade e inclusão social. 5 AGRADECIMENTO Meu agradecimento é direcionado a Deus, pelo dom da vida, do entendimento e do discernimento. Ao Instituto Marista, que ao longo destes anos oportunizou-me um crescimento profissional e intelectual. Ao Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR e a todos os professores que de forma fraterna privilegiaram-me com o conhecimento e experiência. Ao coordenador do Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR, Prof. Dr. Mário Antônio Sanches, que ajudou-me com suas provocações, a ir fazendo as opções fundamentais neste trabalho. Ao Prof. Dr. Thiago Rocha da Cunha orientador deste trabalho, expresso minha gratidão e admiração pela forma atenta e motivadora com que conduziu a orientação e pela sensibilidade em desafiar-me a avançar cada vez mais nas reflexões. Em especial à minha esposa Adriana e ao meu filho Murilo: “Agora iremos passear!” Hoje entendo de onde vens a compreensão, o entendimento e o encorajamento que sempre me transmitem. 6 RESUMO Introdução: Esta dissertação discute a problemática da vulnerabilidade moral. O tema é inserido a partir de uma análise da forma como a vulnerabilidade vem sendo considerada em bioética. Diante do tensionamento de problemas envolvidos em contextos de pluralismo moral, o tema da vulnerabilidade moral foi abordado contemplando indivíduos e grupos que são estigmatizados, discriminados negativamente e/ou não reconhecidos em sua dignidade e direitos enquanto agentes morais, sendo estes aspectos considerados geradores, mantenedores e reprodutores da vulnerabilidade moral. Objetivos: Compreender como a vulnerabilidade vem sendo abordada em bioética; inserir a discussão da vulnerabilidade moral a partir de sua relação com a vulnerabilidade social, com a estigmatização e discriminação; demonstrar a importância da dimensão moral da vulnerabilidade por meio de uma análise das insuficiências da proposta de Tristran Engelhardt para a relação entre estranhos morais. Metodologia: Trata-se de pesquisa teórica de abordagem analítica e propositiva. Conceituando a vulnerabilidade moral como uma chave de leitura, a abordagem analítica voltou-se a compreender o estado da arte da produção bioética sobre vulnerabilidade, e a abordagem propositiva voltou-se a conceituar e demonstrar a pertinência da consideração da vulnerabilidade moral no escopo teórico da disciplina. Resultados e Discussão: A vulnerabilidade moral não exclui outras formas de vulnerabilidade, porém, requer que seja investigada e conceituada contemplando a complexidade dos problemas sociais bem como o atual contexto de pluralismo moral e democracia política. Sempre que determinada moralidade coletiva submeter indivíduos e grupos a processos de estigmatização, negação da dignidade humana e discriminação negativa, a vulnerabilidade moral surgirá como decorrente destes processos. Da mesma forma, sempre que diante do contexto de pluralismo moral indivíduos e grupos forem desconhecidos enquanto agentes morais, estará caracterizada uma dimensão específica da vulnerabilidade, que é a vulnerabilidade moral. Considerações Finais: Este trabalho apresentou uma aproximação inicial ao problema da vulnerabilidade moral, demonstrando tanto sua importância e pertinência quanto a necessidade de futuros estudos teóricos e aplicados que aprofundem a compreensão de suas implicações aos dilemas e conflitos de Bioética. PALAVRAS-CHAVES: Vulnerabilidade. Vulnerabilidade moral. Pluralismo moral. Fundamentação Teórica. Bioética 7 ABSTRACT Introduction: This paper discusses the problem of moral vulnerability. The theme is inserted from an analysis on how vulnerability is being considered in bioethics, since before becoming a discipline up to its current status. Upon the tensioning of problems involved in contexts of moral pluralism, the issue of moral vulnerability was approached contemplating individuals and groups who are stigmatized, negatively discriminated and/or their dignity and rights are not recognized as moral agents, and these aspects are considered generators, maintainers and reproducers of moral vulnerability. Objectives: Understanding how vulnerability in bioethics is being approached; inserting the discussion of moral vulnerability from its relationship with social vulnerability; demonstrating the importance of the moral dimension of vulnerability through an analysis of the shortcomings of Tristan Engelhardt’s proposal for the relationship between moral strangers. Methodology: This is a theoretical research with an analytical and prescriptive approach. The analytical approach came to understand the state of art of bioethics production on vulnerability, and the prescriptive approach to conceptualize and demonstrate the relevance of considering the moral vulnerability of the bioethics scope. Results and Discussion: Moral vulnerability does not exclude other forms of vulnerability. However, it requires that it be investigated and conceptualized considering the complexity of social problems as well as the current context of moral pluralism and diversity. Whenever a determined collective morality submits individuals and groups to stigmatized processes, denial of human dignity and negative discrimination, moral vulnerability arises as a result of these processes. Similarly, whenever individuals and groups are unknown as moral agents in the context of pluralism and moral diversity, a specific dimension of vulnerability will be characterized, which is moral vulnerability. Final thoughts: This paper presented an initial approach to the moral vulnerability problem, demonstrating both its importance and relevance and the need of future theoretical and practical studies that provide a deeper understanding of their implications to the dilemmas and conflicts of Bioethics. KEY-WORDS: Vulnerability. Moral Vulnerability. Moral pluralism. Theoretical Foundation. Bioethics. 8 SIGLAS E ABREVIAÇÕES AMM - Associação Médica Mundial. CFM - Conselho Federal de Medicina. CIOMS - Conselho e Organizações Internacionais de Ciências Médicas. DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos. DUBDH - Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. OMS - Organização Mundial da Saúde. UNESCO – União das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. 9 SUMÁRIO CAPITULO 1 - INTRODUÇÃO…………………………………………………………....10 CAPÍTULO 2 - DAS DIVERSAS PERSPECTIVAS DA BIOÉTICA ÀS DIVERSAS ABORDAGENS DA VULNERABILIDADE ............................................................... 16 2.1 VULNERABILIDADE NO SURGIMENTO DA BIOÉTICA .................................... 16 2.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: CONSOLIDAÇÃO DA VULNERABILIDADE EM BIOÉTICA ..................................... 20 2.3 ENTRE O SER VULNERÁVEL E O ESTAR VULNERÁVEL: PERSPECTIVAS BIOÉTICAS SOBRE VULNERABILIDADE................................................................23 2.4 A VULNERABILIDADE SOCIAL COMO PROBLEMÁTICA CHAVE NA BIOÉTICA LATINO AMERICANA................................................................................................28 CAPÍTULO 3 - VULNERABILIDADE MORAL: ESTIGMATIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA ............... 31 3.1 CONCEITUANDO ESTIGMATIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA E A DIGNIDADE HUMANA. ............................................................................................. 34 3.2 ESTIGMATIZAÇÃO E DISCRIMINAÇÃO NEGATIVAS: IMPLICAÇÕES ÉTICAS .. ....................................................................................................................................41 3.2.1 ESTIGMA MORAL E PROBLEMAS DE SAÚDE PÚBLICA....................................................................................................................44 3.3 DA ESTIGMATIZAÇÃO E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA À VULNERABILIDADE MORAL ................................................................................... 46 3.4 TENSÕES ENTRE MONISMO E PLURALISMO MORAL: IMPLICAÇÕES À VULNERABILIDADE MORAL ................................................................................... 49 CAPÍTULO 4 - ARTIGO 1 VULNERABILIDADE MORAL ENTRE ESTRANHOS MORAIS: DO CONSENTIMENTO À PRIVAÇÃO DE DIREITOS E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA..............................................................................................54 CAPÍTULO 5 - ARTIGO 2 FRONTEIRAS ENTRE VULNERABILIDADE SOCIAL E VULNERABILIDADE MORAL: IMPLICAÇÕES BIOÉTICAS...................................68 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................82 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 87 10 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO Esta investigação tem por objetivo apresentar a relevância em se tratar nas discussões bioéticas a problemática da vulnerabilidade moral enquanto um fenômeno com especificidades teóricas e práticas frente outras formas e dimensões da vulnerabilidade. Para isso, procurar-se-á: compreender a forma como a vulnerabilidade vem sendo considerada em bioética; pontuar as especificidades da vulnerabilidade moral; discutir a relação entre vulnerabilidade social e vulnerabilidade moral e demonstrar a pertinência deste conceito frente às limitações da abordagem procedimentalista da bioética, nomeadamente do princípio da permissão de Tristram Engelhardt. Esta pesquisa trata-se de uma investigação teórica de abordagem analítica e propositiva. Conceituando a vulnerabilidade moral como uma chave de leitura, a abordagem analítica voltou-se a compreender o estado da arte da produção bioética sobre vulnerabilidade, e a abordagem propositiva voltou-se a conceituar e demonstrar a pertinência da consideração da vulnerabilidade moral no escopo teórico da disciplina. A vulnerabilidade moral estará relacionada neste trabalho aos processos que tornam indivíduos e grupos mais suscetíveis ao sofrimento do que outros por condições estritamente morais, isto é, por condições em que sujeitos são excluídos, estigmatizados, explorados, subalternizados ou injustiçados por não estarem de acordo a uma determinada moralidade hegemônica e/ou por não serem reconhecidos por esta moralidade como agentes morais portadores de dignidade e direitos. Procurar-se-á compreender a forma como a vulnerabilidade vem sendo considerada em bioética; inserir a discussão acerca da vulnerabilidade moral a partir das considerações sobre vulnerabilidade social, estigmatização, discriminação negativa e outras formas de violação da dignidade humana. Para tanto, algumas questões acompanharão toda a nossa investigação, visto que não pretende ser esta uma investigação conclusiva e definitiva, mas sim, uma abordagem teórica questionadora e propositiva. Portanto: Como e quais formas de vulnerabilidade são tratadas em bioética? Qual a relação entre vulnerabilidade social e vulnerabilidade moral? Quais os dispositivos envolvidos na produção e reprodução da vulnerabilidade moral? Qual é o papel axiológico da dignidade humana na identificação de vulneráveis 11 morais? Como a estigmatização e a discriminação negativa atuam no processo de vulneração moral? No contexto de pluralismo moral e desigualdade social contemporâneo, quais implicações para a vulnerabilidade moral podem ser encontradas na proposta de Engelhardt para a relação entre estranhos morais? A partir destas questões que definem e envolvem a problemática da vulnerabilidade moral, apresentaremos no capítulo 2 uma análise das diferentes abordagens de vulnerabilidade encontradas na bioética, tendo como parâmetro a complexidade dos problemas atuais, tais como: contexto de pluralismo moral, estigmatização de indivíduos e grupos, discriminação negativa, negação da dignidade humana e privação de direitos. Compreender como na atualidade a vulnerabilidade vem sendo considerada em bioética, implica primeiramente apresentar como o termo foi entrando em pauta e se consolidando historicamente no campo. A esse respeito, deve-se considerar que os problemas de vulnerabilidade precedem o surgimento formal da disciplina e que mesmo após seu surgimento e consolidação o termo foi assentando-se de modo indireto. Por exemplo, o Código de Nuremberg (1947) não faz uma referência direta à palavra vulnerabilidade, porém, o documento foi produzido justamente em decorrência do julgamento dos envolvidos nos abusos praticados com os prisioneiros dos campos de concentração nazista, ou seja, com um dos grupos mais vulnerabilizados na história recente. Mesmo no surgimento da palavra “Bioética” em 1970, Van Potter não tratou de forma explícita a vulnerabilidade, ainda sua abordagem dos problemas que afetam a sobrevivência da civilização humana possibilitado compreender de modo mais profundo a vulnerabilidade da vida nas esferas individuais, coletivas e planetária. Ao seguir a análise histórica do conceito de vulnerabilidade no campo da bioética, o trabalho terminou por adotar como marco normativo e referencial a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005)1, visto a opção que o documento assume pelas questões que envolvem a vulnerabilidade nos diferentes campos sanitários, biotecnológicos e ambientais. Tal como pontuado por Garrafa e Godói, este documento apresenta tanto uma importância histórica quanto éticopolítica, pois, por meio da Declaração “[...] a agenda bioética ampliou-se significativamente, para além da dimensão meramente biotecnocientífica à qual 1 UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de BioéticadaUniversidadedeBrasília/SBB.2005.Disponívelemttp://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/d eclaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf. Acesso 03 jun. 2015. 12 estava restrita. Percebe a partir daí, que os debates morais e o campo social passaram a incorporar as discussões em torno da bioética”2. Na DUBDH se consolida em definitivo as temáticas da cotidianidade das pessoas, povos e nações, tais como a exclusão social, a vulnerabilidade, a guerra, a paz, o racismo, a saúde pública, entre outros. Estes problemas estão diretamente relacionados aos diferentes contextos de vulnerabilidade, especialmente na dimensão social. Deste modo, considerando os diversos contextos da vulnerabilidade social, como: desigualdade social, violência, desemprego, pobreza, e outras situações que tornam-se desfavoráveis ao desenvolvimento do indivíduo, o capítulo 2 amplia o olhar e a reflexão acerca da vulnerabilidade moral, incluindo uma consideração acerca das interccionalidades de vulnerabilidades de que podem atingir determinados indivíduos e grupos. Por outro lado, essa mesma reflexão leva a considerar que embora a vulnerabilidade moral esteja potencialmente presente em situações de vulnerabilidade social, isto não é uma condição sine qua non para sua identificação: pessoas que compartilham uma mesma realidade social privilegiada em relação às condições de emprego, moradia e renda, por exemplo, podem estar vulneráveis por questões estritamente morais. Por isso, no capítulo 3 são discutidas as especificidades da vulnerabilidade moral a partir de suas relações com os contextos de estigmatização, discriminação negativa, negação de dignidade humana e privação de direitos, especialmente quando estas ocorrem na relação entre estranhos morais, tal como delineado na teoria da relação entre estranhos morais de Engelhardt. O conceito de discriminação negativa será utilizado neste capítulo a partir da concepção de Castel (2008), para o qual: “Ser discriminado negativamente significa ser associado a um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que é atribuída como um estigma. A discriminação negativa é a instrumentalização da alteridade, constituída em favor da exclusão”3. O conceito de estigmatização será abordado a partir de uma perspectiva moral, visto que mesmo que se manifeste no campo social, da saúde, da religião ou da 2 GODOI, Alcinda, GARRAGA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não estigmatização e da não discriminação. São Paulo. rev. Saúde e Sociedade. v. 23. 2014. 3 CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones? Tradução: MORAS, Francisco. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 14. 13 educação, na medida em que criam-se rótulos, negando a identidade do indivíduo ou do grupo, por meio de padrões de conduta e comportamentos pré estabelecidos, a estigmatização passa a ter uma implicância moral, e a consequência não poderá ser outra, a não ser a vulnerabilidade moral destes indivíduos e grupos. Ao tratar sobre a estigmatização, discriminação negativa e dignidade humana, uma diversidade de conceituações são encontradas, cada uma a partir de diferentes perspectivas e abordagens. Conceituar estes termos a partir do caráter moral é ter como parâmetro a identidade interdisciplinar da bioética. Parte-se do pressuposto de que em uma sociedade pluralista, não cabe mais pensar em uma única moral, exclusiva, e determinada por uma única instituição ou modelo social. Porém, problematiza-se se esta liberdade e autonomia, seja da filosofia, da teologia, da moral, e mesmo da bioética vem sendo atualmente considerada. Neste sentido, enfrentando o problema pontuado por Engelhardt acerca dos desafios de convívio pacífico entre estranhos morais no contexto do pluralismo secular, este capítulo considera também algumas implicações da vulnerabilidade moral diante do ‘princípio da permissão’, do consentimento e da autonomia. Os capítulos 4 e 5 apresentam dois artigos derivados dos exercícios de fundamentação teóricas e conceituais desenvolvidas nos capítulos anteriores. O capítulo 4 reproduz o artigo 1, intitulado “Vulnerabilidade moral entre estranhos morais: do consentimento à privação de direitos e negação da dignidade humana” que situa a problemática da vulnerabilidade moral no contexto da relação entre estranhos morais. É apresentada uma análise crítica do princípio do consentimento e do contrato desenvolvidos por Engelhardt, na obra Fundamentos da Bioética4, porém, considerando as relações específicas da privação de direitos e da negação da dignidade humana. O contexto pelo qual Engelhardt trata do princípio do consentimento dá-se em uma sociedade secular na qual a autoridade moral não está mais na instituição, mas no próprio indivíduo, sendo ele portador da autoridade moral. Assim, para o autor em uma sociedade constituída por um pluralismo moral, as controvérsias existentes entre os estranhos morais só podem ser resolvidas através do consentimento e do contrato. 4 ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução: CESCHIN, José. São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola, 2015. 14 Porém, Engelhardt desconsidera que nas relações de poder os estranhos morais não são subjetivamente reconhecidos igualmente em sua dignidade e/ou não tem iguais condições objetivas de direitos e condições. Neste sentido, sendo a vulnerabilidade moral oriunda de uma sociedade em cujo contexto de pluralismo moral indivíduos e grupos não são igualmente reconhecidos em sua dignidade e em seus direitos os estranhos morais tornam-se vulneráveis morais. Discute-se, assim, que o princípio do consentimento desenvolvido por Engelhardt apresenta fragilidades, pois: Qual a autoridade moral que um indivíduo ou grupo moralmente vulnerável pode exercer? Quais critérios poderiam ser estabelecidos no princípio do consentimento para indivíduos cuja existência como agente moral é negada a priori? O capítulo 5 reproduz o artigo 2, intitulado “Fronteiras entre vulnerabilidade social e vulnerabilidade moral: implicações bioéticas”, que trata das relações entre a vulnerabilidade social e a vulnerabilidade moral na perspectiva da bioética. Neste artigo, considera-se que tratar da vulnerabilidade moral não implica considerar apenas as condições formais e materiais dos contextos sociais, mas também as diferentes formas com que cada grupo ou indivíduo se identifica e posiciona nas relações morais. Discute-se que a vulnerabilidade moral por vezes é menos explícita que a vulnerabilidade social e nem sempre percebida ou reconhecida pelo próprio sujeito. Nesta perspectiva, considera-se que a vulnerabilidade moral atinge indivíduos e grupos que não correspondem à moralidade hegemônica de determinado contexto com repercussões negativas como exclusão, distanciamento, segregação e outras formas de estigmatização e discriminação negativa. São grupos, que além da vulnerabilidade social, que é explícita, também são moralmente julgados na invisibilidade, em muitas situações imperceptíveis, e consequentemente não sendo considerados pelas dinâmicas de proteção e intervenção estatal ou coletiva. Neste sentido, a vulnerabilidade moral caracteriza-se simultaneamente como causa e como consequência de processos como estigmatização e discriminação negativa, isto é, com mecanismos objetivos e subjetivos de negação da dignidade humana. Neste sentido, esta dissertação pretende contribuir com uma abordagem bioética atenta às situações concretas que influenciam negativamente a vida em sua dimensão biológica, social e moral. Ampliar o olhar sobre indivíduos e comunidades moralmente vulneráveis é desafiar uma bioética que considere cada indivíduo em sua totalidade, pertencente a uma comunidade cada vez mais plural e específica, mas também uma sociedade global, cujas vulnerabilidades também são globais. O 15 trabalho assume o pluralismo e a diversidade moral como valor fundantes, na medida em que sejam desenvolvidos processos de inclusão, tolerância e reconhecimento da dignidade. Porém, este mesmo contexto global de pluralismo e diversidade moral, também revela práticas de intolerância, fundamentalismo, estigmatização, discriminação e desigualdades de dignidade e direitos, e neste sentido, a proposta da temática da vulnerabilidade moral implica um olhar dialético. Por fim, este trabalho pretende colaborar na construção de uma Bioética Crítica que esteja atenta às questões sociais globais, principalmente se considerarmos a realidade da América Latina, onde as desigualdades de direitos e de dignidade constituem um aspecto marcante e preponderante na geração e na manutenção da vulnerabilidade moral. As pessoas são diferentes por natureza, porém, merecem igualdade de tratamento em relação ao respeito, a dignidade e aos direitos. Portanto, o pressuposto assumido pelo trabalho é que a chave para o enfrentamento da vulnerabilidade moral passa pela valorização das diferenças, mas ao mesmo tempo em que se enfrentam as injustiças e desigualdades sociais. 16 CAPÍTULO 2 DAS DIVERSAS PERSPECTIVAS DA BIOÉTICA ÀS DIVERSAS ABORDAGENS DA VULNERABILIDADE Da mesma forma em que existem diversas perspectivas da bioética, existem diversas abordagens e conceituações da vulnerabilidade. Nesta investigação, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005)5 é um marco normativo e referencial, visto a inclusão definitiva da vulnerabilidade no escopo da bioética por este documento de natureza global. A DUBDH possibilitará que o núcleo de nossa abordagem sobre a vulnerabilidade seja a passagem de uma situação de vulnerabilidade enquanto susceptibilidade, a sofrer um dano em si, ou seja, do ser vulnerável ao estar vulnerável. Portanto, mesmo diante de todas as perspectivas da bioética, a DUBDH permite-nos perceber e tratar a vulnerabilidade como um aspecto transversal que perpassa, ou pelo menos dialoga, com outras perspectivas do campo, principalmente dos países do hemisfério sul e, de forma específica, da América Latina. 