A remessa de lucros durante o Governo Dutra: crise externa e liberalidade financeira Julio Manuel Pires1 Introdução A divergência de opiniões sobre os mais diversos temas constitui fato comum entre os economistas. Alguns temas em particular, no entanto, ostentam posição destacada quando se trata de controvérsia. Tal certamente é o caso do papel do investimento externo no processo de desenvolvimento econômico de um país. De um lado, perfilam-se aqueles que enxergam no capital externo toda uma série de vantagens e benefícios para a economia nacional – acesso a poupança externa, tecnologia, métodos modernos de gerenciamento etc. –, minimizando seus eventuais efeitos deletérios. Para outro conjunto de pessoas, a desnacionalização, os impactos negativos das remessas de lucros e dividendos, a dependência externa e tantos outros aspectos nocivos superariam as vantagens fortuitas. procuram se equilibrar entre estes extremos Os trabalhos que afiguram-se relativamente diminutos. A comoção trazida por este tema, bem como o alinhamento a priori com uma das posições, constitui a regra2. 1. Professor do Departamento de Economia da FEA-RP/USP e do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP. 2. São inúmeros os exemplos de estudos que, a despeito de terem claramente uma posição favorável ou contrária ao capital externo pretendem-se “isentos”. Apenas a título de ilustração, podemos citar, no primeiro caso o trabalho de Zockun (1987), o qual posicionando-se de forma nitidamente favorável, recusa a “irracionalidade” das posições avessas ao capital estrangeiro e propõe-se a “contribuir para o esclarecimento da questão, apresentando dados e fatos sobre a importância do capital estrangeiro para o desenvolvimento econômico brasileiro, evitando colocações políticas que não possam ser comprovadas” (p. 1, grifos nossos). De outro lado, adotando uma postura agressivamente contrária ao capital externo desde o início, o trabalho de Pereira (1975) assevera que pretende apenas “apontar algumas fontes para quem desejar maiores informações [sobre as multinacionais], e recordar alguns conceitos emitidos por órgãos de pensamento político universal, notadamente a Organização das Nações Unidas e altas personalidades, inclusive professores universitários do mais alto conceito público, acima de interesses e de ideologias” (p. 8, grifos nossos). [1] Defender o capital externo é, para alguns, sinal evidente de entreguismo e submissão aos interesses internacionais, para outros, indicador de racionalidade e modernidade. Atacar o capital estrangeiro significa, para uns, primitivismo mental nacionalismo e e visão perspectiva retrógrada, realista da para outros, realidade prova de econômica e sadio política mundial. Quando nos referimos ao marco regulatório concernente ao capital externo, temos em mente quatro áreas de atuação principais. A primeira delas referese à legislação sobre a remessa de lucros, dividendos, royalties, patentes e repatriamento de capital – tanto no que tange ao investimento quanto ao reinvestimento estrangeiros, –, com a segunda particular à tributação atenção para incidente a sobre os diferenciação capitais porventura existente relativamente ao capital nacional. O terceiro aspecto reporta-se aos setores passíveis de atuação do capital externo e o quarto à existência ou não de restrições das empresas estrangeiras à captação de recursos no mercado doméstico, seja via mercado financeiro, seja via mercado de capitais. Entre todos esses “temas” afetos à discussão mais ampla sobre o capital externo e a necessidade – maior ou menor – de sua regulação iremos nos ater ao debate e condicionantes atinentes à remessa de lucros e dividendos das empresas estrangeiras e o eventual estabelecimento de restrições a essas remessas. Essa controvérsia alcançou particular ênfase no Brasil entre os anos do pósguerra e o Golpe Militar de 1964, com repercussões relevantes sobre o ambiente político em alguns momentos marcantes. Em vista das restrições impostas ao tamanho