1 pontifícia universidade católica do paraná - pucpr

Propaganda
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ - PUCPR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM BIOÉTICA
ESCOLA DE CIÊNCIAS DA VIDA
MARIEL MANNES
VULNERABILIDADE MORAL: UMA PROPOSTA DE FUNDAMENTAÇÃO
TEÓRICA EM BIOÉTICA NA PERSPECTIVA LATINO AMERICANA
CURITIBA
2016
2
MARIEL MANNES
VULNERABILIDADE MORAL: UMA PROPOSTA DE FUNDAMENTAÇÃO
TEÓRICA EM BIOÉTICA NA PERSPECTIVA LATINO AMERICANA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Bioética da Escola de Ciências da
Vida, da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, como requisito parcial à obtenção do título
de mestre em Bioética.
Orientador: Prof. Dr. Thiago Rocha da Cunha
CURITIBA
2016
Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central
M282v
2016
Mannes, Mariel
Vulnerabilidade moral: uma proposta de fundamentação teórica em bioética
na perspectiva latino americana / Mariel Mannes; orientador, Thiago Rocha
da Cunha. -- 2016
90 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Curitiba, 2016.
Inclui bibliografias
1. Bioética. 2. Pluralismo. 3. Conduta. 4. Igualdade. 5. Direitos humanos.
6. Direitos sociais. 7. Estigmatização. I. Cunha, Thiago Rocha da.
II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação
em Bioética. III. Título
CDD 20. ed. – 174.9574
4
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos aqueles que contribuíram e fizeram com que o
mesmo fosse revestido de sentido e significado. Em especial, dedico a todos os
autores, pesquisadores e intelectuais, que direta ou indiretamente neste trabalho
foram referência. O acesso ao conhecimento e produção destes que colocam o bem
comum e a justiça social como prioridade em suas investigações, provocaram-me a
avançar e ajudaram-me a dar o direcionamento desta investigação.
Almejo que esta não seja uma produção independente, isolada e solitária, mas
que seja uma parte que instigue e provoque ainda mais pesquisadores a incluírem
como opção fundamental em suas produções aqueles indivíduos e grupos que são
vulnerabilizados, estigmatizados e discriminados negativamente. Se os contextos
oprimem e excluem a estes, que nas investigações sejam os privilegiados, e que
provoquem o poder público, as instituições e as pessoas de boa vontade a
promoverem a dignidade e inclusão social.
5
AGRADECIMENTO
Meu agradecimento é direcionado a Deus, pelo dom da vida, do entendimento e do
discernimento.
Ao Instituto Marista, que ao longo destes anos oportunizou-me um crescimento
profissional e intelectual.
Ao Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR e a todos os professores que
de forma fraterna privilegiaram-me com o conhecimento e experiência.
Ao coordenador do Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR, Prof. Dr.
Mário Antônio Sanches, que ajudou-me com suas provocações, a ir fazendo as
opções fundamentais neste trabalho.
Ao Prof. Dr. Thiago Rocha da Cunha orientador deste trabalho, expresso minha
gratidão e admiração pela forma atenta e motivadora com que conduziu a orientação
e pela sensibilidade em desafiar-me a avançar cada vez mais nas reflexões.
Em especial à minha esposa Adriana e ao meu filho Murilo: “Agora iremos passear!”
Hoje entendo de onde vens a compreensão, o entendimento e o encorajamento que
sempre me transmitem.
6
RESUMO
Introdução: Esta dissertação discute a problemática da vulnerabilidade moral. O tema
é inserido a partir de uma análise da forma como a vulnerabilidade vem sendo
considerada em bioética. Diante do tensionamento de problemas envolvidos em
contextos de pluralismo moral, o tema da vulnerabilidade moral foi abordado
contemplando indivíduos e grupos que são estigmatizados, discriminados
negativamente e/ou não reconhecidos em sua dignidade e direitos enquanto agentes
morais, sendo estes aspectos considerados geradores, mantenedores e reprodutores
da vulnerabilidade moral. Objetivos: Compreender como a vulnerabilidade vem
sendo abordada em bioética; inserir a discussão da vulnerabilidade moral a partir de
sua relação com a vulnerabilidade social, com a estigmatização e discriminação;
demonstrar a importância da dimensão moral da vulnerabilidade por meio de uma
análise das insuficiências da proposta de Tristran Engelhardt para a relação entre
estranhos morais. Metodologia: Trata-se de pesquisa teórica de abordagem analítica
e propositiva. Conceituando a vulnerabilidade moral como uma chave de leitura, a
abordagem analítica voltou-se a compreender o estado da arte da produção bioética
sobre vulnerabilidade, e a abordagem propositiva voltou-se a conceituar e demonstrar
a pertinência da consideração da vulnerabilidade moral no escopo teórico da
disciplina. Resultados e Discussão: A vulnerabilidade moral não exclui outras
formas de vulnerabilidade, porém, requer que seja investigada e conceituada
contemplando a complexidade dos problemas sociais bem como o atual contexto de
pluralismo moral e democracia política. Sempre que determinada moralidade coletiva
submeter indivíduos e grupos a processos de estigmatização, negação da dignidade
humana e discriminação negativa, a vulnerabilidade moral surgirá como decorrente
destes processos. Da mesma forma, sempre que diante do contexto de pluralismo
moral indivíduos e grupos forem desconhecidos enquanto agentes morais, estará
caracterizada uma dimensão específica da vulnerabilidade, que é a vulnerabilidade
moral. Considerações Finais: Este trabalho apresentou uma aproximação inicial ao
problema da vulnerabilidade moral, demonstrando tanto sua importância e pertinência
quanto a necessidade de futuros estudos teóricos e aplicados que aprofundem a
compreensão de suas implicações aos dilemas e conflitos de Bioética.
PALAVRAS-CHAVES: Vulnerabilidade. Vulnerabilidade moral. Pluralismo moral.
Fundamentação Teórica. Bioética
7
ABSTRACT
Introduction: This paper discusses the problem of moral vulnerability. The theme is
inserted from an analysis on how vulnerability is being considered in bioethics, since
before becoming a discipline up to its current status. Upon the tensioning of problems
involved in contexts of moral pluralism, the issue of moral vulnerability was approached
contemplating individuals and groups who are stigmatized, negatively discriminated
and/or their dignity and rights are not recognized as moral agents, and these aspects
are considered generators, maintainers and reproducers of moral vulnerability.
Objectives: Understanding how vulnerability in bioethics is being approached;
inserting the discussion of moral vulnerability from its relationship with social
vulnerability; demonstrating the importance of the moral dimension of vulnerability
through an analysis of the shortcomings of Tristan Engelhardt’s proposal for the
relationship between moral strangers. Methodology: This is a theoretical research
with an analytical and prescriptive approach. The analytical approach came to
understand the state of art of bioethics production on vulnerability, and the prescriptive
approach to conceptualize and demonstrate the relevance of considering the moral
vulnerability of the bioethics scope. Results and Discussion: Moral vulnerability does
not exclude other forms of vulnerability. However, it requires that it be investigated and
conceptualized considering the complexity of social problems as well as the current
context of moral pluralism and diversity. Whenever a determined collective morality
submits individuals and groups to stigmatized processes, denial of human dignity and
negative discrimination, moral vulnerability arises as a result of these processes.
Similarly, whenever individuals and groups are unknown as moral agents in the context
of pluralism and moral diversity, a specific dimension of vulnerability will be
characterized, which is moral vulnerability. Final thoughts: This paper presented an
initial approach to the moral vulnerability problem, demonstrating both its importance
and relevance and the need of future theoretical and practical studies that provide a
deeper understanding of their implications to the dilemmas and conflicts of Bioethics.
KEY-WORDS: Vulnerability. Moral Vulnerability. Moral pluralism. Theoretical
Foundation. Bioethics.
8
SIGLAS E ABREVIAÇÕES
AMM - Associação Médica Mundial.
CFM - Conselho Federal de Medicina.
CIOMS - Conselho e Organizações Internacionais de Ciências Médicas.
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos.
DUBDH - Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
OMS - Organização Mundial da Saúde.
UNESCO – União das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.
9
SUMÁRIO
CAPITULO 1 - INTRODUÇÃO…………………………………………………………....10
CAPÍTULO 2 - DAS DIVERSAS PERSPECTIVAS DA BIOÉTICA ÀS DIVERSAS
ABORDAGENS DA VULNERABILIDADE ............................................................... 16
2.1 VULNERABILIDADE NO SURGIMENTO DA BIOÉTICA .................................... 16
2.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS:
CONSOLIDAÇÃO DA VULNERABILIDADE EM BIOÉTICA ..................................... 20
2.3 ENTRE O SER VULNERÁVEL E O ESTAR VULNERÁVEL: PERSPECTIVAS
BIOÉTICAS SOBRE VULNERABILIDADE................................................................23
2.4 A VULNERABILIDADE SOCIAL COMO PROBLEMÁTICA CHAVE NA BIOÉTICA
LATINO AMERICANA................................................................................................28
CAPÍTULO
3
-
VULNERABILIDADE
MORAL:
ESTIGMATIZAÇÃO,
DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA ............... 31
3.1 CONCEITUANDO ESTIGMATIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA E A
DIGNIDADE HUMANA. ............................................................................................. 34
3.2 ESTIGMATIZAÇÃO E DISCRIMINAÇÃO NEGATIVAS: IMPLICAÇÕES ÉTICAS ..
....................................................................................................................................41
3.2.1
ESTIGMA
MORAL
E
PROBLEMAS
DE
SAÚDE
PÚBLICA....................................................................................................................44
3.3
DA
ESTIGMATIZAÇÃO
E
NEGAÇÃO
DA
DIGNIDADE
HUMANA
À
VULNERABILIDADE MORAL ................................................................................... 46
3.4 TENSÕES ENTRE MONISMO E PLURALISMO MORAL: IMPLICAÇÕES À
VULNERABILIDADE MORAL ................................................................................... 49
CAPÍTULO 4 -
ARTIGO 1 VULNERABILIDADE MORAL ENTRE ESTRANHOS
MORAIS: DO CONSENTIMENTO À PRIVAÇÃO DE DIREITOS E NEGAÇÃO DA
DIGNIDADE HUMANA..............................................................................................54
CAPÍTULO 5 - ARTIGO 2 FRONTEIRAS ENTRE VULNERABILIDADE SOCIAL E
VULNERABILIDADE MORAL: IMPLICAÇÕES BIOÉTICAS...................................68
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................82
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 87
10
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO
Esta investigação tem por objetivo apresentar a relevância em se tratar nas
discussões bioéticas a problemática da vulnerabilidade moral enquanto um fenômeno
com especificidades teóricas e práticas frente outras formas e dimensões da
vulnerabilidade.
Para
isso,
procurar-se-á:
compreender
a
forma
como
a
vulnerabilidade vem sendo considerada em bioética; pontuar as especificidades da
vulnerabilidade moral; discutir a relação entre vulnerabilidade social e vulnerabilidade
moral e demonstrar a pertinência deste conceito frente às limitações da abordagem
procedimentalista da bioética, nomeadamente do princípio da permissão de Tristram
Engelhardt.
Esta pesquisa trata-se de uma investigação teórica de abordagem analítica e
propositiva. Conceituando a vulnerabilidade moral como uma chave de leitura, a
abordagem analítica voltou-se a compreender o estado da arte da produção bioética
sobre vulnerabilidade, e a abordagem propositiva voltou-se a conceituar e demonstrar
a pertinência da consideração da vulnerabilidade moral no escopo teórico da
disciplina.
A vulnerabilidade moral estará relacionada neste trabalho aos processos que
tornam indivíduos e grupos mais suscetíveis ao sofrimento do que outros por
condições estritamente morais, isto é, por condições em que sujeitos são excluídos,
estigmatizados, explorados, subalternizados ou injustiçados por não estarem de
acordo a uma determinada moralidade hegemônica e/ou por não serem reconhecidos
por esta moralidade como agentes morais portadores de dignidade e direitos.
Procurar-se-á compreender a forma como a vulnerabilidade vem sendo
considerada em bioética; inserir a discussão acerca da vulnerabilidade moral a partir
das considerações sobre vulnerabilidade social, estigmatização, discriminação
negativa e outras formas de violação da dignidade humana. Para tanto, algumas
questões acompanharão toda a nossa investigação, visto que não pretende ser esta
uma investigação conclusiva e definitiva, mas sim, uma abordagem teórica
questionadora e propositiva. Portanto: Como e quais formas de vulnerabilidade são
tratadas em bioética? Qual a relação entre vulnerabilidade social e vulnerabilidade
moral? Quais os dispositivos envolvidos na produção e reprodução da vulnerabilidade
moral? Qual é o papel axiológico da dignidade humana na identificação de vulneráveis
11
morais? Como a estigmatização e a discriminação negativa atuam no processo de
vulneração moral? No contexto de pluralismo moral e desigualdade social
contemporâneo, quais implicações para a vulnerabilidade moral podem ser
encontradas na proposta de Engelhardt para a relação entre estranhos morais?
A partir destas questões que definem e envolvem a problemática da
vulnerabilidade moral, apresentaremos no capítulo 2 uma análise das diferentes
abordagens de vulnerabilidade encontradas na bioética, tendo como parâmetro a
complexidade dos problemas atuais, tais como: contexto de pluralismo moral,
estigmatização de indivíduos e grupos, discriminação negativa, negação da dignidade
humana e privação de direitos.
Compreender como na atualidade a vulnerabilidade vem sendo considerada em
bioética, implica primeiramente apresentar como o termo foi entrando em pauta e se
consolidando historicamente no campo. A esse respeito, deve-se considerar que os
problemas de vulnerabilidade precedem o surgimento formal da disciplina e que
mesmo após seu surgimento e consolidação o termo foi assentando-se de modo
indireto. Por exemplo, o Código de Nuremberg (1947) não faz uma referência direta à
palavra vulnerabilidade, porém, o documento foi produzido justamente em decorrência
do julgamento dos envolvidos nos abusos praticados com os prisioneiros dos campos
de concentração nazista, ou seja, com um dos grupos mais vulnerabilizados na
história recente. Mesmo no surgimento da palavra “Bioética” em 1970, Van Potter não
tratou de forma explícita a vulnerabilidade, ainda sua abordagem dos problemas que
afetam a sobrevivência da civilização humana possibilitado compreender de modo
mais profundo a vulnerabilidade da vida nas esferas individuais, coletivas e planetária.
Ao seguir a análise histórica do conceito de vulnerabilidade no campo da
bioética, o trabalho terminou por adotar como marco normativo e referencial a
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005)1, visto a opção que o
documento assume pelas questões que envolvem a vulnerabilidade nos diferentes
campos sanitários, biotecnológicos e ambientais. Tal como pontuado por Garrafa e
Godói, este documento apresenta tanto uma importância histórica quanto éticopolítica, pois, por meio da Declaração “[...] a agenda bioética ampliou-se
significativamente, para além da dimensão meramente biotecnocientífica à qual
1
UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de
BioéticadaUniversidadedeBrasília/SBB.2005.Disponívelemttp://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/d
eclaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf. Acesso 03 jun. 2015.
12
estava restrita. Percebe a partir daí, que os debates morais e o campo social passaram
a incorporar as discussões em torno da bioética”2. Na DUBDH se consolida em
definitivo as temáticas da cotidianidade das pessoas, povos e nações, tais como a
exclusão social, a vulnerabilidade, a guerra, a paz, o racismo, a saúde pública, entre
outros. Estes problemas estão diretamente relacionados aos diferentes contextos de
vulnerabilidade, especialmente na dimensão social.
Deste modo, considerando os diversos contextos da vulnerabilidade social,
como: desigualdade social, violência, desemprego, pobreza, e outras situações que
tornam-se desfavoráveis ao desenvolvimento do indivíduo, o capítulo 2 amplia o olhar
e a reflexão acerca da vulnerabilidade moral, incluindo uma consideração acerca das
interccionalidades de vulnerabilidades de que podem atingir determinados indivíduos
e grupos.
Por outro lado, essa mesma reflexão leva a considerar que embora a
vulnerabilidade moral esteja potencialmente presente em situações de vulnerabilidade
social, isto não é uma condição sine qua non para sua identificação: pessoas que
compartilham uma mesma realidade social privilegiada em relação às condições de
emprego, moradia e renda, por exemplo, podem estar vulneráveis por questões
estritamente morais.
Por isso, no capítulo 3 são discutidas as especificidades da vulnerabilidade
moral a partir de suas relações com os contextos de estigmatização, discriminação
negativa, negação de dignidade humana e privação de direitos, especialmente quando
estas ocorrem na relação entre estranhos morais, tal como delineado na teoria da
relação entre estranhos morais de Engelhardt. O conceito de discriminação negativa
será utilizado neste capítulo a partir da concepção de Castel (2008), para o qual: “Ser
discriminado negativamente significa ser associado a um destino embasado numa
característica que não se escolhe, mas que é atribuída como um estigma. A
discriminação negativa é a instrumentalização da alteridade, constituída em favor da
exclusão”3.
O conceito de estigmatização será abordado a partir de uma perspectiva moral,
visto que mesmo que se manifeste no campo social, da saúde, da religião ou da
2
GODOI, Alcinda, GARRAGA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não estigmatização e da não
discriminação. São Paulo. rev. Saúde e Sociedade. v. 23. 2014.
3 CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones? Tradução: MORAS,
Francisco. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 14.
13
educação, na medida em que criam-se rótulos, negando a identidade do indivíduo ou
do grupo, por meio de padrões de conduta e comportamentos pré estabelecidos, a
estigmatização passa a ter uma implicância moral, e a consequência não poderá ser
outra, a não ser a vulnerabilidade moral destes indivíduos e grupos.
Ao tratar sobre a estigmatização, discriminação negativa e dignidade humana,
uma diversidade de conceituações são encontradas, cada uma a partir de diferentes
perspectivas e abordagens. Conceituar estes termos a partir do caráter moral é ter
como parâmetro a identidade interdisciplinar da bioética. Parte-se do pressuposto de
que em uma sociedade pluralista, não cabe mais pensar em uma única moral,
exclusiva, e determinada por uma única instituição ou modelo social. Porém,
problematiza-se se esta liberdade e autonomia, seja da filosofia, da teologia, da moral,
e mesmo da bioética vem sendo atualmente considerada. Neste sentido, enfrentando
o problema pontuado por Engelhardt acerca dos desafios de convívio pacífico entre
estranhos morais no contexto do pluralismo secular, este capítulo considera também
algumas implicações da vulnerabilidade moral diante do ‘princípio da permissão’, do
consentimento e da autonomia.
Os capítulos 4 e 5 apresentam dois artigos derivados dos exercícios de
fundamentação teóricas e conceituais desenvolvidas nos capítulos anteriores. O
capítulo 4 reproduz o artigo 1, intitulado “Vulnerabilidade moral entre estranhos
morais: do consentimento à privação de direitos e negação da dignidade humana” que
situa a problemática da vulnerabilidade moral no contexto da relação entre estranhos
morais. É apresentada uma análise crítica do princípio do consentimento e do contrato
desenvolvidos por Engelhardt, na obra Fundamentos da Bioética4, porém,
considerando as relações específicas da privação de direitos e da negação da
dignidade humana. O contexto pelo qual Engelhardt trata do princípio do
consentimento dá-se em uma sociedade secular na qual a autoridade moral não está
mais na instituição, mas no próprio indivíduo, sendo ele portador da autoridade moral.
Assim, para o autor em uma sociedade constituída por um pluralismo moral, as
controvérsias existentes entre os estranhos morais só podem ser resolvidas através
do consentimento e do contrato.
4
ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução: CESCHIN, José. São Paulo. 6ª ed.
Edições Loyola, 2015.
14
Porém, Engelhardt desconsidera que nas relações de poder os estranhos
morais não são subjetivamente reconhecidos igualmente em sua dignidade e/ou não
tem iguais condições objetivas de direitos e condições.
Neste sentido, sendo a
vulnerabilidade moral oriunda de uma sociedade em cujo contexto de pluralismo moral
indivíduos e grupos não são igualmente reconhecidos em sua dignidade e em seus
direitos os estranhos morais tornam-se vulneráveis morais. Discute-se, assim, que o
princípio do consentimento desenvolvido por Engelhardt apresenta fragilidades, pois:
Qual a autoridade moral que um indivíduo ou grupo moralmente vulnerável pode
exercer? Quais critérios poderiam ser estabelecidos no princípio do consentimento
para indivíduos cuja existência como agente moral é negada a priori?
O capítulo 5 reproduz o artigo 2, intitulado “Fronteiras entre vulnerabilidade
social e vulnerabilidade moral: implicações bioéticas”, que trata das relações entre a
vulnerabilidade social e a vulnerabilidade moral na perspectiva da bioética. Neste
artigo, considera-se que tratar da vulnerabilidade moral não implica considerar apenas
as condições formais e materiais dos contextos sociais, mas também as diferentes
formas com que cada grupo ou indivíduo se identifica e posiciona nas relações morais.
Discute-se que a vulnerabilidade moral por vezes é menos explícita que a
vulnerabilidade social e nem sempre percebida ou reconhecida pelo próprio sujeito.
Nesta perspectiva, considera-se que a vulnerabilidade moral atinge indivíduos e
grupos que não correspondem à moralidade hegemônica de determinado contexto
com repercussões negativas como exclusão, distanciamento, segregação e outras
formas de estigmatização e discriminação negativa. São grupos, que além da
vulnerabilidade social, que é explícita, também são moralmente julgados na
invisibilidade, em muitas situações imperceptíveis, e consequentemente não sendo
considerados pelas dinâmicas de proteção e intervenção estatal ou coletiva. Neste
sentido, a vulnerabilidade moral caracteriza-se simultaneamente como causa e como
consequência de processos como estigmatização e discriminação negativa, isto é,
com mecanismos objetivos e subjetivos de negação da dignidade humana.
Neste sentido, esta dissertação pretende contribuir com uma abordagem
bioética atenta às situações concretas que influenciam negativamente a vida em sua
dimensão biológica, social e moral. Ampliar o olhar sobre indivíduos e comunidades
moralmente vulneráveis é desafiar uma bioética que considere cada indivíduo em sua
totalidade, pertencente a uma comunidade cada vez mais plural e específica, mas
também uma sociedade global, cujas vulnerabilidades também são globais.
O
15
trabalho assume o pluralismo e a diversidade moral como valor fundantes, na medida
em que sejam desenvolvidos processos de inclusão, tolerância e reconhecimento da
dignidade. Porém, este mesmo contexto global de pluralismo e diversidade moral,
também
revela
práticas
de
intolerância,
fundamentalismo,
estigmatização,
discriminação e desigualdades de dignidade e direitos, e neste sentido, a proposta da
temática da vulnerabilidade moral implica um olhar dialético.
Por fim, este trabalho pretende colaborar na construção de uma Bioética Crítica
que esteja atenta às questões sociais globais, principalmente se considerarmos a
realidade da América Latina, onde as desigualdades de direitos e de dignidade
constituem um aspecto marcante e preponderante na geração e na manutenção da
vulnerabilidade moral. As pessoas são diferentes por natureza, porém, merecem
igualdade de tratamento em relação ao respeito, a dignidade e aos direitos. Portanto,
o pressuposto assumido pelo trabalho é que a chave para o enfrentamento da
vulnerabilidade moral passa pela valorização das diferenças, mas ao mesmo tempo
em que se enfrentam as injustiças e desigualdades sociais.
16
CAPÍTULO 2
DAS DIVERSAS PERSPECTIVAS DA BIOÉTICA ÀS DIVERSAS
ABORDAGENS DA VULNERABILIDADE
Da mesma forma em que existem diversas perspectivas da bioética, existem
diversas abordagens e conceituações da vulnerabilidade. Nesta investigação, a
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005)5 é um marco
normativo e referencial, visto a inclusão definitiva da vulnerabilidade no escopo da
bioética por este documento de natureza global. A DUBDH possibilitará que o núcleo
de nossa abordagem sobre a vulnerabilidade seja a passagem de uma situação de
vulnerabilidade enquanto susceptibilidade, a sofrer um dano em si, ou seja, do ser
vulnerável ao estar vulnerável. Portanto, mesmo diante de todas as perspectivas da
bioética, a DUBDH permite-nos perceber e tratar a vulnerabilidade como um aspecto
transversal que perpassa, ou pelo menos dialoga, com outras perspectivas do campo,
principalmente dos países do hemisfério sul e, de forma específica, da América Latina.