2.1 VULNERABILIDADE NO CONTEXTO DO SURGIMENTO DA BIOÉTICA Atualmente, a vulnerabilidade ocupa um espaço de grande relevância nas discussões em bioética, sendo um de seus principais referenciais. Compreender a vulnerabilidade como um referencial da bioética dá-se a partir de duas realidades. A primeira é que a vulnerabilidade constitui uma dimensão que é comum a todos os seres humanos, que é a vulnerabilidade existencial, ou ontológica. A segunda, conforme Porto (et tal), diz respeito a grupos ou indivíduos que são impactados por uma vulnerabilidade circunstancial, visto o contexto de pobreza, violência, desemprego e outros fatores concretos desfavoráveis, sendo considerada como vulnerabilidade social6. 5 UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de ética da Universidade de Brasília/SBB. 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso 15 jun. 2015. 6 PORTO, Dora; SCHLEMPER, Bruno; MARTINS, Gerson; CUNHA, Thiago Rocha; HELLMANN, Fernando. (org.). Bioética: Saúde, Pesquisa Educação. Conselho Federal de Medicina. Sociedade Brasileira de Bioética, Brasília. 2014. pp. 37-48. 17 A vulnerabilidade enquanto referencial ético antecede o surgimento propriamente dito da bioética. A partir do Código de Nuremberg (1947) começam a entrar em pauta temas relacionados a vulnerabilidade, uma vez que o documento surgiu justamente para proteger sujeitos vulneráveis, mais especificamente prisioneiros em campos de concentração. Apesar desta preocupação, a palavra ‘vulnerabilidade’ não aparece no texto do Código, sendo relacionada aos contextos de fragilidades, coerção e exploração de sujeitos sem possibilidade de decidir, isto é, vinculada à ausência de autonomia7. Dezessete anos após o Código de Nuremberg, a Associação Médica Mundial elaborou a Declaração de Helsinque I, em 19648. Nesta Declaração, a preocupação básica era com a ética na pesquisa clínica, mas na primeira versão do documento o termo vulnerabilidade ou vulnerável não foi explicitado. Como se sabe, a palavra “bioética” surgiu em 1970, em um artigo do cancerologista americano Van Reensselaer Potter, intitulado: “Bioethics, the Science of Survival”9. Conforme apontado por Schramm, Potter pede a criação de uma nova ciência, uma ciência da sobrevivência, que se baseie na aliança do saber biológico (bio), com os valores humanos (ética). Reivindicava um vasto campo de atuação da bioética, que englobava o controle da população, a paz, a pobreza, a ecologia, a vida animal e o bem estar da humanidade. Apesar dessa amplitude de visão, a palavra vulnerabilidade também não apareceu neste artigo que deu origem à disciplina. Por outro lado, a abordagem de Potter não foi inicialmente adotada pela academia, tendo a bioética sido rapidamente reduzida a perspectiva biomédica a partir da criação do Kennedy Institute of Ethics por Hellegers, o qual julgava o termo particularmente significativo para expressar a ideia de renovação que ele visava para a ética médica e biomédica10. Para Garrafa, a ética médica passou a ter como foco principal as questões médicas e tecnológicas, entrando em contradição com a concepção Potteriana, que tratava de uma perspectiva mais global e holística. Em primeiro lugar, ela se preocupa 7 HOSSNE, William Saad. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. rev. Bioethikos. Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2013. pp. 41 – 51. 8 ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Código Internacional de Ética Médica. Disponível <http://www.bioetica.ufrgs.br/helsin1.htm>. Acesso 20 maio 2015. 9 SCHRAMM, Fermim Roland. Uma breve genealogia da bioética em companhia de Rensselaer Potter. rev. Bioethikos. Centro Universitário São Camilo. 2011. pp. 302 – 308. 10 DURAND, Guy. Bioética: história, conceitos e instrumentos. Tradução: NYIMI, Nícolas. Paulo. 2ª ed. Loyola, 2007. São em: Van São 18 com a perspectiva do paciente individual, e em segundo lugar, interessa-se exclusivamente nas consequências a curto prazo das intervenções médicas e tecnológicas. Embora Potter admita que a bioética médica tenha uma abordagem mais ampla do que a ética médica tradicional, ainda é muito estreita para abordar o que são, em sua opinião, os problemas éticos fundamentais e urgentes da humanidade: crescimento da população, guerra e violência, poluição e degradação ambiental, além da pobreza11. Para Barchifontaine e Pessini (2012), Potter considera esses problemas como ameaças à sobrevivência da humanidade, e sua urgência revela a preocupação quanto ao futuro. Assim, “Potter define a bioética como a ciência da sobrevivência humana, numa perspectiva de promover e defender a dignidade humana e a qualidade de vida, ultrapassando o âmbito humano para abarcar inclusive a realidade cósmico-biológica”12. Neste sentido, embora o autor não tenha se referido ao termo, consideramos a vulnerabilidade como um dos referenciais importantes de seu pensamento, uma vez que a natureza de sua preocupação estava relacionada à vulnerabilidade que a espécie humana se encontrava frente aos riscos à sobrevivência planetária. Desta sorte, embora Potter não traga de forma explícita o termo “vulnerabilidade”, aponta para um aspecto mais concreto, indicando os meios para a garantia de sobrevivência da civilização humana, cujo risco de existência configurase como a maior de todas as vulnerabilidades. No contexto da ética em pesquisa, para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Conselho de Organizações de Ciências Médicas (CIOMS), por meio das Diretrizes Éticas Internacionais, nas versões de 1982, 1991, 1993 e 2002, o conceito de vulnerabilidade vai surgindo de forma crescente. A versão de 1982 utiliza a expressão “[...] pesquisa envolvendo indivíduos de comunidades subdesenvolvidas”. Já na versão de 199313, não há nenhuma referência a “vulnerabilidade”. 11 GARRAFA, Volnei (Org.). Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Conselho Federal de Medicina, Cátedra Unesco de Bioética e Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília. 2012. p 45. 12 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian. Problemas atuais de Bioética. São Paulo. 10ª ed. Edições Loyola, 2012. p.15. 13 OMS/COM. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CONSELHO E ORGANIZAÇÕES DE CIÊNCIAS MÉDICAS. Proposta de diretrizes éticas internacionais para a pesquisa biomédica com seres humanos. São Paulo. Loyola. 2004. 19 Em relação à Declaração de Helsinque, foi somente em sua revisão VI (2000) 14 que a expressão vulnerabilidade apareceu pela primeira vez tal como reproduz a passagem: “Algumas populações de pesquisa são vulneráveis e necessitam de proteção especial. É necessário também para aqueles que não podem dar ou recusar o consentimento por eles mesmo”. A vulnerabilidade aqui se refere a grupos especiais (vulneráveis), e a questão da vulnerabilidade se resolve com o consentimento (autonomia). Do mesmo modo, somente na última versão das Diretrizes Éticas Internacionais (2002)15 há maiores referências a vulnerabilidade. No capítulo “Princípios éticos gerais”, se expressa: “[...] proteção de pessoas com autonomia diminuída ou deteriorada”, e inclui: [...] o termo vulnerabilidade alude a uma incapacidade substancial para proteger interesses próprios devido ao impedimento, como falta de capacidade de conceder consentimento informado, falta de meios para conseguir cuidados médicos ou outras necessidades de alto custo ou ser um membro subordinado de um grupo hierárquico 16. Neste documento, mais uma vez a vulnerabilidade aparece vinculada ao conceito de autonomia. A seguir o documento faz vinculação ao conceito de justiça: “[...] portanto, deve ser feita especial referência à proteção dos direitos e do bem-estar das pessoas vulneráveis”. As Diretrizes são acompanhadas de comentários e valenos destacar o seguinte: São pessoas vulneráveis as absolutas ou relativamente incapazes de proteger seus próprios interesses. São indivíduos convencionalmente considerados vulneráveis aqueles com capacidade ou liberdade diminuída para consentir ou abster-se de consentir17. Como exposto, verifica-se que no contexto histórico do surgimento da Bioética a vulnerabilidade não foi abordada de modo direto, tendo sido introduzida na disciplina progressivamente no contexto da ética em pesquisa envolvendo seres humanos, 14ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Declaração de Helsique VI. 2000. Disponível em: <http://www.fcm.unicamp.br/>. Acesso 17 jun. 2014. 15OMS/CIOMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CONSELHO E ORGANIZAÇÕES DE CIÊNCIAS MÉDICAS. Proposta de diretrizes éticas internacionais para a pesquisa biomédica com seres humanos. São Paulo. Loyola. 2004. 16 Id. 17 Id. 20 particularmente voltando-se aos problemas relacionados à autonomia e consentimento, isto é, sem considerar as dimensões sociais, existenciais ou morais da vulnerabilidade. 2.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: CONSOLIDAÇÃO DA VULNERABILIDADE EM BIOÉTICA No Brasil, Garrafa e Porto (2003), destacam que duas abordagens de Bioética têm considerado a questão da vulnerabilidade. Na Bioética da Intervenção, a vulnerabilidade do corpo à dor é o marcador da intervenção individual. No campo coletivo, o grupo historicamente mais vulnerável é o qual a Bioética de Intervenção18 se alia em defesa de seus interesses, por meio do aumento do utilitarismo solidário. Na Bioética de Proteção,19 Scharamm chama atenção a especial proteção àqueles grupos e indivíduos que deixaram e ser vulneráveis (enquanto possibilidade de sofrer) para tornaram-se vulnerados (enquanto sofrimento vivenciado). A pergunta sobre o que torna indivíduos e grupos vulneráveis é uma questão fundamental, e que deve ser uma constante, mesmo antes de proteger ou intervir. Se há a necessidade de proteção, é porque de alguma forma a pessoa ou o grupo já está em situação de risco, e se precisa intervir é porque já sofre danos. Portanto, identificar o que torna grupos e pessoas vulneráveis, é o primeiro passo para impedir que passem de um estado de ser vulnerável para o estado de estar vulnerável. Essas abordagens brasileiras não foram inicialmente reconhecidas globalmente, sobretudo porque a produção norte-americana voltada a biomedicina persistiu e ainda persiste, como abordagem hegemônica no campo. De qualquer modo, após anos de domínio da bioética tradicional, surgiu em 2005 um documento que consolida em definitivo as temáticas da cotidianidade das pessoas, povos e nações, tais como a exclusão, a vulnerabilidade, a guerra, o racismo, a saúde pública, entre outros. Tratase da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO20, 18 GARRAFA Volnei, PORTO, Dora. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice.Bioethics. 2003 Oct;17(5-6):399-416. 19 SCHRAMM, Fermim. Bioética dos vulnerados. Revista Bioética. v. 19, n. 03. 2009. Disponível em: <http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Destaques&id=134>. Acesso 18 out. 2015. 20 UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de ética da Universidade de Brasília/SBB. 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso 15 jun. 2015. 21 aprovada por 191 países. O Brasil foi um ator fundamental nas discussões para reivindicar a importância em se articular as questões sociais, conforme aponta Garrafa na apresentação da tradução brasileira da declaração: O teor da Declaração muda profundamente agenda da Bioética do Século XXI, democratizando-a e tornando-a mais aplicada e comprometida com as populações vulneráveis, as mais necessitadas. O Brasil e a América Latina mostraram ao mundo uma participação acadêmica, atualizada e ao mesmo tempo militante nos temas da Bioética, com resultados práticos e concretos, como é o caso da presente Declaração, mais um instrumento à disposição da democracia no sentido do aperfeiçoamento da cidadania e dos direitos humanos universais21. Na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) da UNESCO, o Artigo 8 descreve a obrigatoriedade do respeito à vulnerabilidade humana e à integridade pessoal: A vulnerabilidade humana deve ser levada em consideração na aplicação e no avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e de tecnologias associadas. Indivíduos e grupos de vulnerabilidade específica devem ser protegidos e a integridade individual de cada um deve ser respeitada 22. A vulnerabilidade humana, portanto, deve ser levada em consideração, o que corresponde a reconhecê-la como traço indelével da condição ontológica do ser humana, na sua irredutível finitude e fragilidade como exposição permanente a ser ferida, não podendo jamais ser suprimida. De qualquer modo, segundo o documento, grupos e indivíduos especialmente vulneráveis devem ser protegidos sempre que a inerente vulnerabilidade humana se encontra agravada por circunstâncias várias, devendo aqueles ser adequadamente protegidos. A partir da DUBDH, o conceito passa a ser abordado em diferentes produções teóricas e conceituais, tanto internacionais quanto nacionais. Em 2013, a Declaração de Helsinque passou a abordar a vulnerabilidade de forma muito mais explicita, aprofundando algumas recomendações: Alguns grupos e pessoas submetidas à investigação são particularmente vulneráveis e podem ter maior possibilidade de sofrerem abusos ou danos adicionais. Todos os grupos e pessoas vulneráveis devem receber proteção 21 GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. Tradução: SOBRAL, Adail. São Paulo. Loyola. 2004. p. 03. 22 UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de BioéticadaUniversidadedeBrasília/SBB.2005.Disponívelemttp://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf. Acesso 03 jun. 2015. Acessado em: 15 de junho de 2015. 22 específica. A investigação médica em um grupo vulnerável apenas se justifica se a investigação responde às necessidades ou prioridades de saúde deste grupo e a investigação não pode realizar-se em um grupo não vulnerável. Além disso, este grupo poderá beneficiar-se dos conhecimentos, práticas ou intervenções derivadas da investigação 23. Para Hoffmaster (2006) a ética deve estar mais preocupada com a questão da vulnerabilidade, postulando o ser humano tem três desejos fundamentais: viver, viver bem e viver melhor. Para este autor, a vulnerabilidade é a perda dos três desejos. No entanto, segundo o autor a ética não tem se preocupado muito com isso, por três razões: a vulnerabilidade é antiética aos atos do individualismo; a vulnerabilidade está separada da filosofia moral; os sentimentos não têm lugar nas concepções racionalistas da filosofia moral e da moralidade. Para ele, precisamos sentir nossa vulnerabilidade para afirmar nossa humanidade. Nossa vulnerabilidade comum deveria nos unir e nos vincular uns aos outros24. Conforme já destacado, compreender a vulnerabilidade como um referencial da bioética dá-se a partir de duas realidades. A primeira é que a vulnerabilidade constitui um elemento que é comum a todos os seres humanos. A segunda diz respeito a grupos ou indivíduos específicos, das quais utilizaremos da definição de vulnerabilidade social, definida na Bioética de Proteção como estado de vulneração ou suscetibilidade, que tem Scharramm como principal representante desta corrente25. Estas são duas situações distintas que requerem análises e abordagens diferentes, visto que nem os fatores de origem, nem as consequências são as mesmas. É neste sentido que Hossne chama atenção para que: Portanto, ser vulnerável o ser humano é sempre; estar vulnerável pode ser sim ou não. Trata-se de ir de uma situação latente a uma situação manifesta, de uma situação de possibilidade para uma situação de probabilidade, do ser vulnerável ao estar vulnerável26. 23 OMS. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Declaração de Helsinque. 2013. Disponível em: <http://www.amb.org.br/_arquivos/_downloads/491535001395167888_DoHBrazilianPortugueseVers ionRev.pdf. Acessado em 25/08/2015.>. Acesso 12 abril 2015. 24 HOSSNE, William Saad. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. rev. Bioethikos. São Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2013. pp. 41 – 51. 25SCHRAMM, Fermim. Bioética de proteção: Ferramenta válida para enfrentar os problemas morais na era da globalização. rev. de Bioética, v. 16. 2008. pp. 11 – 16. 26 HOSSNE, William Saand. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. rev. Bioethikos. São Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2013. pp. 41 – 51. 23 Portanto, em situação de vulnerabilidade não é somente o indivíduo que deve ser considerado, mas as relações sociais e de poder o envolve: comunidade, grupo, estado, instituição, etc.27. Nos próximos tópicos discorreremos com mais atenção sobre esta dimensão concreta e socialmente localizada da vulnerabilidade. 2.3 ENTRE SER VULNERÁVEL E ESTAR VULNERÁVEL: PERSPECTIVA BIOÉTICA SOBRE VULNERABILIDADES Sanches e Guber (2014) apresentam várias dimensões ao se discutir a vulnerabilidade no campo da bioética: bioética, vulnerabilidade e educação; genética e vulnerabilidade; da vulnerabilidade do embrião emergente da reprodução humana assistida; a vulnerabilidade do transexual; gênero, vulnerabilidade e HIV; Bioética nos cuidados neonatais; vulnerabilidade do enfermo e a relação de cuidado; vulnerabilidade no ambiente de trabalho, assédio moral, etc28. Este trabalho não parte de um marco zero acerca sobre a investigação conceitual da vulnerabilidade na bioética, tão pouco, pretende meramente reproduzir abordagens já desenvolvidas sobre o conceito. Assim, tendo em consideração que a vulnerabilidade é uma problemática complexa, conceituada e manifestada de diversas formas, tomaremos como ponto de partida a investigação desenvolvida por Cunha e Garrafa (2016), entitulada: “Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?”29. A relevância do trabalho desenvolvido por estes autores permite-nos ter clareza acerca das bases a partir das quais abordaremos a vulnerabilidade neste trabalho. No referido artigo, os autores problematizam o conceito de vulnerabilidade expressado nas perspectivas de cinco abordagens regionais da bioética: estadunidense, europeia, latino-americana, africana e asiática30. Neste sentido, constatam que a vulnerabilidade apresenta nuances bastante variados, sendo que em cada regional assume características e formas de abordagens específicas, mesmo que por vezes prevaleça um modelo conceitual, mas sem sobrepor-se às características específicas de cada contexto. 27 Id. p. 43. SANCHES, Mário Antonio; GUBERT, Ida Cristina (org). Bioética e Vulnerabilidades. São Paulo. Ed. Loyola. pp. 09 – 203. 29 CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 25, 2016. pp 197-208. 30 Id. 28 24 Ao nos apropriarmos do que Cunha e Garrafa desenvolvem em cada abordagem regional da bioética, percebemos estas nuances, por exemplo, quando apresentam que “[...] na bioética desenvolvida nos Estados Unidos, a vulnerabilidade pode ser descrita essencialmente em uma relação como princípio da autonomia: vulnerável é aquele incapaz de decidir sobre os próprios interesses”31. Na bioética de origem europeia, por sua vez, demonstram que a vulnerabilidade não pode ser anulada mediante a garantia do exercício da autonomia ou da aplicação de um termo de consentimento, uma vez que o vulnerável assim o é por sua condição humana e não por uma situação institucional ou provisória relacionada à capacidade de decidir 32. Cunha e Garrafa apresentam alguns dos autores de referência para discutirmos vulnerabilidade no contexto de América Latina, também utilizados neste trabalho, como: Mainetti, Garrafa, Prado, Schrram, Kottow, Nascimento e outros33. Em um mesmo continente, com contextos próximos, percebe-se que a bioética possui uma história específica em cada país, e, portanto, cada autor aborda a vulnerabilidade de forma muito contextualizada. Aproximaremo-nos destes autores, a partir de contextos comuns à América Latina, como: desigualdades sociais, exploração econômica, pobreza, iniquidade, diversidade moral e religiosa, etc. Ao abordarmos a vulnerabilidade a partir de um contexto específico de América Latina, não significa que não consideramos também a vulnerabilidade em outros contextos. Para isso, adotamos como marco referencial a DUBDH, e partilhamos do conceito desenvolvido por Cunha e Garrafa, em que “[...] a vulnerabilidade é um princípio chave para a bioética global, desde que fundamentada em um processo permanente de diálogo entre as diversas perspectivas da bioética”34. Por isso, para melhor fundamentar a discussão posterior a respeito das especificidades e implicações da vulnerabilidade moral é importante destacar alguns elementos da abordagem ‘tradicional’ da disciplina. A filosofia ocidental, principalmente a produzida na Europa continental, considera a vulnerabilidade uma dimensão antropológica essencial da existência humana. Neste sentido para Kottow: 31 ROGERS, W.; MACKEZINE, C. A.; DODDS, S. M.; In. CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerabilidade: Princípio chave para a bioética global? Cambridge Quarterly of Healthcare etchics. 32 CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 25, 2016. pp 197-208. 33 Id. 34 Id. 25 Ser vulnerável significa estar suscetível a, ou em perigo de, sofrer danos. Estar vivo é uma improbabilidade biológica altamente vulnerável a perturbações e à morte, e mais ainda se vidas humanas tem de ser construídas, sendo, portanto desproporcionalmente frágeis e propensas a desordens e disfunções. A vulnerabilidade intrínseca às vidas humanas também foi reconhecida por filósofos políticos que propuseram ordens sociais destinadas a proteger da violência a vida, a integridade corporal e a propriedade35. Assim, a vulnerabilidade humana reconhecida como traço da condição humana considera a finitude e fragilidade de todos os seres, cuja existência é marcada pela exposição permanente a ser ferido. Ao ser humano, porém, a vulnerabilidade vai além de sua condição biológica na busca pela sobrevivência, o que é comum a todos os animais, mas também se revela na sua condição social e existencial, enquanto busca de sentido para a vida. Neste trabalho, conforme já explicitado, a partir do próximo capítulo pretendemos discutir uma dimensão específica da vulnerabilidade humana: a vulnerabilidade moral. Além da vulnerabilidade intrínseca, ontológica, alguns indivíduos e grupos são afetados diretamente por circunstâncias desfavoráveis, nas quais a pobreza, a falta de educação, as dificuldades geográficas, as doenças crônicas, a violência e outros infortúnios os tornam ainda mais vulneráveis. A esse respeito, a norte-americana Ruth Macklin questiona: “O que torna indivíduos, grupos ou países vulneráveis?”36. Segundo a autora, pessoas vulneráveis são pessoas relativa ou absolutamente incapazes de proteger seus próprios interesses. De modo mais formal, podem ter poder, inteligência, educação, recursos e forças insuficientes ou atributos necessários à proteção de seus interesses 37. Tal como será pontuada adiante, essa compreensão da vulnerabilidade voltada à defesa de interesses ou manifestação de vontade também será problematizada a partir de seus limites. Macklin (2003) apresenta alguns indicadores neste sentido. Indivíduos e comunidades são vulneráveis porque carecem dos bens fundamentais de que precisam para sair de um estado de destituição. Padecem da perda de capacidade ou da falta de liberdade, tem reduzida a gama de possibilidades disponíveis para o bem estar e buscar os interesses importantes de sua vida38. 