máximo que se julga apropriado para um artigo científico sem que a paciência do leitor seja [2] submetida a teste de resistência abusivo, concentraremos nossa atenção apenas no primeiro governo instituído após o final da II Guerra3. O trajeto percorrido pelo Governo Dutra no tocante aos controles estabelecidos sobre as transações externas é bastante conhecido. De início, dando continuidade à política de liberalização comercial herdada do interregno Linhares, os responsáveis pela política econômica permitiram que ocorresse uma elevação substancial das importações, sem que quaisquer critérios de seletividade fossem interpostos. Segundo Vianna (1987, p. 19), tal política tinha como um de seus objetivos precípuos o combate à inflação e por fundamento quatro pontos principais: 1) a expectativa de aumento do preço do café a partir do fim do preço-teto estabelecido pelo governo norte-americano4; 2) a situação aparentemente confortável quanto ao nível das reservas internacionais; 3) a perspectiva de colaboração direta do governo dos Estados Unidos, em virtude do apoio emprestado pelo Brasil durante o conflito mundial e; 4) a crença de que uma política liberal de câmbio constituir-se-ia em importante estímulo para o influxo de investimentos estrangeiros diretos privados. Com isso, o valor total das importações ascendeu de US$ 322,5 milhões em 1945 para US$ 594 milhões no ano seguinte, alcançando US$ 1.027 milhões em 1947, uma expansão, portanto, de 218% em dois anos, fato raramente observado na história econômica brasileira. É evidente que o gradual 3. Em trabalho futuro oportunamente pretendemos voltar ao tema tratando do Segundo Governo Vargas. 4. Conforme apontado pelo mesmo autor (VIANNA, 1987, p. 22), entre janeiro de 1942 e julho de 1946, o Acordo Interamericano do Café havia limitado o preço do café tipo Santos 4 em 13,4 centavos de dólar por libra-peso. A partir de julho de 1946, com o fim deste limite, o preço começou a ascender no mercado internacional, chegando o Santos 4 a alcançar 27,6 cents/libra em fevereiro de 1947. Nos meses seguintes, no entanto, a posse de estoques substanciais e grande número de contratos a termo por parte dos importadores norte-americanos fez com que o preço declinasse de forma importante, atingindo 18,25 cents/libra em julho de 1947. Doravante, inicia-se uma trajetória de crescimento dos preços lenta mas persistente, a qual se acentua sobremaneira a partir de 1949, cujo ápice se deu em 1954. [3] restabelecimento das condições normais do comércio internacional após o final da guerra teve papel importante, mas negar o papel relevante da política de abertura comercial seria falsear completamente a realidade. Tal elevação, conjugada ao fato de que a maior parte dessa demanda de bens estrangeiros era atendida pela economia norte-americana – e, portanto, exigiam o pagamento em moedas conversíveis, cujos saldos detidos pelo Brasil eram reduzidos5 – levou o Governo Dutra a dar início, já em meados de 1947, a mudanças substanciais na legislação referente às importações, refreando seu liberalismo no campo comercial. Tais alterações iriam tornar a possibilidade de importações de bens classificados como não essenciais cada vez mais restrita, culminando na instituição do orçamento de câmbio em 1949. Todavia, tal ímpeto restritivo, é importantíssimo ressaltar, não se estendeu às remessas para o exterior associadas aos capitais estrangeiros aqui internalizados. A despeito do restabelecimento, a partir de 1947, dos limites máximos de 20% e 8% para os retornos de capital e remessas de lucros, juros e dividendos, respectivamente, como examinaremos com maior cuidado mais à frente, isso não impediu que as saídas de divisas associadas a essas rubricas praticamente duplicassem entre 1947 e 1948 e se mantivessem nesse novo patamar até o final do governo Dutra. Que razões teriam levado o governo Dutra a abrir mão de medidas mais enfáticas destinadas a conter a saída de recursos na conta de serviços fatores? A literatura, de forma