29. LEÃO FERNANDES LORETO

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Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 2, p. 446-465
CLASSE SOCIAL, CONSUMO E ENDIVIDAMENTO: UMA BREVE
ANÁLISE DE SUAS INTERFACES
LEÃO, Ana Paula Camboim
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Consumo, Cotidiano e Desenvolvimento Social do
Departamento de Ciências Domésticas/ Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
E-mail: [email protected]
FERNANDES, Raquel de Aragão Uchoa
Professora do Programa de Pós-Graduação em Consumo, Cotidiano e
Desenvolvimento Social do Departamento de Ciências Domésticas / UFRPE.
E-mail:[email protected]
LORETO, Maria das Dôres Saraiva de
Professora do Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica-PPGED/Universidade Federal de
Viçosa- Minas Gerais
E-mail: [email protected]
RESUMO
Considerando as limitadas reflexões sobre as interfaces entre classe social, consumo e endividamento, este
estudo buscou analisar as principais transformações que deram origem à “Nova Classe Média” (NCM), seu
padrão de consumo e implicações no processo de endividamento. Para tanto, fez uso da pesquisa
bibliográfica, censitária e documental, realizando um “diálogo” entre alguns autores que abordam a
temática investigada. Resultados mostraram que a NCM, que engloba mais da metade da população
brasileira, cresceu em todas as regiões do país, trazendo significativas mudanças nos padrões e mercado de
consumo, poupança, oferta de mão de obra e demanda por crédito, com aumento do endividamento.
Conclui-se que o conhecimento sobre a história da nova classe média seja fundamental para a compreensão
de seu comportamento, modos de vida, valores, necessidades e anseios e, portanto, essencial para o desenho
de políticas públicas eficazes em promover o seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Nova Classe Média, Consumo, Endividamento.
ABSTRACT
Considering the limited reflections on the interfaces between social class, consumption and debt, this study
investigates the major transformations that gave rise to the "New Middle Class" (NCM), the usage patterns
and implications in debt process. For both made use of literature, census and documentary research,
conducting a "dialogue" between some authors who address the topic investigated. Results showed that the
NCM, which encompasses more than half of the Brazilian population, grew in all regions of the country,
bringing significant changes in the patterns and market consumption, saving, labor supply and demand for
credit, with increasing debt. We conclude that knowledge about the history of the new middle class is
essential for understanding their behavior, ways of life, values, needs and desires and, therefore, essential
for the design of effective public policies to promote its development.
Key-words: New Middle Class, Consumption, Indebtedness.
CLASSE SOCIAL, CONSUMO E ENDIVIDAMENTO: UMA BREVE ANÁLISE DE SUAS INTERFACES - LEÃO, Ana Paula Camboim;
FERNANDES, Raquel de Aragão Uchoa; LORETO, Maria das Dôres Saraiva de
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ISSN 2316-266X, n.3, v. 2, p. 446-465
INTRODUÇÃO
Na perspectiva social, o consumo pode ser influenciado por diversos fatores, como classe
social, renda, estilos de vida, estratégias de marketing e grupos de referência dos quais o indivíduo
faz parte. Além disso, existe a influência de atributos subjetivos, como percepção, motivação,
personalidade e valores pessoais, na busca dos indivíduos pela satisfação de suas necessidades e
desejos de consumo. A discussão passa tanto pela significação que as pessoas depositam na posse
de determinados bens e serviços quanto pela representatividade e influência dos grupos de
referência nas decisões e comportamentos de consumo; como também pela diferença entre
consumismo e consumo 1 . Ou seja, na sociedade de consumo são intensas e permanentes as
influências do meio social no consumo.
Veblen (1988) evidencia que o capitalismo, vivenciado nos tempos atuais, estabelece uma
estreita ligação com o consumo, não prioritariamente com aqueles gastos ordinários, necessários à
subsistência, e sim com o consumo de bens e serviços, que permite a identificação com
determinado padrão de vida e a pertinência a um grupo social. Sugere ainda que tais despesas, em
geral, requerem um pouco de sacrifício por parte do indivíduo, porém o esforço é justificado pela
competição, pelo reconhecimento honorário dos pertencentes da mesma classe social.
Segundo Abdala (2012), nas abordagens sobre classes sociais são apresentadas duas
vertentes. Na visão marxista, a classe social se refere à posição ocupada nas relações sociais de
produção; estando, de um lado, os capitalistas detentores dos meios de produção e, de outro, o
proletariado obrigado a vender sua força de trabalho para sobreviver. A segunda vertente, com
inspiração no positivismo e na sociologia funcionalista norte americana, define classe social como
um estrato, um agrupamento mensurável a partir de variáveis; isto é, um agrupamento de pessoas
que possuem determinado nível de rendimento e status social semelhante, com ocupações, cargos
e gostos próximos e subjacentes a uma partilha de ideais e valores.