35 KOTTOW, Michael. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2000. p. 74. 36 MACKLIN, Ruth. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003 p. 60. 37 Id. 38 Id. p. 70. 26 A origem da vulnerabilidade comum ao ser humano é conhecida, pois é a própria condição de “ser humano”, mas esta, de grupos específicos, apresenta um desafio maior, pois identificar os mecanismos desta vulnerabilidade específica implica analisar diversos atores, como: estado, comunidade, sistemas econômicos e sociais, instituições e órgãos. Tais relações, podem colocar o indivíduo ou o grupo em estado de vulnerabilidade específica. Portanto, a identificação deve ser um esforço comum a todas as áreas: educação, ética, sociologia, filosofia, saúde, etc. O que a bioética pode contribuir em especial é justamente como um espaço interdisciplinar de interlocução entre as diversas áreas do conhecimento para identificar concretamente as diversas dimensões que podem estar vulnerando indivíduos e pessoas, seja do ponto de vista institucional, biológico, social, moral, entre outros. Em relação aos processos que vulneram pessoas e comunidades e as formas para identificação destes contextos, Martorell e Nascimento (2013) tratam dos contextos descoloniais na atualidade a partir da bioética. Para os autores, a vulnerabilidade está relacionada com a marca da colonialidade, isto é pela percepção de que algumas vidas têm mais valor que outras a partir de suas aproximações ou distanciamentos com as características daqueles que conduziram o processo de colonização moderna, o que justifica a dominação, submissão e exploração. É neste sentido que a bioética tem feito críticas a essa hierarquização de vidas, principalmente em relação a países periféricos, sobretudo países da América Latina, do continente Africano e Asiático. A colonialidade vem sendo utilizada para justificar práticas violentas. Assim, defendem os autores que “[...] a bioética assume a tarefa de denunciar e desnaturalizar essa colonial imagem da vida, que aparece em diversos tipos de imperialismos que terminam por estruturar e manter as desigualdades sociais [...]”39. Desta forma, “[...] o posicionamento da Bioética em contexto de interseccionalidade é de clareza e explicides na denúncia e enfrentamento diante de fatos concretos como: racismo, xenofobia, sexismo, homofobia, entre outros [...]”40. Hans-Martin Sass (2003), por outros meios, também conceitua uma vulnerabilidade típica da modernidade: “A nova vulnerabilidade das sociedades modernas é representada pelo fácil rompimento das relações interpessoais, pela insegurança no emprego, por estruturas desiguais de sistemas de cuidados do caráter 39 MARTORELL, Leandro Branbilha; NASCIMENTO, Wanderson Flor. A Bioética de Intervenção em contextos descoloniais. rev. Bioética; v. 21. 2013. 40 Id. 27 anônimo, pela falta de apoio familiar na doença e na demência”41. Nas sociedades modernas, pesam sobre as pessoas vulnerabilidades diferentes. Por exemplo, muitas pessoas solteiras nas grandes metrópoles gozam de dimensões de liberdade civil que as culturas pré-modernas desconheciam, mas são vulneráveis como nunca antes devido a não contarem com uma família, com vizinhos, com comunidades morais que lhes dêem apoio, tendo apenas direito legal sobre certos serviços de proteção. Hoje a vulnerabilidade não tem incidência somente no indivíduo, o qual se desenvolve uma abordagem mais específica, mas ela recai também sobre grupos, comunidades, e mesmo países inteiros. Referente aos grupos vulneráveis incluem-se aí membros subordinados de grupos hierárquicos como militares ou estudantes, pessoas idosas com demência e residentes em asilos, pessoa que recebem benefícios da seguridade ou assistência social, pobres, desempregados, pacientes em salas de emergência, alguns grupos étnicos e raciais minoritários, sem teto, nômades, refugiados ou pessoas deslocadas, prisioneiros, e membros de comunidade sem conhecimento dos conceitos médicos modernos e outros 42. O relatório do Observatório das Metrópoles (2005) considera como vulnerável os territórios, como também o contexto em que o indivíduo está inserido. Considerar o território vulnerável como aqueles pedaços das metrópoles onde estão presentes os sinais de crise do regime coletivo de gestão de risco associado à fragilização das famílias e das estruturas sociais no plano do bairro. Tal crise resulta por sua vez da segmentação produzida neste mercado pelas transformações sócio produtivas engendradas pela nossa inserção subordinada ao mercado à globalização, sobretudo a partir dos anos 90 do século XX43. Portanto, estes territórios, como lugares vulneráveis são aqueles, nos quais os indivíduos enfrentam riscos e a impossibilidade de acesso a condições habitacionais, sanitárias, educacionais, trabalho, participação e acesso diferencial a informação e as oportunidades. Assim, existem situações em que o sujeito ou grupos, de acordo com a realidade em que está inserido, e principalmente se esta realidade, contexto ou território é desfavorável ao seu desenvolvimento, requer que seja considerado também com critérios específicos, relacionados à vulnerabilidade social. 41 SASS, Hans Martin. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. p. 80. 42 MACKLIN, Ruth. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. p. 61. 43 INSTITUTO NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Observatório das metrópoles. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/rmnatal/artigo/artigo16.pdf>. Acesso 04 jul. 2015. 28 Discutindo especificamente as implicações éticas das pesquisas internacionais em países periféricos, Lorenzo define a vulnerabilidade social como “os limites da autodeterminação e a potencialização dos riscos de pesquisa provocados por desvantagens socioeconômicas e culturais existentes na estrutura de vida cotidiana de sujeitos e grupos”. Devido a importância desta dimensão social na bioética brasileira e latino-americana e sua relação com o que denominamos por ‘vulnerabilidade moral’ é importante apresentar sua perspectiva de modo mais detalhado. 2.4 A VULNERABILIDADE SOCIAL COMO PROBLEMÁTICA CHAVE NA BIOÉTICA LATINO AMERICANA Desde já, é preciso destacar que tratar de vulnerabilidade social a partir da perspectiva da bioética não implica tratar de forma igualitária todos os sujeitos de um grupo, mas sim, considerar as diferentes formas que cada indivíduo ou grupo sofre a vulnerabilidade. Cabe aqui considerar a vulnerabilidade do indivíduo, de um grupo, e dos sujeitos específicos dentro de um grupo. Isso porque, mesmo que todo um grupo seja vulnerável, ela se manifesta de forma diferente entre os sujeitos. Identificar e reconhecer a forma como cada sujeito é impactado pela vulnerabilidade é um grande desafio à bioética. Alguns membros de grupos vulneráveis podem não manifestar a vulnerabilidade concreta. Porém, muitos destes, podem não se reconhecer como vulneráveis, porque a pressão social a favor do preconceito, da estigmatização e da discriminação é mais poderosa. Retomaremos este aspecto no próximo capítulo, onde focaremos as implicações da vulnerabilidade moral. A vulnerabilidade social, além de uma intervenção individual, requer intervenção por meio de políticas públicas adequadas, pois quando grupos são vulneráveis socialmente, é porque existe uma violação explicita dos direitos humanos, e neste sentido, o Estado e a sociedade têm o dever de agir em favor dos mais frágeis: “A que considerar que as políticas públicas devem proteger o direito e a liberdade de cada pessoa. Devem identificar linhas de ação para proteger e promover os direitos humanos, bem como garantir o acesso à justiça”44. 44 TEALDI, Juan Carlos. Dicionário Latinoamericano de Bioética. Universidade Nacional de Colômbia. Unesco. Bogotá, 2008. 29 Tratar da vulnerabilidade social implica também um olhar sobre os países periféricos. No VI Congresso Mundial de Bioética (2002), Garrafa e Porto defendem a necessidade para a bioética de incorporar ao seu campo de reflexão e ação aplicada temas políticos atuais, principalmente as agudas discrepâncias sociais e econômicas existentes entre ricos e pobres, entre as nações dos hemisférios Norte e Sul do mundo. Garrafa ampliou a discussão levantada pelo Congresso, relacionando a nova proposta bioética: Talvez a intuição pioneira de Potter, ao cunhar profeticamente a bioética como uma “ponte para o futuro” da humanidade (1970), possa ser repensada como uma ponte de diálogo multi, inter e transcultural para os diferentes povos e culturas, em que as relações de justiça, solidariedade e respeito diante do diferente, do diverso e do desigual não sejam meros discursos vazios ou realidades virtuais, mas traduzam-se em dignidade e qualidade de vida para as pessoas e os povos mais vulneráveis 45. Mais tarde, Garrafa destacou também a importância do surgimento da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) e a complexidade de alguns problemas tratados no documento de forma concreta, sendo um salto qualitativo no que se refere à incorporação dos problemas persistentes no mundo atual, e a forma como a vulnerabilidade social vai sendo incorporada nas reflexões em bioética. Dentre os problemas abordados, o autor destaca: [...] exclusão social, concentração de poder, globalização econômica internacional e a evasão dramática das divisas das nações mais pobres para países centrais, a inacessibilidade dos grupos economicamente vulneráveis à conquistas do desenvolvimento científico e tecnológico, e a desigualdade de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo básicos indispensáveis à sobrevivência humana com dignidade 46. Concordamos que incluir a concretude dos problemas que atingem os países periféricos na discussão bioética, com toda a diversidade de problemas, que por sua vez são em sua grande maioria originados pela desigualdade social torna-se um dever fundamental da bioética, atenta aos problemas internacionais e planetários, que envolvem e responsabilizam toda a comunidade humana. As circunstâncias devem ser levadas em consideração pelos bioeticistas, mas não só, também pelos educadores, psicólogos, bioeticistas, juristas, e outros. 45 GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (org.). Bioética: Poder e injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. Tradução: SOBRAL, Adail. São Paulo. Loyola. 2004. p. 14. 46 Id. p. 35. 30 “Considerar de forma responsável as diversas circunstâncias que envolvem o sujeito, como: cultura, realidade familiar, religião, situação-sócio econômica e outros, é ter como finalidade avaliar de modo mais adequado a responsabilidade do sujeito”47. Esta avaliação mais adequada da responsabilidade do sujeito, ao se considerar as circunstâncias, implica não tratar a todos com os mesmos critérios, mas sim, na medida de suas desigualdades e vulnerabilidades, aplicando-se assim, o conceito e equidade. Visto que a partir da DUBDH a vulnerabilidade ganha uma relevância e entra definitivamente em pauta nas grandes discussões bioéticas, ainda percebe-se que o termo é tratado a partir de sua dimensão existencial e social. A atual circunstância de muitos indivíduos e povos em contexto de desigualdade social, violência, desemprego, pobreza, e outras situações que se tornam desfavoráveis ao desenvolvimento do indivíduo, desafiam-nos a ampliar o olhar e a reflexão acerca da vulnerabilidade em bioética, incluindo questões como a descriminação negativa, a estigmatização, a negação do reconhecimento de direitos, da dignidade e do status moral de determinados grupos. Todas as conceituações e perspectivas sobre vulnerabilidade discutidas nos tópicos anteriores indicam que o conceito envolve a totalidade do indivíduo em sua relação com o meio, indo, assim, além da dimensão puramente existencial ou puramente social. Considerando esta complexidade, propomos no próximo capítulo a reflexão sobre a dimensão da vulnerabilidade moral. 47 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Tradução: MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo. Loyola. 2007. p. 149. 31 CAPÍTULO 3 VULNERABILIDADE MORAL: ESTIGMATIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA Ao tratar da vulnerabilidade moral nas relações de estigmatização, discriminação negativa e negação da dignidade humana, buscaremos apresentar uma breve fundamentação conceitual destes termos, e a partir do atual contexto de pluralismo e surgimento de novos conceitos morais, perceber como os mesmos se manifestam na atualidade, como são considerados em bioética, e como, a partir de manifestações concretas, podem iluminar a reflexão acerca da vulnerabilidade moral. A princípio, cumpre destacar que tanto a vulnerabilidade, quanto a estigmatização, a discriminação negativa e a negação da dignidade humana podem manifestar-se em dois âmbitos: o primeiro é de forma explícita, onde está relacionado à dimensão social, e o segundo é de forma implícita, por meio da invisibilidade, que pode acontecer por meio de discursos e narrativas de diversas naturezas, inclusive ideológicos, científicos e religiosos. Nesta segunda forma de manifestação, implícita, teremos como chave de leitura o atual contexto de pluralismo e diversidade moral e sua relação com os mecanismos de vulnerabilidade moral. Considerando as narrativas e discursos que produzem e reproduzem as formas mais implícitas de negação da dignidade humana (incluindo nesta categoria as diferentes formas de estigmatização, discriminação negativa e vulneração), duas são as formas em que a vulnerabilidade moral pode surgir e manter-se. Primeiro, há uma vulnerabilidade moral que surge de teorias que desqualificam moralmente indivíduos e grupos. Estas teorias procuram justificar a inferioridade e a discriminação sofrida por indivíduos e grupos. Na filosofia ocidental e na ciência moderna é possível identificar diversos grupos que sofreram essa forma de vulnerabilidade moral, explicando-se aqui status moral das mulheres, que em diversos momentos da história foram teoricamente classificadas como um análogo involuído ou deformado do homem, justificando diversas formas de exclusão, subordinação e silenciamento48. 48 LINDEMANN H. The woman question in medicine: an update. Hastings Cent Rep. 2012;42(3):3845. 32 Assim, a desigualdade entre os sexos na atualidade é ainda considerada um dos problemas mais desafiadores, visto que veio se perpetuando durante muitos séculos a superioridade do homem em relação a mulher, permanecendo através das diferentes formas de organização social do ocidente, incluindo o feudalismo, o escravagismo, e o capitalismo. Nestes três momentos históricos, a perpetuação da subalternidade das mulheres se deu pela justificação teórica, normativa e legal de diferentes instituições, quer seja a ciência, o estado, a igreja ou as próprias instituições familiares. A vulnerabilização justificada institucionalmente surge como característica de uma sociedade que possui uma visão de ser humano que padroniza e classifica as pessoas de acordo com essa visão. Elege-se um padrão de normalidade e se esquece de que a sociedade se compõe de pessoas diversas, e que a própria sociedade se constitui na diversidade. Este fato é percebido desde a medicina, por exemplo, com a determinação ainda imperante de que os transgêneros são desvios patológicos da normalidade cisgênera, à educação, quando nas escolas se reproduzem uma visão determinista da sociedade, classificando alunos em “mais inteligentes” e “menos inteligentes” de acordo com padrões e testes limitados. A esse último exemplo, Mattos (2013) direciona um olhar para as atuais metodologias e formas de se medir o desenvolvimento e aprendizagem de alunos, utilizadas ainda por muitas escolas. Muitos dos processos de produção e reprodução da estigmatização, e especificamente nesta investigação, da vulnerabilidade moral, são decorrentes da forma como as dessemelhanças e a diversidade são tratadas em sala de aula. Nesse processo, podemos citar, em 1905, Binet e Simon, que criaram a Escala Métrica de Inteligência. Trata-se de um instrumento que marca até hoje as diferentes concepções da intervenção educacional e que vem trazendo para milhares de alunos com necessidades educacionais especiais o rótulo de deficientes mentais – o que os tem excluído da ciranda social e escolar. Este método, direta ou indiretamente justifica pelo desenvolvimento escolar a inferioridade de um grupo, a partir da comparação com um modelo pré estabelecido como padrão49. Ainda para Mattos, “[...] é importante registrar a influência das transformações sociais ocorridas no final do século XIX e começo do século XX, as quais foram decorrentes da Revolução Industrial, quando aparece o interesse pela educação nos 49 MATTOS, Edna. Deficiente mental: inclusão e exclusão. Blog: Inclusão e educação. http://inclusaodm.blogspot.com.br/. Acesso 12 jan. 2016. 33 países desenvolvidos. Esse interesse provocou o início do atendimento aos deficientes mentais, bem como o aparecimento do modelo educacional destinado a um movimento de exclusão escolar e social”50. Indivíduos e grupos sociais dominantes definem quais são os padrões normais ou estigmatizados. Assim, uma pessoa é considerada normal quando atende aos padrões que previamente são estabelecidos. No caso das discussões sobre vulnerabilidade moral, esses padrões são moralmente determinados e é a transgressão desses padrões que caracteriza o estigmatizado, que, por sua vez, expressa desvantagem e descrédito. Tendo em conta os fatores econômicos, sociais, culturais e históricos, o ser humano constrói sua identidade nas relações que estabelece consigo mesmo e com outros seres, ao tempo que transforma a sociedade e por ela é transformado. No fenômeno do racismo é possível perceber problemas ainda mais tangentes. Aliado a uma dimensão territorial, social, econômica, educacional, e sanitária, o racismo atinge um significado cada vez mais abrangente, relacionado à vulnerabilidade moral. Isto porque, hodiernamente, o racismo não tem mais uma justificativa “científica” ou “teológica”, como há pouco ocorria com a legitimação da escravidão, mas se reproduz cada vez mais de formas sutis, discursivamente menos explícitas, mas que da mesma forma justificam e mantém a expansão dos privilégios dos brancos sobre os negros na maioria dos países do planeta. O discurso midiático que reiteradamente se refere ao jovem traficante negro da periferia como ‘bandido’ e o jovem de classe média apenas “jovem” é um exemplo dessa forma contemporânea de subordinação moral que se justifica a partir de um racismo simbólico 51. Desta forma, postulamos que a vulnerabilidade moral pode acorrer a partir de contextos que tornam indivíduos e grupos vulneráveis morais, sejam eles decorrentes de discursos teóricos (sejam científicos, filosóficos, teológicos, etc.) ou de processos concretos de exclusão social. A desqualificação social e infringida por grupos moralmente dominantes que se sobrepõem a outros é o tema que nos ocuparemos adiante. 50 Id. 51Revista Fórum. Exemplo didático de como se opera o racismo na linguagem midiática. http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2015/03/28/exemplo-didatico-de-como-se-opera-o-racismona-linguagem-midiatica/. Acesso 23 fev. 2016. 34 3.1 CONCEITUANDO ESTIGMATIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA E A DIGNIDADE HUMANA. A conceituação da estigmatização, da discriminação e da dignidade humana será desenvolvida a partir do art. 11 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos que trata sobre o princípio da não discriminação e da não estigmatização: “Nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado por qualquer razão, o que constitui violação à dignidade humana, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, a uma discriminação ou estigmatização”52. Ao tratar sobre a estigmatização, discriminação e dignidade humana, uma diversidade de conceitos são encontrados, cada um a partir de uma perspectiva ética e de uma abordagem teórica específica. Neste capítulo ao relacionar estes temas com a vulnerabilidade moral, fazse importante conceitua-los a partir da valoração moral, tendo como parâmetro teórico a identidade interdisciplinar da bioética. O artigo 11 da DUBDH, ao enunciar que a discriminação e a estigmatização constituem violações à dignidade humana, remete à concepção de que estigma e dignidade humana estão intrinsecamente associados; um existe na negação do outro. “O estigma só se produz ou se concretiza na medida em que é retirada do outro a sua dignidade, quando o outro é diminuído naquilo que o constitui como ser humano, quando é inferiorizado e considerado abaixo dos demais seres humanos”53. Para Garrafa (2014), a estigmatização gera uma invisibilidade social, que é uma maneira pela qual estas pessoas procuram se manter no corpo social, como tentativa de encobrir sua identidade, e por conseguinte a falta de reconhecimento é fonte de enormes sofrimentos. Sua organização enquanto grupos é uma das formas de lidar com o isolamento social vivido pelos membros individuais, decorrentes do medo, do preconceito e da discriminação e de buscar seu reconhecimento social54. 52 UNESCO. Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de ética da Universidade de Brasília/SBB. 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso 15 jun. 2015. 53 Id. 54 GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não estigmatização e da não discriminação. São Paulo. rev. Saúde e sociedade. v. 23. n.1. 2014. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-12902014000100157&script>. Acesso 02 set. 2015. 35 Para Goffman (1980), o estigma é considerado como uma característica ou um atributo profundamente depreciativo, constituído a partir de uma diferença ou de um desvio, que provoca um efeito de descrédito em seu portador. O estigma inferioriza a pessoa que o possui, tornando-a menos que os demais, atentando contra a própria dignidade humana e diminuindo suas chances de vida 55. Portanto, o estigma e a discriminação implicam o não reconhecimento da alteridade como aspecto fundamental na formação da identidade do indivíduo. Assim, para Goffmam: Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferente. Em primeiro lugar, há as abominações do corpo - as várias deformidades físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vicio, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família56. A discriminação negativa será inserida conforme sintetizada e comparada com a discriminação positiva. Neste sentido, compartilhamos da definição de Castel (2008), para o qual: “A discriminação positiva consiste integrar as populações carentes de recursos a fim de integrá-las. Consiste em fazer mais por aqueles que têm menos”57. A discriminação negativa, por sua vez, “[...] significa ser associado a um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que é atribuída como um estigma. A discriminação negativa é a instrumentalização da alteridade, constituída em favor da exclusão58. Na dignidade humana, o elemento fundamente cuja falta está caracterizada na estigmatização, é uma expressão de difícil definição, gerando fortes controvérsias teóricas e práticas com relação ao seu significado e conteúdo. Neste sentido, para Sarlet (2014): Um consenso possível acerca de sua concepção diz respeito ao fato de que a dignidade é uma qualidade intrínseca da pessoa humana e, por 55 GOFFMAN, E. Apud. GODOI, Alcinda; GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não estigmatização e da não discriminação. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104>. Acesso 18 ag. 2015. 56 Id. 57 CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones?. Petrópolis, Rio de Janeiro. Editora Vozes. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922010000300011. Acesso 31 ag. 2015. Acesso 31 ag. 2015. 58 Id. 36 decorrência, é irrenunciável, inalienável e indisponível, constituindo, pois, uma característica que não pode ser criada, concedida ou retirada – ainda que possa ser violada – já que é inerente à condição humana, mas que deve ser respeitada, promovida e protegida59. Já no século XVII, Kant insere a discussão sobre a dignidade humana, porém, não como um aspecto isolado e fragmentado da vida humana, mas como elemento integrador e vinculado não só em relação a totalidade das dimensões que envolvem a vida humana, como a social e a moral, mas também em relação a todos os seres humanos. Kant insere a dignidade em seu pensamento associada a questões como a liberdade, autonomia, vontade e moralidade, na obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes (1789), sendo o ser humano, um fim último e nunca um meio para obter outras realizações. Na segunda seção da obra, Kant afirma: “age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio”60. É, pois, a partir dessa formulação que Kant sustenta a ideia de que os homens têm dignidade, a qual os faz estarem acima de qualquer preço ou valor. A dignidade passa a ser concebida, portanto, como um valor incondicional. “[...] Tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”61. O homem, como ser racional em Kant deve ser visto como um fim em si mesmo dotado de um valor absoluto. Ao colocar o ser humano como um fim em si mesmo, Kant não considera-o como uma ilha. Há, portanto, uma dimensão social e moral evidente em seu pensamento. Sobre a dignidade, a argumentação Kantiana indica: Supondo, porém, que haja algo cuja existência tenha em si mesma um valor absoluto, que, enquanto fim em si mesmo, possa ser fundamento de leis determinadas, então encontrar-se-ia nele e tão somente nele o fundamento de um possível imperativo categórico. O homem, e de modo geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não meramente como meio para o uso discricionário dessa ou daquela vontade, mas sim, tem de ser considerado em todas as suas ações, tanto as dirigidas a si mesmo quanto a outros seres racionais, sempre e ao mesmo tempo como fim 62. 59 SARLET, I. In. GODOI, Alcinda; GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não estigmatização e da não discriminação. São Paulo. rev. Saúde e sociedade. v. 23. n.1. 2014 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104>. Acesso jul. 2015. 60 KANT, Emanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução: Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 2009. p. 70. 61 Id. 62 Id. 37 Kant considera o ser humano como um fim, a partir da moralidade, sendo esta, a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, e deste fim em si mesmo, decorre a dignidade. “[...] Portanto, a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que têm dignidade”63. Podemos considerar, portanto, que Kant atribui ao ser humano como principal marca de sua identidade a dignidade, a partir de sua moralidade, exercida por meio de sua autonomia e liberdade, porém, sempre em uma dimensão relacional. Com Kant, o “outro” passa a ter uma finalidade moral. Partilhamos do pensamento de Rohden (2005) em relação a esta dimensão relacional de Kant. “A ética do indivíduo responsável perante os outros é central em Kant. Ela se manifesta quando está em jogo o amor de cada um pelos outros na mesma medida do seu amor a si mesmo, visto que seu objeto é a humanidade”64. Para Sanches (2004), “[...] a dignidade decorre do fato do ser humano existir e também, posteriormente a isso, de ser aceito. Fundar a dignidade humana na pessoa como autoconsciente, ou no cidadão enquanto socialmente aceito, seria o mesmo que fundar a dignidade humana numa posição passível de sofrer um amplo escalonamento”65. Portanto, para Sanches há um dualismo que precisa ser rompido, que é entre existir e ser aceito, ou entre o ser reconhecido como ser humano e ter sua dignidade reconhecida. O contexto atual mostra que o fato do indivíduo existir, ou ser reconhecido como ser humano, de forma alguma significa que automaticamente haja o reconhecimento de sua dignidade, e nesta perspectiva, que o núcleo gerador da vulnerabilidade moral está no fato de que muitos grupos não são reconhecidos em sua dignidade, isto é, são ontologicamente desconhecidos enquanto seres dignos de status ou agência moral. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a dignidade humana passa a ser o grande referencial normativo na promoção dos direitos humanos. Neste sentido, ao inserimos em Bioética a problemática da vulnerabilidade moral, o primeiro aspecto gerador desta forma de vulnerabilidade é a negação da dignidade humana em processos de negação ou inferiorizarão da identidade de indivíduos e grupos, devidos suas padronizações morais, que como veremos adiante, pode acontecer e se 63 Id. ROHDEN, Valério. In. KANT, Emanuel. Razão, liberdade, lógica e estética. Instituto Humanitas Unisinos. Cadernos IHU em formação. Ano 1. nº 2. 2005. p. 22. 65 SANCHES, Mário Antonio. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo. Edições Loyola. 2004. p. 102. 64 38 manifestar de diferentes formas, desde as mais explícitas até as mais sutis e imperceptíveis num primeiro momento. No preâmbulo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”66. Conforme seu art. 1º, “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”67. Este reconhecimento da dignidade humana inerente a todos os membros da família humana presente no preâmbulo da DUDH, permite-nos analisar que grupos considerados vulneráveis sociais e morais possuem uma dimensão em comum, que é o não reconhecimento da dignidade. Aqui, o reconhecimento sempre é de um sujeito ou grupo em relação a outro, e quando esta relação é de desigualdade de dignidade e direitos, a vulnerabilidade moral torna-se uma consequência desta desigualdade. Apesar da dignidade humana ser o tema central da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1946), e ser amplamente contemplada na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), em bioética, a reflexão sobre a dignidade humana ainda prevalece em relação aos conceitos de ser humano e pessoa, em um esforço de muitos bioeticistas em definir ambos os conceitos, e os atributos de cada um deles. Engelhardt (2005) aborda esta questão ao afirmar, por exemplo, que: “As pessoas, e não os seres humanos, são especiais. Os humanos moralmente competentes têm uma posição moral central que não é desfrutada pelos fetos ou mesmo pelas crianças pequenas”68. Portanto, a tratar da dignidade humana em bioética, esta reflexão trazida por Engelhardt é dominante. Frente a dicotomia entre pessoa e ser humano, Sanches destaca que: Defender que a única coisa que interessa é a pessoa, representa a mais brutal traição à dignidade humana, exatamente porque introduz uma confusão no próprio conceito de humano. Se alguém aceita, portanto, defender a dignidade da pessoa e não a do ser humano estará a um passo de defender posições, na bioética, desastrosas para a vida humana 69. 66 UNESCO. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.ohchr.org>. Acesso em 12 set. 2015. 67 Id. 68 ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da bioética. 6ª ed. Tradução: CESCHIN, José. São Paulo. Edições Loyola, 2015. p. 170. 69 SANCHES, Mario. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo. Edições Loyola. 2004. p. 89. 39 Neste sentido, Sanches (2004), permite-nos também considerar o dualismo de Engelhardt, ao fundar a dignidade humana na pessoa como autoconsciente. Assim, é necessário defender a máxima extensão factual da dignidade humana que reside no existir como membro da espécie humana. Do contrário, indivíduos e grupos definidos como moralmente menos relevantes (como, por exemplo, o embrião humano na perspectiva de alguns grupos que militam pelo direito ao aborto) ou moralmente desviantes (como, por exemplo, homossexuais na perspectiva de religiões que militam contra o direito ao casamento igualitário) estarão moralmente vulneráveis. De tal sorte, ao conceituar a vulnerabilidade moral como um processo decorrente de formas específicas de negação da dignidade, para o autor deve-se considera que: A dignidade não é uma afirmação científica, mas social. A dignidade como a igualdade é um princípio ético básico, e não uma assertiva factual. Afirmar a dignidade humana é afirmar o valor que a vida humana ocupa no sentido da existência do próprio ser humano. Isso pode parecer óbvio demais, mas é exatamente assim: o ser humano, na busca de sentido para a própria existência, atribui à vida humana uma dignidade fundamental. A vida humana, de todos os humanos é digna, e em sua máxima compreensão: a vida humana inteira, em todas as suas dimensões, é digna sem nenhum tipo de reducionismo70. Por isso, há que se ampliar a discussão entre a dignidade do ser humano e da pessoa, porém, reconhecer esta dicotomia e defender que o ser humano enquanto pessoa é digno, desde que atenda a determinados critérios e atributos, não significa que ele seja reconhecido em sua dignidade em todas as circunstâncias e fases de sua vida. Este grande esforço que a bioética vem desprendendo em conceituar ser humano e pessoa é absolutamente necessário, porém, há que se ampliar ainda mais a discussão da dignidade humana que é negada a determinados grupos sociais e morais. Para a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, a dignidade humana está destacada no 2º art.: “[...] contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais, de modo compatível com o direito internacional relativo aos direitos humanos”71. 70 Id. p. 98 e 99. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org. Acessado em 12/08/2015>. Acesso 12 ag. 2015. 71UNESCO. 40 A partir do art. 3º, a dignidade humana aparece como um dos princípios. Os princípios devem ser respeitados por aqueles a que ela se dirige, nas decisões que tomem ou nas práticas que adoptem: “A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser plenamente respeitados. Os interesses e o bemestar do indivíduo devem prevalecer sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade”72. O art. 22 da Declaração estabelece que: “Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade”73. No art. 23, afirma-se: “Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim com a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana”74. A defesa dos direitos humanos e a promoção e reconhecimento da dignidade humana, tem sido o caminho árduo percorrido por indivíduos e grupos. O não reconhecimento da dignidade humana e dos direitos humanos tem sido as principais consequências da vulnerabilidade social e moral a que principalmente os grupos estigmatizados estão submetidos. Considerá-los e trata-los na mesma perspectiva de indivíduos e grupos com seus direitos e dignidade reconhecidos, é maximizar a vulnerabilidade a qual já estão submetidos. Por isso, a exploração econômica, desemprego, discriminação, estigmatização, exclusão e o fundamentalismo são algumas das raízes que alimentam tanto a realidade de vulnerabilidade social quanto da vulnerabilidade moral. [...] são dignos não apenas os que pertencem ao nosso grupo, mas todos; não apenas os que pertencem ao nosso grupo familiar, mas também o estranho; não apenas os que pertencem à nossa classe social, mas também os de outra; não apenas os que pertencem à nossa religião, mas também os infiéis; não apenas os que possuem autoconsciência como nós, mas também os que ainda não são dotados de consciência; não somente os que pertencem à nossa pátria, mas também os estrangeiros75. 72 Id. Id. 74 Id. 75 Id. 73 41 A negação, ou a violação da dignidade humana, torna-se, portanto, o primeiro aspecto, a partir dos quais tantos outros serão decorrentes, de forma específica, a estigmatização, a discriminação e a vulnerabilidade moral. 3.2 ESTIGMATIZAÇÃO E DISCRIMINAÇÃO NEGATIVAS: IMPLICAÇÕES ÉTICAS Notamos o conceito de estigmatização de Erving Goffmam na obra: “Estigma, notas sobre manipulação da identidade deteriorada”, onde o autor a define como uma marca ou um sinal. O conceito, segundo o autor, remonta para antes da era cristã: Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou. fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico76. Partiremos da perspectiva de que diante do atual pluralismo moral, a negação do reconhecimento da dignidade do outro é o primeiro passo para a estigmatização. Grupos que não se enquadram em conceitos morais que durante muito tempo foram tidos como unânimes e como guardiões da verdade são estigmatizados. Ao tratar sobre o surgimento de novos conceitos morais na sociedade pluralista, a estigmatização surge como uma rotulação, que atinge indivíduos e grupos. Para Parker e Aggleton (2001), além da dimensão individual, há que se considerar que o estigma é um produto social, que reproduz as desigualdades sociais. Como consequência, cria, mantem ou reforça as desigualdades sociais. Grupos economicamente dominantes imponham sua visão de mundo, seus valores morais em detrimento das minorias77. Esta relação mostra como as situações de vulnerabilidade 76 GOFFMAM, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro. Zahar 2ª ed. 1978. 77 PARKER, R.; AGGLETON, P. In: MAKUSD, Ivia. Estigma e discriminação: desafios da pesquisa e das políticas públicas na área da saúde. Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública. v.30 n.2 /Fev. 2014. 42 social e moral se sobrepõem, aprofundando as situações de fragilidade, desigualdade e estigmatização. A respeito do pluralismo moral que caracteriza as sociedades contemporâneas, para Durand (2007), os anos de 1960 são o teatro de uma mudança social de especial envergadura. É o surgimento das reivindicações individuais e coletivas sociais geradoras de novos conceitos morais, que pode ser definido como: [...] a explosão do consenso social, jurídico e religioso tradicional em relação aos valores morais. Essa mudança se produziu na maior parte dos países ocidentais. Ela foi causada, em parte, pelo deslocamento das populações, como as migrações, mas também pelo desenvolvimento da educação e da cultura. O desenvolvimento das mídias de comunicação em massa contribuiu consideravelmente para isso ao informar a todos sobre as diferentes formas de viver e de pensar. Esse momento é marcado por tantas mudanças que as morais existentes até então foram rapidamente ultrapassadas. As balizas tradicionais mostraram-se insuficientes para responder às questões suscitadas pelas revoluções nos domínios da ciência, da sexualidade e dos direitos da pessoa. Várias morais e uma diversidade de sistemas de valores ganharam lugar na sociedade78. Neste sentido, em uma sociedade pluralista não cabe a imposição de uma única moralidade, determinada por uma única instituição ou modelo social. Porém, deve-se questionar se a liberdade e autonomia, sejam da filosofia, da teologia, da moral, e mesmo da bioética, estão garantindo que todos os indivíduos tenham, por sua vez, garantido um lugar de expressão e convivência pacífica e digna nesta sociedade pluralista? A negativa a esta resposta é outro indicador presente em mecanismos de vulnerabilidade moral. Nesta face negativa, ao mesmo instante em que surge uma diversidade moral, onde cada grupo, instituição ou comunidade elege a partir de seus membros regras e normas de conduta, encontra-se um fechamento para o diálogo com o diferente, o que por sua vez gera a estigmatização de indivíduos e de grupos. Neste contexto, parece que o diálogo ainda não foi colocado em pauta. Quem não comunga ou não se enquadra em uma moral fechada e específica e dominante, é estigmatizado, discriminado negativamente e torna-se moralmente vulnerável. A estigmatização surge como consequência de uma tentativa de se impor uma ideologia, uma raça, uma cultura, uma religião, ou uma moral específica, desconsiderando toda a diversidade atual, que pode se dar desde formas violentas 78 DURAND, Guy. Introdução Geral à Bioética: História, conceitos e instrumentos. Tradução: NYAMI, Nícolas. São Paulo. Edições Loyola. Ed. 2. 2007. p 38. 43 mais explicitas (como assassinatos ou linchamento motivados por ódios) ou por mais sutis (como o a invisibilidade em discursos e narrativas). Esta tentativa de tornar invisíveis indivíduos e grupos, não parte somente de grupos com uma moral tradicional frente aos novos movimentos, como tentativa de impedir a existência e expressão destes grupos, mas também de grupos que surgem na atualidade, de cunho radical e fundamentalista, os quais manifestam uma incapacidade de convivência ou mesmo de tolerância com toda a diversidade presente. A problemática, mais do que social é moral, visto que a moralidade de um grupo é manifestada pela expressão e pelo comportamento. As reações são desastrosas: violência, discriminação negativa, exclusão, etc. Portanto, a desumanização derivada da estigmatização desenvolvida por Parker e Aggleton (2014) expressa bem as implicações e consequências da estigmatização: [...] a redução da individualidade derivada da estigmatização chega ao limite de desumanizar a pessoa estigmatizada, cuja identidade passa a ser definida pelo próprio estigma ou a ser confundida com ele, quando, por exemplo, se passa a nomear a pessoa pelo próprio atributo: o esquizofrênico, o leproso, o surdo, o aidético, o gay, etc79. Para exemplificar as implicações da estigmatização nos processos de produção e reprodução de vulnerabilidade moral discorremos brevemente acerca de um aspecto ou área preponderante em bioética, que é a relação entre os problemas de saúde pública e o estigma moral. A estigmatização moral manifesta-se de diferentes formas, estando vinculada diretamente à vulnerabilidade social: crianças e adolescentes submetido a pedirem dinheiro na rua, ou tornam-se intermediários na distribuição de drogas. Na área da saúde, por exemplo, pacientes que necessitam de medicamentos ou tratamentos com alto custo, sem condições de adquiri-los, e que o estado não contempla no SUS. Somam-se a estes outros grupos, como: desempregados, moradores de ruas, dependentes químicos e outros. Neste sentido, uma bioética pensada a partir de indivíduos e grupos estigmatizados e discriminados, deve ser uma bioética atenta as diversas dimensões da vulnerabilidade que atinge diretamente estes grupos. O atual contexto de vivência nas grandes metrópoles apresenta na atualidade uma questão crucial, a partir das considerações da territorialidade. A divisão territorial 79 PARKER, R.; AGGLETON, P. In: MAKUSD, Ivia. Estigma e discriminação: desafios da pesquisa e das políticas públicas na área da saúde. Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública. v.30 n.2 /Fev. 2014. 44 nestes espaços passaram a tornar-se demarcadores sociais. A periferia, em especial, é impregnada a marca de espaço de violência, tráfico, ociosidade, desinteresse de seus moradores por melhorias, ausência do estado, desorganização, dentre outros atributos. Portanto, a estigmatização moral é decorrente diretamente da negação da dignidade humana a que estão submetidos, e que é manifesta na concretude do dia a dia das populações periféricas. 3.2.1 Estigma moral e problemas de saúde pública O estigma nos problemas de saúde contemporâneos, especialmente no âmbito da saúde pública, estão relacionados a temas como o HIV/AIDS, dependência de álcool e outras drogas e certos tipos de câncer. Embora persistam estigmas associados com questões de saúde historicamente determinados, como descapacidades físicas e mentais, hanseníase, ou mesmo reemergentes, como a tuberculose. Em uma revisão literária sobre o estigma e o alcoolismo, Corrigam (2011),80 destaca que dentre as diversas condições de saúde, as doenças mentais e o abuso de álcool e outras drogas são as mais estigmatizadas pela população geral. Diante disso, assim como para outras condições de saúde estigmatizadas, muitos usuários abusivos ou dependentes de álcool e outras drogas que poderiam se beneficiar da rede de serviços de saúde não buscam quaisquer serviços, ou quando buscam não cumprem o tratamento de maneira proposta para evitar os danos associados ao rótulo de dependente químico. Ou seja, os indivíduos e grupos que já estão vulneráveis às condições debilitantes do vício, tanto no que se refere às implicações à saúde biológica quanto mental, são adicionalmente vulnerabilizados pelo julgamento moral que os impedem de pedir ajuda ou ter acesso a tratamentos adequados. Este caso torna-se dramático nas questões de mulheres que abortam. Diniz (2014) discute como os serviços de saúde tendem a considerar a mulher que abortou ou que procura serviços de aborto em casos permitidos por lei, como suspeitas e mentirosas. A palavra da mulher, nesse sentido, é colocada sob suspeita e não é suficiente para o acesso ao serviço de aborto. Assim, os profissionais de saúde 80 CORRIGAM, P. In: SILVEIRA, Pollyana Santos (org). Revisão sistemática da literatura sobre estigma social e alcoolismo. rev. Estudos de psicologia. vol.16. n.2. Mai/Ag. 2011. 45 sentem-se cobrados a policiar não só os corpos das mulheres, mas também seus próprios regimes de funcionamento e suas práticas de assistência 81. Cunha e Rocha (2015) discutem a percepção de profissionais da saúde sobre esses serviços, apontando que além da mulher que aborta os profissionais envolvidos no serviço também são estigmatizados: “Gosto de atuar na parte de cesarianas e cirurgias eletivas, e o colega que atua nessa área [no abortamento legal] não é bem visto pelos outros colegas”. Essa declaração indica que a dimensão negativa do abortamento reproduz uma perspectiva estigmatizante tanto em relação à mulher que o vivencia quanto ao profissional que o executa82. Neste sentido, há que se desenvolver uma adoção de estratégicas, políticas e ações de saúde mais justas, igualitárias e não-estigmatizantes. Esta perspectiva pressupõe um processo social bem mais amplo do que os limites dados apenas pelo setor saúde. Para Queiroz e Merhy, os agentes sociais que podem viabilizar este modelo extrapolam o nível exclusivo dos profissionais e técnicos de saúde. [...] um fator, no entanto, é fundamental para se começar a pensar nas novas tecnologias necessárias para uma rede básica que supere as inconsistências encontradas no presente modelo: o predomínio dos aspectos coletivos e sociais da medicina em relação à clínica individual e seu paradigma centrado na biologia e no hospital, numa nova concepção de saúde e doença 83. A estigmatização na área da saúde impede que cada indivíduo tenha o mesmo respeito, direito e atenção, tendo em situações extremas sequer reservado o direito de fazer opções. Para Garrafa (2000), também no campo da saúde há que se estabelecer prioridades: passar de prioridades clientelistas, amistosas e arbitrárias para prioridades racionais, igualitárias e transparentes. Neste sentido o autor levanta algumas questões: Quem é o juiz da qualidade de vida de uma pessoa, senão a própria pessoa? Qual é a relação entre qualidade que uma pessoa atribui a si mesma e a qualidade que os outros decidem? Quais são as qualidades que merecem, objetivamente, medidas particulares e as outras que não as merecem?84. 