consensual, aponta como principais explicações a ideologia liberal que norteava o governo Dutra, juntamente com a busca incessante de atrair capitais externos, dada a diminuta 5. De um total de US$ 730 milhões de reservas, o saldo de moedas conversíveis de que dispunha o Brasil, em 1946, era de apenas US$ 92 milhões, valor que se reduziu a US$ 33 milhões no ano seguinte (DIB, 1985, p. 20). [4] disposição do governo dos Estados Unidos em fornecer recursos por vias oficiais. “O Governo Dutra havia apoiado os projetos de desenvolvimento do país nas suas esperanças de captação de recursos externos através da assistência financeira oficial dos Estados Unidos e pelo afluxo de capitais privados internacionais” (VIANNA, 1987, p. 25). Estas perspectivas, entretanto, estavam destinadas a serem fraudadas. Com o fim da guerra, ocorre uma mudança irretorquível na postura dos Estados Unidos (ABREU, 1999, p. 375-7). Tal alteração, se não significou o abandono total da “política de boa vizinhança” marcou claramente os limites a que se propunha chegar o Governo dos Estados Unidos em relação ao Brasil. A hostilidade prioridade ao processo atribuída ao de desenvolvimento apoio econômico a industrial outras brasileiro regiões do e a globo demarcaram essa nova postura. Juntamente com a recusa em honrar os compromissos assumidos quanto ao fornecimento de material bélico, o Governo dos Estados Unidos deixava patente, de forma pública, já em 1946, sua “posição de considerar que as necessidades de capital dos países da América Latina deveriam ser supridas principalmente por fontes privadas de financiamento, devendo o Brasil ter presente, segundo o Governo norteamericano, que seu desenvolvimento dependeria, em última instância, da habilidade de criar clima favorável ao ingresso de capitais privados” (VIANNA, 1987, p. 25). Dessa forma, restou ao ex-ministro da Guerra de Vargas atrelar-se mais decididamente à tentativa de atrair os capitais privados internacionais como ponto de apoio para o desenvolvimento da economia brasileira. Sem descartar tal ponto de vista, nosso intuito aqui é tentar avançar um pouco mais nessa discussão, chamando determinantes. [5] a atenção para outros Visando tal propósito, este artigo encontra-se estruturado em três seções, além desta Introdução. Na seção seguinte apresentamos a evolução da (tão criticada) legislação de Dutra relativa ao capital externo e como o próprio governo procurava justificá-la, notadamente por meio dos Relatórios do Banco do Brasil. Na seção 3 empenhamo-nos em analisar se os números relativos à remessa de lucros e dividendos corroboram a ideia de que as tais remessas se constituíram de fato em fator importante no desequilíbrio externo do período. Finalmente, “à guisa de conclusão”, tentamos sistematizar algumas proposições discutidas ao longo do texto e apresentar nossa perspectiva sobre o tema. 1. A regulamentação do capital externo no governo Dutra: otimismo persistente O ordenamento jurídico sistemático regulamentando a entrada e saída de capital estrangeiro – de risco ou de empréstimo – no Brasil iniciou-se somente a partir de 1946. Até então, as diversas legislações promulgadas revestiam-se de caráter esporádico e assistemático, de acordo com as condições do mercado cambial (DHBB, vol. 1, p. 1067). O que havia até então era apenas uma lei do início do governo Vargas que estabelecia limites máximos para a remessa de lucros e dividendos e para a repatriação de capitais e outra lei que tratava da prioridade a ser concedida às remessas de lucros e dividendos, outorgada algumas semanas após a implantação do Estado Novo, mas não um disciplinamento mais amplo que cuidasse desse tema. Anteriormente, o Decreto-lei no 97, de 23/12/1937, além de reintroduzir o monopólio do Banco do Brasil na compra das letras de exportação e de valores transferidos do estrangeiro, regulamentava a ordem de prioridade para a distribuição das divisas da seguinte forma: [6] “Diariamente, depois de atendidas as necessidades da Administração