2.1 VULNERABILIDADE NO CONTEXTO DO SURGIMENTO DA BIOÉTICA
Atualmente, a vulnerabilidade ocupa um espaço de grande relevância nas
discussões em bioética, sendo um de seus principais referenciais. Compreender a
vulnerabilidade como um referencial da bioética dá-se a partir de duas realidades. A
primeira é que a vulnerabilidade constitui uma dimensão que é comum a todos os
seres humanos, que é a vulnerabilidade existencial, ou ontológica. A segunda,
conforme Porto (et tal), diz respeito a grupos ou indivíduos que são impactados por
uma vulnerabilidade circunstancial, visto o contexto de pobreza, violência,
desemprego e outros fatores concretos desfavoráveis, sendo considerada como
vulnerabilidade social6.
5
UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de
ética
da
Universidade
de
Brasília/SBB.
2005.
Disponível
em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso 15 jun.
2015.
6 PORTO, Dora; SCHLEMPER, Bruno; MARTINS, Gerson; CUNHA, Thiago Rocha; HELLMANN,
Fernando. (org.). Bioética: Saúde, Pesquisa Educação. Conselho Federal de Medicina. Sociedade
Brasileira de Bioética, Brasília. 2014. pp. 37-48.
17
A
vulnerabilidade
enquanto
referencial
ético
antecede
o
surgimento
propriamente dito da bioética. A partir do Código de Nuremberg (1947) começam a
entrar em pauta temas relacionados a vulnerabilidade, uma vez que o documento
surgiu justamente
para proteger sujeitos vulneráveis, mais especificamente
prisioneiros em campos de concentração. Apesar desta preocupação, a palavra
‘vulnerabilidade’ não aparece no texto do Código, sendo relacionada aos contextos de
fragilidades, coerção e exploração de sujeitos sem possibilidade de decidir, isto é,
vinculada à ausência de autonomia7.
Dezessete anos após o Código de Nuremberg, a Associação Médica Mundial
elaborou a Declaração de Helsinque I, em 19648. Nesta Declaração, a preocupação
básica era com a ética na pesquisa clínica, mas na primeira versão do documento o
termo vulnerabilidade ou vulnerável não foi explicitado.
Como se sabe, a palavra “bioética” surgiu em 1970, em um artigo do
cancerologista americano Van Reensselaer Potter, intitulado: “Bioethics, the Science
of Survival”9. Conforme apontado por Schramm, Potter pede a criação de uma nova
ciência, uma ciência da sobrevivência, que se baseie na aliança do saber biológico
(bio), com os valores humanos (ética). Reivindicava um vasto campo de atuação da
bioética, que englobava o controle da população, a paz, a pobreza, a ecologia, a vida
animal e o bem estar da humanidade. Apesar dessa amplitude de visão, a palavra
vulnerabilidade também não apareceu neste artigo que deu origem à disciplina.
Por outro lado, a abordagem de Potter não foi inicialmente adotada pela
academia, tendo a bioética sido rapidamente reduzida a perspectiva biomédica a partir
da criação do Kennedy Institute of Ethics por Hellegers, o qual julgava o termo
particularmente significativo para expressar a ideia de renovação que ele visava para
a ética médica e biomédica10.
Para Garrafa, a ética médica passou a ter como foco principal as questões
médicas e tecnológicas, entrando em contradição com a concepção Potteriana, que
tratava de uma perspectiva mais global e holística. Em primeiro lugar, ela se preocupa
7
HOSSNE, William Saad. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. rev. Bioethikos.
Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2013. pp. 41 – 51.
8 ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Código Internacional de Ética Médica. Disponível
<http://www.bioetica.ufrgs.br/helsin1.htm>. Acesso 20 maio 2015.
9 SCHRAMM, Fermim Roland. Uma breve genealogia da bioética em companhia de
Rensselaer Potter. rev. Bioethikos. Centro Universitário São Camilo. 2011. pp. 302 – 308.
10 DURAND, Guy. Bioética: história, conceitos e instrumentos. Tradução: NYIMI, Nícolas.
Paulo. 2ª ed. Loyola, 2007.
São
em:
Van
São
18
com a perspectiva do paciente individual, e em segundo lugar, interessa-se
exclusivamente nas consequências a curto prazo das intervenções médicas e
tecnológicas. Embora Potter admita que a bioética médica tenha uma abordagem
mais ampla do que a ética médica tradicional, ainda é muito estreita para abordar o
que são, em sua opinião, os problemas éticos fundamentais e urgentes da
humanidade: crescimento da população, guerra e violência, poluição e degradação
ambiental, além da pobreza11.
Para Barchifontaine e Pessini (2012), Potter considera esses problemas como
ameaças à sobrevivência da humanidade, e sua urgência revela a preocupação
quanto ao futuro. Assim, “Potter define a bioética como a ciência da sobrevivência
humana, numa perspectiva de promover e defender a dignidade humana e a
qualidade de vida, ultrapassando o âmbito humano para abarcar inclusive a realidade
cósmico-biológica”12. Neste sentido, embora o autor não tenha se referido ao termo,
consideramos a vulnerabilidade como um dos referenciais importantes de seu
pensamento, uma vez que a natureza de sua preocupação estava relacionada à
vulnerabilidade que a espécie humana se encontrava frente aos riscos à sobrevivência
planetária.
Desta sorte, embora Potter não
traga de forma explícita o termo
“vulnerabilidade”, aponta para um aspecto mais concreto, indicando os meios para a
garantia de sobrevivência da civilização humana, cujo risco de existência configurase como a maior de todas as vulnerabilidades.
No contexto da ética em pesquisa, para a Organização Mundial da Saúde (OMS)
e o Conselho de Organizações de Ciências Médicas (CIOMS), por meio das Diretrizes
Éticas Internacionais, nas versões de 1982, 1991, 1993 e 2002, o conceito de
vulnerabilidade vai surgindo de forma crescente. A versão de 1982 utiliza a expressão
“[...] pesquisa envolvendo indivíduos de comunidades subdesenvolvidas”.
Já na
versão de 199313, não há nenhuma referência a “vulnerabilidade”.
11
GARRAFA, Volnei (Org.). Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Conselho Federal de
Medicina, Cátedra Unesco de Bioética e Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília. 2012. p 45.
12 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian. Problemas atuais de Bioética. São Paulo. 10ª ed.
Edições Loyola, 2012. p.15.
13 OMS/COM. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CONSELHO E ORGANIZAÇÕES DE
CIÊNCIAS MÉDICAS. Proposta de diretrizes éticas internacionais para a pesquisa biomédica
com seres humanos. São Paulo. Loyola. 2004.
19
Em relação à Declaração de Helsinque, foi somente em sua revisão VI (2000) 14
que a expressão vulnerabilidade apareceu pela primeira vez tal como reproduz a
passagem: “Algumas populações de pesquisa são vulneráveis e necessitam de
proteção especial. É necessário também para aqueles que não podem dar ou recusar
o consentimento por eles mesmo”. A vulnerabilidade aqui se refere a grupos especiais
(vulneráveis), e a questão da vulnerabilidade se resolve com o consentimento
(autonomia).
Do mesmo modo, somente na última versão das Diretrizes Éticas Internacionais
(2002)15 há maiores referências a vulnerabilidade. No capítulo “Princípios éticos
gerais”, se expressa: “[...] proteção de pessoas com autonomia diminuída ou
deteriorada”, e inclui:
[...] o termo vulnerabilidade alude a uma incapacidade substancial para
proteger interesses próprios devido ao impedimento, como falta de
capacidade de conceder consentimento informado, falta de meios para
conseguir cuidados médicos ou outras necessidades de alto custo ou ser um
membro subordinado de um grupo hierárquico 16.
Neste documento, mais uma vez a vulnerabilidade aparece vinculada ao
conceito de autonomia. A seguir o documento faz vinculação ao conceito de justiça:
“[...] portanto, deve ser feita especial referência à proteção dos direitos e do bem-estar
das pessoas vulneráveis”. As Diretrizes são acompanhadas de comentários e valenos destacar o seguinte:
São pessoas vulneráveis as absolutas ou relativamente incapazes de
proteger seus próprios interesses. São indivíduos convencionalmente
considerados vulneráveis aqueles com capacidade ou liberdade diminuída
para consentir ou abster-se de consentir17.
Como exposto, verifica-se que no contexto histórico do surgimento da Bioética a
vulnerabilidade não foi abordada de modo direto, tendo sido introduzida na disciplina
progressivamente no contexto da ética em pesquisa envolvendo seres humanos,
14ASSOCIAÇÃO
MÉDICA MUNDIAL. Declaração de Helsique VI. 2000. Disponível em:
<http://www.fcm.unicamp.br/>. Acesso 17 jun. 2014.
15OMS/CIOMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CONSELHO E ORGANIZAÇÕES DE
CIÊNCIAS MÉDICAS. Proposta de diretrizes éticas internacionais para a pesquisa biomédica
com seres humanos. São Paulo. Loyola. 2004.
16 Id.
17 Id.
20
particularmente
voltando-se
aos
problemas
relacionados
à
autonomia
e
consentimento, isto é, sem considerar as dimensões sociais, existenciais ou morais
da vulnerabilidade.
2.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS:
CONSOLIDAÇÃO DA VULNERABILIDADE EM BIOÉTICA
No Brasil, Garrafa e Porto (2003), destacam que duas abordagens de Bioética
têm considerado a questão da vulnerabilidade. Na Bioética da Intervenção, a
vulnerabilidade do corpo à dor é o marcador da intervenção individual. No campo
coletivo, o grupo historicamente mais vulnerável é o qual a Bioética de Intervenção18
se alia em defesa de seus interesses, por meio do aumento do utilitarismo solidário.
Na Bioética de Proteção,19 Scharamm chama atenção a especial proteção àqueles
grupos e indivíduos que deixaram e ser vulneráveis (enquanto possibilidade de sofrer)
para tornaram-se vulnerados (enquanto sofrimento vivenciado).
A pergunta sobre o que torna indivíduos e grupos vulneráveis é uma questão
fundamental, e que deve ser uma constante, mesmo antes de proteger ou intervir. Se
há a necessidade de proteção, é porque de alguma forma a pessoa ou o grupo já está
em situação de risco, e se precisa intervir é porque já sofre danos. Portanto, identificar
o que torna grupos e pessoas vulneráveis, é o primeiro passo para impedir que
passem de um estado de ser vulnerável para o estado de estar vulnerável.
Essas abordagens brasileiras não foram inicialmente reconhecidas globalmente,
sobretudo porque a produção norte-americana voltada a biomedicina persistiu e ainda
persiste, como abordagem hegemônica no campo. De qualquer modo, após anos de
domínio da bioética tradicional, surgiu em 2005 um documento que consolida em
definitivo as temáticas da cotidianidade das pessoas, povos e nações, tais como a
exclusão, a vulnerabilidade, a guerra, o racismo, a saúde pública, entre outros. Tratase da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO20,
18
GARRAFA Volnei, PORTO, Dora. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in
a context of power and injustice.Bioethics. 2003 Oct;17(5-6):399-416.
19 SCHRAMM, Fermim. Bioética dos vulnerados. Revista Bioética. v. 19, n. 03. 2009. Disponível em:
<http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Destaques&id=134>. Acesso 18 out. 2015.
20 UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de
ética
da
Universidade
de
Brasília/SBB.
2005.
Disponível
em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso 15 jun.
2015.
21
aprovada por 191 países. O Brasil foi um ator fundamental nas discussões para
reivindicar a importância em se articular as questões sociais, conforme aponta Garrafa
na apresentação da tradução brasileira da declaração:
O teor da Declaração muda profundamente agenda da Bioética do Século
XXI, democratizando-a e tornando-a mais aplicada e comprometida com as
populações vulneráveis, as mais necessitadas. O Brasil e a América Latina
mostraram ao mundo uma participação acadêmica, atualizada e ao mesmo
tempo militante nos temas da Bioética, com resultados práticos e concretos,
como é o caso da presente Declaração, mais um instrumento à disposição da
democracia no sentido do aperfeiçoamento da cidadania e dos direitos
humanos universais21.
Na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) da
UNESCO, o Artigo 8 descreve a obrigatoriedade do respeito à vulnerabilidade humana
e à integridade pessoal:
A vulnerabilidade humana deve ser levada em consideração na aplicação e
no avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e de tecnologias
associadas. Indivíduos e grupos de vulnerabilidade específica devem ser
protegidos e a integridade individual de cada um deve ser respeitada 22.
A vulnerabilidade humana, portanto, deve ser levada em consideração, o que
corresponde a reconhecê-la como traço indelével da condição ontológica do ser
humana, na sua irredutível finitude e fragilidade como exposição permanente a ser
ferida, não podendo jamais ser suprimida. De qualquer modo, segundo o documento,
grupos e indivíduos especialmente vulneráveis devem ser protegidos sempre que a
inerente vulnerabilidade humana se encontra agravada por circunstâncias várias,
devendo aqueles ser adequadamente protegidos.
A partir da DUBDH, o conceito passa a ser abordado em diferentes produções
teóricas e conceituais, tanto internacionais quanto nacionais. Em 2013, a Declaração
de Helsinque passou a abordar a vulnerabilidade de forma muito mais explicita,
aprofundando algumas recomendações:
Alguns grupos e pessoas submetidas à investigação são particularmente
vulneráveis e podem ter maior possibilidade de sofrerem abusos ou danos
adicionais. Todos os grupos e pessoas vulneráveis devem receber proteção
21
GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e injustiça. Sociedade Brasileira de
Bioética. Tradução: SOBRAL, Adail. São Paulo. Loyola. 2004. p. 03.
22 UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de
BioéticadaUniversidadedeBrasília/SBB.2005.Disponívelemttp://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf. Acesso 03 jun. 2015. Acessado em: 15 de junho de 2015.
22
específica. A investigação médica em um grupo vulnerável apenas se justifica
se a investigação responde às necessidades ou prioridades de saúde deste
grupo e a investigação não pode realizar-se em um grupo não vulnerável.
Além disso, este grupo poderá beneficiar-se dos conhecimentos, práticas ou
intervenções derivadas da investigação 23.
Para Hoffmaster (2006) a ética deve estar mais preocupada com a questão da
vulnerabilidade, postulando o ser humano tem três desejos fundamentais: viver, viver
bem e viver melhor. Para este autor, a vulnerabilidade é a perda dos três desejos. No
entanto, segundo o autor a ética não tem se preocupado muito com isso, por três
razões: a vulnerabilidade é antiética aos atos do individualismo; a vulnerabilidade está
separada da filosofia moral; os sentimentos não têm lugar nas concepções
racionalistas da filosofia moral e da moralidade. Para ele, precisamos sentir nossa
vulnerabilidade para afirmar nossa humanidade. Nossa vulnerabilidade comum
deveria nos unir e nos vincular uns aos outros24.
Conforme já destacado, compreender a vulnerabilidade como um referencial da
bioética dá-se a partir de duas realidades. A primeira é que a vulnerabilidade constitui
um elemento que é comum a todos os seres humanos. A segunda diz respeito a
grupos ou indivíduos específicos, das quais utilizaremos da definição de
vulnerabilidade social, definida na Bioética de Proteção como estado de vulneração
ou suscetibilidade, que tem Scharramm como principal representante desta
corrente25.
Estas são duas situações distintas que requerem análises e abordagens
diferentes, visto que nem os fatores de origem, nem as consequências são as
mesmas. É neste sentido que Hossne chama atenção para que:
Portanto, ser vulnerável o ser humano é sempre; estar vulnerável pode ser
sim ou não. Trata-se de ir de uma situação latente a uma situação manifesta,
de uma situação de possibilidade para uma situação de probabilidade, do ser
vulnerável ao estar vulnerável26.
23
OMS. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Declaração de Helsinque. 2013. Disponível em:
<http://www.amb.org.br/_arquivos/_downloads/491535001395167888_DoHBrazilianPortugueseVers
ionRev.pdf. Acessado em 25/08/2015.>. Acesso 12 abril 2015.
24 HOSSNE, William Saad. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. rev. Bioethikos. São
Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2013. pp. 41 – 51.
25SCHRAMM, Fermim. Bioética de proteção: Ferramenta válida para enfrentar os problemas
morais na era da globalização. rev. de Bioética, v. 16. 2008. pp. 11 – 16.
26 HOSSNE, William Saand. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. rev. Bioethikos. São
Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2013. pp. 41 – 51.
23
Portanto, em situação de vulnerabilidade não é somente o indivíduo que deve
ser considerado, mas as relações sociais e de poder o envolve: comunidade, grupo,
estado, instituição, etc.27. Nos próximos tópicos discorreremos com mais atenção
sobre esta dimensão concreta e socialmente localizada da vulnerabilidade.
2.3 ENTRE SER VULNERÁVEL E ESTAR VULNERÁVEL: PERSPECTIVA
BIOÉTICA SOBRE VULNERABILIDADES
Sanches e Guber (2014) apresentam várias dimensões ao se discutir a
vulnerabilidade no campo da bioética: bioética, vulnerabilidade e educação; genética
e vulnerabilidade; da vulnerabilidade do embrião emergente da reprodução humana
assistida; a vulnerabilidade do transexual; gênero, vulnerabilidade e HIV; Bioética nos
cuidados neonatais; vulnerabilidade do enfermo e a relação de cuidado;
vulnerabilidade no ambiente de trabalho, assédio moral, etc28.
Este trabalho não parte de um marco zero acerca sobre a investigação
conceitual da vulnerabilidade na bioética, tão pouco, pretende meramente reproduzir
abordagens já desenvolvidas sobre o conceito. Assim, tendo em consideração que a
vulnerabilidade é uma problemática complexa, conceituada e manifestada de diversas
formas, tomaremos como ponto de partida a investigação desenvolvida por Cunha e
Garrafa (2016), entitulada: “Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?”29. A
relevância do trabalho desenvolvido por estes autores permite-nos ter clareza acerca
das bases a partir das quais abordaremos a vulnerabilidade neste trabalho.
No referido artigo, os autores problematizam o conceito de vulnerabilidade
expressado nas perspectivas de cinco abordagens regionais da bioética:
estadunidense, europeia, latino-americana, africana e asiática30. Neste sentido,
constatam que a vulnerabilidade apresenta nuances bastante variados, sendo que em
cada regional assume características e formas de abordagens específicas, mesmo
que por vezes prevaleça um modelo conceitual, mas sem sobrepor-se às
características específicas de cada contexto.
27
Id. p. 43.
SANCHES, Mário Antonio; GUBERT, Ida Cristina (org). Bioética e Vulnerabilidades. São Paulo.
Ed. Loyola. pp. 09 – 203.
29 CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?. Cambridge
Quarterly of Healthcare Ethics, 25, 2016. pp 197-208.
30 Id.
28
24
Ao nos apropriarmos do que Cunha e Garrafa desenvolvem em cada abordagem
regional da bioética, percebemos estas nuances, por exemplo, quando apresentam
que “[...] na bioética desenvolvida nos Estados Unidos, a vulnerabilidade pode ser
descrita essencialmente em uma relação como princípio da autonomia: vulnerável é
aquele incapaz de decidir sobre os próprios interesses”31. Na bioética de origem
europeia, por sua vez, demonstram que a vulnerabilidade não pode ser anulada
mediante a garantia do exercício da autonomia ou da aplicação de um termo de
consentimento, uma vez que o vulnerável assim o é por sua condição humana e não
por uma situação institucional ou provisória relacionada à capacidade de decidir 32.
Cunha e Garrafa apresentam alguns dos autores de referência para discutirmos
vulnerabilidade no contexto de América Latina, também utilizados neste trabalho,
como: Mainetti, Garrafa, Prado, Schrram, Kottow, Nascimento e outros33. Em um
mesmo continente, com contextos próximos, percebe-se que a bioética possui uma
história específica em cada país, e, portanto, cada autor aborda a vulnerabilidade de
forma muito contextualizada. Aproximaremo-nos destes autores, a partir de contextos
comuns à América Latina, como: desigualdades sociais, exploração econômica,
pobreza, iniquidade, diversidade moral e religiosa, etc.
Ao abordarmos a vulnerabilidade a partir de um contexto específico de América
Latina, não significa que não consideramos também a vulnerabilidade em outros
contextos. Para isso, adotamos como marco referencial a DUBDH, e partilhamos do
conceito desenvolvido por Cunha e Garrafa, em que “[...] a vulnerabilidade é um
princípio chave para a bioética global, desde que fundamentada em um processo
permanente de diálogo entre as diversas perspectivas da bioética”34.
Por isso, para melhor fundamentar a discussão posterior a respeito das
especificidades e implicações da vulnerabilidade moral é importante destacar alguns
elementos da abordagem ‘tradicional’ da disciplina. A
filosofia
ocidental,
principalmente a produzida na Europa continental, considera a vulnerabilidade uma
dimensão antropológica essencial da existência humana. Neste sentido para Kottow:
31
ROGERS, W.; MACKEZINE, C. A.; DODDS, S. M.; In. CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei.
Vulnerabilidade: Princípio chave para a bioética global? Cambridge Quarterly of Healthcare etchics.
32 CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?.
Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 25, 2016. pp 197-208.
33 Id.
34 Id.
25
Ser vulnerável significa estar suscetível a, ou em perigo de, sofrer danos.
Estar vivo é uma improbabilidade biológica altamente vulnerável a
perturbações e à morte, e mais ainda se vidas humanas tem de ser
construídas, sendo, portanto desproporcionalmente frágeis e propensas a
desordens e disfunções. A vulnerabilidade intrínseca às vidas humanas
também foi reconhecida por filósofos políticos que propuseram ordens sociais
destinadas a proteger da violência a vida, a integridade corporal e a
propriedade35.
Assim, a vulnerabilidade humana reconhecida como traço da condição humana
considera a finitude e fragilidade de todos os seres, cuja existência é marcada pela
exposição permanente a ser ferido. Ao ser humano, porém, a vulnerabilidade vai além
de sua condição biológica na busca pela sobrevivência, o que é comum a todos os
animais, mas também se revela na sua condição social e existencial, enquanto busca
de sentido para a vida. Neste trabalho, conforme já explicitado, a partir do próximo
capítulo pretendemos discutir uma dimensão específica da vulnerabilidade humana: a
vulnerabilidade moral.
Além da vulnerabilidade intrínseca, ontológica, alguns indivíduos e grupos são
afetados diretamente por circunstâncias desfavoráveis, nas quais a pobreza, a falta
de educação, as dificuldades geográficas, as doenças crônicas, a violência e outros
infortúnios os tornam ainda mais vulneráveis.
A esse respeito, a norte-americana Ruth Macklin questiona: “O que torna
indivíduos, grupos ou países vulneráveis?”36. Segundo a autora, pessoas vulneráveis
são pessoas relativa ou absolutamente incapazes de proteger seus próprios
interesses. De modo mais formal, podem ter poder, inteligência, educação, recursos
e forças insuficientes ou atributos necessários à proteção de seus interesses 37. Tal
como será pontuada adiante, essa compreensão da vulnerabilidade voltada à defesa
de interesses ou manifestação de vontade também será problematizada a partir de
seus limites. Macklin (2003) apresenta alguns indicadores neste sentido.
Indivíduos e comunidades são vulneráveis porque carecem dos bens
fundamentais de que precisam para sair de um estado de destituição.
Padecem da perda de capacidade ou da falta de liberdade, tem reduzida a
gama de possibilidades disponíveis para o bem estar e buscar os interesses
importantes de sua vida38.
35
KOTTOW, Michael. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça.
Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2000. p. 74.
36 MACKLIN, Ruth. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça.
Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003 p. 60.