81 DINIZ, Débora. DIO, Vanessa Canabarro. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev. Bioética. v. 22. n. 2. 2014. pp. 291 – 298. 82 ROCHA, Wesley Braga; CUNHA, Thiago Rocha. Percepção dos profissionais de saúde sobre abortamento legal. Rev. Bioética. v. 23. n. 2. 2015. pp. 394 – 404. 83 QUEIROZ, Marcus; MERHY, Emerson. Saúde pública, rede básica e o sistema de saúde brasileiro. rev. Caderno de saúde pública. Maio/junho 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid>. Acesso 10 set. 2015. 84 GARRAFA, Volnei; COSTA, Sérgio. A bioética do século XXI. Brasília, Editora UnB. 2000. p. 47. 46 Como estratégia de enfrentamento da vulnerabilidade envolvida nos processos de estigmatização em saúde, Rocha, et. al., (2015), propõem que a bioética se constitua em um espaço potencialmente propiciador do diálogo entre gestores, profissionais de saúde, usuários dos hospitais, movimentos sociais, educadores, mídia, enfim, entre todos os diversos grupos que compõem o tecido social e que, dialeticamente, fomentam e são vítimas dos processos de estigmatização, vulneração e reprodução das violações dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres85. Constata-se assim, que a estigmatização na saúde, principalmente em contexto de desigualdade social relaciona-se com a estigmatização social e com a vulnerabilidade social, porém, também se relaciona com a estigmatização moral e com a vulnerabilidade moral. 3.3 DA ESTIGMATIZAÇÃO E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA À VULNERABILIDADE MORAL A estigmatização quase sempre está ligada a uma questão moral, seja ela no campo social ou da saúde, na medida em que criam-se rótulos, negando a identidade do indivíduo ou do grupo, a partir de padrões de conduta e comportamentos préestabelecidos, desconsiderando-se o atual contexto de pluralismo moral, e os novos conceitos morais existentes. As diversas formas em que a estigmatização é contemplada em bioética, possuem uma dimensão moral, sendo esta mais complexa, nem sempre perceptível e abordada. A estigmatização cria condições para que grupos numericamente, economicamente, politicamente ou moralmente dominantes imponham sua visão de mundo, seus valores e suas normas, em detrimento de grupos minoritários moralmente e em desvantagem socialmente. É sente sentido que a vulnerabilidade surge como consequência da estigmatização diante dos novos conceitos morais. Para Stepke e Drumond (2007), a vulnerabilidade é sempre relativa. Algumas condições biológicas são desfavoráveis em certos ambientes, mas favoráveis em outros, ou seja, nenhum atributo ou traço das pessoas não é melhor nem pior senão na possibilidade de um dano, isto é, de um risco, segundo a circunstância. Portanto, 85 ROCHA, Wesley Braga; CUNHA, Thiago Rocha. Percepção dos profissionais de saúde sobre abortamento legal. rev. Bioética. v. 23. n. 2. 2015, pp. 394 – 404. 47 a relatividade das vulnerabilidades é um espaço de influências: espaciais, temporais e situacionais. Assim, o autor considera a vulnerabilidade social uma dimensão muito mais ampla e desafiadora, e para compreendê-la parte de três aspectos: preconceito, discriminação e estigma86. Ainda segundo Stepke e Drumond, não é digressão tratar da vulnerabilidade no contexto de preconceito, discriminação e estigma. Como se verá, estes temas têm íntima vinculação, pois somente se é “vulnerável socialmente” no contexto de uma tipificação e na relatividade de contextos e circunstâncias. Neste sentido, tratar sobre vulnerabilidade consiste em um primeiro passo num processo de categorização, sem o qual não existe juízo nem convivência. Existe categorização muito primárias, na mais precoce infância. A partir daí constroem-se os estereótipos sociais, que por parte do coletivo pode ser reforçado ou inibido. Os estereótipos escondem condutas, que só se manifestam sob determinadas circunstancias. Por exemplo, é possível que determinado grupo, mesmo tendo estereótipos negativos sobre as pessoas de pele negra, não manifeste comportamentos discriminatórios se não percebe ameaças ou transgressões, mas basta que uma pessoa negra tente viver no bairro aristocrático, ou pertencer a um exclusivo clube social que isso se converte em comportamentos discriminatórios e estigmatizantes87. Este estereótipo negativo pode produzir a discriminação, que pode acontecer simplesmente pela imposição de limites diferentes ao acesso ou ao gozo de certos bens sociais. Há, portanto, uma estigmatização e uma discriminação indireta, nem sempre percebida e considerada, visto a invisibilidade a qual estes estigmatizados e discriminalizados são sujeitados. Surge como decorrência desta condição, uma vulnerabilidade também nem sempre percebida, que é justamente a vulnerabilidade moral. O caráter moral do estigma e da discriminação tem implicações para o campo da bioética, na medida em tornam indivíduos e grupos vulneráveis morais, o que implica incorporar na bioética as estruturas sociais e morais amplas, a partir da própria natureza interdisciplinar do campo. Muitos grupos de vulneráveis morais são decorrentes da intolerância, da discriminação e da estigmatização, por não se identificarem com padrões estabelecidos moralmente. A estes grupos incluem-se, por exemplo: ex-detentos, 86 STEPKE, Fernando Lopes; DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma antropologia Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007. p. 148. 87 Id. p. 147. 48 diante da falta de oportunidades de ingressarem novamente à vivência social e ao mercado de trabalho, sendo estigmatizados; vítimas da discriminação racial, idosos abandonados em asilos, portadores de necessidades especiais, migrantes, homossexuais e outros. Em entrevista, Gundo Aurel Werler, do departamento de HIV da OMS, chamou a atenção para os grupos de: homossexuais, transexuais, dependentes de drogas injetáveis, prostitutas e presos. Aqueles que mais se infectam, são aqueles que mais precisam de ajuda, e o que se observa é que são estes os grupos que acabam sofrendo discriminação e exclusão. Estes grupos acabam tendo menos acesso a tratamentos do que grupos que não pertencem a grupos mais vulneráveis ao risco88. Estes portanto, são exemplos de grupos que tornam-se vulneráveis morais a partir da estigmatização e das situações de vulnerabilidade social a que são submetidos. Para Stepke e Drumond (2007), há três eixos, que considera-se fundamentais, sobre os quais devem ser elaboradas as variedades de vulnerabilidade, que é a vulnerabilidade sentida, atribuída ou objetiva: O primeiro se refere ao “falante” ou rotulador da vulnerabilidade (quem). Assim, existe uma vulnerabilidade sentida ou percebida pelo próprio sujeito ou pelo grupo, uma vulnerabilidade atribuída por outros, e uma vulnerabilidade “objetiva”, sobre a qual há pleno e universal consenso. O segundo eixo tem a ver com a forma de manifestar a vulnerabilidade (como). Há vulnerabilidades sentidas, atribuídas ou objetivas que conduzem a deficiências, descapacidades ou menos-valias de pessoas e grupos, sempre tomando em consideração que a vulnerabilidade é contextual, situacional e relativa. Ele também atenta em saber se uma determinada suscetibilidade ou vulnerabilidade deriva de condutas próprias da pessoa ou é imposta por condições alheias à vontade dela. Por exemplo em relação aos fumantes, sabe-se que estes são mais vulneráveis a certas condições patológicas. Esta vulnerabilidade pode desencadear uma forte recusa em ajuda-los, sendo considerado fruto de um ato irresponsável, e socialmente merecedor de reprovação e castigo, sendo censurável e punível 89. Ao considerar a vulnerabilidade moral como uma categoria analítica da bioética, faz-se fundamental levar em conta os aspectos desenvolvidos acima: a vulnerabilidade sentida pelo próprio sujeito, a vulnerabilidade rotulada, ou seja, de quem fala, e a vulnerabilidade objetiva, ou seja, de fato. A vulnerabilidade sentida ou percebida pela pessoa vulnerável pode não ser correlativa ou equivalente à 88 WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da Aids diz OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15 jun. 2015. 89 STEPKE, Fernando Lopes e DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma antropologia Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007. p. 148. 49 vulnerabilidade atribuída por outros. Ao identificar uma vulnerabilidade objetiva, devese considerar de forma muito atenta o sujeito que se considera vulnerável, quem fala deste sujeito vulnerável e o contexto em que está inserido, que também pode ser um contexto vulnerável. É neste sentido, que há vulnerabilidades que se manifestam de forma explicita, sendo de fácil constatação. Aqui, a vulnerabilidade atribuída talvez seja a mais perceptível. Ao contrário, há uma vulnerabilidade que é implícita, nem sempre percebida e manifestada, que é a vulnerabilidade sentida de fato pelo próprio sujeito. A vulnerabilidade moral tende a ocupar justamente esta dimensão implícita da vulnerabilidade. Neste sentido, é necessário que cada vez mais a bioética faça um esforço de ocupar metodologicamente um lugar social dos excluídos, possibilitando que diante do atual contexto de globalização, haja uma coexistência integradora entre as diversas comunidades morais, que por vezes são toleradas, porém, sem que com a tolerância sejam contemplados em sua dignidade e direitos. 3.4 TENSÕES ENTRE MONISMO E PLURALISMO MORAL: IMPLICAÇÕES À VULNERABILIDADE MORAL Cada vez mais a globalização aproxima as comunidades morais. Estas comunidades morais, são definidas por Engerlhardt como “[...] indivíduos unidos por tradições e costumes comuns que não vivem isoladamente no contexto de globalização atual”90. Portanto, indivíduos de diferentes comunidades morais ocupam os mesmos espaços sociais, frequentam os mesmos lugares, trabalham nos mesmos lugares, e por vezes também os filhos destes estudam na mesma escola. Portanto, tornam-se estranhos morais por terem diferentes convicções e valores, porém, podem ocupar e conviver nos mesmos espaços territoriais ou mesmo estarem mais próximos por meio das tecnologias de comunicação, especialmente a internet. Esta aproximação entre as comunidades morais como fruto da globalização requer uma abordagem mais ampla e profunda referente aos espaços que estes “estranhos morais” ocupam. Neste caso, a vulnerabilidade moral começa quando se 90 Id. p. 33. 50 estabelece uma relação injusta de poder e força entre os estranhos morais, tornando grupos que já são vulneráveis sociais e/ou estigmatizados, também vulneráveis morais, visto a relação de desigualdade de poder que é mantida. De fato, é possível viver a relação com o outro como uma relação instrumentalizadora: ele me serve, e eu, por aquilo que posso concretamente com base nas relações de força, me sirvo dele para realizar os meus planos e os meus objetivos. O que está em primeiro plano não é a aceitação plena e o respeito a alteridade, mas ao contrário: ele não existe como um outro diferente de mim, mas como um prolongamento de mim, ou seja, eu decido o sentido que o outro tem em minha vida. Certamente o outro procura reagir a esta tentativa de instrumentalização, mas só na medida em que as relações de força lhe permitem que o faça. Quando isso acontece em uma comunidade, trava-se uma relação de todos contra todos91. O risco a que Zuccaro destaca no artigo acima é de se estabelecer uma relação instrumentalizadora, de força e de indiferença entre os diversos estranhos morais, coloca em dúvida o que muitos autores consideram como um valor capaz de proporcionar espaços de vivência pacífica, que é a tolerância. Que a tolerância constitui um valor que deve ser vivido universalmente, e que possibilita a existência de um pluralismo moral é inquestionável, mas como visto anteriormente, a globalização fez com que as diversas comunidades morais, e os estranhos morais ocupassem os mesmos espaços físicos. Portanto, as fronteiras entre os estranhos morais já não são as mesmas do que há pouco tempo atrás. Nasce assim, uma atitude muito mais moderna, considerada inteligente e civilizada: a indiferença. O outro está lá, e é como se não existisse. O outro se tornou outro a tal ponto que me é um estranho. Eu não sou aquilo que quero ser, eu sou realmente eu mesmo apenas porque os outros me atribuem minha identidade profunda, aquilo que me pertence. A minha identidade seria sempre buscada, e nunca encontrada. A pessoa é uma realidade que ainda não tem figura, não tem forma, e só os outros, são capazes de extrair a sua identidade profunda92. Por isso, quando Zuccaro trata da atitude moderna da indiferença, a tolerância torna-se uma forma de permitir que as diferentes comunidades morais existam, mas não como garantia de poder de expressão e de vivência digna. Tolerar que exdetentos vivam em liberdade e socialmente é uma coisa, promover a inclusão social 91 ZUCCARO, Cataldo. Bioética e valores no pós-moderno. São Paulo. Edições Loyola, 2007. p. 112. 92 Id. p. 112. 51 destes é outra. Tolerar a diversidade sexual é uma coisa, permitir que haja a expressão desta diversidade nos espaços sociais é outra. Assim, é na invisibilidade social e na indiferença a determinados sujeitos e grupos que a vulnerabilidade moral encontra um espaço de desenvolvimento e propagação, e neste sentido, a tolerância sem a promoção da dignidade e dos direitos pode gerar e manter a invisibilidade social e a indiferença. Rosenfeld (2000) fala de um pluralismo normativo na relação entre as diversas visões morais em uma sociedade pluralista. “Ao entendermos que o pluralismo não se confunde com o relativismo cultural, devendo encontrar limites, procuramos por uma ideia de pluralismo normativo que permita a coexistência harmoniosa e pacífica de estilos de vida, concepções de bem e visões morais distintas entre si”93. Aqui podemos marcar a vulnerabilidade moral pela incapacidade de determinados indivíduos e grupos coexistirem de forma harmoniosa e pacífica, levando a exclusão, exploração e inviabilização daqueles que não comungam determinada moralidade hegemônica, e neste sentido faz-se urgente um movimento que permita que estes grupos não só existam, mas que sejam reconhecidos em sua dignidade e direitos. Paralelamente, Guy Durand (2007), possibilita-nos aproximar no campo moral da estigmatização e da vulnerabilidade moral a partir do agrupamento da moral em três sentidos ou três funções da moral, que são complementares: questionamento, sistematização/conteúdo e prática. A moral é em primeiro lugar um questionamento, uma reflexão, uma busca, e não é um conjunto de tabus, um código de regras arbitrárias, vindas não se sabem de onde, que se impõem cegamente aos seres humanos. Ela é um questionamento sobre o agir, uma reflexão sobre o que é preciso fazer, uma procura pelo que é bom e justo94. Antes de seguir normas, de obedecer a mandamentos ou a interiorizar valores, é importante conhecê-los. Neste sentido, o autor pressupõe que a moral exige em primeiro lugar um esforço de reflexão. O questionamento, como reflexão sobre o agir, sobre o que é preciso fazer, é um direto de cada indivíduo, onde a partir daí ocorre a decisão do agir. Questionar o agir tendo como parâmetros outros grupos, e como 93 ROSENFELD, M. In: MULLER, Letícia Ludwing. Pluralismo e tolerância: valores da bioética. rev. HCPA. v. 2. p. 102. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/viewFile/5744/3517>. Acesso 15 ag. 2015. 94 DURAND, Guy. Introdução Geral à Bioética: História, conceitos e instrumentos. Tradução: NYIMI, Nícolas. São Paulo. 2ª ed. Edições Loyola. 2007. p 68. 52 decorrência disso, criar uma relação de superioridade e inferioridade é um aspecto que tem como consequência a estigmatização e a vulnerabilidade moral. Portanto, a estigmatização vem sempre como consequência de um questionamento excludente. Ao tratar da relação entre estigmatização e vulnerabilidade moral, o impedimento ao questionamento, é o primeiro aspecto gerador da vulnerabilidade moral, e ainda mais, já em parte pode ser considerada uma forma de vulnerabilidade moral. Quando um sujeito decide pelo outro de forma impositiva sem possibilidade de diálogo e/ou questionamento, desconsiderando todo o contexto ao qual o mesmo está inserido, já pressupõe-se que ali estará orientando a forma como o mesmo deva agir. O momento do questionamento é fundamental para a formação da consciência moral do sujeito. Não poucas vezes na história, e ainda hoje, na cultura pós-moderna, o questionamento é reprovado e sujeitos e grupos que o fazem são impelidos, seja por grupos religiosos, sociais, culturais, políticos, e outros. O conteúdo moral tem por sua vez, a finalidade de orientar a prática, mas sempre diante de um contexto ao qual o indivíduo ou o grupo se encontram. Neste sentido: Diz respeito a um sistema de deveres, de normas e de obrigações ou como um conjunto hierarquizado de valores. Nesta perspectiva fala-se também de teorias morais. A sistematização, ou conteúdo, como um conjunto das normas, pode referir-se ao indivíduo: “minha moral pessoal”, isto é, o conjunto mais ou menos organizado e coerente de valores e regras que orientam a vida que possuo. Também pode referir-se a um grupo: moral católica, moral marxista, etc95. A história tem mostrado que toda a tentativa de implantar de forma impositiva uma moral universal (na forma de monismo moral) que desconsiderasse a diversidade moral foi desastrosa. Grandes atrocidades contemporâneas foram antecedidas por uma tentativa de implantar uma ideologia universal, porém, mediante a eliminação de outra. A sistematização antecede a prática, e dá-se muitas vezes de forma progressiva, durante décadas, ou séculos. O conteúdo que orienta a prática de um determinado povo vai se construindo na história. Assim, desconsiderar a cultura, a moral e os costumes de um grupo, implica em impedir a existência dos mesmos. A moral por fim, remete-se a uma prática. Ela designa uma experiência concreta ao longo dos dias. O que faço concretamente? Que decisão devo tomar? A moral evoca um esforço que faço para aplicar meus princípios, para 95 Id. p. 71. 53 colocar em ação meus valores, a atitude interior que me habita e, por outro lado, a exortação feita a outrem em vista de viver desta ou daquela forma96. A prática é a concretização dos dois aspectos anteriores desenvolvidos pelo autor. Portanto, a partir da estigmatização e da vulnerabilidade moral a prática constitui-se uma etapa não isolada, mas resultado de um questionamento e de uma de um conteúdo excludente e impositivo. Constata-se que, frequentemente indivíduos e grupos são privados do que o autor considera de três sentidos da moral: reflexão, sistematização e prática. Como consequência, tem-se a vulnerabilidade moral e a discriminação. Concluímos, portanto, que a reprodução do estigma e a inferência de outros atributos negativos, a partir de um estigma inicial, também são características do que denominamos de vulnerabilidade moral. Neste sentido, Goffmam trouxe uma reflexão do estigma e da discriminação não de forma abstrata, mas sim, de forma muito concreta, a partir dos diversos agentes que são estigmatizados e discriminados na atualidade, o que também contribui para a vulnerabilidade moral seja compreendida a partir de circunstâncias concretas. Para o autor, a estigmatização leva à discriminação, sendo expressa por termos estigmatizantes, como; aleijado, bastardo, retardado, e outros, presentes nos discursos diários. Tende-se, portanto, a inferir a estes grupos, uma série de imperfeições a partir da imperfeição original97. Assim compreendermos que a vulnerabilidade moral também é uma problemática concreta e que acontece na dinamicidade do dia a dia nos diversos espaços sociais e, portanto, deve ser continuamente considerada, problematizada e pesquisada nos estudos de bioética. Nos próximos capítulos apresentaremos dois artigos científicos produzidos a partir das perguntas dos exercícios de fundamentação teórica desenvolvidos nos capítulos iniciais deste trabalho. O primeiro artigo focará o problema da vulnerabilidade moral a partir de uma reflexão acerca da vulnerabilidade social enquanto o segundo discutirá como a teoria dos estranhos morais de Engelhardt apresenta graves limitações por desconsiderar as implicações do que chamamos de vulnerabilidade moral. 96 Id. p. 70. GOFFMAM, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro. Zahar 2ª ed. 1978. p. 08 97 54 CAPÍTULO 4 ARTIGO 198 VULNERABILIDADE MORAL ENTRE ESTRANHOS MORAIS: DO CONSENTIMENTO À PRIVAÇÃO DE DIREITOS E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA Mariel Mannes99 Thiago Rocha da Cunha100 RESUMO A partir de uma análise crítica da obra de Tristram Engelhardt, demonstra-se a pertinência da temática da vulnerabilidade moral frente aos limites do Princípio da Permissão postulado pelo autor na relação entre estranhos morais. Argumenta-se que diante do contexto de desigualdade de direitos e negação da dignidade nos quais determinados ‘estranhos morais’ podem estar inseridos, a aplicação formal de um procedimento contratualista pode levar indivíduos e grupos a deixarem de ser estranhos morais, para tornarem-se vulneráveis morais. A vulnerabilidade moral assume características específicas, visto a dificuldade em percebê-la e considera-la, com consequência tanto da estigmatização, da discriminação negativa e de outras formas de negação da dignidade humana. A partir do momento em que há condições desiguais de direitos e/ou inexistência de reconhecimento da dignidade entre estranhos morais, o formalismo do contrato reverte não apenas em exploração da vulnerabilidade social, mas na produção de uma forma particular de vulnerabilidade moral. Palavras chaves: 1. Consentimento 2. Dignidade humana 3. Vulnerabilidade moral. 4. Bioética. 98 Artigo encaminhado para submissão na Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina. em Bioética. 