Pública, as coberturas restantes serão distribuídas, observada a seguinte ordem de preferência: 1) – Importação de mercadorias e fretes de importação; 2) – Despesas no estrangeiro das empresas contratantes de serviços públicos; 3) – Dividendos e lucros em geral, e 4) – Outras remessas” (ALMEIDA FILHO, 1944, p. 65). Não deixa de ser interessante notar, por parte do governo federal, certa despreocupação com uma política de atratividade do capital estrangeiro. O posicionamento da remessa de lucros e dividendos em penúltimo lugar, à frente apenas das mal definidas e residuais “outras remessas” atesta que o Governo Vargas, no início do Estado Novo, emprestava pouca relevância ou via poucas possibilidades de contar com maior aporte de recursos externos para os investimentos imprescindíveis à economia brasileira. A primeira legislação consistente relacionada ao capital externo foi estabelecida por meio do Decreto-Lei no 9.025, de 27/02/1946, logo no início do governo Dutra. Esta lei tratou de estabelecer mecanismos de registro e controle e fixar limites para as remessas de rendimentos do capital estrangeiro. Assim, além do registro, agora obrigatório, desses capitais junto ao Banco do Brasil, afirmou-se o limite de 20% ao ano para o retorno do capital registrado e de 8% para as remessas a título de juros, lucros e dividendos. Tal decreto permitia a ampla liberdade de compra e venda de moeda estrangeira, por meio de bancos autorizados, sem que houvesse qualquer intermediação do Banco do Brasil, uma vez que o câmbio não estava centralizado. Eliminava-se também o instrumento de prova de venda de câmbio. Outorgava-se, por conseguinte, entre outras coisas, amplas facilidades para a efetivação de remessas de capitais privados para o exterior, num contexto de taxa de câmbio claramente valorizada. [7] Por que o governo Dutra decidiu implementar, pela primeira vez no Brasil, uma legislação específica para regular os fluxos de capitais externos? Uma das explicações pode ser encontrada em documento da FIESP/CIESP. Segundo tal fonte, tentou-se dar uma satisfação à opinião pública face a algumas denúncias então surgidas na imprensa. “Diante da polêmica surgida com as acusações de que grandes remessas de lucros eram enviadas para o exterior, com citações nominais de algumas companhias estrangeiras, foi baixado o Decreto-lei no 9.025, de 27 de fevereiro de 1946, determinando que a remessa de juros, lucros e dividendos não ultrapassaria 8% do valor do capital registrado, considerando-se transferência de capital o que exceder essa porcentagem” (FIESP/CIESP, 1971, p. 18) A manutenção da situação externa favorável até meados do ano, com a continuidade da ampliação das reservas, e a intenção de ampliar os incentivos para a entrada de capitais externos, fez com que o governo resolvesse tornar a legislação mais indulgente. Por meio do Decreto-Lei 9.602, de 16 de agosto de 1946, foram ampliadas as atribuições da SUMOC relativamente ao disciplinamento dos capitais externos, pois o artigo 6º do Decreto-Lei de sua criação já mencionava seus poderes para a “regulamentação nas áreas cambial e de capitais estrangeiros” (MALAN et al., 1980, p. 453). A partir de então, a SUMOC poderia, por meio de instrução, e "tendo em vista as condições do mercado de câmbio", alterar os percentuais - e mesmo reduzir a zero - do imposto sobre as operações de remessa ao exterior. Da mesma forma, ficava a critério da SUMOC definir, por meio de interpretação própria, os limites percentuais sobre a repatriação do capital e das remessas de lucro e dividendos. Ou seja, à SUMOC foi concedida a prerrogativa de, simultaneamente, alterar os limites máximos que poderiam ser remetidos [8] para o exterior sobre os capitais aqui aplicados e de fixar o imposto incidente sobre essas operações. Em virtude disso, dez dias depois, em 26 de agosto de 1946, a SUMOC editou a Instrução número 20, suspendendo as limitações do decreto anterior no que diz respeito aos retornos de capitais, juros, lucros e dividendos, dando