Essa formulação, produzida no início dos anos 1960, antecipou o que ainda se constata na
maioria dos estudos sobre classes sociais: um afastamento da teoria marxista de classes e a ênfase
1
Segundo Bauman (2008,p.41), a passagem do consumo para o consumismo representa uma mudança de postura
frente ao modo de vida. As pessoas não mais consomem para viver e sim vivem para consumir. O autor traz que, “de
maneira distinta do consumo, que é basicamente uma característica e uma ocupação dos seres humanos como
indivíduos, o consumismo é um atributo da sociedade”. Para o referido autor, a demanda dos consumidores é atingida
dentro da perspectiva das emoções e não da razão, sendo o consumo a realização de um sonho, que promete satisfação,
felicidade.
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nas teorias de estratificação, que os pesquisadores combinam com o tema da mobilidade social,
avaliando os movimentos dos indivíduos nas estruturas sociais hierárquicas.
Entretanto, como destaca Churchill (2000), as classes sociais mostram não só diferenças
em renda, mas também diferenças em valores e comportamento. Exemplifica, afirmando: as
pessoas de classes mais baixas tendem a pensar em termos concretos e a ser emocionais em suas
tomadas de decisões. Os consumidores de classe alta, por sua vez, valorizam a alta qualidade e
prestígio, tendendo a ser mais abstratos e mais orientados para o futuro em seu modo de pensar.
De acordo com Sennett (2008) o capitalismo moderno possibilita a mudança de classe
social, porém a custos da imprevisibilidade e da falta de controle sobre o trabalho e a família, com
reflexos na saúde emocional, ao buscar a adequação no curso da economia moderna. No Brasil, as
transformações econômicas, socioculturais e políticas da sociedade contemporânea repercutiram
no processo de mobilidade social, gerando uma nova estratificação de classes sociais, com
implicações no padrão de consumo. Estudos da Serasa Experian e Data Popular (2014) apontam
que, nos últimos anos, o Brasil tem passado por uma das mais profundas mudanças de sua história,
constatando-se que a pirâmide de classes econômicas se transformou em losango com o
crescimento da classe média 2. Enfim, os números da pesquisa indicam que ocorreu uma relevante
mobilidade social nos últimos anos, em que 32 milhões de pessoas ascenderam à categoria de
classes alta e média (A, B e C) e 19,3 milhões saíram da pobreza.
Essa nova classe média3 representa 54% da população do país e a previsão é a de que, em
2023, essa parcela da população chegue a 58%, alcançando a 125 milhões de pessoas (FIG. 01).
Pesquisa realizada por Barros et al (2014) evidencia que o processo de ascensão da nova classe
média resultou da combinação de quatro fatores: a) a criação de um sistema de proteção social
(Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, dentre outros); b) a retomada de um
crescimento econômico espacialmente inclusivo, com consequente expansão do emprego e um
2
Em função, principalmente ao aumento na renda dos mais pobres, observa-se um crescimento da classe média
(Classe C) no Brasil, que, para a Fundação Getúlio Vargas (FGV), envolve famílias com renda mensal entre R$ 1.064
e R$ 4.591. A elite econômica (classes A e B) tem renda superior a R$ 4.591, enquanto a classe D (classificada como
remediados) ganha entre R$ 768 e R$ 1.064. A classe E (pobres), por sua vez, reúne famílias com rendimentos abaixo
de R$ 768 (RICCI, 2014). Enquanto a classe A não apresenta dificuldades financeiras e consome tudo o que deseja, e
a B, considerada classe média alta, faz gastos com rédeas curtas, a classe C é considerada ávida pelo consumo e
endivida para realizar sonhos. Já a classe D é o brasileiro típico. Está na periferia, em áreas rurais e nos redutos de
baixa renda (CASTRO; PIGHINI, 2011)
3
Abdala (2012) destaca que o uso da palavra "nova" serve apenas como referência temporal, designando pessoas que
ascenderam recentemente na estrutura social. Ou, mais precisamente, pessoas antes consideradas pobres, agora
incluídas no mercado como consumidoras.
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aumento na produtividade do trabalho, com implicações favoráveis sobre a remuneração dos
trabalhadores e o grau de formalização das relações de trabalho; c) diversos componentes da
política social voltados à produção, notadamente mais acesso ao crédito, apoio às pequenas
empresas e aumento no valor real do salário mínimo; e d) mudanças nas características da força de
trabalho, especialmente na elevação do seu grau de escolarização.
449
Figura 01 – Evolução das Classes Sociais, Brasil, 2014.
Fonte: Serasa Experian (2014)
Entretanto, como ressalta Abdala (2012), apesar da trajetória ascendente da nova classe
média, são limitadas as reflexões críticas sobre sua relação com o tema do consumo, como também
as problematizações sobre seus fundamentos teórico-conceituais. No seu ensaio, o referido autor
busca superar estas limitações ao recorrer às proposições de Álvaro Vieira Pinto, elaboradas em
1975 e editadas em 2008, para discutir sobre a Nova Classe Média e a Dialética do Consumo,
problematizando a associação linear e mecanicista que relaciona consumo e progresso social.
Ressalta que, embora o aumento do consumo seja retratado como a importante ascensão da nova
classe média, estudos mostram um aumento da exploração e a deterioração das condições de
trabalho; pois, subjacente à dialética do consumo, o consumidor desgasta-se a si mesmo no
processo de trabalho, para ter acesso ao salário e gastar.