37 Id.
38 Id. p. 70.
26
A origem da vulnerabilidade comum ao ser humano é conhecida, pois é a própria
condição de “ser humano”, mas esta, de grupos específicos, apresenta um desafio
maior, pois identificar os mecanismos desta vulnerabilidade específica implica analisar
diversos atores, como: estado, comunidade, sistemas econômicos e sociais,
instituições e órgãos. Tais relações, podem colocar o indivíduo ou o grupo em estado
de vulnerabilidade específica. Portanto, a identificação deve ser um esforço comum a
todas as áreas: educação, ética, sociologia, filosofia, saúde, etc. O que a bioética pode
contribuir em especial é justamente como um espaço interdisciplinar de interlocução
entre as diversas áreas do conhecimento para identificar concretamente as diversas
dimensões que podem estar vulnerando indivíduos e pessoas, seja do ponto de vista
institucional, biológico, social, moral, entre outros.
Em relação aos processos que vulneram pessoas e comunidades e as formas
para identificação destes contextos, Martorell e Nascimento (2013) tratam dos
contextos descoloniais na atualidade a partir da bioética. Para os autores, a
vulnerabilidade está relacionada com a marca da colonialidade, isto é pela percepção
de que algumas vidas têm mais valor que outras a partir de suas aproximações ou
distanciamentos com as características daqueles que conduziram o processo de
colonização moderna, o que justifica a dominação, submissão e exploração. É neste
sentido que a bioética tem feito críticas a essa hierarquização de vidas, principalmente
em relação a países periféricos, sobretudo países da América Latina, do continente
Africano e Asiático. A colonialidade vem sendo utilizada para justificar práticas
violentas. Assim, defendem os autores que “[...] a bioética assume a tarefa de
denunciar e desnaturalizar essa colonial imagem da vida, que aparece em diversos
tipos de imperialismos que terminam por estruturar e manter as desigualdades sociais
[...]”39. Desta forma, “[...] o posicionamento da Bioética em contexto de
interseccionalidade é de clareza e explicides na denúncia e enfrentamento diante de
fatos concretos como: racismo, xenofobia, sexismo, homofobia, entre outros [...]”40.
Hans-Martin Sass (2003), por outros meios, também conceitua uma
vulnerabilidade típica da modernidade: “A nova vulnerabilidade das sociedades
modernas é representada pelo fácil rompimento das relações interpessoais, pela
insegurança no emprego, por estruturas desiguais de sistemas de cuidados do caráter
39
MARTORELL, Leandro Branbilha; NASCIMENTO, Wanderson Flor. A Bioética de Intervenção em
contextos descoloniais. rev. Bioética; v. 21. 2013.
40 Id.
27
anônimo, pela falta de apoio familiar na doença e na demência”41. Nas sociedades
modernas, pesam sobre as pessoas vulnerabilidades diferentes. Por exemplo, muitas
pessoas solteiras nas grandes metrópoles gozam de dimensões de liberdade civil que
as culturas pré-modernas desconheciam, mas são vulneráveis como nunca antes
devido a não contarem com uma família, com vizinhos, com comunidades morais que
lhes dêem apoio, tendo apenas direito legal sobre certos serviços de proteção.
Hoje a vulnerabilidade não tem incidência somente no indivíduo, o qual se
desenvolve uma abordagem mais específica, mas ela recai também sobre
grupos, comunidades, e mesmo países inteiros. Referente aos grupos
vulneráveis incluem-se aí membros subordinados de grupos hierárquicos
como militares ou estudantes, pessoas idosas com demência e residentes
em asilos, pessoa que recebem benefícios da seguridade ou assistência
social, pobres, desempregados, pacientes em salas de emergência, alguns
grupos étnicos e raciais minoritários, sem teto, nômades, refugiados ou
pessoas deslocadas, prisioneiros, e membros de comunidade sem
conhecimento dos conceitos médicos modernos e outros 42.
O relatório do Observatório das Metrópoles (2005) considera como vulnerável os
territórios, como também o contexto em que o indivíduo está inserido.
Considerar o território vulnerável como aqueles pedaços das metrópoles
onde estão presentes os sinais de crise do regime coletivo de gestão de risco
associado à fragilização das famílias e das estruturas sociais no plano do
bairro. Tal crise resulta por sua vez da segmentação produzida neste
mercado pelas transformações sócio produtivas engendradas pela nossa
inserção subordinada ao mercado à globalização, sobretudo a partir dos anos
90 do século XX43.
Portanto, estes territórios, como lugares vulneráveis são aqueles, nos quais os
indivíduos enfrentam riscos e a impossibilidade de acesso a condições habitacionais,
sanitárias, educacionais, trabalho, participação e acesso diferencial a informação e as
oportunidades. Assim, existem situações em que o sujeito ou grupos, de acordo com
a realidade em que está inserido, e principalmente se esta realidade, contexto ou
território é desfavorável ao seu desenvolvimento, requer que seja considerado
também com critérios específicos, relacionados à vulnerabilidade social.
41
SASS, Hans Martin. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça.
Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. p. 80.
42 MACKLIN, Ruth. In. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça.
Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. p. 61.
43 INSTITUTO NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Observatório das metrópoles. Disponível
em: <http://www.cchla.ufrn.br/rmnatal/artigo/artigo16.pdf>. Acesso 04 jul. 2015.
28
Discutindo especificamente as implicações éticas das pesquisas internacionais
em países periféricos, Lorenzo define a vulnerabilidade social como “os limites da
autodeterminação e a potencialização dos riscos de pesquisa provocados por
desvantagens socioeconômicas e culturais existentes na estrutura de vida cotidiana
de sujeitos e grupos”. Devido a importância desta dimensão social na bioética
brasileira e latino-americana e sua relação com o que denominamos por
‘vulnerabilidade moral’ é importante apresentar sua perspectiva de modo mais
detalhado.
2.4 A VULNERABILIDADE SOCIAL COMO PROBLEMÁTICA CHAVE NA
BIOÉTICA LATINO AMERICANA
Desde já, é preciso destacar que tratar de vulnerabilidade social a partir da
perspectiva da bioética não implica tratar de forma igualitária todos os sujeitos de um
grupo, mas sim, considerar as diferentes formas que cada indivíduo ou grupo sofre a
vulnerabilidade. Cabe aqui considerar a vulnerabilidade do indivíduo, de um grupo, e
dos sujeitos específicos dentro de um grupo. Isso porque, mesmo que todo um grupo
seja vulnerável, ela se manifesta de forma diferente entre os sujeitos. Identificar e
reconhecer a forma como cada sujeito é impactado pela vulnerabilidade é um grande
desafio à bioética. Alguns membros de grupos vulneráveis podem não manifestar a
vulnerabilidade concreta. Porém, muitos destes, podem não se reconhecer como
vulneráveis, porque a pressão social a favor do preconceito, da estigmatização e da
discriminação é mais poderosa. Retomaremos este aspecto no próximo capítulo, onde
focaremos as implicações da vulnerabilidade moral.
A vulnerabilidade social, além de uma intervenção individual, requer intervenção
por meio de políticas públicas adequadas, pois quando grupos são vulneráveis
socialmente, é porque existe uma violação explicita dos direitos humanos, e neste
sentido, o Estado e a sociedade têm o dever de agir em favor dos mais frágeis: “A que
considerar que as políticas públicas devem proteger o direito e a liberdade de cada
pessoa. Devem identificar linhas de ação para proteger e promover os direitos
humanos, bem como garantir o acesso à justiça”44.
44
TEALDI, Juan Carlos. Dicionário Latinoamericano de Bioética. Universidade Nacional de
Colômbia. Unesco. Bogotá, 2008.
29
Tratar da vulnerabilidade social implica também um olhar sobre os países
periféricos. No VI Congresso Mundial de Bioética (2002), Garrafa e Porto defendem a
necessidade para a bioética de incorporar ao seu campo de reflexão e ação aplicada
temas políticos atuais, principalmente as agudas discrepâncias sociais e econômicas
existentes entre ricos e pobres, entre as nações dos hemisférios Norte e Sul do
mundo. Garrafa ampliou a discussão levantada pelo Congresso, relacionando a nova
proposta bioética:
Talvez a intuição pioneira de Potter, ao cunhar profeticamente a bioética
como uma “ponte para o futuro” da humanidade (1970), possa ser repensada
como uma ponte de diálogo multi, inter e transcultural para os diferentes
povos e culturas, em que as relações de justiça, solidariedade e respeito
diante do diferente, do diverso e do desigual não sejam meros discursos
vazios ou realidades virtuais, mas traduzam-se em dignidade e qualidade de
vida para as pessoas e os povos mais vulneráveis 45.
Mais tarde, Garrafa destacou também a importância do surgimento da
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) e a complexidade de
alguns problemas tratados no documento de forma concreta, sendo um salto
qualitativo no que se refere à incorporação dos problemas persistentes no mundo
atual, e a forma como a vulnerabilidade social vai sendo incorporada nas reflexões em
bioética. Dentre os problemas abordados, o autor destaca:
[...] exclusão social, concentração de poder, globalização econômica
internacional e a evasão dramática das divisas das nações mais pobres para
países centrais, a inacessibilidade dos grupos economicamente vulneráveis
à conquistas do desenvolvimento científico e tecnológico, e a desigualdade
de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo básicos indispensáveis
à sobrevivência humana com dignidade 46.
Concordamos que incluir a concretude dos problemas que atingem os países
periféricos na discussão bioética, com toda a diversidade de problemas, que por sua
vez são em sua grande maioria originados pela desigualdade social torna-se um dever
fundamental da bioética, atenta aos problemas internacionais e planetários, que
envolvem e responsabilizam toda a comunidade humana.
As circunstâncias devem ser levadas em consideração pelos bioeticistas, mas
não só, também pelos educadores, psicólogos, bioeticistas, juristas, e outros.
45
GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (org.). Bioética: Poder e injustiça. Sociedade Brasileira de
Bioética. Tradução: SOBRAL, Adail. São Paulo. Loyola. 2004. p. 14.
46 Id. p. 35.
30
“Considerar de forma responsável as diversas circunstâncias que envolvem o sujeito,
como: cultura, realidade familiar, religião, situação-sócio econômica e outros, é ter
como finalidade avaliar de modo mais adequado a responsabilidade do sujeito”47. Esta
avaliação mais adequada da responsabilidade do sujeito, ao se considerar as
circunstâncias, implica não tratar a todos com os mesmos critérios, mas sim, na
medida de suas desigualdades e vulnerabilidades, aplicando-se assim, o conceito e
equidade.
Visto que a partir da DUBDH a vulnerabilidade ganha uma relevância e entra
definitivamente em pauta nas grandes discussões bioéticas, ainda percebe-se que o
termo é tratado a partir de sua dimensão existencial e social. A atual circunstância de
muitos indivíduos e povos em contexto de desigualdade social, violência,
desemprego, pobreza, e outras situações que se tornam desfavoráveis ao
desenvolvimento do indivíduo, desafiam-nos a ampliar o olhar e a reflexão acerca da
vulnerabilidade em bioética, incluindo questões como a descriminação negativa, a
estigmatização, a negação do reconhecimento de direitos, da dignidade e do status
moral de determinados grupos.
Todas as conceituações e perspectivas sobre vulnerabilidade discutidas nos
tópicos anteriores indicam que o conceito envolve a totalidade do indivíduo em sua
relação com o meio, indo, assim, além da dimensão puramente existencial ou
puramente social. Considerando esta complexidade, propomos no próximo capítulo
a reflexão sobre a dimensão da vulnerabilidade moral.
47
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Tradução: MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo. Loyola.
2007. p. 149.
31
CAPÍTULO 3
VULNERABILIDADE MORAL: ESTIGMATIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO
NEGATIVA E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA
Ao tratar da vulnerabilidade moral nas relações de estigmatização, discriminação
negativa e negação da dignidade humana, buscaremos apresentar uma breve
fundamentação conceitual destes termos, e a partir do atual contexto de pluralismo e
surgimento de novos conceitos morais, perceber como os mesmos se manifestam na
atualidade, como são considerados em bioética, e como, a partir de manifestações
concretas, podem iluminar a reflexão acerca da vulnerabilidade moral.
A princípio, cumpre destacar que tanto a vulnerabilidade, quanto a
estigmatização, a discriminação negativa e a negação da dignidade humana podem
manifestar-se em dois âmbitos: o primeiro é de forma explícita, onde está relacionado
à dimensão social, e o segundo é de forma implícita, por meio da invisibilidade, que
pode acontecer por meio de discursos e narrativas de diversas naturezas, inclusive
ideológicos, científicos e religiosos. Nesta segunda forma de manifestação, implícita,
teremos como chave de leitura o atual contexto de pluralismo e diversidade moral e
sua relação com os mecanismos de vulnerabilidade moral.
Considerando as narrativas e discursos que produzem e reproduzem as formas
mais implícitas de negação da dignidade humana (incluindo nesta categoria as
diferentes formas de estigmatização, discriminação negativa e vulneração), duas são
as formas em que a vulnerabilidade moral pode surgir e manter-se. Primeiro, há uma
vulnerabilidade moral que surge de teorias que desqualificam moralmente indivíduos
e grupos. Estas teorias procuram justificar a inferioridade e a discriminação sofrida por
indivíduos e grupos.
Na filosofia ocidental e na ciência moderna é possível
identificar diversos grupos que sofreram essa forma de vulnerabilidade moral,
explicando-se aqui status moral das mulheres, que em diversos momentos da história
foram teoricamente classificadas como um análogo involuído ou deformado do
homem, justificando diversas formas de exclusão, subordinação e silenciamento48.
48 LINDEMANN H. The woman question in medicine: an update. Hastings Cent Rep. 2012;42(3):3845.
32
Assim, a desigualdade entre os sexos na atualidade é ainda considerada um dos
problemas mais desafiadores, visto que veio se perpetuando durante muitos séculos
a superioridade do homem em relação a mulher, permanecendo através
das
diferentes formas de organização social do ocidente, incluindo o feudalismo, o
escravagismo, e o capitalismo. Nestes três momentos históricos, a perpetuação da
subalternidade das mulheres se deu pela justificação teórica, normativa e legal de
diferentes instituições, quer seja a ciência, o estado, a igreja ou as próprias instituições
familiares.
A vulnerabilização justificada institucionalmente surge como característica de
uma sociedade que possui uma visão de ser humano que padroniza e classifica as
pessoas de acordo com essa visão. Elege-se um padrão de normalidade e se esquece
de que a sociedade se compõe de pessoas diversas, e que a própria sociedade se
constitui na diversidade. Este fato é percebido desde a medicina, por exemplo, com a
determinação ainda imperante de que os transgêneros são desvios patológicos da
normalidade cisgênera, à educação, quando nas escolas se reproduzem uma visão
determinista da sociedade, classificando alunos em “mais inteligentes” e “menos
inteligentes” de acordo com padrões e testes limitados.
A esse último exemplo, Mattos (2013) direciona um olhar para as atuais
metodologias e formas de se medir o desenvolvimento e aprendizagem de alunos,
utilizadas ainda por muitas escolas. Muitos dos processos de produção e reprodução
da estigmatização, e especificamente nesta investigação, da vulnerabilidade moral,
são decorrentes da forma como as dessemelhanças e a diversidade são tratadas em
sala de aula. Nesse processo, podemos citar, em 1905, Binet e Simon, que criaram a
Escala Métrica de Inteligência. Trata-se de um instrumento que marca até hoje as
diferentes concepções da intervenção educacional e que vem trazendo para milhares
de alunos com necessidades educacionais especiais o rótulo de deficientes mentais –
o que os tem excluído da ciranda social e escolar. Este método, direta ou
indiretamente justifica pelo desenvolvimento escolar a inferioridade de um grupo, a
partir da comparação com um modelo pré estabelecido como padrão49.
Ainda para Mattos, “[...] é importante registrar a influência das transformações
sociais ocorridas no final do século XIX e começo do século XX, as quais foram
decorrentes da Revolução Industrial, quando aparece o interesse pela educação nos
49
MATTOS, Edna. Deficiente mental: inclusão e exclusão. Blog: Inclusão e educação.
http://inclusaodm.blogspot.com.br/. Acesso 12 jan. 2016.
33
países desenvolvidos. Esse interesse provocou o início do atendimento aos
deficientes mentais, bem como o aparecimento do modelo educacional destinado a
um movimento de exclusão escolar e social”50.
Indivíduos e grupos sociais dominantes definem quais são os padrões normais
ou estigmatizados. Assim, uma pessoa é considerada normal quando atende aos
padrões que previamente são estabelecidos. No caso das discussões sobre
vulnerabilidade moral, esses padrões são moralmente determinados e é a
transgressão desses padrões que caracteriza o estigmatizado, que, por sua vez,
expressa desvantagem e descrédito. Tendo em conta os fatores econômicos, sociais,
culturais e históricos, o ser humano constrói sua identidade nas relações que
estabelece consigo mesmo e com outros seres, ao tempo que transforma a sociedade
e por ela é transformado.
No fenômeno do racismo é possível perceber problemas ainda mais tangentes.
Aliado a uma dimensão territorial, social, econômica, educacional, e sanitária, o
racismo atinge um significado cada vez mais abrangente, relacionado à
vulnerabilidade moral. Isto porque, hodiernamente, o racismo não tem mais uma
justificativa “científica” ou “teológica”, como há pouco ocorria com a legitimação da
escravidão, mas se reproduz cada vez mais de formas sutis, discursivamente menos
explícitas, mas que da mesma forma justificam e mantém a expansão dos privilégios
dos brancos sobre os negros na maioria dos países do planeta. O discurso midiático
que reiteradamente se refere ao jovem traficante negro da periferia como ‘bandido’ e
o jovem de classe média apenas “jovem” é um exemplo dessa forma contemporânea
de subordinação moral que se justifica a partir de um racismo simbólico 51.
Desta forma, postulamos que a vulnerabilidade moral pode acorrer a partir de
contextos que tornam indivíduos e grupos vulneráveis morais, sejam eles decorrentes
de discursos teóricos (sejam científicos, filosóficos, teológicos, etc.) ou de processos
concretos de exclusão social. A desqualificação social e infringida por grupos
moralmente dominantes que se sobrepõem a outros é o tema que nos ocuparemos
adiante.
50
Id.
51Revista
Fórum. Exemplo didático de como se opera o racismo na linguagem midiática.
http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2015/03/28/exemplo-didatico-de-como-se-opera-o-racismona-linguagem-midiatica/. Acesso 23 fev. 2016.
34
3.1 CONCEITUANDO ESTIGMATIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA E A
DIGNIDADE HUMANA.
A conceituação da estigmatização, da discriminação e da dignidade humana
será desenvolvida a partir do art. 11 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos que trata sobre o princípio da não discriminação e da não estigmatização:
“Nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado por qualquer
razão, o que constitui violação à dignidade humana, aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais, a uma discriminação ou estigmatização”52. Ao tratar sobre a
estigmatização, discriminação e dignidade humana, uma diversidade de conceitos são
encontrados, cada um a partir de uma perspectiva ética e de uma abordagem teórica
específica. Neste capítulo ao relacionar estes temas com a vulnerabilidade moral, fazse importante conceitua-los a partir da valoração moral, tendo como parâmetro teórico
a identidade interdisciplinar da bioética.
O artigo 11 da DUBDH, ao enunciar que a discriminação e a estigmatização
constituem violações à dignidade humana, remete à concepção de que estigma e
dignidade humana estão intrinsecamente associados; um existe na negação do outro.
“O estigma só se produz ou se concretiza na medida em que é retirada do outro a sua
dignidade, quando o outro é diminuído naquilo que o constitui como ser humano,
quando é inferiorizado e considerado abaixo dos demais seres humanos”53.
Para Garrafa (2014), a estigmatização gera uma invisibilidade social, que é uma
maneira pela qual estas pessoas procuram se manter no corpo social, como tentativa
de encobrir sua identidade, e por conseguinte a falta de reconhecimento é fonte de
enormes sofrimentos. Sua organização enquanto grupos é uma das formas de lidar
com o isolamento social vivido pelos membros individuais, decorrentes do medo, do
preconceito e da discriminação e de buscar seu reconhecimento social54.
52
UNESCO. Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Unesco de
ética
da
Universidade
de
Brasília/SBB.
2005.
Disponível
em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso 15 jun.
2015.
53 Id.
54 GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não estigmatização e da não discriminação.
São
Paulo.
rev.
Saúde
e
sociedade.
v.
23.
n.1.
2014.
Disponível
em:
<www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-12902014000100157&script>. Acesso 02 set. 2015.
35
Para Goffman (1980), o estigma é considerado como uma característica ou um
atributo profundamente depreciativo, constituído a partir de uma diferença ou de um
desvio, que provoca um efeito de descrédito em seu portador. O estigma inferioriza a
pessoa que o possui, tornando-a menos que os demais, atentando contra a própria
dignidade humana e diminuindo suas chances de vida 55. Portanto, o estigma e a
discriminação implicam o não reconhecimento da alteridade como aspecto
fundamental na formação da identidade do indivíduo. Assim, para Goffmam:
Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferente. Em primeiro
lugar, há as abominações do corpo - as várias deformidades físicas. Em
segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca,
paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade,
sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo,
distúrbio mental, prisão, vicio, alcoolismo, homossexualismo, desemprego,
tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os
estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através
de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família56.
A discriminação negativa será inserida conforme sintetizada e comparada com
a discriminação positiva. Neste sentido, compartilhamos da definição de Castel
(2008), para o qual: “A discriminação positiva consiste integrar as populações carentes
de recursos a fim de integrá-las. Consiste em fazer mais por aqueles que têm
menos”57. A discriminação negativa, por sua vez, “[...] significa ser associado a um
destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que é atribuída como
um estigma. A discriminação negativa é a instrumentalização da alteridade,
constituída em favor da exclusão58.
Na dignidade humana, o elemento fundamente cuja falta está caracterizada na
estigmatização, é uma expressão de difícil definição, gerando fortes controvérsias
teóricas e práticas com relação ao seu significado e conteúdo. Neste sentido, para
Sarlet (2014):
Um consenso possível acerca de sua concepção diz respeito ao fato de que
a dignidade é uma qualidade intrínseca da pessoa humana e, por
55
GOFFMAN, E. Apud. GODOI, Alcinda; GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não
estigmatização
e
da
não
discriminação.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104>. Acesso 18 ag. 2015.
56 Id.
57 CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones?. Petrópolis, Rio de
Janeiro. Editora Vozes. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922010000300011. Acesso 31 ag.
2015. Acesso 31 ag. 2015.
58 Id.
36
decorrência, é irrenunciável, inalienável e indisponível, constituindo, pois,
uma característica que não pode ser criada, concedida ou retirada – ainda
que possa ser violada – já que é inerente à condição humana, mas que deve
ser respeitada, promovida e protegida59.
Já no século XVII, Kant insere a discussão sobre a dignidade humana, porém,
não como um aspecto isolado e fragmentado da vida humana, mas como elemento
integrador e vinculado não só em relação a totalidade das dimensões que envolvem
a vida humana, como a social e a moral, mas também em relação a todos os seres
humanos. Kant insere a dignidade em seu pensamento associada a questões como a
liberdade, autonomia, vontade e moralidade, na obra Fundamentos da Metafísica dos
Costumes (1789), sendo o ser humano, um fim último e nunca um meio para obter
outras realizações. Na segunda seção da obra, Kant afirma: “age de tal maneira que
tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro,
sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio”60. É, pois, a partir
dessa formulação que Kant sustenta a ideia de que os homens têm dignidade, a qual
os faz estarem acima de qualquer preço ou valor. A dignidade passa a ser concebida,
portanto, como um valor incondicional. “[...] Tudo tem um preço ou uma dignidade.
Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como
equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não
permite equivalente, então tem ela dignidade”61.
O homem, como ser racional em Kant deve ser visto como um fim em si mesmo
dotado de um valor absoluto. Ao colocar o ser humano como um fim em si mesmo,
Kant não considera-o como uma ilha. Há, portanto, uma dimensão social e moral
evidente em seu pensamento. Sobre a dignidade, a argumentação Kantiana indica:
Supondo, porém, que haja algo cuja existência tenha em si mesma um valor
absoluto, que, enquanto fim em si mesmo, possa ser fundamento de leis
determinadas, então encontrar-se-ia nele e tão somente nele o fundamento
de um possível imperativo categórico. O homem, e de modo geral, todo ser
racional, existe como fim em si mesmo, não meramente como meio para o
uso discricionário dessa ou daquela vontade, mas sim, tem de ser
considerado em todas as suas ações, tanto as dirigidas a si mesmo quanto a
outros seres racionais, sempre e ao mesmo tempo como fim 62.