início a um período – até o início de junho de 1947 – caracterizado “pelo regime de mais ampla liberalidade na movimentação de capitais” (Revista Conjuntura Econômica, fev/1948, p. 25). Para que isso ocorresse concorreram não só a avaliação relativa à possível perda de competitividade, mas também a perspectiva francamente otimista que se tinha naquele momento relativamente ao afluxo de recursos externos, tanto por parte do próprio governo quanto de diversos segmentos da sociedade, como exporemos adiante. A perspectiva de vir a se tornar um grande recebedor líquido de recursos dos Estados Unidos animou parcela expressiva de políticos, técnicos do setor público, empresários e estudiosos brasileiros no imediato pós-guerra. Acreditava-se que o Brasil, por ter desenvolvido uma "relação especial" com os Estados Unidos teria algum tipo de privilégio na obtenção de empréstimos por parte do governo norte-americano, afinal de contas, o Brasil havia sido o único país da América Latina a colaborar diretamente para o esforço de guerra por meio do envio de tropas para lutar na Europa contra os nazistas6. No início de 1946, quando foi preparado e publicado o Relatório Anual referente ao ano anterior, os técnicos do Banco do Brasil mostravam-se francamente otimistas face à situação das contas externas do país. 6. A Argentina, a título de contraexemplo, não só deixou de colaborar militarmente, como adotou uma atitude "suspeita" de neutralidade, pela qual foi posteriormente alvo de retaliações por parte dos Estados Unidos. [9] “O processo de crescimento das nossas reservas no exterior, em divisas e ouro, não sofreu solução de continuidade. Esses recursos, visto aqui pelo lado favorável, nos têm possibilitado o pagamento regular das nossas importações e a transferência dos lucros dos capitais estrangeiros invertidos no país. E tudo nos leva a crer que o Brasil se encontra convenientemente apto a satisfazer as solicitações de divisas que a iminente normalização do comércio internacional há de, sem dúvida, estimular. Foi essa posição cambial que nos permitiu, também, satisfazer, com pontualidade, os serviços da Dívida Externa Brasileira, na forma prescrita pelo Decreto-lei no 6.019 de 23 de novembro de 1943. Legitima-se, portanto, a presunção de que, para o futuro, não haverá hiato no rigoroso cumprimento de tais obrigações”. Não haviam ocorrido e nem se vislumbravam até então quaisquer perspectivas desfavoráveis no tocante aos fluxos de importações, remessas de lucros e pagamento dos encargos associados à dívida externa. Tal expectativa manteve-se inalterada um ano depois, confiando-se plenamente no efeito positivo da nova legislação atinente ao capital externo. Esta perspectiva otimista quanto ao impacto da nova legislação sobre os fluxos de capitais externos encontra-se muito bem expressa no Relatório Anual do Banco do Brasil relativo ao ano de 1946 (p. 40-1): “(...) a garantia de retorno ao capital estrangeiro investido no país, medida que, aliada à estabilidade política e ao saneamento da moeda, concorrerá para consolidar a confiança e aumentar a afluência de fundos do exterior para investimentos na indústria e na exploração de nossas riquezas potenciais.” Após mencionar dados referentes ao aumento das disponibilidades em divisas entre o final de 1945 e de 1946 – de 5.248 para 6.844 milhões de cruzeiros – o mesmo relatório (p. 42), salienta que: “Esses recursos, adicionados às reservas em ouro, legitimam a presunção de que o Brasil pode encarar [10] confiadamente a fase de intensa solicitação de divisas que se aproxima com a normalização do comércio internacional” (p. 42) Logo, é evidente que a perspectiva favorável de um ano antes se mantém intocada mesmo nesse momento, pois é importante lembrar que este relatório foi dado a público em abril de 1947, num momento, portanto, em que a crise cambial, com a redução drástica das disponibilidades de moeda conversível, já se mostrava em estágio relativamente avançado. Os responsáveis pelo Relatório, no