Além disso, a ideologia do consumismo, disseminada pela cultura global de consumo,
parece estar diretamente ligada à base constitutiva do fenômeno da nova classe média. E, em um
cenário de significativa desigualdade social, a ampliação do consumo da nova classe média se faz
principalmente via crédito, por meio do endividamento. Nesse caso, as pessoas se consomem para
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pagar pelo consumo de uma mercadoria, que muitas vezes, já foi destruída, tendo finalizado sua
vida útil (ABDALA, 2012).
Campbell, citado por Lívia Barbosa (2004), também discute a esse respeito, ao partir do
princípio que a sociedade de consumo moderna é impelida pela insaciabilidade dos consumidores,
logo que um desejo é atendido, outro já se faz presente. O prazer não está contido no interior dos
objetos, o consumidor busca por um conjunto de associações prazerosas criadas em seu
imaginário, assim, no momento em que se efetiva a aquisição de algo idealizado, logo o prazer é
substituído pela frustração que se encarrega de preencher com algo novo. Nesta sociedade, o
consumidor não deseja a posse material de bens, caso contrário não existiria o descarte rápido das
mercadorias. Além disso, como pontua a referida autora, a mídia manipula, através da propaganda
e do marketing, os objetos, retirando os signos, tornando-os aptos a serem consumidos por
associações múltiplas, criando demandas e incentivando o consumo impensado e, muitas vezes,
desnecessário, com endividamento do consumidor, que repercute sobre sua saúde física e
emocional, em termos de: ansiedade, angústia, sentimento de impotência e culpa, vergonha,
humilhação e pânico (LEÃO et al, 2014)
De acordo com dados do Banco Central (BC), apresentados por Valente (2014), o índice de
endividamento bateu recorde (43,99%), em 2013, o que significa que as famílias devem às
instituições financeiras quase a metade do que ganham durante o ano. Em 2005, as famílias tinham
um endividamento de 18,39% da renda bruta anual. O aumento do endividamento familiar
deriva-se da facilitação de acesso ao crédito bancário no país, uma vez que, o volume dos
empréstimos no país saltou de 28,1% para 54,1% do Produto Interno Bruto (PIB), no período de
2005 a 2013.
Diante do exposto, justifica-se refletir sobre as interfaces entre classe social, consumo e
endividamento, analisando o surgimento de uma classe social no Brasil contemporâneo,
denominada de “Nova Classe Média”, pressupondo que sua ascensão se deu em contexto de maior
inserção no mercado de trabalho formal, melhoria da massa salarial e das transformações daí
decorrentes relacionadas com o consumo de bens e serviços, à custa do endividamento.
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OBJETIVO
Analisar as principais transformações que deram origem à “Nova Classe Média”, seu
padrão de consumo e implicações no processo de endividamento.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, do tipo descritivo-exploratória. Para o
alcance do objetivo proposto, foi feito um levantamento bibliográfico, documental e censitário,
com aprofundamento em revistas e artigos especializados que fazem referências à categorias
analíticas a serem investigadas: classe social, Nova Classe Média, consumo e endividamento.
UMA DISCUSSÃO COM OS AUTORES
Em um estudo direcionado para a base teórica sobre padrões de mobilidade social e classe
média, Márcio Pochmann (2013, p.156) procura demonstrar que, nos países de agudo dinamismo
em recursos naturais, a estrutura social distancia-se daquela cuja referência inclina-se para a
mobilidade convergente com a classe média não proprietária. Em termos da economia, a base dos
serviços encontra-se cada vez mais associada a ocupações divergentes com a classe média
assalariada. Em contrapartida, nos países de base industrial a nova classe média encontra o seu
curso natural para avançar e se estruturar. Nesse sentido, para o autor, o que diferencia a natureza
de indivíduos e classes e a sucessão de seus destinos pessoais e geracionais, relacionam-se,
diretamente, à diversidade de organização das sociedades.
O referido autor acrescenta que configuração modernista impressa às sociedades
industriais, a partir do final do Séc. XIX, imprimiu um distanciamento entre as sociedades agrárias
e as industriais. Nestas, generalizou-se a noção moderna de classe social. Com efeito, o termo
classe média passou a ser vinculado à diferenciação das ocupações intermediárias existentes no
interior da base industrial, distinguindo, com isso, com o tradicional conceito de classe média
proprietária.
No decorrer do Séc. XX as sociedades industriais passam a ter como modelo de
organização de trabalho o Fordismo na produção de bens e consumos duráveis. Entretanto, com a
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2ª Guerra Mundial, surge uma nova configuração de trabalho e produção. Os Estados Unidos,
tidos como a principal peça de articulação do sucesso para o naufrágio do Nazifacismo, senta-se à
mesa de negociações como principal articulador, não apenas na definição das fronteiras da Europa
e Oriente, dividindo-a em blocos políticos e econômicos; mas, definindo, paulatinamente, a partir
de então, um novo padrão de mobilidade social inaugurado a partir das últimas três décadas do
século passado. O esvaziamento da produção industrial associado à expansão predominante do
setor de serviços na economia imprime a mudança dos parques industriais dos países
desenvolvidos, notadamente os Estados Unidos, com reflexos para as regiões periféricas.