59
SARLET, I. In. GODOI, Alcinda; GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da não
estigmatização e da não discriminação. São Paulo. rev. Saúde e sociedade. v. 23. n.1. 2014
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104>. Acesso jul. 2015.
60 KANT, Emanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução: Antônio Pinto de Carvalho.
São Paulo. Companhia Editora Nacional. 2009. p. 70.
61 Id.
62 Id.
37
Kant considera o ser humano como um fim, a partir da moralidade, sendo esta,
a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, e deste fim
em si mesmo, decorre a dignidade. “[...] Portanto, a moralidade, e a humanidade
enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que têm dignidade”63.
Podemos considerar, portanto, que Kant atribui ao ser humano como principal
marca de sua identidade a dignidade, a partir de sua moralidade, exercida por meio
de sua autonomia e liberdade, porém, sempre em uma dimensão relacional. Com
Kant, o “outro” passa a ter uma finalidade moral. Partilhamos do pensamento de
Rohden (2005) em relação a esta dimensão relacional de Kant. “A ética do indivíduo
responsável perante os outros é central em Kant. Ela se manifesta quando está em
jogo o amor de cada um pelos outros na mesma medida do seu amor a si mesmo,
visto que seu objeto é a humanidade”64.
Para Sanches (2004), “[...] a dignidade decorre do fato do ser humano existir e
também, posteriormente a isso, de ser aceito. Fundar a dignidade humana na pessoa
como autoconsciente, ou no cidadão enquanto socialmente aceito, seria o mesmo que
fundar a dignidade humana numa posição passível de sofrer um amplo
escalonamento”65. Portanto, para Sanches há um dualismo que precisa ser rompido,
que é entre existir e ser aceito, ou entre o ser reconhecido como ser humano e ter sua
dignidade reconhecida. O contexto atual mostra que o fato do indivíduo existir, ou ser
reconhecido como ser humano, de forma alguma significa que automaticamente haja
o reconhecimento de sua dignidade, e nesta perspectiva, que o núcleo gerador da
vulnerabilidade moral está no fato de que muitos grupos não são reconhecidos em
sua dignidade, isto é, são ontologicamente desconhecidos enquanto seres dignos de
status ou agência moral.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a dignidade humana
passa a ser o grande referencial normativo na promoção dos direitos humanos. Neste
sentido, ao inserimos em Bioética a problemática da vulnerabilidade moral, o primeiro
aspecto gerador desta forma de vulnerabilidade é a negação da dignidade humana
em processos de negação ou inferiorizarão da identidade de indivíduos e grupos,
devidos suas padronizações morais, que como veremos adiante, pode acontecer e se
63
Id.
ROHDEN, Valério. In. KANT, Emanuel. Razão, liberdade, lógica e estética. Instituto Humanitas
Unisinos. Cadernos IHU em formação. Ano 1. nº 2. 2005. p. 22.
65 SANCHES, Mário Antonio. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo. Edições Loyola. 2004.
p. 102.
64
38
manifestar de diferentes formas, desde as mais explícitas até as mais sutis e
imperceptíveis num primeiro momento.
No
preâmbulo,
da
Declaração
Universal
dos
Direitos
Humanos,
“o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo”66. Conforme seu art. 1º, “Todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação
umas às outras com espírito de fraternidade”67. Este reconhecimento da dignidade
humana inerente a todos os membros da família humana presente no preâmbulo da
DUDH, permite-nos analisar que grupos considerados vulneráveis sociais e morais
possuem uma dimensão em comum, que é o não reconhecimento da dignidade. Aqui,
o reconhecimento sempre é de um sujeito ou grupo em relação a outro, e quando esta
relação é de desigualdade de dignidade e direitos, a vulnerabilidade moral torna-se
uma consequência desta desigualdade.
Apesar da dignidade humana ser o tema central da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1946), e ser amplamente contemplada na Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), em bioética, a reflexão sobre a dignidade
humana ainda prevalece em relação aos conceitos de ser humano e pessoa, em um
esforço de muitos bioeticistas em definir ambos os conceitos, e os atributos de cada
um deles.
Engelhardt (2005) aborda esta questão ao afirmar, por exemplo, que: “As
pessoas, e não os seres humanos, são especiais. Os humanos moralmente
competentes têm uma posição moral central que não é desfrutada pelos fetos ou
mesmo pelas crianças pequenas”68. Portanto, a tratar da dignidade humana em
bioética, esta reflexão trazida por Engelhardt é dominante.
Frente a dicotomia entre pessoa e ser humano, Sanches destaca que:
Defender que a única coisa que interessa é a pessoa, representa a mais
brutal traição à dignidade humana, exatamente porque introduz uma
confusão no próprio conceito de humano. Se alguém aceita, portanto,
defender a dignidade da pessoa e não a do ser humano estará a um passo
de defender posições, na bioética, desastrosas para a vida humana 69.
66
UNESCO. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.ohchr.org>.
Acesso em 12 set. 2015.
67 Id.
68 ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da bioética. 6ª ed. Tradução: CESCHIN, José. São Paulo.
Edições Loyola, 2015. p. 170.
69 SANCHES, Mario. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo. Edições Loyola. 2004. p. 89.
39
Neste sentido, Sanches (2004), permite-nos também considerar o dualismo de
Engelhardt, ao fundar a dignidade humana na pessoa como autoconsciente. Assim, é
necessário defender a máxima extensão factual da dignidade humana que reside no
existir como membro da espécie humana. Do contrário, indivíduos e grupos definidos
como moralmente menos relevantes (como, por exemplo, o embrião humano na
perspectiva de alguns grupos que militam pelo direito ao aborto) ou moralmente
desviantes (como, por exemplo, homossexuais na perspectiva de religiões que militam
contra o direito ao casamento igualitário) estarão moralmente vulneráveis. De tal sorte,
ao conceituar a vulnerabilidade moral como um processo decorrente de formas
específicas de negação da dignidade, para o autor deve-se considera que:
A dignidade não é uma afirmação científica, mas social. A dignidade como a
igualdade é um princípio ético básico, e não uma assertiva factual. Afirmar a
dignidade humana é afirmar o valor que a vida humana ocupa no sentido da
existência do próprio ser humano. Isso pode parecer óbvio demais, mas é
exatamente assim: o ser humano, na busca de sentido para a própria
existência, atribui à vida humana uma dignidade fundamental. A vida humana,
de todos os humanos é digna, e em sua máxima compreensão: a vida
humana inteira, em todas as suas dimensões, é digna sem nenhum tipo de
reducionismo70.
Por isso, há que se ampliar a discussão entre a dignidade do ser humano e da
pessoa, porém, reconhecer esta dicotomia e defender que o ser humano enquanto
pessoa é digno, desde que atenda a determinados critérios e atributos, não significa
que ele seja reconhecido em sua dignidade em todas as circunstâncias e fases de sua
vida. Este grande esforço que a bioética vem desprendendo em conceituar ser
humano e pessoa é absolutamente necessário, porém, há que se ampliar ainda mais
a discussão da dignidade humana que é negada a determinados grupos sociais e
morais.
Para a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, a dignidade
humana está destacada no 2º art.: “[...] contribuir para o respeito pela dignidade
humana e proteger os direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres
humanos e as liberdades fundamentais, de modo compatível com o direito
internacional relativo aos direitos humanos”71.
70
Id. p. 98 e 99.
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org. Acessado em 12/08/2015>. Acesso 12 ag. 2015.
71UNESCO.
40
A partir do art. 3º, a dignidade humana aparece como um dos princípios. Os
princípios devem ser respeitados por aqueles a que ela se dirige, nas decisões que
tomem ou nas práticas que adoptem: “A dignidade humana, os direitos humanos e as
liberdades fundamentais devem ser plenamente respeitados. Os interesses e o bemestar do indivíduo devem prevalecer sobre o interesse exclusivo da ciência ou da
sociedade”72.
O art. 22 da Declaração estabelece que: “Toda pessoa, como membro da
sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela
cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado,
dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre
desenvolvimento da sua personalidade”73. No art. 23, afirma-se: “Toda pessoa que
trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim
com a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana”74.
A defesa dos direitos humanos e a promoção e reconhecimento da dignidade
humana, tem sido o caminho árduo percorrido por indivíduos e grupos. O não
reconhecimento da dignidade humana e dos direitos humanos tem sido as principais
consequências da vulnerabilidade social e moral a que principalmente os grupos
estigmatizados estão submetidos. Considerá-los e trata-los na mesma perspectiva de
indivíduos e grupos com seus direitos e dignidade reconhecidos, é maximizar a
vulnerabilidade a qual já estão submetidos. Por isso, a exploração econômica,
desemprego, discriminação, estigmatização, exclusão e o fundamentalismo são
algumas das raízes que alimentam tanto a realidade de vulnerabilidade social quanto
da vulnerabilidade moral.
[...] são dignos não apenas os que pertencem ao nosso grupo, mas todos;
não apenas os que pertencem ao nosso grupo familiar, mas também o
estranho; não apenas os que pertencem à nossa classe social, mas também
os de outra; não apenas os que pertencem à nossa religião, mas também os
infiéis; não apenas os que possuem autoconsciência como nós, mas também
os que ainda não são dotados de consciência; não somente os que
pertencem à nossa pátria, mas também os estrangeiros75.
72
Id.
Id.
74 Id.
75 Id.
73
41
A negação, ou a violação da dignidade humana, torna-se, portanto, o primeiro
aspecto, a partir dos quais tantos outros serão decorrentes, de forma específica, a
estigmatização, a discriminação e a vulnerabilidade moral.
3.2
ESTIGMATIZAÇÃO E DISCRIMINAÇÃO NEGATIVAS: IMPLICAÇÕES
ÉTICAS
Notamos o conceito de estigmatização de Erving Goffmam na obra: “Estigma,
notas sobre manipulação da identidade deteriorada”, onde o autor a define como uma
marca ou um sinal. O conceito, segundo o autor, remonta para antes da era cristã:
Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o
termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava
evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de
quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou. fogo no corpo e
avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor uma
pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente
em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram
acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de
graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o
segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais
corporais de distúrbio físico76.
Partiremos da perspectiva de que diante do atual pluralismo moral, a negação
do reconhecimento da dignidade do outro é o primeiro passo para a estigmatização.
Grupos que não se enquadram em conceitos morais que durante muito tempo foram
tidos como unânimes e como guardiões da verdade são estigmatizados. Ao tratar
sobre o surgimento de novos conceitos morais na sociedade pluralista, a
estigmatização surge como uma rotulação, que atinge indivíduos e grupos.
Para Parker e Aggleton (2001), além da dimensão individual, há que se
considerar que o estigma é um produto social, que reproduz as desigualdades sociais.
Como consequência, cria, mantem ou reforça as desigualdades sociais. Grupos
economicamente dominantes imponham sua visão de mundo, seus valores morais em
detrimento das minorias77. Esta relação mostra como as situações de vulnerabilidade
76
GOFFMAM, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro. Zahar 2ª ed. 1978.
77 PARKER, R.; AGGLETON, P. In: MAKUSD, Ivia. Estigma e discriminação: desafios da pesquisa
e das políticas públicas na área da saúde. Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública. v.30 n.2 /Fev. 2014.
42
social e moral se sobrepõem, aprofundando as situações de fragilidade, desigualdade
e estigmatização.
A respeito do pluralismo moral que caracteriza as sociedades contemporâneas,
para Durand (2007), os anos de 1960 são o teatro de uma mudança social de especial
envergadura. É o surgimento das reivindicações individuais e coletivas sociais
geradoras de novos conceitos morais, que pode ser definido como:
[...] a explosão do consenso social, jurídico e religioso tradicional em relação
aos valores morais. Essa mudança se produziu na maior parte dos países
ocidentais. Ela foi causada, em parte, pelo deslocamento das populações,
como as migrações, mas também pelo desenvolvimento da educação e da
cultura. O desenvolvimento das mídias de comunicação em massa contribuiu
consideravelmente para isso ao informar a todos sobre as diferentes formas
de viver e de pensar. Esse momento é marcado por tantas mudanças que as
morais existentes até então foram rapidamente ultrapassadas. As balizas
tradicionais mostraram-se insuficientes para responder às questões
suscitadas pelas revoluções nos domínios da ciência, da sexualidade e dos
direitos da pessoa. Várias morais e uma diversidade de sistemas de valores
ganharam lugar na sociedade78.
Neste sentido, em uma sociedade pluralista não cabe a imposição de uma única
moralidade, determinada por uma única instituição ou modelo social. Porém, deve-se
questionar se a liberdade e autonomia, sejam da filosofia, da teologia, da moral, e
mesmo da bioética, estão garantindo que todos os indivíduos tenham, por sua vez,
garantido um lugar de expressão e convivência pacífica e digna nesta sociedade
pluralista? A negativa a esta resposta é outro indicador presente em mecanismos de
vulnerabilidade moral.
Nesta face negativa, ao mesmo instante em que surge uma diversidade moral,
onde cada grupo, instituição ou comunidade elege a partir de seus membros regras e
normas de conduta, encontra-se um fechamento para o diálogo com o diferente, o que
por sua vez gera a estigmatização de indivíduos e de grupos. Neste contexto, parece
que o diálogo ainda não foi colocado em pauta. Quem não comunga ou não se
enquadra em uma moral fechada e específica e dominante, é estigmatizado,
discriminado negativamente e torna-se moralmente vulnerável.
A estigmatização surge como consequência de uma tentativa de se impor uma
ideologia, uma raça, uma cultura, uma religião, ou uma moral específica,
desconsiderando toda a diversidade atual, que pode se dar desde formas violentas
78
DURAND, Guy. Introdução Geral à Bioética: História, conceitos e instrumentos. Tradução:
NYAMI, Nícolas. São Paulo. Edições Loyola. Ed. 2. 2007. p 38.
43
mais explicitas (como assassinatos ou linchamento motivados por ódios) ou por mais
sutis (como o a invisibilidade em discursos e narrativas).
Esta tentativa de tornar invisíveis indivíduos e grupos, não parte somente de
grupos com uma moral tradicional frente aos novos movimentos, como tentativa de
impedir a existência e expressão destes grupos, mas também de grupos que surgem
na atualidade, de cunho radical e fundamentalista, os quais manifestam uma
incapacidade de convivência ou mesmo de tolerância com toda a diversidade
presente. A problemática, mais do que social é moral, visto que a moralidade de um
grupo é manifestada pela expressão e pelo comportamento. As reações são
desastrosas:
violência,
discriminação
negativa,
exclusão,
etc.
Portanto,
a
desumanização derivada da estigmatização desenvolvida por Parker e Aggleton
(2014) expressa bem as implicações e consequências da estigmatização:
[...] a redução da individualidade derivada da estigmatização chega ao limite
de desumanizar a pessoa estigmatizada, cuja identidade passa a ser definida
pelo próprio estigma ou a ser confundida com ele, quando, por exemplo, se
passa a nomear a pessoa pelo próprio atributo: o esquizofrênico, o leproso, o
surdo, o aidético, o gay, etc79.
Para exemplificar as implicações da estigmatização nos processos de produção
e reprodução de vulnerabilidade moral discorremos brevemente acerca de um aspecto
ou área preponderante em bioética, que é a relação entre os problemas de saúde
pública e o estigma moral.
A estigmatização moral manifesta-se de diferentes formas, estando vinculada
diretamente à vulnerabilidade social: crianças e adolescentes submetido a pedirem
dinheiro na rua, ou tornam-se intermediários na distribuição de drogas. Na área da
saúde, por exemplo, pacientes que necessitam de medicamentos ou tratamentos com
alto custo, sem condições de adquiri-los, e que o estado não contempla no SUS.
Somam-se a estes outros grupos, como: desempregados, moradores de ruas,
dependentes químicos e outros. Neste sentido, uma bioética pensada a partir de
indivíduos e grupos estigmatizados e discriminados, deve ser uma bioética atenta as
diversas dimensões da vulnerabilidade que atinge diretamente estes grupos.
O atual contexto de vivência nas grandes metrópoles apresenta na atualidade
uma questão crucial, a partir das considerações da territorialidade. A divisão territorial
79
PARKER, R.; AGGLETON, P. In: MAKUSD, Ivia. Estigma e discriminação: desafios da pesquisa
e das políticas públicas na área da saúde. Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública. v.30 n.2 /Fev. 2014.
44
nestes espaços passaram a tornar-se demarcadores sociais. A periferia, em especial,
é impregnada a marca de espaço de violência, tráfico, ociosidade, desinteresse de
seus moradores por melhorias, ausência do estado, desorganização, dentre outros
atributos. Portanto, a estigmatização moral é decorrente diretamente da negação da
dignidade humana a que estão submetidos, e que é manifesta na concretude do dia a
dia das populações periféricas.
3.2.1 Estigma moral e problemas de saúde pública
O estigma nos problemas de saúde contemporâneos, especialmente no âmbito
da saúde pública, estão relacionados a temas como o HIV/AIDS, dependência de
álcool e outras drogas e certos tipos de câncer. Embora persistam estigmas
associados
com
questões
de
saúde
historicamente
determinados,
como
descapacidades físicas e mentais, hanseníase, ou mesmo reemergentes, como a
tuberculose.
Em uma revisão literária sobre o estigma e o alcoolismo, Corrigam (2011),80
destaca que dentre as diversas condições de saúde, as doenças mentais e o abuso
de álcool e outras drogas são as mais estigmatizadas pela população geral. Diante
disso, assim como para outras condições de saúde estigmatizadas, muitos usuários
abusivos ou dependentes de álcool e outras drogas que poderiam se beneficiar da
rede de serviços de saúde não buscam quaisquer serviços, ou quando buscam não
cumprem o tratamento de maneira proposta para evitar os danos associados ao rótulo
de dependente químico. Ou seja, os indivíduos e grupos que já estão vulneráveis às
condições debilitantes do vício, tanto no que se refere às implicações à saúde
biológica quanto mental, são adicionalmente vulnerabilizados pelo julgamento moral
que os impedem de pedir ajuda ou ter acesso a tratamentos adequados.
Este caso torna-se dramático nas questões de mulheres que abortam. Diniz
(2014) discute como os serviços de saúde tendem a considerar a mulher que abortou
ou que procura serviços de aborto em casos permitidos por lei, como suspeitas e
mentirosas. A palavra da mulher, nesse sentido, é colocada sob suspeita e não é
suficiente para o acesso ao serviço de aborto. Assim, os profissionais de saúde
80
CORRIGAM, P. In: SILVEIRA, Pollyana Santos (org). Revisão sistemática da literatura sobre
estigma social e alcoolismo. rev. Estudos de psicologia. vol.16. n.2. Mai/Ag. 2011.
45
sentem-se cobrados a policiar não só os corpos das mulheres, mas também seus
próprios regimes de funcionamento e suas práticas de assistência 81. Cunha e Rocha
(2015) discutem a percepção de profissionais da saúde sobre esses serviços,
apontando que além da mulher que aborta os profissionais envolvidos no serviço
também são estigmatizados:
“Gosto de atuar na parte de cesarianas e cirurgias eletivas, e o colega que
atua nessa área [no abortamento legal] não é bem visto pelos outros colegas”.
Essa declaração indica que a dimensão negativa do abortamento reproduz
uma perspectiva estigmatizante tanto em relação à mulher que o vivencia
quanto ao profissional que o executa82.
Neste sentido, há que se desenvolver uma adoção de estratégicas, políticas e
ações de saúde mais justas, igualitárias e não-estigmatizantes. Esta perspectiva
pressupõe um processo social bem mais amplo do que os limites dados apenas pelo
setor saúde. Para Queiroz e Merhy, os agentes sociais que podem viabilizar este
modelo extrapolam o nível exclusivo dos profissionais e técnicos de saúde.
[...] um fator, no entanto, é fundamental para se começar a pensar nas novas
tecnologias necessárias para uma rede básica que supere as inconsistências
encontradas no presente modelo: o predomínio dos aspectos coletivos e
sociais da medicina em relação à clínica individual e seu paradigma centrado
na biologia e no hospital, numa nova concepção de saúde e doença 83.
A estigmatização na área da saúde impede que cada indivíduo tenha o mesmo
respeito, direito e atenção, tendo em situações extremas sequer reservado o direito
de fazer opções. Para Garrafa (2000), também no campo da saúde há que se
estabelecer prioridades: passar de prioridades clientelistas, amistosas e arbitrárias
para prioridades racionais, igualitárias e transparentes. Neste sentido o autor levanta
algumas questões: Quem é o juiz da qualidade de vida de uma pessoa, senão a
própria pessoa? Qual é a relação entre qualidade que uma pessoa atribui a si mesma
e a qualidade que os outros decidem? Quais são as qualidades que merecem,
objetivamente, medidas particulares e as outras que não as merecem?84.
81
DINIZ, Débora. DIO, Vanessa Canabarro. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no
Brasil. Rev. Bioética. v. 22. n. 2. 2014. pp. 291 – 298.
82 ROCHA, Wesley Braga; CUNHA, Thiago Rocha. Percepção dos profissionais de saúde sobre
abortamento legal. Rev. Bioética. v. 23. n. 2. 2015. pp. 394 – 404.
83 QUEIROZ, Marcus; MERHY, Emerson. Saúde pública, rede básica e o sistema de saúde
brasileiro. rev. Caderno de saúde pública. Maio/junho 2003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid>. Acesso 10 set. 2015.
84 GARRAFA, Volnei; COSTA, Sérgio. A bioética do século XXI. Brasília, Editora UnB. 2000. p. 47.
46
Como estratégia de enfrentamento da vulnerabilidade envolvida nos processos
de estigmatização em saúde, Rocha, et. al., (2015), propõem que a bioética se
constitua em um espaço potencialmente propiciador do diálogo entre gestores,
profissionais de saúde, usuários dos hospitais, movimentos sociais, educadores,
mídia, enfim, entre todos os diversos grupos que compõem o tecido social e que,
dialeticamente, fomentam e são vítimas dos processos de estigmatização, vulneração
e reprodução das violações dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres85.
Constata-se assim, que a estigmatização na saúde, principalmente em contexto
de desigualdade social relaciona-se com a estigmatização social e com a
vulnerabilidade social, porém, também se relaciona com a estigmatização moral e com
a vulnerabilidade moral.
3.3
DA ESTIGMATIZAÇÃO E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA À
VULNERABILIDADE MORAL
A estigmatização quase sempre está ligada a uma questão moral, seja ela no
campo social ou da saúde, na medida em que criam-se rótulos, negando a identidade
do indivíduo ou do grupo, a partir de padrões de conduta e comportamentos préestabelecidos, desconsiderando-se o atual contexto de pluralismo moral, e os novos
conceitos morais existentes.
As diversas formas em que a estigmatização é contemplada em bioética,
possuem uma dimensão moral, sendo esta mais complexa, nem sempre perceptível
e abordada. A estigmatização cria condições para que grupos numericamente,
economicamente, politicamente ou moralmente dominantes imponham sua visão de
mundo, seus valores e suas normas, em detrimento de grupos minoritários
moralmente e em desvantagem socialmente. É sente sentido que a vulnerabilidade
surge como consequência da estigmatização diante dos novos conceitos morais.
Para Stepke e Drumond (2007), a vulnerabilidade é sempre relativa. Algumas
condições biológicas são desfavoráveis em certos ambientes, mas favoráveis em
outros, ou seja, nenhum atributo ou traço das pessoas não é melhor nem pior senão
na possibilidade de um dano, isto é, de um risco, segundo a circunstância. Portanto,
85
ROCHA, Wesley Braga; CUNHA, Thiago Rocha. Percepção dos profissionais de saúde sobre
abortamento legal. rev. Bioética. v. 23. n. 2. 2015, pp. 394 – 404.
47
a relatividade das vulnerabilidades é um espaço de influências: espaciais, temporais
e situacionais. Assim, o autor considera a vulnerabilidade social uma dimensão muito
mais ampla e desafiadora, e para compreendê-la parte de três aspectos: preconceito,
discriminação e estigma86.