entanto, atentam apenas para o valor total das divisas, sem levar em consideração que o aumento observado no ano de 1946 encontrava-se relacionado, exclusivamente, ao incremento das reservas em moeda não conversível, com decréscimos importantes já observados no tocante às moedas conversíveis. Esse otimismo expresso pelos técnicos do Banco do Brasil no pós-guerra também contaminava outros segmentos da sociedade brasileira. Pesquisa realizada pela revista “O Observador Econômico e Financeiro" sobre as perspectivas para o ano de 1946, envolvendo entrevistas com 1.000 pessoas, 700 “homens representativos de diversas categorias sócio-econômicas, em proporções adequadas e um grupo especial representando as classes diretamente interessadas no assunto pesquisado e que, por isso mesmo estariam inclinadas a dar opinião parcial. Neste último grupo foram consultados 50 banqueiros, 50 industriais, 50 comerciantes, 50 políticos e intelectuais, 50 fazendeiros e 50 funcionários públicos” (p. 19). A última questão formulada era: “É de opinião que o Brasil será procurado, nos próximos anos, pelo capital estrangeiro?” Os resultados apurados foram os seguintes: [11] Tabela 1 Pesquisa de opinião realizada pela revista O Observador Econômico e Financeiro: “É de opinião que o Brasil será procurado, nos próximos anos, pelo capital estrangeiro? Respostas Sim Não Não tem opinião % % % Banqueiros 84 4 12 Industriais 98 2 --Comerciantes 92 8 --Políticos e intelectuais 100 ----Fazendeiros 88 12 --Funcionários públicos 92 6 2 TOTAL 92,2 5,4 2,4 Fonte: Revista O Observador Econômico e Financeiro, jan/1946, p. 29 Tabela 2 Pesquisa de opinião realizada pela revista O Observador Econômico e Financeiro: “É de opinião que o Brasil será procurado, nos próximos anos, pelo capital estrangeiro? Respostas Sim Não Não tem opinião Classe A % 90 8,3 1,7 Classe B % 74,3 23,1 2,6 Classe C % 60,9 32,6 6,5 TOTAL % 72,6 23,7 3,7 “Classe A, de padrão socioeconômico elevado; classe B, de padrão médio; e classe C, de padrão mínimo”. Fonte: Revista O Observador Econômico e Financeiro, jan/1946, p. 25 Portanto, o otimismo quanto ao ingresso de capitais externos não se restringia apenas ao governo ou aos grupos liberais, mas se estendia a parcela expressiva da população brasileira. É de se notar, no entanto, que o otimismo decresce com o menor nível de renda das pessoas pesquisadas. Apesar desse detalhe, a conclusão dos autores da pesquisa é inequívoca: “Receptividade aberta para a colaboração do capital estrangeiro é o que nos revela a tabulação acima. Otimismo em relação ao interesse que ele possa ter no mercado brasileiro. Essas são as reações do grande público, essa massa heterogênea de produtores e consumidores, ricos e pobres, cultos e incultos, capital e [12] trabalho” (Revista O Observador Econômico e Financeiro, jan/1946, p. 24) Finalizando a reportagem, o articulista da revista, cujo posicionamento liberal é bastante conhecido, adverte que: “O Brasil parece ter vivido muitos anos um nacionalismo errado que quase afugentou o afluxo de capital para atividades nossas. Dentro de condições jurídicas deve ser permitida a expansão do capital de fora que tem direito a um mínimo de garantia, em nada ofensivo à nacionalidade nem aos brios da soberania. Pretender o contrário é ser jacobinista, é obrar em sentido contrário à marcha econômica. Os resultados constantes da tabela demonstram que o Brasil será escolhido para os futuros ‘investments’ do capital estrangeiro. É o que a maioria espera e deseja” (p. 29)7. Esta liberalidade no tocante às remessas de capitais, juntamente com as facilidades emprestadas às importações – herdada do interregno Linhares – provocaram uma aguda crise cambial já em meados de 1947, o que obrigou o Banco do Brasil, entre outras medidas, "a discutir os balanços das firmas estrangeiras para acertar o valor cuja remessa era permitida e para conceder quotas semanais, quinzenais ou mensais para remessas, a taxas já então fixas de maneira oficial" (DHBB, vol. 1, p. 1067). Nessas circunstâncias é que foi editada a Instrução 25, de 03 de junho de 1947, restabelecendo as restrições anteriores do Decreto-lei 9025 quanto aos percentuais máximos a serem remetidos para o exterior por parte das empresas estrangeiras aqui estabelecidas. Voltou-se a restringir a repatriação e as remessas do capital registrado a 20% e 8%, respectivamente e manteve-se a possibilidade de incorporação do lucro excedente a 8% ao capital registrado. 