Não se pode deixar de enfatizar o papel do Estado voltado à criação de novos postos de
trabalho, principalmente após o holocausto da 2ª Guerra Mundial em meados do século passado.
Premente também foi o esforço concentrado para reconstrução das cidades e revitalização das
indústrias para estabilização do processo de produção, conjugado com a implementação de
políticas públicas para acomodação de uma massa de desempregados, muitas vezes, amputados,
para recolocação no mercado laboral.
Observa Pochmann (2013), que, desde a década de 70, ocorre uma transição da sociedade
industrial para a de serviços. A passagem do Fordismo para o Toyotismo 4 findou por ser
acompanhada de crescente instabilidade nos destinos ocupacionais, distante das incorporações e
dos ganhos de produtividade, sem qualquer proteção do Estado e regulação pública.
Reconhece-se que esse fenômeno de mobilidade social global afetou profundamente o
Brasil que, até o final do Século XIX, era considerado uma sociedade agrária, cujas classes sociais
ainda estavam vinculadas a questões geracionais e colonialistas. A riqueza, quando não era
distribuída a poucos, canalizava-se para os rincões da Europa. A base da pirâmide largamente
distanciada da metade e do ápice teve esse quadro agravado com o movimento ignominioso da
escravidão de negros e índios, cujo sistema foi abolido no final do Séc. XIX sem que, no entanto,
tivessem sido estabelecidas políticas públicas concretas de amparo, qualificação e emprego. Nesse
quadro, vê-se crescer uma Nação de Miseráveis.
4
Idealizado pelo empresário estadunidense Henry Ford, o Fordismo é um modelo de produção em massa que utilizou
à risca os princípios de padronização e simplificação, com fábricas totalmente verticalizadas. Por outro lado, o
Toyotismo é caracterizado pela flexibilização da produção, com o objetivo de produzir exatamente no momento da
demanda, no chamado Just in Time. Ao contrário do modelo fordista, que produzia muito e estocava essa produção, no
toyotismo só se produzia o necessário, trabalhando com pequenos lotes, para que a qualidade dos produtos fosse a
máxima possível.
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As insurreições nacionais e as guerras fronteiriças que o País participou ainda naquele
século, aliadas às movimentações de inquietação internacional que resultaram nas duas grandes
guerras do Séc. XX, dividindo o mundo em blocos, cujas economias determinavam o sistema de
classes, forcejou a entrada do Brasil nessa movimentação. Ao fim e ao cabo, disso resulta o
surgimento do que vem se chamando de fenômeno da Nova Classe Média.
No Brasil, as décadas de 60 e 70 do século passado são chamadas, em razão do crescimento
do País, de Milagre Econômico, não se desconhecendo que, nesse período, a sociedade viu-se
regulada por um Regime de Exceção. Entretanto, a pobreza foi reduzida de 67% para 39%. Em
contrapartida, a sociedade clamava por democracia. Com a redemocratização iniciada na Década
de 80, o país bateu recordes de picos inflacionários e de desigualdade social. Apesar do panorama
desfavorável, foi no ano de 1988 que a atual Constituição, conhecida como Constituição Cidadã,
foi promulgada, o que representou um marco legal de grande avanço nos direitos sociais, na luta
por direitos de igualdade e liberdade para todos os cidadãos brasileiros.
Na década de 1990, a instabilidade econômica repercutia drasticamente no crescimento do
impeachment de Fernando Collor de Mello, nomeando, em 1993, Fernando Henrique Cardozo,
como o Ministro da Fazenda país. Em 1992, o vice-presidente Itamar Franco é nomeado como
presidente interino e, em 1995, o então Ministro da Fazenda assume a Presidência da República
dando continuidade às políticas econômicas anteriormente adotadas.
Foi nesta década que o Estado capitalista aliado às políticas neoliberais reavaliaram as
configurações estabelecidas onde o Estado assumia o papel de “provedor e assistencialista”,
deduzindo que esta associação seria a principal responsável pela intensa crise social, impondo
novos paradigmas. Neste contexto, pode-se afirmar que o neoliberalismo “encampa um conjunto
de ideias políticas e econômicas capitalistas que defende a não participação do Estado na
economia para garantia de crescimento econômico e desenvolvimento social de um país”.
Rodrigues (2014) complementa ainda afirmando que cabia aos economistas neoliberais avaliar
quando e como o governo deveria intervir de forma proveitosa a favor do capitalismo antes de
rotular como desnecessário ou pernicioso um determinado investimento.