Ainda segundo Stepke e Drumond, não é digressão tratar da vulnerabilidade no
contexto de preconceito, discriminação e estigma. Como se verá, estes temas têm
íntima vinculação, pois somente se é “vulnerável socialmente” no contexto de uma
tipificação e na relatividade de contextos e circunstâncias. Neste sentido, tratar sobre
vulnerabilidade consiste em um primeiro passo num processo de categorização, sem
o qual não existe juízo nem convivência. Existe categorização muito primárias, na
mais precoce infância. A partir daí constroem-se os estereótipos sociais, que por parte
do coletivo pode ser reforçado ou inibido. Os estereótipos escondem condutas, que
só se manifestam sob determinadas circunstancias. Por exemplo, é possível que
determinado grupo, mesmo tendo estereótipos negativos sobre as pessoas de pele
negra, não manifeste comportamentos discriminatórios se não percebe ameaças ou
transgressões, mas basta que uma pessoa negra tente viver no bairro aristocrático,
ou pertencer a um exclusivo clube social que isso se converte em comportamentos
discriminatórios e estigmatizantes87. Este estereótipo negativo pode produzir a
discriminação, que pode acontecer simplesmente pela imposição de limites diferentes
ao acesso ou ao gozo de certos bens sociais.
Há, portanto, uma estigmatização e uma discriminação indireta, nem sempre
percebida e considerada, visto a invisibilidade a qual estes estigmatizados e
discriminalizados são sujeitados. Surge como decorrência desta condição, uma
vulnerabilidade também nem sempre percebida, que é justamente a vulnerabilidade
moral. O caráter moral do estigma e da discriminação tem implicações para o campo
da bioética, na medida em tornam indivíduos e grupos vulneráveis morais, o que
implica incorporar na bioética as estruturas sociais e morais amplas, a partir da própria
natureza interdisciplinar do campo.
Muitos grupos de vulneráveis morais são decorrentes da intolerância, da
discriminação e da estigmatização, por não se identificarem com padrões
estabelecidos moralmente. A estes grupos incluem-se, por exemplo: ex-detentos,
86
STEPKE, Fernando Lopes; DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma antropologia
Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007. p. 148.
87 Id. p. 147.
48
diante da falta de oportunidades de ingressarem novamente à vivência social e ao
mercado de trabalho, sendo estigmatizados; vítimas da discriminação racial, idosos
abandonados em asilos, portadores de necessidades especiais, migrantes,
homossexuais e outros. Em entrevista, Gundo Aurel Werler, do departamento de HIV
da OMS, chamou a atenção para os grupos de: homossexuais, transexuais,
dependentes de drogas injetáveis, prostitutas e presos. Aqueles que mais se infectam,
são aqueles que mais precisam de ajuda, e o que se observa é que são estes os
grupos que acabam sofrendo discriminação e exclusão. Estes grupos acabam tendo
menos acesso a tratamentos do que grupos que não pertencem a grupos mais
vulneráveis ao risco88. Estes portanto, são exemplos de grupos que tornam-se
vulneráveis morais a partir da estigmatização e das situações de vulnerabilidade social
a que são submetidos.
Para Stepke e Drumond (2007), há três eixos, que considera-se fundamentais,
sobre os quais devem ser elaboradas as variedades de vulnerabilidade, que é a
vulnerabilidade sentida, atribuída ou objetiva:
O primeiro se refere ao “falante” ou rotulador da vulnerabilidade (quem).
Assim, existe uma vulnerabilidade sentida ou percebida pelo próprio sujeito
ou pelo grupo, uma vulnerabilidade atribuída por outros, e uma
vulnerabilidade “objetiva”, sobre a qual há pleno e universal consenso. O
segundo eixo tem a ver com a forma de manifestar a vulnerabilidade (como).
Há vulnerabilidades sentidas, atribuídas ou objetivas que conduzem a
deficiências, descapacidades ou menos-valias de pessoas e grupos, sempre
tomando em consideração que a vulnerabilidade é contextual, situacional e
relativa. Ele também atenta em saber se uma determinada suscetibilidade ou
vulnerabilidade deriva de condutas próprias da pessoa ou é imposta por
condições alheias à vontade dela. Por exemplo em relação aos fumantes,
sabe-se que estes são mais vulneráveis a certas condições patológicas. Esta
vulnerabilidade pode desencadear uma forte recusa em ajuda-los, sendo
considerado fruto de um ato irresponsável, e socialmente merecedor de
reprovação e castigo, sendo censurável e punível 89.
Ao considerar a vulnerabilidade moral como uma categoria analítica da bioética,
faz-se fundamental levar em conta os aspectos desenvolvidos acima: a
vulnerabilidade sentida pelo próprio sujeito, a vulnerabilidade rotulada, ou seja, de
quem fala, e a vulnerabilidade objetiva, ou seja, de fato. A vulnerabilidade sentida ou
percebida pela pessoa vulnerável pode não ser correlativa ou equivalente à
88
WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da Aids diz OMS.
Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15 jun. 2015.
89 STEPKE, Fernando Lopes e DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma antropologia
Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007. p. 148.
49
vulnerabilidade atribuída por outros. Ao identificar uma vulnerabilidade objetiva, devese considerar de forma muito atenta o sujeito que se considera vulnerável, quem fala
deste sujeito vulnerável e o contexto em que está inserido, que também pode ser um
contexto vulnerável. É neste sentido, que há vulnerabilidades que se manifestam de
forma explicita, sendo de fácil constatação. Aqui, a vulnerabilidade atribuída talvez
seja a mais perceptível. Ao contrário, há uma vulnerabilidade que é implícita, nem
sempre percebida e manifestada, que é a vulnerabilidade sentida de fato pelo próprio
sujeito. A vulnerabilidade moral tende a ocupar justamente esta dimensão implícita da
vulnerabilidade.
Neste sentido, é necessário que cada vez mais a bioética faça um esforço de
ocupar metodologicamente um lugar social dos excluídos, possibilitando que diante
do atual contexto de globalização, haja uma coexistência integradora entre as diversas
comunidades morais, que por vezes são toleradas, porém, sem que com a tolerância
sejam contemplados em sua dignidade e direitos.
3.4
TENSÕES
ENTRE
MONISMO
E
PLURALISMO
MORAL:
IMPLICAÇÕES À VULNERABILIDADE MORAL
Cada vez mais a globalização aproxima as comunidades morais. Estas
comunidades morais, são definidas por Engerlhardt como “[...] indivíduos unidos por
tradições e costumes comuns que não vivem isoladamente no contexto de
globalização atual”90. Portanto, indivíduos de diferentes comunidades morais ocupam
os mesmos espaços sociais, frequentam os mesmos lugares, trabalham nos mesmos
lugares, e por vezes também os filhos destes estudam na mesma escola. Portanto,
tornam-se estranhos morais por terem diferentes convicções e valores, porém, podem
ocupar e conviver nos mesmos espaços territoriais ou mesmo estarem mais próximos
por meio das tecnologias de comunicação, especialmente a internet.
Esta aproximação entre as comunidades morais como fruto da globalização
requer uma abordagem mais ampla e profunda referente aos espaços que estes
“estranhos morais” ocupam. Neste caso, a vulnerabilidade moral começa quando se
90
Id. p. 33.
50
estabelece uma relação injusta de poder e força entre os estranhos morais, tornando
grupos que já são vulneráveis sociais e/ou estigmatizados, também vulneráveis
morais, visto a relação de desigualdade de poder que é mantida.
De fato, é possível viver a relação com o outro como uma relação
instrumentalizadora: ele me serve, e eu, por aquilo que posso concretamente
com base nas relações de força, me sirvo dele para realizar os meus planos
e os meus objetivos. O que está em primeiro plano não é a aceitação plena e
o respeito a alteridade, mas ao contrário: ele não existe como um outro
diferente de mim, mas como um prolongamento de mim, ou seja, eu decido
o sentido que o outro tem em minha vida. Certamente o outro procura reagir
a esta tentativa de instrumentalização, mas só na medida em que as relações
de força lhe permitem que o faça. Quando isso acontece em uma
comunidade, trava-se uma relação de todos contra todos91.
O risco a que Zuccaro destaca no artigo acima é de se estabelecer uma relação
instrumentalizadora, de força e de indiferença entre os diversos estranhos morais,
coloca em dúvida o que muitos autores consideram como um valor capaz de
proporcionar espaços de vivência pacífica, que é a tolerância. Que a tolerância
constitui um valor que deve ser vivido universalmente, e que possibilita a existência
de um pluralismo moral é inquestionável, mas como visto anteriormente, a
globalização fez com que as diversas comunidades morais, e os estranhos morais
ocupassem os mesmos espaços físicos. Portanto, as fronteiras entre os estranhos
morais já não são as mesmas do que há pouco tempo atrás.
Nasce assim, uma atitude muito mais moderna, considerada inteligente e
civilizada: a indiferença. O outro está lá, e é como se não existisse. O outro
se tornou outro a tal ponto que me é um estranho. Eu não sou aquilo que
quero ser, eu sou realmente eu mesmo apenas porque os outros me atribuem
minha identidade profunda, aquilo que me pertence. A minha identidade seria
sempre buscada, e nunca encontrada. A pessoa é uma realidade que ainda
não tem figura, não tem forma, e só os outros, são capazes de extrair a sua
identidade profunda92.
Por isso, quando Zuccaro trata da atitude moderna da indiferença, a tolerância
torna-se uma forma de permitir que as diferentes comunidades morais existam, mas
não como garantia de poder de expressão e de vivência digna. Tolerar que exdetentos vivam em liberdade e socialmente é uma coisa, promover a inclusão social
91
ZUCCARO, Cataldo. Bioética e valores no pós-moderno. São Paulo. Edições Loyola, 2007. p.
112.
92 Id. p. 112.
51
destes é outra. Tolerar a diversidade sexual é uma coisa, permitir que haja a
expressão desta diversidade nos espaços sociais é outra.
Assim, é na invisibilidade social e na indiferença a determinados sujeitos e
grupos que a vulnerabilidade moral encontra um espaço de desenvolvimento e
propagação, e neste sentido, a tolerância sem a promoção da dignidade e dos direitos
pode gerar e manter a invisibilidade social e a indiferença.
Rosenfeld (2000) fala de um pluralismo normativo na relação entre as diversas
visões morais em uma sociedade pluralista. “Ao entendermos que o pluralismo não se
confunde com o relativismo cultural, devendo encontrar limites, procuramos por uma
ideia de pluralismo normativo que permita a coexistência harmoniosa e pacífica de
estilos de vida, concepções de bem e visões morais distintas entre si”93. Aqui podemos
marcar a vulnerabilidade moral pela incapacidade de determinados indivíduos e
grupos coexistirem de forma harmoniosa e pacífica, levando a exclusão, exploração e
inviabilização daqueles que não comungam determinada moralidade hegemônica, e
neste sentido faz-se urgente um movimento que permita que estes grupos não só
existam, mas que sejam reconhecidos em sua dignidade e direitos.
Paralelamente, Guy Durand (2007), possibilita-nos aproximar no campo moral
da estigmatização e da vulnerabilidade moral a partir do agrupamento da moral em
três sentidos ou três funções da moral, que são complementares: questionamento,
sistematização/conteúdo e prática.
A moral é em primeiro lugar um questionamento, uma reflexão, uma busca, e
não é um conjunto de tabus, um código de regras arbitrárias, vindas não se
sabem de onde, que se impõem cegamente aos seres humanos. Ela é um
questionamento sobre o agir, uma reflexão sobre o que é preciso fazer, uma
procura pelo que é bom e justo94.
Antes de seguir normas, de obedecer a mandamentos ou a interiorizar valores,
é importante conhecê-los. Neste sentido, o autor pressupõe que a moral exige em
primeiro lugar um esforço de reflexão. O questionamento, como reflexão sobre o agir,
sobre o que é preciso fazer, é um direto de cada indivíduo, onde a partir daí ocorre a
decisão do agir. Questionar o agir tendo como parâmetros outros grupos, e como
93
ROSENFELD, M. In: MULLER, Letícia Ludwing. Pluralismo e tolerância: valores da bioética. rev.
HCPA. v. 2. p. 102. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/viewFile/5744/3517>.
Acesso 15 ag. 2015.
94 DURAND, Guy. Introdução Geral à Bioética: História, conceitos e instrumentos. Tradução: NYIMI,
Nícolas. São Paulo. 2ª ed. Edições Loyola. 2007. p 68.
52
decorrência disso, criar uma relação de superioridade e inferioridade é um aspecto
que tem como consequência a estigmatização e a vulnerabilidade moral. Portanto, a
estigmatização vem sempre como consequência de um questionamento excludente.
Ao tratar da relação entre estigmatização e vulnerabilidade moral, o impedimento ao
questionamento, é o primeiro aspecto gerador da vulnerabilidade moral, e ainda mais,
já em parte pode ser considerada uma forma de vulnerabilidade moral. Quando um
sujeito decide pelo outro de forma impositiva sem possibilidade de diálogo e/ou
questionamento, desconsiderando todo o contexto ao qual o mesmo está inserido, já
pressupõe-se que ali estará orientando a forma como o mesmo deva agir.
O momento do questionamento é fundamental para a formação da consciência
moral do sujeito. Não poucas vezes na história, e ainda hoje, na cultura pós-moderna,
o questionamento é reprovado e sujeitos e grupos que o fazem são impelidos, seja
por grupos religiosos, sociais, culturais, políticos, e outros.
O conteúdo moral tem por sua vez, a finalidade de orientar a prática, mas sempre
diante de um contexto ao qual o indivíduo ou o grupo se encontram. Neste sentido:
Diz respeito a um sistema de deveres, de normas e de obrigações ou como
um conjunto hierarquizado de valores. Nesta perspectiva fala-se também de
teorias morais. A sistematização, ou conteúdo, como um conjunto das
normas, pode referir-se ao indivíduo: “minha moral pessoal”, isto é, o conjunto
mais ou menos organizado e coerente de valores e regras que orientam a
vida que possuo. Também pode referir-se a um grupo: moral católica, moral
marxista, etc95.
A história tem mostrado que toda a tentativa de implantar de forma impositiva
uma moral universal (na forma de monismo moral) que desconsiderasse a diversidade
moral foi desastrosa. Grandes atrocidades contemporâneas foram antecedidas por
uma tentativa de implantar uma ideologia universal, porém, mediante a eliminação de
outra. A sistematização antecede a prática, e dá-se muitas vezes de forma
progressiva, durante décadas, ou séculos. O conteúdo que orienta a prática de um
determinado povo vai se construindo na história. Assim, desconsiderar a cultura, a
moral e os costumes de um grupo, implica em impedir a existência dos mesmos.
A moral por fim, remete-se a uma prática. Ela designa uma experiência
concreta ao longo dos dias. O que faço concretamente? Que decisão devo
tomar? A moral evoca um esforço que faço para aplicar meus princípios, para
95
Id. p. 71.
53
colocar em ação meus valores, a atitude interior que me habita e, por outro
lado, a exortação feita a outrem em vista de viver desta ou daquela forma96.
A prática é a concretização dos dois aspectos anteriores desenvolvidos pelo
autor. Portanto, a partir da estigmatização e da vulnerabilidade moral a prática
constitui-se uma etapa não isolada, mas resultado de um questionamento e de uma
de um conteúdo excludente e impositivo. Constata-se que, frequentemente indivíduos
e grupos são privados do que o autor considera de três sentidos da moral: reflexão,
sistematização e prática. Como consequência, tem-se a vulnerabilidade moral e a
discriminação.
Concluímos, portanto, que a reprodução do estigma e a inferência de outros
atributos negativos, a partir de um estigma inicial, também são características do que
denominamos de vulnerabilidade moral. Neste sentido, Goffmam trouxe uma reflexão
do estigma e da discriminação não de forma abstrata, mas sim, de forma muito
concreta, a partir dos diversos agentes que são estigmatizados e discriminados na
atualidade, o que também contribui para a vulnerabilidade moral seja compreendida a
partir de circunstâncias concretas. Para o autor, a estigmatização leva à
discriminação, sendo expressa por termos estigmatizantes, como; aleijado, bastardo,
retardado, e outros, presentes nos discursos diários. Tende-se, portanto, a inferir a
estes grupos, uma série de imperfeições a partir da imperfeição original97.
Assim compreendermos que a vulnerabilidade moral também é uma
problemática concreta e que acontece na dinamicidade do dia a dia nos diversos
espaços sociais e, portanto, deve ser continuamente considerada, problematizada e
pesquisada nos estudos de bioética. Nos próximos capítulos apresentaremos dois
artigos científicos produzidos a partir das perguntas dos exercícios de fundamentação
teórica desenvolvidos nos capítulos iniciais deste trabalho. O primeiro artigo focará o
problema da vulnerabilidade moral a partir de uma reflexão acerca da vulnerabilidade
social enquanto o segundo discutirá como a teoria dos estranhos morais de
Engelhardt apresenta graves limitações por desconsiderar as implicações do que
chamamos de vulnerabilidade moral.
96
Id. p. 70.
GOFFMAM, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro. Zahar 2ª ed. 1978. p. 08
97
54
CAPÍTULO 4
ARTIGO 198
VULNERABILIDADE MORAL ENTRE ESTRANHOS MORAIS: DO
CONSENTIMENTO À PRIVAÇÃO DE DIREITOS E NEGAÇÃO DA DIGNIDADE
HUMANA
Mariel Mannes99
Thiago Rocha da Cunha100
RESUMO
A partir de uma análise crítica da obra de Tristram Engelhardt, demonstra-se a
pertinência da temática da vulnerabilidade moral frente aos limites do Princípio da
Permissão postulado pelo autor na relação entre estranhos morais. Argumenta-se que
diante do contexto de desigualdade de direitos e negação da dignidade nos quais
determinados ‘estranhos morais’ podem estar inseridos, a aplicação formal de um
procedimento contratualista pode levar indivíduos e grupos a deixarem de ser
estranhos morais, para tornarem-se vulneráveis morais. A vulnerabilidade moral
assume características específicas, visto a dificuldade em percebê-la e considera-la,
com consequência tanto da estigmatização, da discriminação negativa e de outras
formas de negação da dignidade humana. A partir do momento em que há condições
desiguais de direitos e/ou inexistência de reconhecimento da dignidade entre
estranhos morais, o formalismo do contrato reverte não apenas em exploração da
vulnerabilidade social, mas na produção de uma forma particular de vulnerabilidade
moral.
Palavras chaves: 1. Consentimento 2. Dignidade humana 3. Vulnerabilidade moral.
4. Bioética.
98
Artigo encaminhado para submissão na Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina.
em Bioética.
100 Doutor em Bioética e professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR.
99Mestrando
55
INTRODUÇÃO
O pluralismo moral, a partir do qual Engelhardt desenvolve seu pensamento é
um fato atual e um valor imprescindível. A relevância e a seriedade com que o autor
considera o tema é que nos permite inseri-lo e discuti-lo a partir das diversas
perspectivas, e de forma específica nesta investigação, a partir da análise crítica do
princípio do consentimento frente a um contexto em que os estranhos morais tornamse vulneráveis morais, especialmente nas relações em que, por divergência em
relação ao cumprimento de determinado padrão moral hegemônico, certos indivíduos
e grupos são negados em sua dignidade e privados em seus direitos .
Engelhardt (1996) considera que a busca de consenso ético entre os estranhos
morais é impossível, visto que no contexto de pluralismo moral atual não existe uma
autoridade moral comum que permita resolver as diferenças por meio de argumentos
racionais. O consentimento surge a partir da perspectiva de que em uma sociedade
pluralista, indivíduos e comunidades são estranhos entre si, sendo elas próprias
portadoras da autoridade moral. É neste sentido que para o autor, diante dos dilemas
morais, a autoridade moral dá lugar ao consentimento e ao acordo. Ou seja, ao invés
de buscar um valor comum, para Engelhardt, os estranhos morais devem resolver
seus conflitos e acordos na base de um procedimento contratual que tenha como base
o princípio da permissão.
Este trabalho postula que a vulnerabilidade moral surge quando em uma
sociedade cujo contexto de pluralismo moral, indivíduos e comunidades não são
reconhecidos em sua dignidade e em seus direitos e por meio de processos
excludentes de estigmatização e discriminação negativa deixam de ser estranhos
morais para tornarem-se vulneráveis morais. Neste contexto o princípio do
consentimento desenvolvido por Engelhardt apresenta fragilidades que indicam duas
questões fundamentais: Qual a autoridade moral que um indivíduo ou grupo
moralmente vulnerável pode exercer? Como pode ocorrer um procedimento contratual
legítimo para indivíduos cuja existência como agente moral é negada à priori? Ao tratar
da vulnerabilidade moral este trabalho procura problematizar e encaminhar respostas
a essas questões.
56
O PROCEDIMENTALISMO FORMAL DE ENGELHARDT
A autonomia tem se tornado na filosofia um tema decorrente, mas os dois
conceitos filosóficos da autonomia que mais influenciam os estudiosos de bioética, e
em especial Engelhardt foram Kant e Stuart Mill. Para Kant, a autonomia depende da
decisão de fazê-lo de forma livre101. Para Stuart Mill o que Kant considera como
autonomia é a liberdade102. Para Kant, a autonomia é um aspecto fundamental e
logicamente necessário para alguém ser considerado um agente moral, sendo a
autonomia o solo indispensável da dignidade da natureza humana ou de qualquer
natureza racional. Para Stuart Mill a autonomia não deve resultar em dano aos demais
e na medida que a pessoa a ser respeitada possuísse um razoável nível básico de
maturidade103.
A autonomia tem uma valorização particular em bioética por diversos autores.
Beauchamp e Childress na obra Principles of Biomedical Ethics (1994), trata da
autonomia, mas não a coloca em um mesmo nível de importância do que mais tarde
Engelhardt rebatizará como princípio do consentimento. Beauchamp e Childress
possibilita ler criticamente Engelhardt, quando chama a atenção para que a autonomia
não é garantia de que o agente moral está sendo respeitado em suas opiniões,
escolhas, valores e crenças. “Ser autônomo não é a mesma coisa que ser respeitado
como agente autônomo. Respeitar um agente autônomo é, no mínimo, reconhecer o
direito dessa pessoa de ter suas opiniões, fazer suas escolhas e agir com base em
valores e crenças pessoais”104.
Ferrer e Álvares (2005) também valorizam a autonomia, porém, como uma
capacidade oriunda da inteligência, que capacita a pessoa humana para prever as
consequências de seus atos, ter preferências entre elas e tomar decisões nas quais,
ao escolher um ato, está também escolhendo suas consequências previsíveis.
101
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução: Manoel Pinto Santos. Lisboa. 8ª ed.
Fundação Calouste. 2013. p. 105.
102 SCHMIDT, Adriano; TITTANEGRO, Glaucia. A autonomia principialista comprada a autonomia
do libertarismo. rev. Teologia e Pastoral. Curitiba. v. 1. n. 1. Disponível em:
<http://www.erevistas.csic.es/ficha_articulo.php?url>. Acesso 10 jun. 2015.
103 PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clínica no Pluralismo e diversidade. São Paulo. São
Camilo. 2012. p. 59.
104 BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, Jhon. Principles of Biomedical Ethics. Fifth edition. Oxford.
Universithy Press. 2001, p. 53.
57
Portanto, a autonomia apresenta-se como uma característica que surge da
insuficiência da programação instintiva e da inteligência racional.105
Neste sentido, a autonomia não contempla a diversidade moral, e
especificamente aqueles sujeitos cujo contexto torna-se desfavorável para o seu
consentimento. A autonomia está condicionada a fatores biológicos, sociais, culturais,
religiosos, morais, etc. Mesmo que este condicionamento não signifique que esteja
determinado pelo contexto, desconsiderá-lo significa não contemplar toda a
diversidade, desigualdade e pluralismo ao qual o sujeito está inserido.
Engelhardt surge como principal representante de uma corrente libertária que
critica indiretamente o principialismo, porém, rebatiza o princípio da autonomia como
princípio do consentimento, sendo o consentimento uma forma de reconhecimento de
uma autoridade moral secular do próprio indivíduo. O principialismo utiliza como
método para a resolução de dilemas morais os quatro princípios: autonomia,
beneficência, não-maleficência e justiça, tendo Beauchamp e Childress como seus
principais representantes, na obra Principles of Biomedical Ethics (1994)106.