7. É interessante o uso das palavras “brios da soberania”, as quais fazem suspeitar que, na questão dos investimentos externos, encontra-se em jogo algo mais que a racionalidade econômica [13] Todavia, é essencial ressaltar que, mesmo com o restabelecimento dos percentuais máximos para repatriamento e remessas de juros, lucros e dividendos, concedeu-se posição privilegiada a estes itens no regime de prioridade então estabelecido. Logo após atendidos os compromissos do Governo e as “importações de artigos essenciais e de interesse nacional”, o Banco do Brasil ficou encarregado de fornecer cobertura cambial para a “remessa de royalties, juros, lucros e retornos de capitais nas condições estipuladas nos arts. 6º e 8º do Decreto-Lei no 9.025”. Seguiam-se, então, as “despesas de manutenção, viagem e produto de venda de passagens, as mercadorias não compreendidas na 1ª categoria”, e, no final da fila, os “auxílios, donativos e remessas para outros fins e os excessos sobre as percentagens fixadas no Decreto-Lei no 9.025, para juros, e retorno de capitais investidos no país” (MALAN et al., 1980, p. 456). Não obstante o quadro difícil que então se apresentava relativamente à situação do balanço de pagamentos, os técnicos do Banco do Brasil, certamente um dos corpos técnicos mais capacitados do Estado brasileiro naquele momento, contribuição ainda efetiva que relutava o em capital reformular externo sua podia visão sobre emprestar a ao desenvolvimento econômico do país e, principalmente, ao equilíbrio das contas externas. Ao descartar como totalmente infundados os boatos de que haveria desvalorização do cruzeiro, os responsáveis pelo Relatório Anual do Banco do Brasil de 1948, elencam os prejuízos que tal desvalorização poderia acarretar para a nação, com destaque para seu eventual impacto sobre os fluxos de investimentos internacionais: “A política econômico-financeira do Governo, restaurando a ordem financeira da Nação, visa o saneamento da moeda e não a sua desvalorização. Seria prejudicialíssima ao País uma desvalorização da moeda, mas aos [14] especuladores criaria clima favorável à obtenção de lucros fáceis. Causaria perniciosa elevação do custo de vida e nocivas repercussões sociais. Elevando o preço das matérias-primas importadas encareceria a produção nacional, reduzindo-lhe desse modo a capacidade de exportação. Afastaria a possibilidade de colaboração dos capitais estrangeiros, embaraçando assim o desenvolvimento econômico do País. Estimularia, porém, a tendência às especulações, possibilitando a uma minoria de privilegiados auferirem lucros excessivos, mediante a escravização da classe dos trabalhadores que constituem a maioria da Nação” (p. LXXI-LXXII). No que tange ao capital externo, há duas considerações a se fazer relativamente ao parágrafo acima. A primeira delas reporta-se ao peso significativo atribuído à colaboração dos investimentos estrangeiros, medida em que eventuais obstáculos poderiam a “embaraçar na o desenvolvimento econômico do País”. O segundo ponto que merece atenção refere-se ao papel que uma eventual desvalorização cambial teria sobre os fluxos de capitais externos naquele contexto específico da economia brasileira e mundial, constituindo-se um argumento importante contra a desvalorização cambial seu eventual impacto negativo sobre o afluxo de capitais estrangeiros. Tal postura só se modificou quando da mudança de governo. O Relatório do Banco do Brasil referente ao ano de 1950, mas elaborado e publicado no início do segundo governo Vargas, conquanto não se refira ainda