Nesse sentido, Matos (2006) critica a perversa política neoliberal, onde a exclusão social
passa a focar o indivíduo como capaz de desenvolver postura competitiva num suposto ambiente
de igualdade e liberdade. Ao falar de inclusão, toma como exemplo a assertiva de que todos teriam
condições de consumir bens e serviços, sendo que, de forma diferenciada, de acordo com as
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competências de cada um. O autor vai mais além, quando afirma que os índices de pobreza são
medidos a partir do viés econômico, renda e consumo, quando, na verdade, deveria ser medida
pela privação de bem-estar e falta de atendimento às necessidades básicas, tais como, a saúde,
educação, segurança alimentar, saneamento básico, entre outras. Sendo assim, a filosofia
individualista dos governos neoliberais é a de interferir o mínimo possível nas políticas de
combate à pobreza.
454
Em 2003, o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva assume como Presidente da República
dando continuidade aos programas adotados, até então, para a erradicação da miséria e lançando
tantas outras medidas com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais. Tais políticas, sem
sombra de dúvidas foram capazes de retirar milhões de pessoas da faixa de “miséria” migrando
para pobreza e cristalizando o substrato para o surgimento da Nova Classe Média.
Em seu segundo mandato, iniciado em janeiro de 2007, em busca da retomada do
crescimento, o governo do Partido dos trabalhadores (PT) adotou uma série de medidas, como o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tem como objetivo recuperar as
infraestruturas, já bastante deterioradas, além de adotar medidas que contribuíssem para a redução
da miséria e desigualdade social, com o aumento real do salário mínimo e a transferência de renda
para as famílias mais vulneráveis socialmente (IPEA, 2010).
Não se pode deixar de ressaltar que nesse meio tempo o país esteve envolvido em uma
aguda crise financeira mundial que fez com que muitos países do continente Europeu, que tinham
economias sólidas, buscassem ajuda no Banco Mundial e até mesmo com países da América do
Sul, como no caso do Brasil. Os Estados Unidos nesse contexto também se encontrava no cerne da
crise, agravada especialmente com a desvalorização imobiliária naquela Região.
Nesse contexto de crise, as políticas de estabilização tiveram um viés expansionista, para
contrapor os reflexos recessivos da crise mundial e incentivar o mercado interno. Além disso, é
importante ressaltar que, a partir do ano de 2003, já estavam sendo implantados programas sociais
mais inclusivos, como ressalta Cohn (2013, p. 109), citando Pochmann, ao afirmar que, com base
nos dados das políticas sociais entre os segmentos mais pobres da sociedade, tem-se que:
[...] entre outros, ela não vem acompanhada da redistribuição da propriedade, o
que lhe impõe sérios limites para que siga prosperando. Por outro lado, não se
pode menosprezar esse impacto, nem muito menos ignorar o acesso a “novas
janelas de oportunidade” que esse processo vem gerando para segmentos
significativos da sociedade.
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O Governo do partido dos Trabalhadores, ainda atual, defende que tais medidas foram
fundamentais para o crescimento da economia, gerando maior número de emprego formal e o
acesso ao crédito pelas camadas sociais mais sacrificadas da população. Estes fatores, segundo
IPEA (2010), levaram a um aumento significativo da Nova Classe Média (NCM) e do consumo,
tanto da Classe C, quanto da D e E.
455
A NCM, segundo Data Popular e Serasa Experian, a chamada 'Classe C' tem poder de
compra superior ao de 17 países, consome mais de R$ 1 trilhão por ano e cresceu em todas as
regiões do país, no período de 2003/2013: 7% no Sul, 10% no Sudeste, 17% no Centro-Oeste, 19%
no Norte e 26% no Nordeste, sendo esta região que mais contribuiu para essa expansão (40%),
conforme dados da Figura 02. A pesquisa ressalta que, se a classe C formasse um país, seria o 12º
em população, com mais habitantes que a Alemanha, o Egito e a França, e a 18ª nação do mundo
em consumo, podendo pertencer ao G20.
Porém, é importante destacar que, apesar da expansão da NCM, ainda persiste um
panorama de pauperização e
marginalização para 8,5% da população total brasileira,
principalmente das áreas rurais nordestinas, com rendimento nominal mensal domiciliar de
R$70,00 per capita (BRASIL, 2014). As demandas advindas das classes mais empobrecidas não se
resumem apenas na criação de novos postos de trabalho e repasses de verbas. A população carece,
prioritariamente, dos direitos assegurados na Carta Magna relativos à educação, moradia, saúde,
saneamento básico, entre outros.
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Figura 02- Expansão da Nova Classe Média, por regiões, Brasil, 2014.
Fonte: Data Popular, citado por Gomes (2014).
Neste sentido, Jessé Souza (2013) faz crítica severa aos professores Marcio Pochmann e a
Marcelo Neri que consideram que o “economicismo” é fator preponderante à ascensão social. A
este respeito, o doutrinador faz a seguinte observação:
Minha tese é que o tema da produção e reprodução das classes sociais no Brasil é
dominado por uma leitura economicista e redutora da realidade social.
Certamente, a economia tem muito a contribuir para o esclarecimento da
realidade social confusa. Mas ela “aparenta” dar mais coisas do que efetivamente
dá. Aí temos o economicismo: uma visão empobrecida e mesquinhada da
realidade, como se fosse toda a realidade social (p. 56).