100 Doutor em Bioética e professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR. 99Mestrando 55 INTRODUÇÃO O pluralismo moral, a partir do qual Engelhardt desenvolve seu pensamento é um fato atual e um valor imprescindível. A relevância e a seriedade com que o autor considera o tema é que nos permite inseri-lo e discuti-lo a partir das diversas perspectivas, e de forma específica nesta investigação, a partir da análise crítica do princípio do consentimento frente a um contexto em que os estranhos morais tornamse vulneráveis morais, especialmente nas relações em que, por divergência em relação ao cumprimento de determinado padrão moral hegemônico, certos indivíduos e grupos são negados em sua dignidade e privados em seus direitos . Engelhardt (1996) considera que a busca de consenso ético entre os estranhos morais é impossível, visto que no contexto de pluralismo moral atual não existe uma autoridade moral comum que permita resolver as diferenças por meio de argumentos racionais. O consentimento surge a partir da perspectiva de que em uma sociedade pluralista, indivíduos e comunidades são estranhos entre si, sendo elas próprias portadoras da autoridade moral. É neste sentido que para o autor, diante dos dilemas morais, a autoridade moral dá lugar ao consentimento e ao acordo. Ou seja, ao invés de buscar um valor comum, para Engelhardt, os estranhos morais devem resolver seus conflitos e acordos na base de um procedimento contratual que tenha como base o princípio da permissão. Este trabalho postula que a vulnerabilidade moral surge quando em uma sociedade cujo contexto de pluralismo moral, indivíduos e comunidades não são reconhecidos em sua dignidade e em seus direitos e por meio de processos excludentes de estigmatização e discriminação negativa deixam de ser estranhos morais para tornarem-se vulneráveis morais. Neste contexto o princípio do consentimento desenvolvido por Engelhardt apresenta fragilidades que indicam duas questões fundamentais: Qual a autoridade moral que um indivíduo ou grupo moralmente vulnerável pode exercer? Como pode ocorrer um procedimento contratual legítimo para indivíduos cuja existência como agente moral é negada à priori? Ao tratar da vulnerabilidade moral este trabalho procura problematizar e encaminhar respostas a essas questões. 56 O PROCEDIMENTALISMO FORMAL DE ENGELHARDT A autonomia tem se tornado na filosofia um tema decorrente, mas os dois conceitos filosóficos da autonomia que mais influenciam os estudiosos de bioética, e em especial Engelhardt foram Kant e Stuart Mill. Para Kant, a autonomia depende da decisão de fazê-lo de forma livre101. Para Stuart Mill o que Kant considera como autonomia é a liberdade102. Para Kant, a autonomia é um aspecto fundamental e logicamente necessário para alguém ser considerado um agente moral, sendo a autonomia o solo indispensável da dignidade da natureza humana ou de qualquer natureza racional. Para Stuart Mill a autonomia não deve resultar em dano aos demais e na medida que a pessoa a ser respeitada possuísse um razoável nível básico de maturidade103. A autonomia tem uma valorização particular em bioética por diversos autores. Beauchamp e Childress na obra Principles of Biomedical Ethics (1994), trata da autonomia, mas não a coloca em um mesmo nível de importância do que mais tarde Engelhardt rebatizará como princípio do consentimento. Beauchamp e Childress possibilita ler criticamente Engelhardt, quando chama a atenção para que a autonomia não é garantia de que o agente moral está sendo respeitado em suas opiniões, escolhas, valores e crenças. “Ser autônomo não é a mesma coisa que ser respeitado como agente autônomo. Respeitar um agente autônomo é, no mínimo, reconhecer o direito dessa pessoa de ter suas opiniões, fazer suas escolhas e agir com base em valores e crenças pessoais”104. Ferrer e Álvares (2005) também valorizam a autonomia, porém, como uma capacidade oriunda da inteligência, que capacita a pessoa humana para prever as consequências de seus atos, ter preferências entre elas e tomar decisões nas quais, ao escolher um ato, está também escolhendo suas consequências previsíveis. 101 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução: Manoel Pinto Santos. Lisboa. 8ª ed. Fundação Calouste. 2013. p. 105. 102 SCHMIDT, Adriano; TITTANEGRO, Glaucia. A autonomia principialista comprada a autonomia do libertarismo. rev. Teologia e Pastoral. Curitiba. v. 1. n. 1. Disponível em: <http://www.erevistas.csic.es/ficha_articulo.php?url>. Acesso 10 jun. 2015. 103 PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clínica no Pluralismo e diversidade. São Paulo. São Camilo. 2012. p. 59. 104 BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, Jhon. Principles of Biomedical Ethics. Fifth edition. Oxford. Universithy Press. 2001, p. 53. 57 Portanto, a autonomia apresenta-se como uma característica que surge da insuficiência da programação instintiva e da inteligência racional.105 Neste sentido, a autonomia não contempla a diversidade moral, e especificamente aqueles sujeitos cujo contexto torna-se desfavorável para o seu consentimento. A autonomia está condicionada a fatores biológicos, sociais, culturais, religiosos, morais, etc. Mesmo que este condicionamento não signifique que esteja determinado pelo contexto, desconsiderá-lo significa não contemplar toda a diversidade, desigualdade e pluralismo ao qual o sujeito está inserido. Engelhardt surge como principal representante de uma corrente libertária que critica indiretamente o principialismo, porém, rebatiza o princípio da autonomia como princípio do consentimento, sendo o consentimento uma forma de reconhecimento de uma autoridade moral secular do próprio indivíduo. O principialismo utiliza como método para a resolução de dilemas morais os quatro princípios: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, tendo Beauchamp e Childress como seus principais representantes, na obra Principles of Biomedical Ethics (1994)106. Distanciando-se do principialismo, para Engelhardt tanto a permissão, quanto o contrato, surgem como decorrentes do princípio da autonomia como forma de aproximar os estranhos morais, sendo assim, possível resolver os conflitos entre eles. O autor parte do pressuposto de que a argumentação racional não pode resolver os debates éticos entre os estranhos morais. É neste sentido que para o autor não há uma bioética fora de uma perspectiva moral particular, sendo impossível estabelecer algumas normas e princípios moralmente obrigatórios para todos os seres racionais. Os debates éticos entre estranhos morais sobre questões concretas são intermináveis, porque não existe uma visão moral comum que permita resolver as diferenças por meio de argumentos racionais.107 Como chegar ao acordo sobre o que é o “bem” no principio da beneficência ou sobre o que é ‘mal’ no principio da não maleficência quando os indivíduos não compartilham os mesmos pressupostos morais? É diante desta impossibilidade de chegar ao consenso sobre o ‘conteúdo 105 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São Paulo: Edições Loyola. 2005, p. 39. 106 BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, Jhon. Principles of Biomedical Ethics. Fifth edition. Oxford. Universithy Press. 2001, p. 53. 107 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São Paulo: Edições Loyola. 2005, p. 205. 58 substantivo’ das normas que Engelhardt propõe um ‘procedimento formal’, baseado na permissão/consentimento. Assim, o princípio do consentimento surge como resposta dada por Engelhardt para o conflito entre os estranhos morais, já que para o autor é impossível querer implantar uma moral comum, para todos, em qualquer lugar e circunstância. Somente por meio do consentimento, é possível aos estranhos morais chegarem a um consenso. Este princípio é constituído a partir do princípio da autonomia, e deve levar em conta o contrato social estipulado entre pessoas, ou entre pessoas e o estado. LIMITES DO CONTRATUALISMO DE ENGELHARDT A princípio do consentimento é desenvolvido por Engelhardt a partir de uma centralidade que acompanha todo o seu pensamento. Para o autor, a sociedade é formada por comunidades morais particulares, que são estranhas entre si, daí a definição de estranhos morais. Estas, por sua vez, são as portadoras da autoridade moral para resolver os conflitos morais, e não mais a autoridade moral sendo exercida por um único indivíduo ou instituição. Portanto, diante dos dilemas morais existentes entre os estranhos morais, a autoridade moral dá lugar ao acordo e ao consentimento. “A moralidade em uma sociedade pluralista secular é a prática de fazer o bem dentro das fronteiras da autoridade em comunidades com visões morais diversas.”108 Neste sentido, o consentimento em Engelhardt serve de base para a moralidade do respeito mútuo, no sentido de que exige que os outros sejam usados apenas quando dão seu consentimento109. O princípio do consentimento e do acordo mútuo desenvolvido por Engelhardt pode ser problematizado a partir de duas perspectivas centrais, que é o reconhecimento da dignidade humana e a existência de igualdade dos direitos. Aplicar o consentimento e o acordo mútuo entre os estranhos morais requer considerar duas realidades: A primeira implica compreender se mesmo sendo estranhos morais, estes sujeitos ou grupos possuem sua dignidade reconhecida e seus direitos garantidos. A segunda implica em compreender se entre os estranhos morais há desigualdade de direitos e não reconhecimento da dignidade entre os estranhos morais. 108 ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola. 2015. p. 148. 109 Id. p. 148. 59 Esta análise ocupa-se da segunda realidade, visto que diante das tensões que derivam do pluralismo moral atual e do aumento das desigualdades sociais, certos indivíduos e grupos são estigmatizados e não são reconhecidos em sua dignidade e direitos. Diante destes contextos de desigualdade, exclusão e discriminação negativa aplicar o procedimento formal com base em pretenso processo de consentimento e o acordo entre morais alimenta ainda mais a vulnerabilidade ao qual já estão submetidos. Nos casos mais graves, a negação do reconhecimento da identidade e do valor da dignidade daqueles que não são ‘amigos morais’ inviabiliza o próprio procedimento contratual, abrindo margens para exclusão, exploração e outras formas de relação violenta entre estranhos morais. Nestes casos a vulnerabilidade não se manifesta apenas por condições sociais, biológicas ou existências, mas, sobretudo por pressupostos morais. Para Engelhardt, “A moralidade dos estranhos morais mostra até onde podem colaborar indivíduos de diferentes comunidades morais. A moralidade dos estranhos morais mostra aquilo que é importante mas precisa depender da conversão e não da força. Não pode forçar sua aceitação”110. Analisar o princípio do consentimento e do acordo mútuo a partir do contexto de vulnerabilidade moral, implica um olhar e uma abordagem que vá além da regra de simplesmente não utilizar-se da força como forma de busca de aceitação. A vulnerabilidade moral é menos perceptível e mais difícil de ser identificada que a vulnerabilidade social ou biológica, e simplesmente não fazerse o uso da força torna-se insuficiente, visto o contexto de fragilidade e velamento ao qual o indivíduo ou grupo ‘destoante’ da moralidade hegemônica está inserido. Desta forma, em contextos de acirramento das disputas sobre valores e visões de mundo que marcam o início do século XXI e do aprofundamento de desigualdades sociais em níveis planetários, o princípio do consentimento, da permissão e do contrato desenvolvidos por Engelhardt não só tornam-se insuficientes, mas podem também ser geradores e mantenedores da vulnerabilidade moral. VULNERÁVEIS MORAIS FRENTE AO CONTRATUALISMO ENGELHARDT Em relação às fragilidades na aplicação do princípio da permissão quando compreendemos os estranhos morais como vulneráveis morais diante do contexto de 110 Id. p. 132. 60 negação da dignidade humana e privação dos direitos, cabe considerar com mais atenção o princípio do consentimento desenvolvido por Engelhardt na sexta edição do livro Fundamentos da Bioética (1996). Segundo o autor: A autoridade para as ações envolvendo outros em uma sociedade pluralista secular é derivada de sua permissão. Como consequência: i: sem essa permissão ou consentimento não há autoridade. ii: ações contra essa autoridade são merecedoras de acusação, no sentido de colocarem o violador fora da comunidade moral em geral, e tornando lícita (mas não obrigatória) a força retaliatória, defensiva ou punitiva 111. O consentimento e a permissão são tratados por Engelhardt em um mesmo sentido, reforçando que estes são as bases fundamentais para a autoridade moral, sendo que uma pessoa somente tem autoridade se o outro indivíduo lhe der permissão. O que se percebe, é que o autor, tendo como base de seu pensamento a pluralidade moral, desconsidera que esta pluralidade acontece de forma desigual no que se refere a direitos e, principalmente, ao recolhimento da dignidade entre sujeitos. O que chamamos de vulnerabilidade moral, torna-se uma consequência quando esta diversidade não é contemplada em suas diferenças de direitos e dignidade, levando a processos discriminatórios e estigmatizantes. Considerar em uma sociedade excludente o consentimento como único aspecto capaz de resolver as controvérsias entre os estranhos morais, tal como sugere Engelhardt, implica em desconhecer e aprofundar formas de vulnerabilidade moral que implicam na negação do próprio agente moral como portador do direito de consentir. O problema também pode ser abordado a partir de outro ângulo: em que circunstância um sujeito ou grupo pode consentir pelo outro? Engelhardt diferencia duas formas de consentimento: “A. Consentimento implícito: indivíduos, grupos e Estados têm autoridade para proteger os inocentes da força que não alcança consentimento”112. e “B. Consentimento explícito: indivíduos, grupos e Estados podem decidir pela vigência de contratos ou criar direitos de assistência social”113. Nos ítens A e B, a autoridade moral também pode ser usada para proteger qualquer outro sujeito contra atos sem seu consentimento. Aqui, o risco do consentimento e da permissão está em não considerar as causas que levam 111 Id. p. 154. Id. p. 156. 113 Id. p. 156. 112 61 determinados sujeitos e grupos a não poderem consentir, o que favorece que estes sejam mantidos em uma situação de vulnerabilidade moral, que não se torna reversível. C. Justificação do princípio: o princípio do consentimento expressa a circunstância de que a autoridade para resolver disputas morais em uma sociedade pluralista, secular, só pode ser obtida a partir do acordo dos participantes, já que não deriva de argumentos racionais ou da crença comum. Portanto, a permissão ou consentimento é a origem da autoridade, e o respeito ao direito dos participantes de consentir é a condição necessária para a possibilidade de uma comunidade moral. O princípio do consentimento proporciona a gramática mínima para o discurso moral secular. É tão inevitável como o interesse das pessoas em acusar ou elogiar com justificação e resolver questões com autoridade moral114. No item C o autor faz uma justificação do princípio do consentimento, o que expressa a valorização com que considera este princípio. É o resumo do que viemos tratando até aqui. Surge o contrato como um aspecto formal no que podemos chamar de uma negociação. A relação de um estranho moral A, com um estranho moral B, só pode ser reconhecida como legítima, na medida em que tanto A, quanto B gozam de igualdade de direitos e dignidade, ou seja, não são excluídos ou segregados. Do contrário, qualquer relação entre A e B, mediada por meio de um contrato, reforçará ainda mais estas desigualdades. Portanto, sempre que um estranho moral estar em situação de vulnerabilidade moral, o princípio do consentimento será aplicado de forma desproporcional e desigual, visto as condições desiguais dos sujeitos para consentir. É possível aplicar, por exemplo, com os mesmos critérios, o julgamento de um adolescente infrator cujo desenvolvimento social aconteceu em um contexto favorável, de um adolescente infrator, cujo desenvolvimento se deu em um contexto de violência, e sem oportunidade de educação? O risco de se considerar estes dois estranhos morais, com os mesmos critérios, é negligenciar o contexto vulnerabilidade social e moral a qual um dos estranhos morais pode estar inserido. D. A motivação para obedecer ao princípio encontra-se vinculada aos interesses em agir de um modo i) que é justificável a pessoas pacíficas em geral, e ii) que não justificará o uso de força defensiva ou punitiva contra a própria pessoa115. 114 115 Id. p. 158. Id. p. 158. 62 A manutenção da boa convivência entre as pessoas é o motivo principal para que o sujeito obedeça ao princípio do consentimento. O princípio do consentimento é tido pelo autor como garantia de que nenhuma ação pode ser considerada ruim ou ilegal quando há o consentimento. Se no item C chamamos a atenção de que o autor desconsidera as causas dos sujeitos sem condições de terem autonomia, aqui fica evidente que ele desconsidera as consequências na relação entre os sujeitos, onde um não tenha as mesmas condições de autonomia que o outro. O exemplo aplicado ao item C também se aplica ao item D. “E. Implicações para as políticas públicas: o princípio do consentimento proporciona base moral para políticas públicas destinadas à defesa dos inocentes” 116. No item E é transferido ao Estado a função de defender os inocentes. Se o princípio do consentimento é entendido pelo autor como forma de resolver as controvérsias entre os estranhos morais, não deveria ser também o próprio sujeito responsável pela defesa dos inocentes? “F. Máxima: Não faça aos outros, aquilo que eles não fazem consigo mesmos, e faça por eles o que foi contrato para fazer”117. “G: O princípio do consentimento proporciona a base para aquilo que poderia ser chamado de moralidade de autonomia como respeito mútuo”.118 Compreende-se que este procedimento formal por Engelhardt poderiam ser meios adequados caso os estranhos morais fossem portadores dos mesmos direitos e reconhecidos em sua dignidade. Porém, conforme indicado, no atual contexto acirramento de posições morais extremistas e excludentes e aprofundamento de desigualdades, indivíduos e grupos minoritários podem ser privados de seus direitos, excluídos socialmente e estigmatizados moralmente. A vulnerabilidade moral pode ser decorrente da vulnerabilidade social, especialmente quando por razões socioeconômicas indivíduos e grupos em situação de miséria e pobreza são rotulados como moralmente ‘inferiores’, ‘incapazes’ e outros termos recorrentes em determinados discursos elitistas e mesmo meritocráticos. Assim, em contextos de vulnerabilidade social, considerar apenas o consentimento e o contrato como procedimentos principais na relação entre os estranhos morais pode aprofundar a vulnerabilidade moral. 116 Id. p 159. Id. p.160. 118 Id. 117 63 A impossibilidade real dos indivíduos em situação de vulnerabilidade social defenderem seus interesses leva a considerar a autonomia a partir de outros referenciais. A perspectiva ao qual o consentimento analisado por Garrafa, por exemplo, é diferente da perspectiva de Engelhardt, visto que procura garantir a identidade singular do indivíduo, a partir do respeito pela diferença e da promoção humana. O autor questiona: “Não exigirá esta nova bioética global, uma também nova expressão do consentimento, não restritivamente normativista, mas paralelamente ampla? Uma concepção de consentimento capaz de se tornar coextensiva ou se adaptar às diversas sociedades existentes?”119. Em consonância com Garrafa, ao pontuar a problemática da vulnerabilidade moral na relação procedimental entre morais, este trabalho não tem por intuito reduzir o valor da autonomia ou do consentimento, mas ampliá-lo a partir da consideração dos contextos objetivos e subjetivos que estão relacionados ao reconhecimento/negação da dignidade à existência de igualdade/desigualdade de direitos e condições materiais que envolvem a relação entre estranhos morais. O VALOR DA DIGNIDADE HUMANA FRENTE À VULNERABILIDADE MORAL Relacionamos a vulnerabilidade moral a dois grandes eixos que devem ser considerados na relação entre estranhos morais: um primeiro de natureza abstrata e subjetiva diz respeito ao necessário reconhecimento do outro como interlocutor moral legítimo; isto é, como portador de dignidade simplesmente por ser um humano, independentemente de suas convenções morais. Um segundo, de natureza concreta e objetiva diz respeito à existência de igualdade de condições materiais e de direitos que influencia na capacidade de autonomia dos agentes morais e, portanto, também indica se a relação se mantém de forma a respeitar ou a violar a dignidade do outro. O conceito de dignidade especificamente aplicado ao ser humano faz parte da mais tradicional doutrina cristã. Kant desenvolveu o conceito no campo da filosofia, de forma mais específica na obra Fundamentos da metafísica dos costumes (1785), no qual atribui um valor absoluto ao ser humano, a partir de sua dignidade. “O homem, e de modo geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não meramente como 119 GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Op. cit. p. 496. 64 meio para o uso discricionário dessa ou daquela vontade, mas sim, tem de ser considerado em todas as suas ações”120. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e posteriormente a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) fundam a dignidade humana como o valor fundamental a partir do qual derivam diversos princípios e direitos. No preâmbulo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”121. Conforme seu art. 1º, “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”122. Este reconhecimento da dignidade humana inerente sempre ocorre entre um sujeito ou grupo em relação a outro. Portanto, ao analisar criticamente a relação procedimental entre estranhos morais, aspecto central para que o princípio do consentimento e do acordo seja um meio eficaz de convivência entre os estranhos morais, é que diante da atual pluralidade, todos os sujeitos e grupos sejam reconhecidos em sua dignidade, seja do ponto de vista abstrato ou material. Para Sanches (2004), “[...] a dignidade decorre do fato do (ser humano) existir e também, posteriormente a isso, de ser aceito. Fundar a dignidade humana na pessoa como autoconsciente, ou no cidadão enquanto socialmente aceito, seria o mesmo que fundar a dignidade humana numa posição passível de sofrer um amplo escalonamento”123. Portanto, para Sanches, há um dualismo que precisa ser rompido, que é entre existir e ser aceito, ou entre o ser reconhecido como ser humano e ter sua dignidade reconhecida. O contexto atual mostra que o fato do indivíduo existir, ou ser reconhecido como ser humano, de forma alguma significa que automaticamente haja o reconhecimento de sua dignidade. É neste sentido que o núcleo de nossa investigação está no fato de que muitos grupos não são reconhecidos em sua dignidade e, portanto, são vulneráveis moralmente. 120 KANT, Emanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução: Manoel Santos. Lisboa. 8ª ed. Fundação Calouste, 2013. p. 78. 121 UNESCO. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.ohchr.org>. Acesso 15 set. 2015. 122 Id. 123 SANCHES, Mário Antonio. Bioética, ciência e transcendência. Edições Loyola. São Paulo. 2004, p.102. 