Distanciando-se do principialismo, para Engelhardt tanto a permissão, quanto o
contrato, surgem como decorrentes do princípio da autonomia como forma de
aproximar os estranhos morais, sendo assim, possível resolver os conflitos entre eles.
O autor parte do pressuposto de que a argumentação racional não pode resolver os
debates éticos entre os estranhos morais. É neste sentido que para o autor não há
uma bioética fora de uma perspectiva moral particular, sendo impossível estabelecer
algumas normas e princípios moralmente obrigatórios para todos os seres racionais.
Os debates éticos entre estranhos morais sobre questões concretas são
intermináveis, porque não existe uma visão moral comum que permita resolver as
diferenças por meio de argumentos racionais.107 Como chegar ao acordo sobre o que
é o “bem” no principio da beneficência ou sobre o que é ‘mal’ no principio da não
maleficência quando os indivíduos não compartilham os mesmos pressupostos
morais? É diante desta impossibilidade de chegar ao consenso sobre o ‘conteúdo
105
FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São Paulo: Edições
Loyola. 2005, p. 39.
106 BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, Jhon. Principles of Biomedical Ethics. Fifth edition. Oxford.
Universithy Press. 2001, p. 53.
107 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São Paulo: Edições
Loyola. 2005, p. 205.
58
substantivo’ das normas que Engelhardt propõe um ‘procedimento formal’, baseado
na permissão/consentimento.
Assim, o princípio do consentimento surge como resposta dada por Engelhardt
para o conflito entre os estranhos morais, já que para o autor é impossível querer
implantar uma moral comum, para todos, em qualquer lugar e circunstância. Somente
por meio do consentimento, é possível aos estranhos morais chegarem a um
consenso. Este princípio é constituído a partir do princípio da autonomia, e deve levar
em conta o contrato social estipulado entre pessoas, ou entre pessoas e o estado.
LIMITES DO CONTRATUALISMO DE ENGELHARDT
A princípio do consentimento é desenvolvido por Engelhardt a partir de uma
centralidade que acompanha todo o seu pensamento. Para o autor, a sociedade é
formada por comunidades morais particulares, que são estranhas entre si, daí a
definição de estranhos morais. Estas, por sua vez, são as portadoras da autoridade
moral para resolver os conflitos morais, e não mais a autoridade moral sendo exercida
por um único indivíduo ou instituição. Portanto, diante dos dilemas morais existentes
entre os estranhos morais, a autoridade moral dá lugar ao acordo e ao consentimento.
“A moralidade em uma sociedade pluralista secular é a prática de fazer o bem dentro
das fronteiras da autoridade em comunidades com visões morais diversas.”108 Neste
sentido, o consentimento em Engelhardt serve de base para a moralidade do respeito
mútuo, no sentido de que exige que os outros sejam usados apenas quando dão seu
consentimento109.
O princípio do consentimento e do acordo mútuo desenvolvido por Engelhardt
pode ser problematizado a partir de duas perspectivas centrais, que é o
reconhecimento da dignidade humana e a existência de igualdade dos direitos. Aplicar
o consentimento e o acordo mútuo entre os estranhos morais requer considerar duas
realidades: A primeira implica compreender se mesmo sendo estranhos morais, estes
sujeitos ou grupos possuem sua dignidade reconhecida e seus direitos garantidos. A
segunda implica em compreender se entre os estranhos morais há desigualdade de
direitos e não reconhecimento da dignidade entre os estranhos morais.
108
ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola. 2015. p.
148.
109 Id. p. 148.
59
Esta análise ocupa-se da segunda realidade, visto que diante das tensões que
derivam do pluralismo moral atual e do aumento das desigualdades sociais, certos
indivíduos e grupos são estigmatizados e não são reconhecidos em sua dignidade e
direitos. Diante destes contextos de desigualdade, exclusão e discriminação negativa
aplicar o procedimento formal com base em pretenso processo de consentimento e o
acordo entre morais alimenta ainda mais a vulnerabilidade ao qual já estão
submetidos. Nos casos mais graves, a negação do reconhecimento da identidade e
do valor da dignidade daqueles que não são ‘amigos morais’ inviabiliza o próprio
procedimento contratual, abrindo margens para exclusão, exploração e outras formas
de relação violenta entre estranhos morais. Nestes casos a vulnerabilidade não se
manifesta apenas por condições sociais, biológicas ou existências, mas, sobretudo
por pressupostos morais.
Para Engelhardt, “A moralidade dos estranhos morais mostra até onde podem
colaborar indivíduos de diferentes comunidades morais. A moralidade dos estranhos
morais mostra aquilo que é importante mas precisa depender da conversão e não da
força. Não pode forçar sua aceitação”110. Analisar o princípio do consentimento e do
acordo mútuo a partir do contexto de vulnerabilidade moral, implica um olhar e uma
abordagem que vá além da regra de simplesmente não utilizar-se da força como forma
de busca de aceitação. A vulnerabilidade moral é menos perceptível e mais difícil de
ser identificada que a vulnerabilidade social ou biológica, e simplesmente não fazerse o uso da força torna-se insuficiente, visto o contexto de fragilidade e velamento ao
qual o indivíduo ou grupo ‘destoante’ da moralidade hegemônica está inserido.
Desta forma, em contextos de acirramento das disputas sobre valores e visões
de mundo que marcam o início do século XXI e do aprofundamento de desigualdades
sociais em níveis planetários, o princípio do consentimento, da permissão e do
contrato desenvolvidos por Engelhardt não só tornam-se insuficientes, mas podem
também ser geradores e mantenedores da vulnerabilidade moral.
VULNERÁVEIS MORAIS FRENTE AO CONTRATUALISMO ENGELHARDT
Em relação às fragilidades na aplicação do princípio da permissão quando
compreendemos os estranhos morais como vulneráveis morais diante do contexto de
110
Id. p. 132.
60
negação da dignidade humana e privação dos direitos, cabe considerar com mais
atenção o princípio do consentimento desenvolvido por Engelhardt na sexta edição do
livro Fundamentos da Bioética (1996).
Segundo o autor:
A autoridade para as ações envolvendo outros em uma sociedade pluralista
secular é derivada de sua permissão. Como consequência: i: sem essa
permissão ou consentimento não há autoridade. ii: ações contra essa
autoridade são merecedoras de acusação, no sentido de colocarem o
violador fora da comunidade moral em geral, e tornando lícita (mas não
obrigatória) a força retaliatória, defensiva ou punitiva 111.
O consentimento e a permissão são tratados por Engelhardt em um mesmo
sentido, reforçando que estes são as bases fundamentais para a autoridade moral,
sendo que uma pessoa somente tem autoridade se o outro indivíduo lhe der
permissão. O que se percebe, é que o autor, tendo como base de seu pensamento a
pluralidade moral, desconsidera que esta pluralidade acontece de forma desigual no
que se refere a direitos e, principalmente, ao recolhimento da dignidade entre sujeitos.
O que chamamos de vulnerabilidade moral, torna-se uma consequência quando esta
diversidade não é contemplada em suas diferenças de direitos e dignidade, levando a
processos discriminatórios e estigmatizantes. Considerar em uma sociedade
excludente o consentimento como único aspecto capaz de resolver as controvérsias
entre os estranhos morais, tal como sugere Engelhardt, implica em desconhecer e
aprofundar formas de vulnerabilidade moral que implicam na negação do próprio
agente moral como portador do direito de consentir.
O problema também pode ser abordado a partir de outro ângulo: em que
circunstância um sujeito ou grupo pode consentir pelo outro? Engelhardt diferencia
duas formas de consentimento: “A. Consentimento implícito: indivíduos, grupos e
Estados têm autoridade para proteger os inocentes da força que não alcança
consentimento”112. e “B. Consentimento explícito: indivíduos, grupos e Estados podem
decidir pela vigência de contratos ou criar direitos de assistência social”113.
Nos ítens A e B, a autoridade moral também pode ser usada para proteger
qualquer outro sujeito contra atos sem seu consentimento. Aqui, o risco do
consentimento e da permissão está em não considerar as causas que levam
111
Id. p. 154.
Id. p. 156.
113 Id. p. 156.
112
61
determinados sujeitos e grupos a não poderem consentir, o que favorece que estes
sejam mantidos em uma situação de vulnerabilidade moral, que não se torna
reversível.
C. Justificação do princípio: o princípio do consentimento expressa a
circunstância de que a autoridade para resolver disputas morais em uma
sociedade pluralista, secular, só pode ser obtida a partir do acordo dos
participantes, já que não deriva de argumentos racionais ou da crença
comum. Portanto, a permissão ou consentimento é a origem da autoridade, e
o respeito ao direito dos participantes de consentir é a condição necessária
para a possibilidade
de uma comunidade moral. O princípio do
consentimento proporciona a gramática mínima para o discurso moral
secular. É tão inevitável como o interesse das pessoas em acusar ou elogiar
com justificação e resolver questões com autoridade moral114.
No item C o autor faz uma justificação do princípio do consentimento, o que
expressa a valorização com que considera este princípio. É o resumo do que viemos
tratando até aqui. Surge o contrato como um aspecto formal no que podemos chamar
de uma negociação. A relação de um estranho moral A, com um estranho moral B, só
pode ser reconhecida como legítima, na medida em que tanto A, quanto B gozam de
igualdade de direitos e dignidade, ou seja, não são excluídos ou segregados. Do
contrário, qualquer relação entre A e B, mediada por meio de um contrato, reforçará
ainda mais estas desigualdades. Portanto, sempre que um estranho moral estar em
situação de vulnerabilidade moral, o princípio do consentimento será aplicado de
forma desproporcional e desigual, visto as condições desiguais dos sujeitos para
consentir.
É possível aplicar, por exemplo, com os mesmos critérios, o julgamento de um
adolescente infrator cujo desenvolvimento social aconteceu em um contexto favorável,
de um adolescente infrator, cujo desenvolvimento se deu em um contexto de violência,
e sem oportunidade de educação? O risco de se considerar estes dois estranhos
morais, com os mesmos critérios, é negligenciar o contexto vulnerabilidade social e
moral a qual um dos estranhos morais pode estar inserido.
D. A motivação para obedecer ao princípio encontra-se vinculada aos
interesses em agir de um modo i) que é justificável a pessoas pacíficas em
geral, e ii) que não justificará o uso de força defensiva ou punitiva contra a
própria pessoa115.
114
115
Id. p. 158.
Id. p. 158.
62
A manutenção da boa convivência entre as pessoas é o motivo principal para
que o sujeito obedeça ao princípio do consentimento. O princípio do consentimento é
tido pelo autor como garantia de que nenhuma ação pode ser considerada ruim ou
ilegal quando há o consentimento. Se no item C chamamos a atenção de que o autor
desconsidera as causas dos sujeitos sem condições de terem autonomia, aqui fica
evidente que ele desconsidera as consequências na relação entre os sujeitos, onde
um não tenha as mesmas condições de autonomia que o outro. O exemplo aplicado
ao item C também se aplica ao item D.
“E. Implicações para as políticas públicas: o princípio do consentimento
proporciona base moral para políticas públicas destinadas à defesa dos inocentes” 116.
No item E é transferido ao Estado a função de defender os inocentes. Se o
princípio do consentimento é entendido pelo autor como forma de resolver as
controvérsias entre os estranhos morais, não deveria ser também o próprio sujeito
responsável pela defesa dos inocentes?
“F. Máxima: Não faça aos outros, aquilo que eles não fazem consigo mesmos, e
faça por eles o que foi contrato para fazer”117.
“G: O princípio do consentimento proporciona a base para aquilo que poderia ser
chamado de moralidade de autonomia como respeito mútuo”.118
Compreende-se que este procedimento formal por Engelhardt poderiam ser
meios adequados caso os estranhos morais fossem portadores dos mesmos direitos
e reconhecidos em sua dignidade. Porém, conforme indicado, no atual contexto
acirramento de posições morais extremistas e excludentes e aprofundamento de
desigualdades, indivíduos e grupos minoritários podem ser privados de seus direitos,
excluídos socialmente e estigmatizados moralmente.
A vulnerabilidade moral pode ser decorrente da vulnerabilidade social,
especialmente quando por razões socioeconômicas indivíduos e grupos em situação
de miséria e pobreza são rotulados como moralmente ‘inferiores’, ‘incapazes’ e outros
termos recorrentes em determinados discursos elitistas e mesmo meritocráticos.
Assim, em contextos de vulnerabilidade social, considerar apenas o consentimento e
o contrato como procedimentos principais na relação entre os estranhos morais pode
aprofundar a vulnerabilidade moral.
116
Id. p 159.
Id. p.160.
118 Id.
117
63
A impossibilidade real dos indivíduos em situação de vulnerabilidade social
defenderem seus interesses leva a considerar a autonomia a partir de outros
referenciais. A perspectiva ao qual o consentimento analisado por Garrafa, por
exemplo, é diferente da perspectiva de Engelhardt, visto que procura garantir a
identidade singular do indivíduo, a partir do respeito pela diferença e da promoção
humana. O autor questiona: “Não exigirá esta nova bioética global, uma também nova
expressão do consentimento, não restritivamente normativista, mas paralelamente
ampla? Uma concepção de consentimento capaz de se tornar coextensiva ou se
adaptar às diversas sociedades existentes?”119.
Em consonância com Garrafa, ao pontuar a problemática da vulnerabilidade
moral na relação procedimental entre morais, este trabalho não tem por intuito reduzir
o valor da autonomia ou do consentimento, mas ampliá-lo a partir da consideração
dos
contextos
objetivos
e
subjetivos
que
estão
relacionados
ao
reconhecimento/negação da dignidade à existência de igualdade/desigualdade de
direitos e condições materiais que envolvem a relação entre estranhos morais.
O VALOR DA DIGNIDADE HUMANA FRENTE À VULNERABILIDADE MORAL
Relacionamos a vulnerabilidade moral a dois grandes eixos que devem ser
considerados na relação entre estranhos morais: um primeiro de natureza abstrata e
subjetiva diz respeito ao necessário reconhecimento do outro como interlocutor moral
legítimo; isto é, como portador de dignidade simplesmente por ser um humano,
independentemente de suas convenções morais. Um segundo, de natureza concreta
e objetiva diz respeito à existência de igualdade de condições materiais e de direitos
que influencia na capacidade de autonomia dos agentes morais e, portanto, também
indica se a relação se mantém de forma a respeitar ou a violar a dignidade do outro.
O conceito de dignidade especificamente aplicado ao ser humano faz parte da
mais tradicional doutrina cristã. Kant desenvolveu o conceito no campo da filosofia, de
forma mais específica na obra Fundamentos da metafísica dos costumes (1785), no
qual atribui um valor absoluto ao ser humano, a partir de sua dignidade. “O homem, e
de modo geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não meramente como
119
GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Op. cit. p. 496.
64
meio para o uso discricionário dessa ou daquela vontade, mas sim, tem de ser
considerado em todas as suas ações”120.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e posteriormente a
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) fundam a dignidade
humana como o valor fundamental a partir do qual derivam diversos princípios e
direitos.
No
preâmbulo,
da
Declaração
Universal
dos
Direitos
Humanos,
“o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo”121. Conforme seu art. 1º, “Todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação
umas às outras com espírito de fraternidade”122. Este reconhecimento da dignidade
humana inerente sempre ocorre entre um sujeito ou grupo em relação a outro.
Portanto, ao analisar criticamente a relação procedimental entre estranhos morais,
aspecto central para que o princípio do consentimento e do acordo seja um meio eficaz
de convivência entre os estranhos morais, é que diante da atual pluralidade, todos os
sujeitos e grupos sejam reconhecidos em sua dignidade, seja do ponto de vista
abstrato ou material.
Para Sanches (2004), “[...] a dignidade decorre do fato do (ser humano) existir e
também, posteriormente a isso, de ser aceito. Fundar a dignidade humana na pessoa
como autoconsciente, ou no cidadão enquanto socialmente aceito, seria o mesmo que
fundar a dignidade humana numa posição passível de sofrer um amplo
escalonamento”123. Portanto, para Sanches, há um dualismo que precisa ser rompido,
que é entre existir e ser aceito, ou entre o ser reconhecido como ser humano e ter sua
dignidade reconhecida. O contexto atual mostra que o fato do indivíduo existir, ou ser
reconhecido como ser humano, de forma alguma significa que automaticamente haja
o reconhecimento de sua dignidade. É neste sentido que o núcleo de nossa
investigação está no fato de que muitos grupos não são reconhecidos em sua
dignidade e, portanto, são vulneráveis moralmente.
120
KANT, Emanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução: Manoel Santos. Lisboa.
8ª ed. Fundação Calouste, 2013. p. 78.
121 UNESCO. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.ohchr.org>.
Acesso 15 set. 2015.
122 Id.
123 SANCHES, Mário Antonio. Bioética, ciência e transcendência. Edições Loyola. São Paulo. 2004,
p.102.
65
Apesar de a dignidade humana ser amplamente contemplada na Declaração
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), em bioética a reflexão sobre a
dignidade humana ainda prevalece em relação aos conceitos de ser humano e
pessoa, em um esforço de muitos bioeticistas em definir ambos os conceitos, e os
atributos de cada um deles. O próprio Engelhardt aborda esta questão ao afirmar, por
exemplo, que. “As pessoas, e não os seres humanos são especiais. Os humanos
moralmente competentes têm uma posição moral central que não é desfrutada pelos
fetos ou mesmo pelas crianças pequenas”124.
Diante do contexto de vulnerabilidade moral, a dignidade humana ainda encontra
tensão frente a dicotomia entre “pessoa” e “ser humano”. Segundo Sanches:
“Defender que a única coisa que interessa é a pessoa, representa a mais brutal traição
à dignidade humana, exatamente porque introduz uma confusão no próprio conceito
de humano. Se alguém aceita, portanto, defender a dignidade da pessoa e não a do
ser humano, estará a um passo de defender posições, na bioética, desastrosas para
a vida humana”125. Deste modo, a questão do reconhecimento do outro
(especialmente do ‘estranho moral’) torna-se central para compreender as outras
formas de vulnerabilidade, e dentre elas, a vulnerabilidade moral.
Por isso, há que se ampliar a discussão entre a dignidade do ser humano e da
pessoa, porém, reconhecer esta dicotomia e defender que o ser humano enquanto
pessoa é digno, desde que atenda a determinados critérios, não significa que ele seja
reconhecido em sua dignidade em todas as circunstâncias e fases de sua vida. Este
grande esforço que a bioética vem desprendendo em conceituar ser humano e pessoa
é absolutamente necessário, porém, há que se ampliar ainda mais a discussão da
dignidade humana que é negada a determinados grupos sociais e morais. “A
exploração econômica de um ser humano por uma pessoa, por um sistema econômico
ou mesmo por um governo, não raro, está sustentada num esquema ideológico em
que a dignidade do explorado é teórica e praticamente negada ou diminuída”126.
A defesa dos direitos humanos e a promoção e reconhecimento da dignidade
humana, tem sido o caminho árduo percorrido por indivíduos e grupos. O não
reconhecimento da dignidade humana e dos direitos humanos tem sido as principais
124
ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola. 2015. p.
170.
125 SANCHES, Mario. Op. cit. p. 89.
126 SANCHES, Mario. Op. cit. p. 102.
66
consequências da vulnerabilidade social e moral a que principalmente os grupos
estigmatizados estão submetidos. Considerá-los e trata-los na mesma perspectiva de
indivíduos e grupos com seus direitos e dignidade reconhecidos, é maximizar a
vulnerabilidade a qual já estão submetidos. Por isso, a exploração econômica,
desemprego, discriminação, estigmatização, exclusão e o fundamentalismo são
algumas das raízes que alimentam tanto a realidade de vulnerabilidade moral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Problematizar em qualquer área uma temática ou conceito ainda pouco
desenvolvido não é tarefa fácil. Em bioética, pela sua natureza interdisciplinar, este
exercício é ainda mais desafiador. A vulnerabilidade é um dos referenciais e princípios
importantes da bioética, porém, seu foco tem se dado nas dimensões existenciais,
sociais ou contingenciais. Este trabalho buscou pautar a relevância em se discutir uma
dimensão específica da vulnerabilidade que está relacionada à negação do
reconhecimento do outro como agente moral, seja por processos de estigmatização,
exclusão e outras formas de negação de dignidade e direitos.
Demonstramos a importância de considerar desta dimensão particular da
vulnerabilidade demonstrando as limitações do contratualismo proposto por
Engelhardt para as relações entre estranhos morais e como a estreita abordagem
procedimental do contrato pode gerar, manter ou aprofundar consequências
eticamente ilegítimas. Pontuamos que as fragilidades na dinâmica da permissão e do
consentimento desconsideram certos impactos na relação entre estranhos morais,
sobretudo da negação do reconhecimento como agente moral para grupos e pessoas
que distanciam de padrões morais hegemônicos em dado contexto.
A “estranhesa” moral em sociedade pluralista, mas excludentes, aponta para a
necessidade de considerar a vulnerabilidade moral como um problema para a bioética
e pautar este problema torna-se um imperativo ético na medida em que desnuda como
certas argumentações bioéticas a-críticas e procedimentais, tal como a proposta por
Engelhardt,
violentas.
podem contribuir para a reprodução de dinâmicas excludentes e
67
REFERÊNCIAS
BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, Jhon. Principles of Biomedical Ethics. Fifth
edition. Oxford. Universithy Press. 2001.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
<http://www.ohchr.org>. Acessado em 12/08/2015.
HUMANOS.
Disponível
em:
DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS. Disponível
em: <http://unesdoc.unesco.org>. Acesso 12 ag. 2015.
ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução: CESCHIN, José.
São Paulo 6ª ed. Edições Loyola. 2015.
____________________ Bioética Global: O colapso do consenso. Tradução:
CESCHIN, José. São Paulo. Paulinas. 2012.
FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São
Paulo. Edições Loyola. 2005.
GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. (org). Bioética, Poder e injustiça. Tradução: Adail
Sobral. São Paulo. Edições Loyola. 2003.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
PESSINI, Leo. BARCHIFONTAINE, Christian (org). Fundamentos da Bioética. São
Paulo. Paulus. 2ª ed. 2002.
PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clínica no Pluralismo e diversidade. São
Paulo. São Camilo. 2012.
SANCHES, Mário Antonio. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo. Edições
Loyola. 2004.
SCHMIDT, Adriano; TITTANEGRO, Glaucia. A autonomia principialista comprada
a
autonomia
do
libertarismo.
Disponível
em:
<http://www.erevistas.csic.es/ficha_articulo.php?url>. Acesso 10 jun. 2015.
ZUCCARO, Cataldo. Bioética e valores no pós-moderno. São Paulo. Edições
Loyola. 2007.
WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da
Aids diz OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15
ab. 2015.
68
CAPÍTULO 5
ARTIGO 2127
FRONTEIRAS ENTRE VULNERABILIDADE SOCIAL E VULNERABILIDADE
MORAL: IMPLICAÇÕES BIOÉTICAS
Mariel Mannes128
Thiago Rocha da Cunha129
Resumo
Este artigo tem como objetivo incluir na reflexão bioética a problemática da
vulnerabilidade moral. A relevância desta aproximação se dá por considerarmos que
há uma especificidade da vulnerabilidade moral que não são tratadas pela bioética,
que tende a abordar apenas aspectos da vulnerabilidade ontológica ou da
vulnerabilidade moral. A vulnerabilidade é desenvolvida a partir da dimensão
existencial e social. A primeira como uma condição humana, e a segunda como
circunstancial, atingindo indivíduos e grupos específicos, que vivem em contexto
desfavorável ao seu desenvolvimento. Discutiremos a vulnerabilidade moral como
consequência da vulnerabilidade social e em olhar o ser humano em sua totalidade.
Assim, apontamos para a necessidade de consolidar uma terceira dimensão, ainda
não desenvolvida em bioética, que é a vulnerabilidade moral. Neste artigo, a
vulnerabilidade moral será incluída como decorrente da vulnerabilidade social, na
medida em que esta for geradora de processos de estigmatização, exclusão e
discriminação negativa.