Neste caso, na sua visão, é possível que o surgimento da Nova Classe Média – NCM esteja
respaldada apenas no poder econômico sendo “despossuídas dos capitais que pré-decidem a
hierarquia social” (SOUZA, 2013, p. 64).
Solomon (2011, p. 487) explica que as classes sociais diferem entre o “ter” e o “deixar de
ter” ou mesmo entre “ter mais” ou “menos” dentro da escala de consumo. Ou seja, para poder
pertencer a uma determinada classe social é necessário que possamos possuir e desfrutar de todas
as benesses que esta classe possa nos oferecer. Neste sentido, no cenário brasileiro, é possível
afirmar que a NCM já desfruta das “benesses”, em termos de consumo de bens individuais e
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familiares, que fazem parte do sonho de consumo, daqueles, que, até então, viam-se mergulhados
na exclusão do consumo (FIG. 03).
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Figura 03- Expectativas de Consumo da Nova Classe Média, Brasil, 2014.
Fonte: Serasa Experian (2014).
Neri (2011, p. 84) salienta que “indicadores indicam a ocorrência de um boom na classe C:
casa, carro, computador, crédito e carteira de trabalho estavam todos em seus níveis recordes
históricos quando a crise chegou ao país”. Acrescenta que, em 2010, após a crise, esses níveis
voltaram a crescer alcançando níveis próximos ou superiores aqueles “recordes históricos”.
Cohn (2013) comenta a respeito ao afirmar que a sociedade brasileira tem presenciado um
movimento ascendente de renda nos estratos de menor poder aquisitivo da população, em
decorrência da criação de novos empregos formais, aumento real do salário mínimo e de
benefícios da previdência social - contributiva e não contributiva. A NCM “identifica-se com uma
promessa de futuro de ascensão social, com o ‘buscar progredir na vida’’’.
A supracitada autora ressalta que assegurar o direito ao acesso de bens de consumo básicos
são fundamentais para garantir o direito a cidadania e complementa:
[...] significa que acesso a renda é fundamental, este tem que ser um acesso
sustentado de modo a poder dar um mínimo de segurança e permanência de
condições de vida a eles. E esse acesso sustentado a fontes de renda e de
sobrevivência não é garantido nem pelos programas sociais que incidem sobre
não-direitos, e muito menos pelo mercado de trabalho, cada vez mais instável.
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FERNANDES, Raquel de Aragão Uchoa; LORETO, Maria das Dôres Saraiva de
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A esse respeito, Jessé Souza (2013, p. 62) considera que “ascender socialmente” num país
com condições semelhantes ao nosso, “só é possível a quem logra incorporar as pré-condições que
o capitalismo atual pressupõe para a crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e
de capital cultural como ‘porta de entrada’ em qualquer de seus setores competitivos”.
Então, o que se pode constatar é que apenas a classe alta, com menor contingente dentro da
população, é capaz de usufruir o que o mercado pode oferecer entre bens e serviços, satisfazendo
plenamente suas necessidades. A atual sociedade de consumo tenta imprimir no imaginário das
pessoas, a possibilidade de se consumir de forma satisfatória e igualitária o que é produzido pelo
mundo capitalista globalizado, de forma a atender as necessidades humanas.
Desta forma é que vive grande parte da população brasileira, lutando diariamente para
satisfazer suas necessidades básicas, onde o poder aquisitivo é fator limitante na aquisição de
mercadorias, redundando, na maior parte das vezes, em aquisição de produtos de menor valor e de
qualidade duvidosa. São os parcos recursos, em geral, advindos de programas sociais ou dos
baixos salários que formam o grande “reservatório” de mão-de-obra barata e sem qualificação.
Os batalhadores, como denomina Jessé Souza (2013, p. 66) à Nova Classe Média, são
responsáveis pela composição da base da pirâmide e representam a fração das classes populares
que lograram sair deste círculo vicioso:
Como as fronteiras aqui são muito fluidas, isso significa que não existe “classe
condenada” para sempre. Com condições políticas e econômicas favoráveis, os
setores que logram incorporar, seja por socialização religiosa tardia, seja por
pertencerem a famílias comparativamente mais bem estruturadas – malgrado o
ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares – a
incorporação das pré-condições para o desempenho do papel social do
“trabalhador útil”, podem ascender socialmente.
A ascensão pode trazer um constante sofrimento em decorrência do esforço e do medo
permanente de uma possível desclassificação social futura, complementa o autor. Giacomini Filho
(2010, p. 59) aduz que, “são os integrantes desta classe que têm praticamente todo o tempo tomado
com a dedicação ao trabalho, faltando recursos para enfrentar problemas de consumo; só agem em
casos extremos e que representam prejuízos diretos a si próprios ou à família”.
Em se tratando do dinheiro e do consumo, pode-se constatar que grande parte da população
tem se envolvido nas teias do consumismo exacerbado do mundo capitalista. As compras
irrefletidas, ocasionadas pelo impulso e seu descarte quase sempre imediato, geram montanhas de
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lixo, que são fatores, isolados ou não, que favorecem os prováveis endividamentos. Nesse caso,
esse fenômeno não escolhe classes.