65 Apesar de a dignidade humana ser amplamente contemplada na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), em bioética a reflexão sobre a dignidade humana ainda prevalece em relação aos conceitos de ser humano e pessoa, em um esforço de muitos bioeticistas em definir ambos os conceitos, e os atributos de cada um deles. O próprio Engelhardt aborda esta questão ao afirmar, por exemplo, que. “As pessoas, e não os seres humanos são especiais. Os humanos moralmente competentes têm uma posição moral central que não é desfrutada pelos fetos ou mesmo pelas crianças pequenas”124. Diante do contexto de vulnerabilidade moral, a dignidade humana ainda encontra tensão frente a dicotomia entre “pessoa” e “ser humano”. Segundo Sanches: “Defender que a única coisa que interessa é a pessoa, representa a mais brutal traição à dignidade humana, exatamente porque introduz uma confusão no próprio conceito de humano. Se alguém aceita, portanto, defender a dignidade da pessoa e não a do ser humano, estará a um passo de defender posições, na bioética, desastrosas para a vida humana”125. Deste modo, a questão do reconhecimento do outro (especialmente do ‘estranho moral’) torna-se central para compreender as outras formas de vulnerabilidade, e dentre elas, a vulnerabilidade moral. Por isso, há que se ampliar a discussão entre a dignidade do ser humano e da pessoa, porém, reconhecer esta dicotomia e defender que o ser humano enquanto pessoa é digno, desde que atenda a determinados critérios, não significa que ele seja reconhecido em sua dignidade em todas as circunstâncias e fases de sua vida. Este grande esforço que a bioética vem desprendendo em conceituar ser humano e pessoa é absolutamente necessário, porém, há que se ampliar ainda mais a discussão da dignidade humana que é negada a determinados grupos sociais e morais. “A exploração econômica de um ser humano por uma pessoa, por um sistema econômico ou mesmo por um governo, não raro, está sustentada num esquema ideológico em que a dignidade do explorado é teórica e praticamente negada ou diminuída”126. A defesa dos direitos humanos e a promoção e reconhecimento da dignidade humana, tem sido o caminho árduo percorrido por indivíduos e grupos. O não reconhecimento da dignidade humana e dos direitos humanos tem sido as principais 124 ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola. 2015. p. 170. 125 SANCHES, Mario. Op. cit. p. 89. 126 SANCHES, Mario. Op. cit. p. 102. 66 consequências da vulnerabilidade social e moral a que principalmente os grupos estigmatizados estão submetidos. Considerá-los e trata-los na mesma perspectiva de indivíduos e grupos com seus direitos e dignidade reconhecidos, é maximizar a vulnerabilidade a qual já estão submetidos. Por isso, a exploração econômica, desemprego, discriminação, estigmatização, exclusão e o fundamentalismo são algumas das raízes que alimentam tanto a realidade de vulnerabilidade moral. CONSIDERAÇÕES FINAIS Problematizar em qualquer área uma temática ou conceito ainda pouco desenvolvido não é tarefa fácil. Em bioética, pela sua natureza interdisciplinar, este exercício é ainda mais desafiador. A vulnerabilidade é um dos referenciais e princípios importantes da bioética, porém, seu foco tem se dado nas dimensões existenciais, sociais ou contingenciais. Este trabalho buscou pautar a relevância em se discutir uma dimensão específica da vulnerabilidade que está relacionada à negação do reconhecimento do outro como agente moral, seja por processos de estigmatização, exclusão e outras formas de negação de dignidade e direitos. Demonstramos a importância de considerar desta dimensão particular da vulnerabilidade demonstrando as limitações do contratualismo proposto por Engelhardt para as relações entre estranhos morais e como a estreita abordagem procedimental do contrato pode gerar, manter ou aprofundar consequências eticamente ilegítimas. Pontuamos que as fragilidades na dinâmica da permissão e do consentimento desconsideram certos impactos na relação entre estranhos morais, sobretudo da negação do reconhecimento como agente moral para grupos e pessoas que distanciam de padrões morais hegemônicos em dado contexto. A “estranhesa” moral em sociedade pluralista, mas excludentes, aponta para a necessidade de considerar a vulnerabilidade moral como um problema para a bioética e pautar este problema torna-se um imperativo ético na medida em que desnuda como certas argumentações bioéticas a-críticas e procedimentais, tal como a proposta por Engelhardt, violentas. podem contribuir para a reprodução de dinâmicas excludentes e 67 REFERÊNCIAS BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, Jhon. Principles of Biomedical Ethics. Fifth edition. Oxford. Universithy Press. 2001. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS <http://www.ohchr.org>. Acessado em 12/08/2015. HUMANOS. Disponível em: DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org>. Acesso 12 ag. 2015. ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução: CESCHIN, José. São Paulo 6ª ed. Edições Loyola. 2015. ____________________ Bioética Global: O colapso do consenso. Tradução: CESCHIN, José. São Paulo. Paulinas. 2012. FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2005. GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. (org). Bioética, Poder e injustiça. Tradução: Adail Sobral. São Paulo. Edições Loyola. 2003. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003. PESSINI, Leo. BARCHIFONTAINE, Christian (org). Fundamentos da Bioética. São Paulo. Paulus. 2ª ed. 2002. PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clínica no Pluralismo e diversidade. São Paulo. São Camilo. 2012. SANCHES, Mário Antonio. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo. Edições Loyola. 2004. SCHMIDT, Adriano; TITTANEGRO, Glaucia. A autonomia principialista comprada a autonomia do libertarismo. Disponível em: <http://www.erevistas.csic.es/ficha_articulo.php?url>. Acesso 10 jun. 2015. ZUCCARO, Cataldo. Bioética e valores no pós-moderno. São Paulo. Edições Loyola. 2007. WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da Aids diz OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15 ab. 2015. 68 CAPÍTULO 5 ARTIGO 2127 FRONTEIRAS ENTRE VULNERABILIDADE SOCIAL E VULNERABILIDADE MORAL: IMPLICAÇÕES BIOÉTICAS Mariel Mannes128 Thiago Rocha da Cunha129 Resumo Este artigo tem como objetivo incluir na reflexão bioética a problemática da vulnerabilidade moral. A relevância desta aproximação se dá por considerarmos que há uma especificidade da vulnerabilidade moral que não são tratadas pela bioética, que tende a abordar apenas aspectos da vulnerabilidade ontológica ou da vulnerabilidade moral. A vulnerabilidade é desenvolvida a partir da dimensão existencial e social. A primeira como uma condição humana, e a segunda como circunstancial, atingindo indivíduos e grupos específicos, que vivem em contexto desfavorável ao seu desenvolvimento. Discutiremos a vulnerabilidade moral como consequência da vulnerabilidade social e em olhar o ser humano em sua totalidade. Assim, apontamos para a necessidade de consolidar uma terceira dimensão, ainda não desenvolvida em bioética, que é a vulnerabilidade moral. Neste artigo, a vulnerabilidade moral será incluída como decorrente da vulnerabilidade social, na medida em que esta for geradora de processos de estigmatização, exclusão e discriminação negativa. Palavras – chaves: Vulnerabilidade – estigmatização – exclusão – discriminação negativa 127 O Capítulo 04 corresponde a artigo encaminhado para submissão na Revista Latino Americana de Bioética. 128 Mestrando em Bioética pelo Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR 129 Doutor em Bioética e professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR. 69 INTRODUÇÃO Atualmente, a vulnerabilidade ocupa um espaço de grande relevância nas discussões em bioética, sendo um de seus referenciais. Compreender a vulnerabilidade como um referencial da bioética dá-se a partir de duas realidades. A primeira é que a vulnerabilidade constitui uma dimensão que é comum a todos os seres humanos, que é a vulnerabilidade existencial. A segunda diz respeito a grupos ou indivíduos que são impactados por uma vulnerabilidade circunstancial, visto o contexto de pobreza, violência, desemprego e outros, sendo considerada como vulnerabilidade social. As duas concepções são consideradas pelas diversas áreas, porém, ao se considerar o contexto de desigualdade social, negação da dignidade humana, privação dos direitos, estigmatização e discriminação, apresentam-se como insuficientes. Neste sentido, desenvolveremos em nossa investigação o conceito de vulnerabilidade moral, a partir da perspectiva da bioética. Tanto a vulnerabilidade quanto a moralidade constituem duas dimensões antropológicas fundamentais da existência humana. A relação entre vulnerabilidade e moral é ainda pouco desenvolvida, seja na filosofia, na sociologia ou na bioética. Abordaremos a vulnerabilidade moral a partir de duas perspectivas. Primeiramente, a vulnerabilidade moral que é decorrente da vulnerabilidade social, e em seguida a vulnerabilidade moral que não está necessariamente ligada a vulnerabilidade social, porém, surge como consequência da estigmatização e da discriminação. A vulnerabilidade é a mesma, porém, as causas são diferentes, o que requer também uma abordagem diferente. O problema é de que enquanto a vulnerabilidade social é de fácil percepção e identificação, a vulnerabilidade moral, ao contrário, é muitas vezes imperceptível e de difícil constatação. ENTRE O SER VULNERÁVEL E O ESTAR VULNERÁVEL A vulnerabilidade vem sendo considerada como uma dimensão antropológica essencial da existência humana. Kottow traz uma dimensão fundamental da vulnerabilidade na vida humana: “A vulnerabilidade intrínseca às vidas humanas também foi reconhecida por filósofos políticos que propuseram ordens sociais 70 destinadas a proteger da violência a vida, a integridade corporal e a propriedade”130. Partiremos, portanto, da premissa de que todos nós somos vulneráveis, e que todos os seres vivos estão sujeitos à vulnerabilidade. A vulnerabilidade humana deve ser reconhecida como traço da condição humana, considerando a finitude e fragilidade de todos os seres, cuja existência é marcada pela exposição permanente a ser ferido. Ela, portanto, está presente em todo indivíduo, e em qualquer fase de sua vida. Ao ser humano, a vulnerabilidade vai além de sua condição biológica na busca pela sobrevivência, o que é comum a todos os animais, mas também revela-se na sua condição existencial e moral, enquanto busca de sentido para a vida. Considerando que a vulnerabilidade é uma problemática complexa, conceituada e manifestada de diversas formas, tomaremos como ponto de partida a investigação desenvolvida por Cunha e Garrafa (2016), entitulada: “Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?”131. A relevância do trabalho desenvolvido por estes autores permite-nos ter clareza acerca das bases a partir das quais abordaremos a vulnerabilidade neste trabalho. No referido artigo, os autores problematizam o conceito de vulnerabilidade expressado nas perspectivas de cinco abordagens regionais da bioética: estadunidense, europeia, latino-americana, africana e asiática132. Neste sentido, constatam que a vulnerabilidade apresenta nuances bastante variados, sendo que em cada regional assume características e formas de abordagens específicas, mesmo que por vezes prevaleça um modelo conceitual, mas sem sobrepor-se às características específicas de cada contexto. Além da vulnerabilidade intrínseca à existência humana, alguns indivíduos e grupos são afetados diretamente por circunstâncias desfavoráveis, nas quais a pobreza, a falta de educação, as dificuldades geográficas, as doenças crônicas, a violência e outros infortúnios os tornam ainda mais vulneráveis. Ruth Macklin pergunta: “O que torna indivíduos, grupos ou países vulneráveis?” Segundo a autora, pessoas vulneráveis são pessoas relativa ou absolutamente incapazes de proteger seus próprios interesses. De modo mais formal, podem ter poder, inteligência, 130 KOTTOW, Michael. Comentários sobre bioética, vulnerabilidade e proteção. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo (org.). Bioética: Poder e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. p. 74. 131CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics? Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 25, 2016. pp 197-208. 132 Id. 71 educação, recursos e forças insuficientes ou atributos necessários à proteção de seus interesses133. A pergunta sobre o que torna indivíduos e grupos vulneráveis é uma questão fundamental, e que deve ser uma constante, mesmo antes de proteger ou intervir. Se há a necessidade de proteção, é porque de alguma forma a pessoa ou o grupo já está em situação de risco, e se precisa intervir é porque já sofre danos. Portanto, identificar o que torna grupos e pessoas vulneráveis, é o primeiro passo para impedir que passem de um estado de ser vulnerável para o estado de estar vulnerável. A origem daquela vulnerabilidade comum ao ser humano é conhecida, pois é a própria condição de “ser humano”, mas esta, de grupos específicos, apresenta um desafio maior, pois buscar a origem desta vulnerabilidade específica implica analisar diversos fatores, como: estado, comunidade, sistemas econômicos e sociais, instituições e órgãos. Todos estes, podem colocar o indivíduo ou o grupo em estado de vulnerabilidade específica. Portanto, a identificação deve ser um esforço comum a todas as áreas: educação, ética, bioética, sociologia, filosofia, saúde, etc. Hans-Martin Sass (2003) conceitua o uma “nova vulnerabilidade” característica das sociedades modernas e que é representada pelo fácil rompimento das relações interpessoais, pela insegurança no emprego, por estruturas desiguais de sistemas de cuidados do caráter anônimo, pela falta de apoio familiar na doença e na demência”134. Nas sociedades modernas, pesam sobre as pessoas vulnerabilidades diferentes. Por exemplo, muitas pessoas solteiras nas grandes metrópoles gozam de dimensões de liberdade civil que as culturas pré-modernas desconheciam, mas são vulneráveis como nunca antes devido a não contarem com uma família, com vizinhos, com comunidades morais que lhes deem apoio, tendo apenas direito legal sobre certos serviços de proteção. A partir da diversidade dos problemas contemporâneos é possível perceber que a forma como a vulnerabilidade é concebida ainda é insuficiente e ilimitada. “Indivíduos e comunidades são vulneráveis porque carecem dos bens fundamentais de que precisam para sair de um estado de destituição. Padecem da perda de 133 Id. p.74. SASS, Hans Martin. In: GARRAFA, Vonei e PESSINI, Leo (org.). Bioética: Poder e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. p. 80. 134 72 capacidade ou da falta de liberdade, tem reduzida a gama de possibilidades disponíveis para o bem estar e buscar os interesses importantes de sua vida”135. Na obra Bioética e Vulnerabilidade (2012), Sanches e Guber (orgs), apresentam várias dimensões ao se discutir a vulnerabilidade no campo da bioética: bioética, vulnerabilidade e educação; genética e vulnerabilidade; da vulnerabilidade do embrião emergente da reprodução humana assistida; a vulnerabilidade do transexual; gênero, vulnerabilidade e HIV; Bioética nos cuidados neonatais; vulnerabilidade do enfermo e a relação de cuidado; vulnerabilidade no ambiente de trabalho, assédio moral 136. A vulnerabilidade ganha aqui, uma relevância e uma abrangência que permite-nos compreende-la e inseri-la a partir das diversas perspectivas, além da dimensão existencial e social, mas também moral. DA VULNERABILIDADE SOCIAL À VULNERABILIDADE MORAL Antes de adentramos na vulnerabilidade moral, cabe considerar a vulnerabilidade social, visto ser uma forma de vulnerabilidade mais explícita e perceptível. Tratar de vulnerabilidade social, não implica tratar de forma igualitária todos os sujeitos de um grupo, mas sim, considerar as diferentes formas que cada indivíduo ou grupo sofre a vulnerabilidade. Cabe aqui considerar a vulnerabilidade do indivíduo, de um grupo, e dos sujeitos específicos dentro de um grupo e, sobretudo, as influências de condicionantes sociais e do cotidiano de suas vidas.137 Isso porque, mesmo que todo um grupo seja vulnerável, ela se manifesta de forma diferente entre os sujeitos. Identificar e reconhecer a forma como cada sujeito é impactado pela vulnerabilidade é um grande desafio à bioética. Alguns membros de grupos vulneráveis não manifestam a vulnerabilidade. Porém, conforme será problematizado na perspectiva da vulnerabilidade moral, estes podem não demonstram vulnerabilidade porque a pressão social a favor do preconceito é mais poderosa. Esta não manifestação também não significa que não sejam vulneráveis. A vulnerabilidade social, além de uma intervenção individual, requer intervenção por meio de políticas públicas adequadas, pois quando grupos são vulneráveis 135 Id. p 70. SANCHES, Mário Antonio; GUBERT, Ida Cristina (org). Bioética e vulnerabilidade. São Paulo Edições Loyola. 2004. p. 09 – 203. 137 GARRAFA, Volnei. Vidal Hidden risks associated with clinical trials in developing countries. Journal of Medical Ethics 36 (2):111-115 (2010). 136 73 socialmente, é porque existe uma violação explicita dos direitos humanos, e neste sentido, o estado tem o dever de garantir que todos tenham o acesso à justiça. “A que considerar que as políticas públicas devem proteger o direito e a liberdade de cada pessoa. Devem identificar linhas de ação para proteger e promover os direitos humanos, bem como garantir o acesso à justiça”138. Tratar da vulnerabilidade social implica também um olhar sobre os países periféricos. No VI Congresso Mundial de Bioética (2002), veio à tona nos debates, a necessidade para a bioética de incorporar ao seu campo de reflexão e ação aplicada temas políticos atuais, principalmente as agudas discrepâncias sociais e econômicas existentes entre ricos e pobres, entre as nações dos hemisférios Norte e Sul do mundo. Garrafa amplia a discussão levantada pelo Congresso: “As relações de justiça, solidariedade e respeito diante do diferente, do diverso e do desigual não sejam meros discursos vazios ou realidades virtuais, mas traduzam-se em dignidade e qualidade de vida para as pessoas e os povos mais vulneráveis”139. Esses questionamentos trouxeram para a pauta dos debates mundiais aspectos até então considerados apenas tangencialmente pelas abordagens tradicionais. Na Bioética de Intervenção do citado autor em parceria com Dora Porto140 são listados alguns problemas persistentes típicos dos países periféricos, como a exclusão social, a concentração de poder, a globalização econômica internacional e a evasão de divisas das nações mais pobres para os países centrais, a inacessibilidade dos grupos economicamente vulneráveis à conquistas do desenvolvimento científico, e tecnológico, e a desigualdade de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo básicos indispensáveis à sobrevivência humana com dignidade. Estes e outros aspectos, passaram a ser parte obrigatória da pauta dos pesquisadores que desejam trabalhar com uma bioética transformadora, comprometida e identificada com a realidade dos chamados países em desenvolvimento141. Percebe-se aqui um salto qualitativo no que se refere à incorporação dos problemas persistentes pela bioética brasileira e latino-americana. 138 TEALDI, Juan Carlos. Dicionário Latinoamericano de bioética. Universidade Nacional de Colômbia. Bogotá. Unesco. 2008. 139 GARRAFA, Vonei e PESSINI, Vonei (Org.). Bioética: Poder e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003, p. 104. 140 GARRAFA Volnei, PORTO, Dora. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice.Bioethics. 2003 Oct;17(5-6):399-416. 141 Id. p.14. 74 Neste cenário, para Garrafa (2012) o significado de vulnerabilidade social leva ao contexto de fragilidade, desproteção, debilidade, desfavorecimento e, inclusive, de abandono, englobando diferentes formas de exclusão social, de distanciamento ou isolamentos de grupos populacionais com relação aos benefícios propiciados pelo desenvolvimento142. Destarte, a vulnerabilidade social tem uma relação direta com a estrutura cotidiana das pessoas, como: “[...] baixa capacidade de pesquisa no país; disparidades socioeconômicas na população; baixo nível de instrução das pessoas; inacessibilidade a serviços de saúde e vulnerabilidades específicas relacionadas com o sexo feminino e com, entre outras”143. Neste sentido, Garrafa vem defendendo incluir os países periféricos na discussão bioética, com toda a diversidade de problemas, que por sua vez são em sua grande maioria originados pela desigualdade social torna-se uma opção fundamental, e neste sentido, a vulnerabilidade torna-se um referencial para a bioética. ESPECIFICIDADES DE VULNERABILIDADE MORAL Fica evidente, até aqui, que a vulnerabilidade social vem estando em pauta nas grandes discussões e produções na bioética. Porém, a vulnerabilidade social, que possui características explícitas, de fácil percepção, pode conduzir o grupo ou o indivíduo vulnerável social a uma outra forma de vulnerabilidade, que mesmo sendo em sua grande maioria decorrente da vulnerabilidade social, possui características bem específicas, que é a vulnerabilidade moral. Esta “nova” forma de vulnerabilidade desafia a bioética a considerar o ser humano em sua totalidade e ampliar ainda mais a discussão sobre a vulnerabilidade. Incluir a dimensão da moralidade na discussão sobre vulnerabilidade é considerar uma questão central na vida humana. “Fora da questão de saber se tal ou tal moral é verdadeira, ou de saber qual é a verdade moral ou a verdadeira regra moral, impõe-se-nos um fato: os homens admitem uma regra moral, creem nela, e pouco importa que nela tenham refletido ou não”144. 142 GARRAFA, Volnei; PRADO, Mauro Machado. Tentativas de mudanças na Declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cadernos de Saúde Pública. Nov/dez. 2001. 143 GARRAFA, Volnei (org.). Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Conselho Federal de Medicina/ Cátedra da Unesco/ Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília. 2012. p. 75. 144 CAMPOS, Luiz Cônego. As grandes linhas da filosofia. São Paulo. Editora Helder. 1967. p 03. 75 Ferrer e Álveres (2005), relacionam vulnerabilidade e moral, apontado que “a moralidade é necessária não somente porque somos seres comunitários, mas também porque a comunidade está inevitavelmente constituída por seres vulneráveis, que necessitam de proteção e do calor da comunidade moral para poder subsistir e florescer”145. Certos atos, despertam aprovação e estimas, e outros por sua vez, despertam reprovação. A reprovação sempre recai sobre indivíduos e grupos, e é feita a partir de um paradigma, considerado um modelo ideal de pensamento ou de prática. O que se observa, é que tanto indivíduos quanto grupos que são reprovados, são vulnerabilizados moralmente e estigmatizados, diante do pluralismo moral atual. Tratar da moral é tratar de uma questão central, que é a formação da identidade do sujeito. Para Correa (2012), a identidade individual depende em grande medida da identidade social e cultural. A autenticidade é vista em nossa sociedade moderna como respeito à diferença e à diversidade. No plano social, as identidades individuais se formam mediante um diálogo aberto entre todos. Sua negação e rejeição do seu reconhecimento são vistos como uma forma de opressão146. Exemplos atuais de opressão, intolerância, estigmatização e exclusão, revelam a existência de uma vulnerabilidade moral a que determinados indivíduos e grupos estão submetidos, por não ser reconhecidos e aceitos por aqueles que compartilharem a moralidade padrão. Deste modo, a vulnerabilidade moral compreenderia uma parte que trata da vida concreta do indivíduo. Para Boff, (2003), “[...] a moral trata da prática real das pessoas que se expressam por costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos. Uma pessoa é moral quando age em conformidade com os costumes e valores consagrados”147. O campo da moral, portanto, é indispensável para a vida humana. Afinal, o ser humano pode viver sem hábitos, costumes, usos, tradições? Tratar da moral, portanto, implica considerar toda a diversidade de circunstâncias a qual o sujeito ou o grupo estão inseridos. Do mesmo modo, tratar da vulnerabilidade requer a consideração do particular e contextual. Neste sentido, para Stepke e Drumond, (2007), a vulnerabilidade é relativa. De acordo com os autores, algumas condições biológicas são desfavoráveis em certos ambientes, mas 145 FERRER, Jorge José; ALVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2005. p. 45. 