Palavras – chaves: Vulnerabilidade – estigmatização – exclusão – discriminação
negativa
127 O Capítulo 04 corresponde a artigo encaminhado para submissão na Revista Latino Americana de
Bioética.
128 Mestrando em Bioética pelo Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR
129 Doutor em Bioética e professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR.
69
INTRODUÇÃO
Atualmente, a vulnerabilidade ocupa um espaço de grande relevância nas
discussões em bioética, sendo um de seus referenciais. Compreender a
vulnerabilidade como um referencial da bioética dá-se a partir de duas realidades. A
primeira é que a vulnerabilidade constitui uma dimensão que é comum a todos os
seres humanos, que é a vulnerabilidade existencial. A segunda diz respeito a grupos
ou indivíduos que são impactados por uma vulnerabilidade circunstancial, visto o
contexto de pobreza, violência, desemprego e outros, sendo considerada como
vulnerabilidade social. As duas concepções são consideradas pelas diversas áreas,
porém, ao se considerar o contexto de desigualdade social, negação da dignidade
humana, privação dos direitos, estigmatização e discriminação, apresentam-se como
insuficientes. Neste sentido, desenvolveremos em nossa investigação o conceito de
vulnerabilidade moral, a partir da perspectiva da bioética.
Tanto a vulnerabilidade quanto a moralidade constituem duas dimensões
antropológicas fundamentais da existência humana. A relação entre vulnerabilidade e
moral é ainda pouco desenvolvida, seja na filosofia, na sociologia ou na bioética.
Abordaremos a vulnerabilidade moral a partir de duas perspectivas. Primeiramente, a
vulnerabilidade moral que é decorrente da vulnerabilidade social, e em seguida a
vulnerabilidade moral que não está necessariamente ligada a vulnerabilidade social,
porém, surge como consequência da estigmatização e da discriminação. A
vulnerabilidade é a mesma, porém, as causas são diferentes, o que requer também
uma abordagem diferente. O problema é de que enquanto a vulnerabilidade social é
de fácil percepção e identificação, a vulnerabilidade moral, ao contrário, é muitas
vezes imperceptível e de difícil constatação.
ENTRE O SER VULNERÁVEL E O ESTAR VULNERÁVEL
A vulnerabilidade vem sendo considerada como uma dimensão antropológica
essencial da existência humana. Kottow traz uma dimensão fundamental da
vulnerabilidade na vida humana: “A vulnerabilidade intrínseca às vidas humanas
também foi reconhecida por filósofos políticos que propuseram ordens sociais
70
destinadas a proteger da violência a vida, a integridade corporal e a propriedade”130.
Partiremos, portanto, da premissa de que todos nós somos vulneráveis, e que todos
os seres vivos estão sujeitos à vulnerabilidade. A vulnerabilidade humana deve ser
reconhecida como traço da condição humana, considerando a finitude e fragilidade de
todos os seres, cuja existência é marcada pela exposição permanente a ser ferido.
Ela, portanto, está presente em todo indivíduo, e em qualquer fase de sua vida. Ao
ser humano, a vulnerabilidade vai além de sua condição biológica na busca pela
sobrevivência, o que é comum a todos os animais, mas também revela-se na sua
condição existencial e moral, enquanto busca de sentido para a vida.
Considerando que a vulnerabilidade é uma problemática complexa,
conceituada e manifestada de diversas formas, tomaremos como ponto de partida a
investigação desenvolvida por Cunha e Garrafa (2016), entitulada: “Vulnerability. A
Key Principle for Global Bioethics?”131. A relevância do trabalho desenvolvido por
estes autores permite-nos ter clareza acerca das bases a partir das quais
abordaremos a vulnerabilidade neste trabalho.
No referido artigo, os autores problematizam o conceito de vulnerabilidade
expressado nas perspectivas de cinco abordagens regionais da bioética:
estadunidense, europeia, latino-americana, africana e asiática132. Neste sentido,
constatam que a vulnerabilidade apresenta nuances bastante variados, sendo que em
cada regional assume características e formas de abordagens específicas, mesmo
que por vezes prevaleça um modelo conceitual, mas sem sobrepor-se às
características específicas de cada contexto.
Além da vulnerabilidade intrínseca à existência humana, alguns indivíduos e
grupos são afetados diretamente por circunstâncias desfavoráveis, nas quais a
pobreza, a falta de educação, as dificuldades geográficas, as doenças crônicas, a
violência e outros infortúnios os tornam ainda mais vulneráveis. Ruth Macklin
pergunta: “O que torna indivíduos, grupos ou países vulneráveis?” Segundo a autora,
pessoas vulneráveis são pessoas relativa ou absolutamente incapazes de proteger
seus próprios interesses. De modo mais formal, podem ter poder, inteligência,
130
KOTTOW, Michael. Comentários sobre bioética, vulnerabilidade e proteção. In: GARRAFA, Volnei
e PESSINI, Leo (org.). Bioética: Poder e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo.
Loyola. 2003. p. 74.
131CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerability. A Key Principle for Global Bioethics?
Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 25, 2016. pp 197-208.
132 Id.
71
educação, recursos e forças insuficientes ou atributos necessários à proteção de seus
interesses133.
A pergunta sobre o que torna indivíduos e grupos vulneráveis é uma questão
fundamental, e que deve ser uma constante, mesmo antes de proteger ou intervir. Se
há a necessidade de proteção, é porque de alguma forma a pessoa ou o grupo já está
em situação de risco, e se precisa intervir é porque já sofre danos. Portanto, identificar
o que torna grupos e pessoas vulneráveis, é o primeiro passo para impedir que
passem de um estado de ser vulnerável para o estado de estar vulnerável. A origem
daquela vulnerabilidade comum ao ser humano é conhecida, pois é a própria condição
de “ser humano”, mas esta, de grupos específicos, apresenta um desafio maior, pois
buscar a origem desta vulnerabilidade específica implica analisar diversos fatores,
como: estado, comunidade, sistemas econômicos e sociais, instituições e órgãos.
Todos estes, podem colocar o indivíduo ou o grupo em estado de vulnerabilidade
específica. Portanto, a identificação deve ser um esforço comum a todas as áreas:
educação, ética, bioética, sociologia, filosofia, saúde, etc.
Hans-Martin Sass (2003) conceitua o uma “nova vulnerabilidade” característica
das sociedades modernas e que é representada pelo fácil rompimento das relações
interpessoais, pela insegurança no emprego, por estruturas desiguais de sistemas de
cuidados do caráter anônimo, pela falta de apoio familiar na doença e na demência”134.
Nas sociedades modernas, pesam sobre as pessoas vulnerabilidades diferentes. Por
exemplo, muitas pessoas solteiras nas grandes metrópoles gozam de dimensões de
liberdade civil que as culturas pré-modernas desconheciam, mas são vulneráveis
como nunca antes devido a não contarem com uma família, com vizinhos, com
comunidades morais que lhes deem apoio, tendo apenas direito legal sobre certos
serviços de proteção.
A partir da diversidade dos problemas contemporâneos é possível perceber que
a forma como a vulnerabilidade é concebida ainda é insuficiente e ilimitada.
“Indivíduos e comunidades são vulneráveis porque carecem dos bens fundamentais
de que precisam para sair de um estado de destituição. Padecem da perda de
133
Id. p.74.
SASS, Hans Martin. In: GARRAFA, Vonei e PESSINI, Leo (org.). Bioética: Poder e justiça.
Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003. p. 80.
134
72
capacidade ou da falta de liberdade, tem reduzida a gama de possibilidades
disponíveis para o bem estar e buscar os interesses importantes de sua vida”135.
Na obra Bioética e Vulnerabilidade (2012), Sanches e Guber (orgs), apresentam
várias dimensões ao se discutir a vulnerabilidade no campo da bioética: bioética,
vulnerabilidade e educação; genética e vulnerabilidade; da vulnerabilidade do embrião
emergente da reprodução humana assistida; a vulnerabilidade do transexual; gênero,
vulnerabilidade e HIV; Bioética nos cuidados neonatais; vulnerabilidade do enfermo e
a relação de cuidado; vulnerabilidade no ambiente de trabalho, assédio moral 136. A
vulnerabilidade ganha aqui, uma relevância e uma abrangência que permite-nos
compreende-la e inseri-la a partir das diversas perspectivas, além da dimensão
existencial e social, mas também moral.
DA VULNERABILIDADE SOCIAL À VULNERABILIDADE MORAL
Antes
de
adentramos
na
vulnerabilidade
moral,
cabe
considerar
a
vulnerabilidade social, visto ser uma forma de vulnerabilidade mais explícita e
perceptível. Tratar de vulnerabilidade social, não implica tratar de forma igualitária
todos os sujeitos de um grupo, mas sim, considerar as diferentes formas que cada
indivíduo ou grupo sofre a vulnerabilidade. Cabe aqui considerar a vulnerabilidade do
indivíduo, de um grupo, e dos sujeitos específicos dentro de um grupo e, sobretudo,
as influências de condicionantes sociais e do cotidiano de suas vidas.137 Isso porque,
mesmo que todo um grupo seja vulnerável, ela se manifesta de forma diferente entre
os sujeitos. Identificar e reconhecer a forma como cada sujeito é impactado pela
vulnerabilidade é um grande desafio à bioética. Alguns membros de grupos
vulneráveis não manifestam a vulnerabilidade. Porém, conforme será problematizado
na
perspectiva
da
vulnerabilidade
moral,
estes
podem
não
demonstram
vulnerabilidade porque a pressão social a favor do preconceito é mais poderosa. Esta
não manifestação também não significa que não sejam vulneráveis.
A vulnerabilidade social, além de uma intervenção individual, requer intervenção
por meio de políticas públicas adequadas, pois quando grupos são vulneráveis
135
Id. p 70.
SANCHES, Mário Antonio; GUBERT, Ida Cristina (org). Bioética e vulnerabilidade. São Paulo
Edições Loyola. 2004. p. 09 – 203.
137 GARRAFA, Volnei. Vidal Hidden risks associated with clinical trials in developing countries.
Journal of Medical Ethics 36 (2):111-115 (2010).
136
73
socialmente, é porque existe uma violação explicita dos direitos humanos, e neste
sentido, o estado tem o dever de garantir que todos tenham o acesso à justiça. “A que
considerar que as políticas públicas devem proteger o direito e a liberdade de cada
pessoa. Devem identificar linhas de ação para proteger e promover os direitos
humanos, bem como garantir o acesso à justiça”138.
Tratar da vulnerabilidade social implica também um olhar sobre os países
periféricos. No VI Congresso Mundial de Bioética (2002), veio à tona nos debates, a
necessidade para a bioética de incorporar ao seu campo de reflexão e ação aplicada
temas políticos atuais, principalmente as agudas discrepâncias sociais e econômicas
existentes entre ricos e pobres, entre as nações dos hemisférios Norte e Sul do
mundo. Garrafa amplia a discussão levantada pelo Congresso: “As relações de
justiça, solidariedade e respeito diante do diferente, do diverso e do desigual não
sejam meros discursos vazios ou realidades virtuais, mas traduzam-se em dignidade
e qualidade de vida para as pessoas e os povos mais vulneráveis”139.
Esses questionamentos trouxeram para a pauta dos debates mundiais aspectos
até então considerados apenas tangencialmente pelas abordagens tradicionais. Na
Bioética de Intervenção do citado autor em parceria com Dora Porto140 são listados
alguns problemas persistentes típicos dos países periféricos, como a exclusão social,
a concentração de poder, a globalização econômica internacional e a evasão de
divisas das nações mais pobres para os países centrais, a inacessibilidade dos grupos
economicamente vulneráveis à conquistas do desenvolvimento científico, e
tecnológico, e a desigualdade de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo
básicos indispensáveis à sobrevivência humana com dignidade. Estes e outros
aspectos, passaram a ser parte obrigatória da pauta dos pesquisadores que desejam
trabalhar com uma bioética transformadora, comprometida e identificada com a
realidade dos chamados países em desenvolvimento141. Percebe-se aqui um salto
qualitativo no que se refere à incorporação dos problemas persistentes pela bioética
brasileira e latino-americana.
138
TEALDI, Juan Carlos. Dicionário Latinoamericano de bioética. Universidade Nacional de
Colômbia. Bogotá. Unesco. 2008.
139 GARRAFA, Vonei e PESSINI, Vonei (Org.). Bioética: Poder e justiça. Sociedade Brasileira de
Bioética. São Paulo. Loyola. 2003, p. 104.
140 GARRAFA Volnei, PORTO, Dora. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in
a context of power and injustice.Bioethics. 2003 Oct;17(5-6):399-416.
141 Id. p.14.
74
Neste cenário, para Garrafa (2012) o significado de vulnerabilidade social leva
ao contexto de fragilidade, desproteção, debilidade, desfavorecimento e, inclusive, de
abandono, englobando diferentes formas de exclusão social, de distanciamento ou
isolamentos de grupos populacionais com relação aos benefícios propiciados pelo
desenvolvimento142. Destarte, a vulnerabilidade social tem uma relação direta com a
estrutura cotidiana das pessoas, como: “[...] baixa capacidade de pesquisa no país;
disparidades socioeconômicas na população; baixo nível de instrução das pessoas;
inacessibilidade a serviços de saúde e vulnerabilidades específicas relacionadas com
o sexo feminino e com, entre outras”143. Neste sentido, Garrafa vem defendendo incluir
os países periféricos na discussão bioética, com toda a diversidade de problemas, que
por sua vez são em sua grande maioria originados pela desigualdade social torna-se
uma opção fundamental, e neste sentido, a vulnerabilidade torna-se um referencial
para a bioética.
ESPECIFICIDADES DE VULNERABILIDADE MORAL
Fica evidente, até aqui, que a vulnerabilidade social vem estando em pauta nas
grandes discussões e produções na bioética. Porém, a vulnerabilidade social, que
possui características explícitas, de fácil percepção, pode conduzir o grupo ou o
indivíduo vulnerável social a uma outra forma de vulnerabilidade, que mesmo sendo
em sua grande maioria decorrente da vulnerabilidade social, possui características
bem específicas, que é a vulnerabilidade moral. Esta “nova” forma de vulnerabilidade
desafia a bioética a considerar o ser humano em sua totalidade e ampliar ainda mais
a discussão sobre a vulnerabilidade.
Incluir a dimensão da moralidade na discussão sobre vulnerabilidade é
considerar uma questão central na vida humana. “Fora da questão de saber se tal ou
tal moral é verdadeira, ou de saber qual é a verdade moral ou a verdadeira regra
moral, impõe-se-nos um fato: os homens admitem uma regra moral, creem nela, e
pouco importa que nela tenham refletido ou não”144.
142
GARRAFA, Volnei; PRADO, Mauro Machado. Tentativas de mudanças na Declaração de
Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cadernos de Saúde
Pública. Nov/dez. 2001.
143 GARRAFA, Volnei (org.). Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Conselho Federal de
Medicina/ Cátedra da Unesco/ Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília. 2012. p. 75.
144 CAMPOS, Luiz Cônego. As grandes linhas da filosofia. São Paulo. Editora Helder. 1967. p 03.
75
Ferrer e Álveres (2005), relacionam vulnerabilidade e moral, apontado que “a
moralidade é necessária não somente porque somos seres comunitários, mas
também porque a comunidade está inevitavelmente constituída por seres vulneráveis,
que necessitam de proteção e do calor da comunidade moral para poder subsistir e
florescer”145. Certos atos, despertam aprovação e estimas, e outros por sua vez,
despertam reprovação. A reprovação sempre recai sobre indivíduos e grupos, e é feita
a partir de um paradigma, considerado um modelo ideal de pensamento ou de prática.
O que se observa, é que tanto indivíduos quanto grupos que são reprovados, são
vulnerabilizados moralmente e estigmatizados, diante do pluralismo moral atual.
Tratar da moral é tratar de uma questão central, que é a formação da identidade
do sujeito. Para Correa (2012), a identidade individual depende em grande medida da
identidade social e cultural. A autenticidade é vista em nossa sociedade moderna
como respeito à diferença e à diversidade. No plano social, as identidades individuais
se formam mediante um diálogo aberto entre todos. Sua negação e rejeição do seu
reconhecimento são vistos como uma forma de opressão146. Exemplos atuais de
opressão, intolerância, estigmatização e exclusão, revelam a existência de uma
vulnerabilidade moral a que determinados indivíduos e grupos estão submetidos, por
não ser reconhecidos e aceitos por aqueles que compartilharem a moralidade padrão.
Deste modo, a vulnerabilidade moral compreenderia uma parte que trata da vida
concreta do indivíduo. Para Boff, (2003), “[...] a moral trata da prática real das pessoas
que se expressam por costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos. Uma
pessoa é moral quando age em conformidade com os costumes e valores
consagrados”147. O campo da moral, portanto, é indispensável para a vida humana.
Afinal, o ser humano pode viver sem hábitos, costumes, usos, tradições?
Tratar da moral, portanto, implica considerar toda a diversidade de
circunstâncias a qual o sujeito ou o grupo estão inseridos. Do mesmo modo, tratar da
vulnerabilidade requer a consideração do particular e contextual. Neste sentido, para
Stepke e Drumond, (2007), a vulnerabilidade é relativa. De acordo com os autores,
algumas condições biológicas são desfavoráveis em certos ambientes, mas
145
FERRER, Jorge José; ALVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética. São Paulo. Edições
Loyola. 2005. p. 45.
146 CORREIA, Francisco Javier León. In. PESSINI, Leo (org.). Ética e Bioética Clinica no Pluralismo
e Diversidade. São Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2012. p.21.
147 BOFF, Leonardo. Ética e moral, a busca dos fundamentos. Petrópolis. Editora Vozes. 2003. p.
37.
76
favoráveis em outros, ou seja, nenhum atributo ou traço das pessoas não é melhor
nem pior senão na possibilidade de um dano, isto é, de um risco, segundo a
circunstância148. Portanto, a relatividade das vulnerabilidades é um espaço de
influências: espaciais, temporais, situacionais. Neste sentido, que tratar da
vulnerabilidade moral em bioética implica considerar a totalidade do ser humano, e a
circunstância não somente social ao qual está inserido, mas também a religiosa,
moral, familiar, afetiva, etc.
Ainda para Stepke e Drumond (2007), há três eixos, que consideramos
fundamentais sobre os quais devem ser elaboradas as variedades de vulnerabilidade,
que é a vulnerabilidade sentida, atribuída ou objetiva. “O primeiro se refere ao “falante”
ou rotulador da vulnerabilidade (quem). Assim, existe uma vulnerabilidade sentida ou
percebida pelo próprio sujeito ou pelo grupo, uma vulnerabilidade atribuída por outros,
e uma vulnerabilidade “objetiva”, sobre a qual há pleno e universal consenso”149.
Ao considerar a vulnerabilidade como um referencial da bioética, faz-se
fundamental levar em conta os aspectos desenvolvidos acima: a vulnerabilidade
sentida pelo próprio sujeito, a vulnerabilidade rotulada, ou seja, de quem fala, e a
vulnerabilidade objetiva, ou seja, de fato. A vulnerabilidade sentida ou percebida pela
pessoa vulnerável pode não ser correlativa ou equivalente à vulnerabilidade atribuída
por outros. Cabe à bioética, ao constituir uma vulnerabilidade objetiva, considerar de
forma muito atenta o sujeito que se considera vulnerável, quem fala deste sujeito
vulnerável e o contexto em que está inserido, que também pode ser um contexto
vulnerável. É neste sentido, que há vulnerabilidades que se manifestam de forma
explicita, sendo de fácil constatação. Aqui, a vulnerabilidade atribuída talvez seja a
mais perceptível. Ao contrário, há uma vulnerabilidade que é implícita, nem sempre
percebida e manifestada, que é a vulnerabilidade sentida de fato pelo próprio sujeito.
A
vulnerabilidade
moral
ocupa,
justamente,
esta
dimensão
implícita
da
vulnerabilidade.
Nesta perspectiva, considera-se que a vulnerabilidade moral atinge indivíduos e
grupos que não correspondem à moralidade hegemônica de determinado contexto
com repercussões negativas como exclusão, distanciamento, segregação e outras
formas de estigmatização e discriminação negativa. São grupos, que muitas vezes,
148
STEPKE, Fernando Lopes e DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma antropologia
Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007 p 148.
149 Id.
77
além de uma vulnerabilidade social, que é explicita, também são moralmente julgados
na surdina, em muitas situações imperceptíveis, e que consequentemente não é
contemplada e considerada pelos diversos órgãos de proteção e intervenção. Neste
sentido, a vulnerabilidade moral caracteriza-se simultaneamente como causa e como
consequência de processos de estigmatização e discriminação negativa.
O conceito de discriminação positiva e discriminação negativa são desenvolvidos
por Robert Castel (2008). “A discriminação positiva consiste integrar as populações
carentes de recursos a fim de integrá-las. Consiste em fazer mais por aqueles que
têm menos”150. No contexto das ações afirmativas, por exemplo, cotas para mulheres
no Congresso ou para negros em universidades são formas de ‘distinguir’, ‘separar’
no processo de eleição/vestibular, em favor do aumento da representatividade destes
grupos historicamente alijados. A discriminação negativa, por sua vez, “[...] Ser
discriminado negativamente significa ser associado a um destino embasado numa
característica que não se escolhe, mas que é atribuída como um estigma. A
discriminação negativa é a instrumentalização da alteridade, constituída em favor da
exclusão”151. Está relacionada ao ato da exclusão, e portanto, como uma
consequência da vulnerabilidade moral.
Em muitos casos, a vulnerabilidade moral decorre da vulnerabilidade social,
como por exemplo, crianças e adolescentes vivendo em situação de rua que se tornam
intermediários na distribuição de drogas e por isso duplamente tornam-se suscetíveis
à dimensão eminentemente social, como a violência, e a estigmatização. Nestes
casos, a vulnerabilidade social é tangível e está relacionada à diversos fatores e riscos
que vão desde a ausência de estrutura familiar, acesso à educação, à submissão à
violência e à morte. Porém, decorre deste processo também uma forma de
vulnerabilidade moral, menos tangível, mas altamente perceptível na voz daqueles
que referem aos indivíduos deste grupo altamente vulnerável como ‘marginais’,
‘bandidos’. No Brasil, entre os que sustentam a redução da maioridade penal é
possível encontrar exemplos de discursos que se baseiam na generalização e
estigmatização de adolescentes em situação de vulnerabilidade social e/ou em conflito
com a lei.
150
CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones?. Petrópolis, Rio de
Janeiro. Editora Vozes. 2008. p. 13. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922010000300011. Acesso
31 ag. 2015.
151 Id.
78
Somam-se a estes outros grupos que podem sofrer as consequências da
vulnerabilidade moral, como: desempregados, pessoas vivendo em situação de rua,
dependentes químicos, detentos, diante da falta de oportunidades de ingressarem
novamente à vivência social e ao mercado de trabalho, sendo estigmatizados; vítimas
da discriminação racial, idosos abandonados em asilos, portadores de necessidades
especiais, imigrantes, homossexuais e outros. Todos esses grupos têm em comum a
submissão de um julgamento moral que os hierarquiza como inferiores em relação às
pessoas e grupos que não ‘desviam’ na moralidade hegemônica, tornando-os ainda
mais suscetíveis ao ferimento, ou seja, ainda mais vulneráveis.
Deve-se destacar que a caracterização de um indivíduo ou grupo como
vulnerável moral é sempre relativa a particularidades do contexto, pois as dinâmicas
de hierarquização moral sempre ocorrem a partir do julgamento de determinada
moralidade padrão. Idosos, por exemplo, em sociedades capitalistas são
considerados moralmente inferiores por não produzirem, por serem um peso, mas em
determinadas comunidades indígenas, o idoso é moralmente valorizado, não estando,
portando, em condição de estimatização, negação de dignidade, ou qualquer outra de
inferiorização. Neste contexto particular o idoso não é considerado um vulnerável
moral.
Deve-se destacar também que na vulnerabilidade moral pode haver
interscionalidade de ‘julgamentos’ hieraquizantes, por exemplo, um usuário de drogas
homossexual estará moralmente mais vulnerável do que uma pessoa usuária de
drogas heterossexual, tal como ocorre na intersecção de vulnerabilidades sociais
discutidas por Martorel e Nascimento152.