Domingos (2011, p. 47-49) em seu estudo “Terapia Financeira” aborda o tema
“desequilíbrio financeiro” e adverte que quando o consumo é realizado de forma impensada pode
levar o indivíduo a uma situação de endividamento. Ele sugere, neste momento, que se deve
realizar um diagnóstico claro e objetivo das atitudes e motivações que levaram a tal desequilíbrio
orçamentário. Portanto, possivelmente, em diversas ocasiões essas compras podem ter sido
“motivadas pela busca de satisfação emocional, não da real necessidade de um determinado
produto”.
Campbell, citado por Barbosa (2004), parte do princípio que a sociedade de consumo
moderna é impelida pela insaciabilidade dos consumidores, logo que um desejo é atendido, outro
já se faz presente. O autor sugere que a insaciabilidade tem origem na alteração do padrão de
gratificação, ocorrido ainda no século XVII, e que teríamos passado do hedonismo tradicional para
o moderno. E esta busca incessante para atender as crescentes “necessidades vitais” que nunca
findam são aqui explicadas pela autora:
[...] Enquanto o desejo liga o consumo a dimensões de auto-expressão, gosto e
classificação, o capricho se caracteriza pela sua dimensão casual, espontânea e
aleatória. Enquanto o desejo que se enraíza na comparação, na vaidade, na inveja
e na necessidade de aprovação, o capricho, como todos os caprichos, é infantil e
inseguro. A sociedade de consumo transformou o princípio do prazer no
princípio de realidade; de uma ameaça à estabilidade da vida social,
transmudou-o em seu principal alicerce (p. 46-47).
Corroborando com o exposto, Ruscheinsky (2007) destaca que existe uma necessidade
premente na produção de novas mercadorias com o objetivo de satisfazer os novos desejos
induzidos principalmente pela publicidade. Nesse contexto, surge o consumo ininterrupto e
desnecessário, gerando, como consequência, a sensação de frustração ao reconhecer que seus
desejos são inatingíveis.
Sciré (2012) lembra que uma das alternativas utilizadas com frequência é o cartão de
crédito, que é visto como dinheiro e apresenta ainda a alternativa de poder parcelar em várias vezes
uma compra. Porém, a autora observa que na prática estas parcelas, quando ultrapassam a renda
mensal, podem dificultar o equilíbrio financeiro das pessoas que utilizam desse mecanismo.
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Em meio aos apelos do consumo e a satisfação premente das necessidades, a autora acima
mencionada avalia estar diante de um novo fenômeno. Até pouco tempo as famílias valorizavam
obter uma reserva financeira (poupança) e o consumo estaria em segundo plano. Nos dias atuais as
dívidas substituíram a poupança e ocuparam lugar de destaque no orçamento familiar. A
população buscar suprir ao máximo suas deficiências financeiras decorrentes do consumo e
encontram no mercado econômico limite de crédito concedido em cheques especiais e cartão de
crédito que geralmente extrapolam, e muito, a renda mensal do indivíduo.
Domingos (2011) sugere que o indivíduo, uma vez endividado, deve traçar metas visando
um equilíbrio financeiro, livrando-se do imediatismo característico do mundo consumista, onde as
facilidades de compra estão embutidas nos cartões de crédito, financiamentos ou empréstimos,
buscando um consumo consciente.
Os aspectos motivacionais na tomada de decisão do consumidor são estudados
minuciosamente pelo Marketing onde o foco é exclusivamente no consumo, na satisfação
pós-compra e nos artifícios que levam os indivíduos a criar vínculos com marcas ou empresas.
Todavia, sabe-se que o ato de consumir pode apresentar facetas pouco desejáveis, principalmente
quando a publicidade alcança todos os seus objetivos, induzindo as pessoas a comprarem, por
impulso, o que não precisam. Além disso, pode-se citar ainda o grupo de pessoas que se
enquadram como “compulsivas”, quando a busca pelo prazer, realização ou algum sentimento de
frustração pode estar associado ao ato de comprar, levando-as, algumas vezes, a não ter condições
de honrar com seus recursos o endividamento daí decorrente.
Para Tolotti (2007) há dois tipos de endividamento, o primeiro é o endividamento passivo,
que é imprevisível e ocorre em decorrência de eventos no transcorrer da vida, como doença, morte,
acidente, desemprego ou separação. O segundo, o endividamento ativo, quando o saldo devedor é
decorrente de escolhas equivocadas, isto é, um gerenciamento indevido das finanças,
independente da renda mensal do indivíduo.
A autora explica a lógica do endividamento e aduz que é composta por duas vertentes
inseparáveis:
De um lado, o aspecto financeiro que é objetivo e consciente; de outro, o aspecto
afetivo que é subjetivo e, geralmente, inconsciente. Assim, a motivação que leva
um endividado a contrair constantemente dívidas é tanto consciente quanto
inconsciente; é possível pressupor que não é apenas por falta de educação
financeira que isso acontece, mas por algum impedimento psíquico (p. 33).