146 CORREIA, Francisco Javier León. In. PESSINI, Leo (org.). Ética e Bioética Clinica no Pluralismo e Diversidade. São Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2012. p.21. 147 BOFF, Leonardo. Ética e moral, a busca dos fundamentos. Petrópolis. Editora Vozes. 2003. p. 37. 76 favoráveis em outros, ou seja, nenhum atributo ou traço das pessoas não é melhor nem pior senão na possibilidade de um dano, isto é, de um risco, segundo a circunstância148. Portanto, a relatividade das vulnerabilidades é um espaço de influências: espaciais, temporais, situacionais. Neste sentido, que tratar da vulnerabilidade moral em bioética implica considerar a totalidade do ser humano, e a circunstância não somente social ao qual está inserido, mas também a religiosa, moral, familiar, afetiva, etc. Ainda para Stepke e Drumond (2007), há três eixos, que consideramos fundamentais sobre os quais devem ser elaboradas as variedades de vulnerabilidade, que é a vulnerabilidade sentida, atribuída ou objetiva. “O primeiro se refere ao “falante” ou rotulador da vulnerabilidade (quem). Assim, existe uma vulnerabilidade sentida ou percebida pelo próprio sujeito ou pelo grupo, uma vulnerabilidade atribuída por outros, e uma vulnerabilidade “objetiva”, sobre a qual há pleno e universal consenso”149. Ao considerar a vulnerabilidade como um referencial da bioética, faz-se fundamental levar em conta os aspectos desenvolvidos acima: a vulnerabilidade sentida pelo próprio sujeito, a vulnerabilidade rotulada, ou seja, de quem fala, e a vulnerabilidade objetiva, ou seja, de fato. A vulnerabilidade sentida ou percebida pela pessoa vulnerável pode não ser correlativa ou equivalente à vulnerabilidade atribuída por outros. Cabe à bioética, ao constituir uma vulnerabilidade objetiva, considerar de forma muito atenta o sujeito que se considera vulnerável, quem fala deste sujeito vulnerável e o contexto em que está inserido, que também pode ser um contexto vulnerável. É neste sentido, que há vulnerabilidades que se manifestam de forma explicita, sendo de fácil constatação. Aqui, a vulnerabilidade atribuída talvez seja a mais perceptível. Ao contrário, há uma vulnerabilidade que é implícita, nem sempre percebida e manifestada, que é a vulnerabilidade sentida de fato pelo próprio sujeito. A vulnerabilidade moral ocupa, justamente, esta dimensão implícita da vulnerabilidade. Nesta perspectiva, considera-se que a vulnerabilidade moral atinge indivíduos e grupos que não correspondem à moralidade hegemônica de determinado contexto com repercussões negativas como exclusão, distanciamento, segregação e outras formas de estigmatização e discriminação negativa. São grupos, que muitas vezes, 148 STEPKE, Fernando Lopes e DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma antropologia Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007 p 148. 149 Id. 77 além de uma vulnerabilidade social, que é explicita, também são moralmente julgados na surdina, em muitas situações imperceptíveis, e que consequentemente não é contemplada e considerada pelos diversos órgãos de proteção e intervenção. Neste sentido, a vulnerabilidade moral caracteriza-se simultaneamente como causa e como consequência de processos de estigmatização e discriminação negativa. O conceito de discriminação positiva e discriminação negativa são desenvolvidos por Robert Castel (2008). “A discriminação positiva consiste integrar as populações carentes de recursos a fim de integrá-las. Consiste em fazer mais por aqueles que têm menos”150. No contexto das ações afirmativas, por exemplo, cotas para mulheres no Congresso ou para negros em universidades são formas de ‘distinguir’, ‘separar’ no processo de eleição/vestibular, em favor do aumento da representatividade destes grupos historicamente alijados. A discriminação negativa, por sua vez, “[...] Ser discriminado negativamente significa ser associado a um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que é atribuída como um estigma. A discriminação negativa é a instrumentalização da alteridade, constituída em favor da exclusão”151. Está relacionada ao ato da exclusão, e portanto, como uma consequência da vulnerabilidade moral. Em muitos casos, a vulnerabilidade moral decorre da vulnerabilidade social, como por exemplo, crianças e adolescentes vivendo em situação de rua que se tornam intermediários na distribuição de drogas e por isso duplamente tornam-se suscetíveis à dimensão eminentemente social, como a violência, e a estigmatização. Nestes casos, a vulnerabilidade social é tangível e está relacionada à diversos fatores e riscos que vão desde a ausência de estrutura familiar, acesso à educação, à submissão à violência e à morte. Porém, decorre deste processo também uma forma de vulnerabilidade moral, menos tangível, mas altamente perceptível na voz daqueles que referem aos indivíduos deste grupo altamente vulnerável como ‘marginais’, ‘bandidos’. No Brasil, entre os que sustentam a redução da maioridade penal é possível encontrar exemplos de discursos que se baseiam na generalização e estigmatização de adolescentes em situação de vulnerabilidade social e/ou em conflito com a lei. 150 CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones?. Petrópolis, Rio de Janeiro. Editora Vozes. 2008. p. 13. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922010000300011. Acesso 31 ag. 2015. 151 Id. 78 Somam-se a estes outros grupos que podem sofrer as consequências da vulnerabilidade moral, como: desempregados, pessoas vivendo em situação de rua, dependentes químicos, detentos, diante da falta de oportunidades de ingressarem novamente à vivência social e ao mercado de trabalho, sendo estigmatizados; vítimas da discriminação racial, idosos abandonados em asilos, portadores de necessidades especiais, imigrantes, homossexuais e outros. Todos esses grupos têm em comum a submissão de um julgamento moral que os hierarquiza como inferiores em relação às pessoas e grupos que não ‘desviam’ na moralidade hegemônica, tornando-os ainda mais suscetíveis ao ferimento, ou seja, ainda mais vulneráveis. Deve-se destacar que a caracterização de um indivíduo ou grupo como vulnerável moral é sempre relativa a particularidades do contexto, pois as dinâmicas de hierarquização moral sempre ocorrem a partir do julgamento de determinada moralidade padrão. Idosos, por exemplo, em sociedades capitalistas são considerados moralmente inferiores por não produzirem, por serem um peso, mas em determinadas comunidades indígenas, o idoso é moralmente valorizado, não estando, portando, em condição de estimatização, negação de dignidade, ou qualquer outra de inferiorização. Neste contexto particular o idoso não é considerado um vulnerável moral. Deve-se destacar também que na vulnerabilidade moral pode haver interscionalidade de ‘julgamentos’ hieraquizantes, por exemplo, um usuário de drogas homossexual estará moralmente mais vulnerável do que uma pessoa usuária de drogas heterossexual, tal como ocorre na intersecção de vulnerabilidades sociais discutidas por Martorel e Nascimento152. No caso da epidemia de HIV/AIDS mesmo com todos os avanços farmacêuticos e biotecnológicos das últimas décadas os homossexuais e transexuais ainda são relativamente mais vulneráveis aos riscos de contágio153. Diversos estudos mostram que a homofobia, a transfobia e penalização de identidades e comportamentos que estão da normatividade heterossexual contribuem para a manutenção desde quadro154. Pelo mesmo motivo, estes grupos podem ter menos acesso a tratamentos do que grupos que se enquadram na moralidade vigente, indicando como a 152 MARTORELL, Leandro Branbilha; NASCIMENTO, Wanderson Flor. A Bioética de Intervenção em contextos descoloniais. Revista Bioética; n. 21. 2013. 153 WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da Aids diz OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15 ab. 2015. 154 Id. 79 vulnerabilidade moral implica em consequências concretas que aprofundam inclusive as formas típicas de vulnerabilidade social. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir de nossa investigação, fica evidente que o fato da vulnerabilidade estar se tornando um referencial em bioética não significa que a vulnerabilidade venha sendo contemplada em sua totalidade e considerada nas várias dimensões da vida humana, que são impactadas pela vulnerabilidade, como neste trabalho, em relação a moral. Neste sentido, buscou-se apresentar a relevância em se discutir a vulnerabilidade moral como uma forma de vulnerabilidade que suplanta a objetividade da vulnerabilidade social e se reproduz discursivamente em processos de julgamento moral a partir de um coletivo hegemônico que geram formas de estigmatização, exclusão, discriminação negativa e outras formas de hierarquizações nem sempre perceptível e de fácil constatação. Também está ligada à negação do reconhecimento de certos grupos como agentes morais ou portadores de status moral. Identificar, portanto, a vulnerabilidade moral apresenta-se como um dos grandes desafios, visto que raramente é manifestada diretamente pelo indivíduo, uma minoria absoluta frente ao coletivo hegemônico. É neste sentido, portanto, que se posiciona a discussão sobre moralidade e vulnerabilidade no contexto da bioética. O reconhecimento do pluralismo sem que se desenvolva espaços onde os “estranhos morais” possam viver de forma digna e com garantia de seus direitos de forma equitativa torna-os vulneráveis morais. Há que se reconhecer a vulnerabilidade moral decorrente da vulnerabilidade social, da negação da dignidade humana e privação dos direitos, da estigmatização e da discriminação, não somente reconhecendo a existência de uma vulnerabilidade moral, mas também atuando efetivamente para a transformação destas relações. 80 REFERÊNCIAS BOFF, Leonardo. Ética e moral, a busca dos fundamentos. Petrópolis. Editora Vozes. 2003. CAMPOS, Luiz Cônego. As grandes linhas da filosofia. São Paulo. Editora Herder. 1967. CORREIA, Francisco Javier León. In: PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clinica no Pluralismo e Diversidade. São Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2012. ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução: CESCHIN, José. São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola. 2015. ESTEPKE, Fernando Lopes e DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma antropologia Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007. FERRER, Jorge José; ALVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. Edições Loyola, São Paulo, SP. 2005. GARRAFA, Vonei e PESSINI, Vonei (Org.). Bioética: Poder e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. PORTO, Dora; GARRAFA, Volnei; MARTINS, Gerson; BARBOSA, Swendenberg (Org.). Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Conselho Federal de Medicina. Cátedra Unesco de Bioética e Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília. 2012. INSTITUTO NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Observatório das metrópoles. 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Tradução: MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo. Loyola. 2007. TEALDI, Juan Carlos. Dicionário Latinoamericano de bioética. Universidade Nacional de Colômbia. Unesco. Bogotá, 2008. WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da Aids diz OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15 ab. 2015. ZUCCARO, Cataldo. Bioética e valores no pós-moderno. São Paulo. Loyola. 2007. 82 6.CONSIDERAÇÕES FINAIS Identificar as formas que dão origem e os mecanismos de enfrentamento da vulnerabilidade moral constituíram os dois grandes desafios deste trabalho. A parte do enfrentamento não foi suficientemente elaborada, porque o grande desafio do trabalho foi identificar as especificidades da vulnerabilidade moral frente a outras formas de vulnerabilidade. Neste sentido, há a necessidade de novos estudos para definir as formas de enfrentamento da vulnerabilidade moral. Visto as peculiaridades que apresentamos constituir a vulnerabilidade moral, tanto a identificação quanto o enfrentamento requerem métodos de análise e formas de abordagem específicas, que ainda precisam ser ampla e profundamente desenvolvidas em trabalhos futuros. A vulnerabilidade moral foi abordada como uma chave de leitura, que permitiu-nos abordar uma diversidade de problemáticas sociais e morais que atingem indivíduos e grupos, contemplando assim, a complexidade que envolve os mesmos. Discutimos que há duas formas em que a vulnerabilidade moral pode surgir e manter-se. Primeiro, há uma vulnerabilidade moral que surge de teorias que desqualificam moralmente indivíduos e grupos. Estas teorias procuram justificar teoricamente, seja do ponto de vista científico, teológico, ou legal, a inferioridade e a discriminação sofrida por indivíduos e grupos. Em segundo, há uma vulnerabilidade moral que surge a partir de contextos concretos que tornam indivíduos e grupos vulneráveis morais, decorrentes da exclusão social, da estigmatização, da discriminação negativa e da negação da dignidade. Aqui, a desqualificação dá-se por parte de grupos moralmente dominantes que vulnerabilizam (por meio de diversas formas de exclusão e estimatignização) indivíduos e grupos que não correspondem à moralidade dominante. Mesmo sendo esta forma de vulnerabilidade por vezes visível e concreta, assume como principal característica a intangibilidade, visto que muitas vezes não é percebida e reconhecida, e por vezes é escondida pelo próprio sujeito vulnerabilizado. Á guisa das considerações finais da dissertação, apresentamos algumas perguntas, problemas e desafios para a abordagem da vulnerabilidade moral que devem ser com mais atenção pela bioética, tais como: relação entre monismo moral e pluralismo moral em contextos de vulnerabilidade, construção, desenvolvimento e aplicação de políticas públicas concretas para proteção de pessoas e grupos moralmente vulneráveis, interfaces entre os diversos métodos bioéticos, 83 interdisciplinariedade, alteridade, desenvolvimento de espaços de coexistência e inclusão de conteúdos geradores de conflitos morais no currículo na formação de profissionais na área da saúde e da educação, entre outros problemas de ordem teórica e prática. A aproximação cada vez maior entre as comunidades morais desafia indivíduos, grupos e instituições, a perceber o pluralismo moral como um valor, que ao invés de distanciamento e segregação, possibilita uma aproximação entre estas comunidades, tendo em vista o bem comum. Como visto neste trabalho, exemplos diários de violência, intolerância, estigmatização, discriminação e negação da dignidade humana, demonstram a complexidade na identificação, no enfrentamento e na superação destas situações. Entender estes indivíduos e grupos como vulneráveis, e relacionar esta vulnerabilidade no campo da moral a que estes contextos correspondem, justificam a relevância em inserir uma produção teórica sobre o conceito de vulnerabilidade moral em Bioética cada vez mais interdisciplinar e profundamente. Mesmo sendo a pluralidade e a diversidade moral características marcantes da contemporaneidade, ainda constata-se claramente a existência de uma moralidade que se pretende hegemônica, que é difundida e implantada muitas vezes pela força e pelo medo. Esta moralidade hegemônica por vezes está ligada a grupos sociais e religiosos tradicionais, e por vezes a grupos de cunho radical, extremista e fundamentalistas. Esta tentativa de implantar, a todo o custo uma moral hegemônica, é uma forma clara que estes grupos encontram de tentar eliminar a diversidade e o pluralismo, entendendo estes não como características que constituem a sociedade, mas como ameaça. Especificamente neste caso, acontece a tentativa de sobrepor uma moral em detrimento de outra. Diante deste contexto, concordamos que em uma sociedade pluralista, não cabe mais pensarmos em um monismo moral, exclusivo, e determinado por uma única instituição ou modelo social e moral, entendendo, porém, que esta liberdade e autonomia, nem sempre garantem que todos os indivíduos tenham um lugar de expressão e convivência pacífica e digna nesta sociedade pluralista. O limite das expressões encontra-se no valor da dignidade humana. Se por um lado estes contextos geradores da vulnerabilidade moral possuem características transversais e comuns, por outro, possuem especificidades, visto que a vulnerabilidade social assume características concretas e visíveis, e a estigmatização, negação da dignidade humana e discriminação, por situarem-se no 84 campo moral, tornam-se por vezes intangíveis e pouco mensuráveis. Tanto a identificação, como o enfrentamento e a superação deve ser um esforço comum a todas as áreas: educação, ética, sociologia, filosofia, saúde, etc. O que a bioética pode contribuir em especial é justamente como um espaço interdisciplinar de interlocução entre as diversas áreas do conhecimento para identificar concretamente as diversas dimensões que podem estar vulnerando indivíduos e pessoas, seja do ponto de vista institucional, biológico, social, moral, entre outros. Diante da complexidade que constituem os contextos geradores e mantenedores da vulnerabilidade moral, não cabe atribuirmos a um único método e modelo bioético, como sendo exclusivo e suficiente para a superação da vulnerabilidade moral. A riqueza de métodos e formas de abordagens no campo da bioética, desafia-nos a extrair de cada um o núcleo central e a melhor forma que cada um pode contribuir neste processo de superação da vulnerabilidade moral. Diante das controvérsias morais, estabelecer e eleger um único método que permita direcionar a reflexão e propor caminhos autênticos e seguros de superação da vulnerabilidade moral, torna-se um perigo, visto o risco em se considerar a complexidade das questões que envolvem a moral a partir de uma única perspectiva, considerando uma visão parcial como sendo a totalidade. A contemporaneidade traz como principal característica no campo moral, o surgimento constante de novos conceitos e agentes morais, os quais, nem sempre correspondem a um padrão de normalidade pré estabelecido. O campo da educação e da saúde são espaços onde estas manifestações tornam-se mais evidentes. Portanto, incluir estas temáticas na formação permanente de estudantes e profissionais que atuam nestas áreas, seja educadores ou profissionais da saúde ainda é pouco contemplada na atualidade, e torna-se uma demanda urgente. As instituições de ensino superior (graduação e pós graduação), necessitam atualizar o currículo, atentas a complexidade dos contextos que envolvem o surgimento de novos conceitos e agentes morais, preparando os profissionais destas áreas a atuarem frente a estas diversidades com atitude de acolhimento e diálogo, rompendo com paradigmas que durante anos regem e direcionam a atuação nestas áreas. A vulnerabilidade moral encontra um terreno adequado para o seu surgimento e propagação diante das formas desiguais em que são tratadas as dessemelhanças. A expressão “os de lá e os de cá” exemplifica muito bem como os agentes sociais e morais estão situados, e em que condições a tolerância para com os dessemelhantes 85 acontece. Acrescenta-se a expressão: “tolero, desde que:..”, como expressão recorrente. Tolera-se desde que: não ocupe o meu espaço, não frequente os mesmos lugares, o filho não estude na mesma escola que o meu, não seja meu chefe, e outras condições para que o dessemelhante seja tolerado. Portanto, a tolerância torna-se uma forma de se relacionar com as dessemelhanças, porém, por vezes não como uma opção fundamental, mas circunstancial, e nesta perspectiva, que a tolerância torna-se insuficiente, e mantenedora da vulnerabilidade moral. Diante do atual contexto de globalização, os territórios vêm apresentando novas configurações, e os diferentes agentes sociais e morais topam-se em espaços públicos e privados: escola, igreja, praça, rua, shopping, etc. Ou seja, “os de lá e os de cá” cada vez mais começam a estar nos mesmos lugares. O enfrentamento de problemas sociais concretos, como a pobreza, fome, falta de saneamento, e outros, que tornam indivíduos e comunidades vulneráveis sociais, constituem urgências, considerando o contexto dos países da América Latina em que a desigualdade e a disparidade no campo social e econômico apresentam-se como um dos grandes desafios. Se por um lado a vulnerabilidade social é um dos contextos geradores da vulnerabilidade moral, por outro, a exclusão social torna-se uma consequência que submete indivíduos e grupos que sofrem a vulnerabilidade moral, e neste sentido, o desenvolvimento de políticas públicas de inclusão social torna-se um caminho de inserção destes vulneráveis em espaços autênticos de convivência social. Neste sentido, a bioética também é cada vez mais desafiada a inserir-se nos espaços de discussão, elaboração e desenvolvimento de políticas públicas de enfrentamento e superação destes problemas. A globalização despertou por parte dos países desenvolvidos um olhar aos países da América Latina nos campos da economia, indústria, tecnologia, saúde, pesquisas e outros. Este interesse é voltado não para a emancipação e desenvolvimento, mas sim no sentido de torna-los e mantê-los dependentes e consumidores dos bens produzidos. O resultado desta dependência é a vulnerabilidade a qual são submetidos e mantidos. Esta vulnerabilidade está diretamente vinculada a marca da colonialidade, ou seja, pela percepção de que, algumas vidas tem mais valor que outras, justificado por parte daqueles que conduziram o processo de colonização a exploração e a dominação. A Bioética nos 86 países periféricos assume a tarefa de denunciar essa colonial imagem da vida, atuando nas esferas públicas e privadas na promoção de direitos. Portanto, construir uma formação humana que presida uma conduta ética, que permita a coexistência entre a diversidade a partir da perspectiva da alteridade e da equidade em todas as áreas, surge como proposta diante do desafio da promoção da dignidade humana e superação da estigmatização e discriminação negativa no atual contexto de pluralismo moral. 87 7. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Código Internacional de Ética Médica. Disponível em: <http://www.bioetica.ufrgs.br/helsin1.htm>. 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