No caso da epidemia de HIV/AIDS mesmo com todos os avanços farmacêuticos
e biotecnológicos das últimas décadas os homossexuais e transexuais ainda são
relativamente mais vulneráveis aos riscos de contágio153. Diversos estudos mostram
que a homofobia, a transfobia e penalização de identidades e comportamentos que
estão da normatividade heterossexual contribuem para a manutenção desde
quadro154. Pelo mesmo motivo, estes grupos podem ter menos acesso a tratamentos
do que grupos que se enquadram na moralidade vigente, indicando como a
152
MARTORELL, Leandro Branbilha; NASCIMENTO, Wanderson Flor. A Bioética de Intervenção em
contextos descoloniais. Revista Bioética; n. 21. 2013.
153 WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da Aids diz
OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15 ab. 2015.
154 Id.
79
vulnerabilidade moral implica em consequências concretas que aprofundam inclusive
as formas típicas de vulnerabilidade social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de nossa investigação, fica evidente que o fato da vulnerabilidade estar
se tornando um referencial em bioética não significa que a vulnerabilidade venha
sendo contemplada em sua totalidade e considerada nas várias dimensões da vida
humana, que são impactadas pela vulnerabilidade, como neste trabalho, em relação
a moral. Neste sentido, buscou-se apresentar a relevância em se discutir a
vulnerabilidade moral como uma forma de vulnerabilidade que suplanta a objetividade
da vulnerabilidade social e se reproduz discursivamente em processos de julgamento
moral a partir de um coletivo hegemônico que geram formas de estigmatização,
exclusão, discriminação negativa e outras formas de hierarquizações nem sempre
perceptível e de fácil constatação. Também está ligada à negação do reconhecimento
de certos grupos como agentes morais ou portadores de status moral.
Identificar, portanto, a vulnerabilidade moral apresenta-se como um dos grandes
desafios, visto que raramente é manifestada diretamente pelo indivíduo, uma minoria
absoluta frente ao coletivo hegemônico.
É neste sentido, portanto, que se posiciona a discussão sobre moralidade e
vulnerabilidade no contexto da bioética. O reconhecimento do pluralismo sem que se
desenvolva espaços onde os “estranhos morais” possam viver de forma digna e com
garantia de seus direitos de forma equitativa torna-os vulneráveis morais. Há que se
reconhecer a vulnerabilidade moral decorrente da vulnerabilidade social, da negação
da dignidade humana e privação dos direitos, da estigmatização e da discriminação,
não somente reconhecendo a existência de uma vulnerabilidade moral, mas também
atuando efetivamente para a transformação destas relações.
80
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Ética e moral, a busca dos fundamentos. Petrópolis. Editora
Vozes. 2003.
CAMPOS, Luiz Cônego. As grandes linhas da filosofia. São Paulo. Editora Herder.
1967.
CORREIA, Francisco Javier León. In: PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clinica
no Pluralismo e Diversidade. São Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2012.
ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução: CESCHIN, José.
São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola. 2015.
ESTEPKE, Fernando Lopes e DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma
antropologia Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007.
FERRER, Jorge José; ALVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética.
Edições Loyola, São Paulo, SP. 2005.
GARRAFA, Vonei e PESSINI, Vonei (Org.). Bioética: Poder e justiça. Sociedade
Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003.
PORTO, Dora; GARRAFA, Volnei; MARTINS, Gerson; BARBOSA, Swendenberg
(Org.). Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Conselho Federal de
Medicina. Cátedra Unesco de Bioética e Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília.
2012.
INSTITUTO NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Observatório das
metrópoles. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/rmnatal/artigo/artigo16.pdf>.
Acesso 11 de ag. 2015.
KOTTOW, Michael. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Volnei (Org.). Bioética: Poder
e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003.
MACKLIN, Ruth. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Vonei (Org.). Bioética: Poder e
Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003.
MULLER, Letícia Ludwing. Pluralismo e tolerância: valores da bioética. Disponível
em: <http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/viewFile/5744/3517>. Acesso 14 ag. 2015.
PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clinica no Pluralismo e Diversidade. Centro
Universitário São Camilo. São Paulo. 2012.
SASS, Hans Martin. Apud: GARRAFA, Vonei e PESSINI, Vonei (Org.). Bioética:
Poder e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003.
SANCHES, Mário Antonio; GUBERT, Ida Cristina (org). Bioética e Vulnerabilidades.
São Paulo. Edições. Loyola. 2008.
81
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Tradução: MOREIRA, Orlando Soares. São
Paulo. Loyola. 2007.
TEALDI, Juan Carlos. Dicionário Latinoamericano de bioética. Universidade
Nacional de Colômbia. Unesco. Bogotá, 2008.
WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da
Aids diz OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15
ab. 2015.
ZUCCARO, Cataldo. Bioética e valores no pós-moderno. São Paulo. Loyola. 2007.
82
6.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Identificar as formas que dão origem e os mecanismos de enfrentamento da
vulnerabilidade moral constituíram os dois grandes desafios deste trabalho. A parte
do enfrentamento não foi suficientemente elaborada, porque o grande desafio do
trabalho foi identificar as especificidades da vulnerabilidade moral frente a outras
formas de vulnerabilidade. Neste sentido, há a necessidade de novos estudos para
definir as formas de enfrentamento da vulnerabilidade moral. Visto as peculiaridades
que apresentamos constituir a vulnerabilidade moral, tanto a identificação quanto o
enfrentamento requerem métodos de análise e formas de abordagem específicas, que
ainda precisam ser ampla e profundamente desenvolvidas em trabalhos futuros. A
vulnerabilidade moral foi abordada como uma chave de leitura, que permitiu-nos
abordar uma diversidade de problemáticas sociais e morais que atingem indivíduos e
grupos, contemplando assim, a complexidade que envolve os mesmos.
Discutimos que há duas formas em que a vulnerabilidade moral pode surgir e
manter-se. Primeiro, há uma vulnerabilidade moral que surge de teorias que
desqualificam moralmente indivíduos e grupos. Estas teorias procuram justificar
teoricamente, seja do ponto de vista científico, teológico, ou legal, a inferioridade e a
discriminação sofrida por indivíduos e grupos. Em segundo, há uma vulnerabilidade
moral que surge a partir de contextos concretos que tornam indivíduos e grupos
vulneráveis morais, decorrentes da exclusão social, da estigmatização, da
discriminação negativa e da negação da dignidade. Aqui, a desqualificação dá-se por
parte de grupos moralmente dominantes que vulnerabilizam (por meio de diversas
formas de exclusão e estimatignização) indivíduos e grupos que não correspondem à
moralidade dominante. Mesmo sendo esta forma de vulnerabilidade por vezes visível
e concreta, assume como principal característica a intangibilidade, visto que muitas
vezes não é percebida e reconhecida, e por vezes é escondida pelo próprio sujeito
vulnerabilizado.
Á guisa das considerações finais da dissertação, apresentamos algumas
perguntas, problemas e desafios para a abordagem da vulnerabilidade moral que
devem ser com mais atenção pela bioética, tais como: relação entre monismo moral
e pluralismo moral em contextos de vulnerabilidade, construção, desenvolvimento e
aplicação de políticas públicas concretas para proteção de pessoas e grupos
moralmente
vulneráveis,
interfaces
entre
os
diversos
métodos
bioéticos,
83
interdisciplinariedade, alteridade, desenvolvimento de espaços de coexistência e
inclusão de conteúdos geradores de conflitos morais no currículo na formação de
profissionais na área da saúde e da educação, entre outros problemas de ordem
teórica e prática.
A aproximação cada vez maior entre as comunidades morais desafia
indivíduos, grupos e instituições, a perceber o pluralismo moral como um valor, que
ao invés de distanciamento e segregação, possibilita uma aproximação entre estas
comunidades, tendo em vista o bem comum. Como visto neste trabalho, exemplos
diários de violência, intolerância, estigmatização, discriminação e negação da
dignidade humana, demonstram a complexidade na identificação, no enfrentamento e
na superação destas situações. Entender estes indivíduos e grupos como vulneráveis,
e relacionar esta vulnerabilidade no campo da moral a que estes contextos
correspondem, justificam a relevância em inserir uma produção teórica sobre o
conceito de vulnerabilidade moral em Bioética cada vez mais interdisciplinar e
profundamente.
Mesmo sendo a pluralidade e a diversidade moral características marcantes da
contemporaneidade, ainda constata-se claramente a existência de uma moralidade
que se pretende hegemônica, que é difundida e implantada muitas vezes pela força e
pelo medo. Esta moralidade hegemônica por vezes está ligada a grupos sociais e
religiosos tradicionais, e por vezes a grupos de cunho radical, extremista e
fundamentalistas. Esta tentativa de implantar, a todo o custo uma moral hegemônica,
é uma forma clara que estes grupos encontram de tentar eliminar a diversidade e o
pluralismo, entendendo estes não como características que constituem a sociedade,
mas como ameaça. Especificamente neste caso, acontece a tentativa de sobrepor
uma moral em detrimento de outra. Diante deste contexto, concordamos que em uma
sociedade pluralista, não cabe mais pensarmos em um monismo moral, exclusivo, e
determinado por uma única instituição ou modelo social e moral, entendendo, porém,
que esta liberdade e autonomia, nem sempre garantem que todos os indivíduos
tenham um lugar de expressão e convivência pacífica e digna nesta sociedade
pluralista. O limite das expressões encontra-se no valor da dignidade humana.
Se por um lado estes contextos geradores da vulnerabilidade moral possuem
características transversais e comuns, por outro, possuem especificidades, visto que
a vulnerabilidade social assume características concretas e visíveis, e a
estigmatização, negação da dignidade humana e discriminação, por situarem-se no
84
campo moral, tornam-se por vezes intangíveis e pouco mensuráveis. Tanto a
identificação, como o enfrentamento e a superação deve ser um esforço comum a
todas as áreas: educação, ética, sociologia, filosofia, saúde, etc. O que a bioética pode
contribuir em especial é justamente como um espaço interdisciplinar de interlocução
entre as diversas áreas do conhecimento para identificar concretamente as diversas
dimensões que podem estar vulnerando indivíduos e pessoas, seja do ponto de vista
institucional, biológico, social, moral, entre outros.
Diante da complexidade que constituem os contextos geradores e
mantenedores da vulnerabilidade moral, não cabe atribuirmos a um único método e
modelo bioético, como sendo exclusivo e suficiente para a superação da
vulnerabilidade moral. A riqueza de métodos e formas de abordagens no campo da
bioética, desafia-nos a extrair de cada um o núcleo central e a melhor forma que cada
um pode contribuir neste processo de superação da vulnerabilidade moral. Diante das
controvérsias morais, estabelecer e eleger um único método que permita direcionar a
reflexão e propor caminhos autênticos e seguros de superação da vulnerabilidade
moral, torna-se um perigo, visto o risco em se considerar a complexidade das
questões que envolvem a moral a partir de uma única perspectiva, considerando uma
visão parcial como sendo a totalidade.
A contemporaneidade traz como principal característica no campo moral, o
surgimento constante de novos conceitos e agentes morais, os quais, nem sempre
correspondem a um padrão de normalidade pré estabelecido. O campo da educação
e da saúde são espaços onde estas manifestações tornam-se mais evidentes.
Portanto, incluir estas temáticas na formação permanente de estudantes e
profissionais que atuam nestas áreas, seja educadores ou profissionais da saúde
ainda é pouco contemplada na atualidade, e torna-se uma demanda urgente. As
instituições de ensino superior (graduação e pós graduação), necessitam atualizar o
currículo, atentas a complexidade dos contextos que envolvem o surgimento de novos
conceitos e agentes morais, preparando os profissionais destas áreas a atuarem
frente a estas diversidades com atitude de acolhimento e diálogo, rompendo com
paradigmas que durante anos regem e direcionam a atuação nestas áreas.
A vulnerabilidade moral encontra um terreno adequado para o seu surgimento
e propagação diante das formas desiguais em que são tratadas as dessemelhanças.
A expressão “os de lá e os de cá” exemplifica muito bem como os agentes sociais e
morais estão situados, e em que condições a tolerância para com os dessemelhantes
85
acontece. Acrescenta-se a expressão: “tolero, desde que:..”, como expressão
recorrente. Tolera-se desde que: não ocupe o meu espaço, não frequente os mesmos
lugares, o filho não estude na mesma escola que o meu, não seja meu chefe, e outras
condições para que o dessemelhante seja tolerado.
Portanto, a tolerância torna-se uma forma de se relacionar com as
dessemelhanças, porém, por vezes não como uma opção fundamental, mas
circunstancial, e nesta perspectiva, que a tolerância torna-se insuficiente, e
mantenedora da vulnerabilidade moral. Diante do atual contexto de globalização, os
territórios vêm apresentando novas configurações, e os diferentes agentes sociais e
morais topam-se em espaços públicos e privados: escola, igreja, praça, rua, shopping,
etc. Ou seja, “os de lá e os de cá” cada vez mais começam a estar nos mesmos
lugares.
O enfrentamento de problemas sociais concretos, como a pobreza, fome, falta
de saneamento, e outros, que tornam indivíduos e comunidades vulneráveis sociais,
constituem urgências, considerando o contexto dos países da América Latina em que
a desigualdade e a disparidade no campo social e econômico apresentam-se como
um dos grandes desafios. Se por um lado a vulnerabilidade social é um dos contextos
geradores da vulnerabilidade moral, por outro, a exclusão social torna-se uma
consequência que submete indivíduos e grupos que sofrem a vulnerabilidade moral,
e neste sentido, o desenvolvimento de políticas públicas de inclusão social torna-se
um caminho de inserção destes vulneráveis em espaços autênticos de convivência
social. Neste sentido, a bioética também é cada vez mais desafiada a inserir-se nos
espaços de discussão, elaboração e desenvolvimento de políticas públicas de
enfrentamento e superação destes problemas.
A globalização despertou por parte dos países desenvolvidos um olhar aos
países da América Latina nos campos da economia, indústria, tecnologia, saúde,
pesquisas e outros. Este interesse é voltado não para a emancipação e
desenvolvimento, mas sim no sentido de torna-los e mantê-los dependentes e
consumidores dos bens produzidos. O resultado desta dependência é a
vulnerabilidade a qual são submetidos e mantidos. Esta vulnerabilidade está
diretamente vinculada a marca da colonialidade, ou seja, pela percepção de que,
algumas vidas tem mais valor que outras, justificado por parte daqueles que
conduziram o processo de colonização a exploração e a dominação. A Bioética nos
86
países periféricos assume a tarefa de denunciar essa colonial imagem da vida,
atuando nas esferas públicas e privadas na promoção de direitos.
Portanto, construir uma formação humana que presida uma conduta ética, que
permita a coexistência entre a diversidade a partir da perspectiva da alteridade e da
equidade em todas as áreas, surge como proposta diante do desafio da promoção da
dignidade humana e superação da estigmatização e discriminação negativa no atual
contexto de pluralismo moral.
87
7. REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Código Internacional de Ética Médica.
Disponível em: <http://www.bioetica.ufrgs.br/helsin1.htm>. Acesso 20 maio 2015.
___________________________ Declaração de Helsique VI. 2000. Disponível em:
<http://www.fcm.unicamp.br/>. Acesso 17 jun. 2014.
BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, Jhon. Principles of Biomedical Ethics. Fifth
edition. Oxford. Universithy Press. 2001.
BOFF, Leonardo. Ética e moral, a busca dos fundamentos. Petrópolis. Editora
Vozes. 2003.
CAMPOS, Luiz Cônego. As grandes linhas da filosofia. São Paulo. Editora Helder.
196.
CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones?.
Petrópolis, Rio de Janeiro. Editora Vozes. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S010269922010000300011. Acesso 31 ag. 2015.
CORTINA, Adela; MERTÍNEZ, Emilio. Ética. São Paulo. 3ª ed. Loyola. 2012.
CORRIGAM, P. In: SILVEIRA, Pollyana Santos (org). Revisão sistemática da
literatura sobre estigma social e alcoolismo. Rev. Estudos de psicologia. vol.16.
n.2. Mai/Ag. 2011.
CORREIA, Francisco Javier León. Apud. PESSINI, Leo (org.). Ética e Bioética
Clínica no Pluralismo e Diversidade. São Paulo. Centro Universitário São Camilo.
2012.
CUNHA, Thiago Rocha; ROCHA, Wesley Braga. Percepção dos profissionais de
saúde sobre abortamento legal. Rev. Bioética. v. 23. n. 2. 2015.
CUNHA, Thiago; GARRAFA, Volnei. Vulnerability. A Key Principle for Global
Bioethics?. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 25, 2016.
DINIZ, Débora; DIOS, Vanessa Canabarro. A verdade do estupro nos serviços de
aborto legal no Brasil. Rev. Bioética. v. 22. n. 2. 2014.
DURAND, Guy. Bioética: história, conceitos e instrumentos. Tradução: NYIMI,
Nícolas. São Paulo. 2ª ed. Loyola, 2007.
_____________ Introdução Geral à Bioética: História, conceitos e instrumentos.
Tradução: NYAMI, Nícolas. São Paulo. Edições Loyola. 2ª ed. 200.
ESTEPKE, Fernando Lopes; DRUMOND, José Freitas. Fundamentos de uma
antropologia Bioética. São Paulo. Edições Loyola. 2007.
88
ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução: CESCHIN, José.
São Paulo. 6ª ed. Edições Loyola, 2015.
GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e Injustiça. Sociedade
Brasileira de Bioética. Tradução: SOBRAL, Adail. São Paulo. Loyola. 2003.
________________ COSTA, Sérgio. A bioética do século XXI. Brasília. Editora UnB.
2000.
________________ Leitura Bioética do princípio da não estigmatização e da não
discriminação. São Paulo. Rev. Saúde e sociedade. v. 23. n.1. 2014.
Disponívelem:<www.scielo.br/scielo.php?pid=S01042902014000100157&script>.
Acesso 02 set. 2015.
________________ Vidal Hidden risks associated with clinical trials in
developing countries. Journal of Medical Ethics 36 (2):111-115 (2010).
________________ PRADO, Mauro Machado. Tentativas de mudanças na
Declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle
social. Cadernos de Saúde Pública. Nov/dez. 2001.
GOFFMAN, Erving. In: GODOI, Alcinda; GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do
princípio da não estigmatização e da não discriminação. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104>. Acesso 18 ag. 2015.
______________. Estigma: notas sobre a
deteriorada. Rio de Janeiro. Zahar 2ª ed. 1978.
manipulação
da
identidade
HOSSNE, William Saad. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Rev.
Bioethikos. São Paulo. Centro Universitário São Camilo. 2013.
INSTITUTO NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Observatório das
metrópoles.Disponívelem:<http://www.cchla.ufrn.br/rmnatal/artigo/artigo16.pdf>.
Acesso 04 jul. 2015.
KANT, Emanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução:
CARVALHO, Manoel. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 2009.
______________ Crítica da razão prática. Tradução: CARVALHO, Manoel. Lisboa.
8ª ed. Fundação Calouste. 2013.
KOTTOW, Michael. In: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e
Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Sociedade Brasileira de
Bioética. Edições Loyola. 2003.
LINDEMANN H. The woman question in medicine: an update. Hastings Cent Rep.
2012;42(3).
MACKLIN, Ruth. In: CUNHA, Thiago Rocha; GARRAFA, Volnei. Vulnerabilidade:
Princípio chave para a bioética global? Cambridge Quarterly of Healthcare etchics.
89
____________ Apud. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder e
Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Sociedade Brasileira de
Bioética. Loyola. 2003.
MARTORELL, Leandro Branbilha; NASCIMENTO, Wanderson Flor. A Bioética de
Intervenção em contextos descoloniais. Rev. Bioética; v. 21. 2013.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CONSELHO E ORGANIZAÇÕES DE
CIÊNCIAS MÉDICAS. Proposta de diretrizes éticas internacionais para a
pesquisa biomédica com seres humanos. São Paulo. Loyola. 2004.
PARKER, R.; AGGLETON, P. In: MAKUSD, Ivia. Estigma e discriminação: desafios
da pesquisa e das políticas públicas na área da saúde. Rio de Janeiro. Cad. Saúde
Pública. v.30 n.2 /Fev. 2014.
PESSINI, Leo (org). Ética e Bioética Clínica no Pluralismo e diversidade. São
Paulo. São Camilo. 2012.
PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian. Problemas atuais de Bioética. 10ª ed.
São Paulo. Edições Loyola, 2012.
PORTO, Dora; GARRAFA, Volnei; MARTINS, Gerson; BARBOSA, Swendenberg
(Org.). Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Conselho Federal de
Medicina. Cátedra Unesco de Bioética e Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília.
2012.
QUEIROZ, Marcus; MERHY, Emerson. Saúde pública, rede básica e o sistema de
saúde brasileiro. Rev. Caderno de saúde pública. Maio/junho 2003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid>. Acesso 10 set 2015.
ROGERS, W.; MACKEZINE, C. A.; DODDS, S. M.; In: CUNHA, Thiago; GARRAFA,
Volnei. Vulnerabilidade: Princípio chave para a bioética global? Cambridge
Quarterly of Healthcare etchics.
ROSENFELD, M. In: MULLER, Letícia Ludwing. Pluralismo e tolerância: valores da
bioética.
Rev.
HCPA.
v.
2.
p.
102.
Disponível
em:
<http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/viewFile/5744/3517>. Acesso 15 ag. 2015
ROHDEN, Valério. Apud. KANT, Emanuel. Razão, liberdade, lógica e estética.
Instituto Humanitas unisinos. Cadernos IHU em formação. Ano 1, nº 2. 2005.
SANCHES, Mário Antonio; GUBERT, Ida Cristina (org). Bioética e Vulnerabilidades.
São Paulo. Edições. Loyola. 2008.
________________________ Bioética, ciência e transcendência. São Paulo.
Edições Loyola. 2004.
SASS, Hans Martin. Apud. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Léo (Org.). Bioética: Poder
e justiça. Sociedade Brasileira de Bioética. São Paulo. Loyola. 2003.
90
SARLET, I. In: GODOI, Alcinda; GARRAFA, Volnei. Leitura Bioética do princípio da
não estigmatização e da não discriminação. São Paulo. Rev. Saúde e sociedade.
v. 23. n.1. 2014 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104>. Acesso
jul. 2015.
SCHLEMPER, Bruno; CUNHA, Thiago; PORTO, Dora; MARTINS, Gerson;
HELLMANN, Fernando. (org.). Bioética: Saúde, Pesquisa Educação. Conselho
Federal de Medicina. Sociedade Brasileira de Bioética, Brasília. 2014.
SCHRAMM, Fermim Roland. Uma breve genealogia da bioética em companhia de
Van Rensselaer Potter. rev. Bioethikos. Centro Universitário São Camilo. 2011.
_______________________. Bioética dos vulnerados. Revista Bioética. v. 19,
n.03.2009.Disponívelem:http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Destaques&id=134>.
Acesso 18 out. 2015.
_______________________Bioética de proteção: Ferramenta válida para
enfrentar os problemas morais na era da globalização. Revista de Bioética, v. 16.
2008.
SCHMIDT, Adriano; TITTANEGRO, Glaucia. A autonomia principialista comprada
a autonomia do libertarismo. Rev. Teologia e Pastoral. Curitiba. v. 1. n. 1. Disponível
em: <http://www.erevistas.csic.es/ficha_articulo.php?url>. Acesso 10 jun. 2015.
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Tradução: MOREIRA, Orlando Soares. São
Paulo. Loyola. 2007.
TEALDI, Juan Carlos. Dicionário Latinoamericano de bioética. Universidade
Nacional de Colômbia. Unesco. Bogotá, 2008.
UNESCO, Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra
Unesco de ética da Universidade de Brasília/SBB. 2005. Disponível
em:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pd
f>. Acesso 15 jun. 2015.
ZUCCARO, Cataldo. Bioética e valores no pós-moderno. São Paulo. Edições
Loyola, 2007.
WERLER, Gundo Auler. Grupos de risco são excluídos do tratamento ao vírus da
Aids diz OMS. Disponível em: <http://noticias.uol.com/ultimas-noticias>. Acesso 15
ab. 2015.
Download