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Corroborando com a vasta literatura sobre as questões de consumo e endividamento a
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) acompanha
mensalmente os dados relativos ao endividamento e inadimplência do consumidor em todas as
capitais do país, ouvindo um total de 18.000 pessoas. Os dados apurados na pesquisa realizada
neste mês de junho de 2014, marcou um índice 62,5% dos entrevistados que declararam ter
dívidas, como cheque pré-datado, cartão de crédito e cheque especial. Foi assinalado que houve
uma pequena redução no número de endividados e a economista Marianne Hanson justifica que “a
alta do crédito induz a uma postura mais cautelosa das famílias ao contratar e renovar empréstimos
e financiamentos. Juros mais altos e ganhos de renda mais modestos levam a condições menos
favoráveis para o endividamento”. O percentual mais alto entre os endividados da pesquisa citada
acima são as famílias que recebem até dez salários mínimos, alcançando um percentual de 63,5%,
já entre as famílias que recebem mais de dez salários mínimos o percentual é de 49,6%. As dívidas
mais recorrentes são as relacionadas com os cartões de crédito (CNC, 2014).
Essa mesma Confederação pesquisa a “Intenção de Consumo das Famílias”, sendo que o
resultado apontou para um decréscimo em relação ao mesmo período do ano passado. Para a
Confederação, a elevação dos juros e a inflação em alta causaram um aperto no orçamento
doméstico, enfraquecendo as perspectivas de consumo. É possível observar que o endividamento
atinge indistintamente todas as classes sociais, embora o endividamento quando analisado pelo
aspecto “renda” apresente diferenças significativas. Postos todos esses argumentos, não há como
estudar o problema do endividamento dos indivíduos e a busca de soluções, abstraindo a situação
social e as particularidades de determinados grupos e/ou classes.
É importante que o estudo sobre o endividamento não aborde exclusivamente os aspectos
econômicos, pois as evidências mostram que o endividamento das famílias pode trazer sofrimento
e graves consequências para as pessoas envolvidas. Desta forma é inevitável não falar dos
sentimentos daí resultantes que assumem um variado leque de emoções no dia-a-dia vivenciado
pelos endividados, que podem se apresentar em forma de angústia, impotência e arrependimento.
Independente do fato que tenha levado o indivíduo a situação de endividamento, o que é certo, é
que o consumo foi realizado acima das possibilidades financeiras da pessoa, levando-a ao
sofrimento com os sentimentos negativos decorrentes ao consumo impensado.
Hennigen (2012) em sua pesquisa intitulada “O lado avesso do sistema consumo-crédito:
(super)endividamento do consumidor“, realizada no PROCON/RS, observou que a maior parte
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dos entrevistados sentem mal-estar por estarem endividados e pela dificuldade de conseguir saldar
os compromissos. E complementa:
Ao refletir sobre seu (super)endividamento e expor as vicissitudes da sua vida em
função do mesmo, os consumidores trouxeram uma gama de sentimentos que
lhes acometia. Assim, o mal-estar psicológico sentido foi expresso como
ansiedade, vergonha, stress, sentimento de impotência, de culpa, de humilhação,
angústia, pânico, desânimo, dentre outros. Tais sentimentos compunham e
mesclavam-se aos sofrimentos de diferentes ordens que relataram experimentar:
depressão, insônia, afetação das relações familiares, falta de perspectiva – de
solução do problema, de vida.
Corroborando com a autora acima, Leão et al (2014), ao estudarem o processo de
endividamento dos funcionários públicos federais, na cidade do Recife, observaram que o nível de
endividamento neste grupo é bastante significativo apresentando um percentual de 71% das cem
(100) pessoas entrevistadas. As principais causas do endividamento neste grupo foram as despesas
relacionadas com o cotidiano; como alimentos, problemas de saúde, remédios e pagamento de
empréstimos, acarretando maior dano ao salário mensal. Por outro lado, verificou-se ainda que
esses problemas desencadearam sentimentos diversos, tais como ansiedade, angústia, vergonha,
entre outros; dando espaço a doenças, como depressão, insônia e nervosismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O consumo não pode ser compreendido somente pela racionalidade econômica, uma vez
que é influenciado pela conjuntura nacional e internacional, pelas políticas, elementos culturais,
ambientais e sociais, como é caso das classes sociais. A significativa mobilidade social registrada
na sociedade brasileira e a ascensão da Nova Classe Média de ex-pobres, que engloba mais da
metade da população, é resultante de múltiplos fatores, principalmente do aumento do emprego,
reajustes salariais e consolidação da política social. Essa nova classe tem a ambição de viver
melhor e consumir mais. O aumento do poder de consumo, derivado da estabilidade da moeda e
expansão creditícia e influenciado pelo ambiente social e midiático, pode levar ao consumismo,
com sérias consequências físicas, sociais, emocionais e psíquicas, em decorrência do
endividamento. Sua rede de sustentação é representada pelos hábitos, cultura, religião, relações
familiares e comunitárias.
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Conclui-se que as classes sociais devem ser definidas por outros critérios, além do nível de
renda, que se traduzem por sua forma de ver o mundo e seu espaço relacional, sua cosmovisão,
atitudes perante a vida, experiências, memórias; enfim, sua história.
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