às remessas de lucro e dividendos, faz críticas contundentes à forma como o governo anterior utilizou as divisas. “No começo do ano de 1950, o volume das reservas foi diminuindo, tendo, em fins de maio, baixado a 2.472 milhões [de cruzeiros]. Essa redução decorreu do resgate dos atrasados comerciais e da amortização, intempestiva e inconveniente, da dívida pública externa. Uma vez regularizada a situação dos atrasados, teria sido mais [15] útil, em face do agravamento da situação internacional, que os recursos aplicados no resgate antecipado dos títulos da dívida externa, tivessem sido aplicado na aquisição de matérias-primas essenciais e de bens de produção, tanto mais que a celeridade, na liquidação daqueles atrasados, havia provocado compressão excessiva no atendimento das necessidades mínimas dos setores vitais da nossa economia” (Relatório do Banco do Brasil de 1950, p. 31). Doravante, as perspectivas críticas tornam-se consensuais. No Relatório do Banco do Brasil referente ao ano de 1951, em perfeita consonância com o discurso de Vargas realizado no final desse ano, procede-se a uma crítica incisiva das ilegalidades cometidas pelas autoridades precedentes no que diz respeito às autorizações de remessas de lucros: “os antigos registros da Fiscalização Bancária obedeciam a dispositivos de um Regulamento e atos aditivos posteriores que se afastaram de expressas disposições legais” (p. 72). O desenvolvimento da crítica, no entanto, revela que a preocupação maior não se encerrava nos aspectos legais, mas envolvia uma apreensão quanto aos resultados sobre os fluxos de capitais vindouros. O problema essencial prendia-se ao fato de que, ao permitir a incorporação dos lucros não remetidos ao capital total das empresas estrangeiras, este montante tende a crescer rapidamente, fazendo com que, mesmo com o incremento substancial das transferências de lucros, este último valor como percentual do capital total tende a ficar cada vez mais diminuto. Este será o ponto-chave ao qual se ateve Vargas em seu famoso discurso de 31 de dezembro. Segundo Vargas, o montante de recursos carreado ilegalmente para fora do país, por conta dessa interpretação deturpada da legislação, era quase equivalente ao total de papel-moeda em circulação no Brasil e superior à importância “de que necessitamos para a nossa própria recuperação econômica”. [16] A mesma crítica quanto à condescendência excessiva da legislação brasileira relacionada à remessa de lucros, juros e royalties e seu impacto negativo sobre a economia nacional pode ser encontrada em artigo de 1957. O articulista (não identificado) da Revista Conjuntura & Desenvolvimento (julho/1957, p. 48-9) pontua que “as providências estabelecidas em leis, regulamentos e instruções permitiram, sob o título de ‘saída de capitais’ a drenagem para o exterior de um montante superior de muito às quantias em dólares que haviam realmente dado entrada no país, em períodos anteriores. Entre 1939 e 1952 a saída de capitais e rendas atingiu a 17.640 milhões de cruzeiros, enquanto o total de saldos positivos de nosso balanço de comércio acumulados no mesmo período, no valor de 6.136, não era suficiente para contrabalançar aquele movimento. Foi necessário dispor de outros recursos, desviados, deste modo, de aplicações mais produtivas, para satisfazer a corrente volumosa de descapitalização das inversões estrangeiras”. Dessa forma, um dos questionamentos fundamentais a respeito do papel dos capitais externos na economia brasileira acabou se concentrando, na discussão durante a década de 1950, no status que deveria se dar ao reinvestimento pensamento, de não lucros, podia os ser quais, segundo considerado uma algumas correntes contribuição efetiva de ao desenvolvimento econômico brasileiro8. Todavia, como mencionado anteriormente, tal discussão não faz parte do escopo de nosso trabalho, surgindo nesse momento apenas para indicar a mudança de postura observada entre o governo do político gaúcho e daquele que tinha sido seu Ministro da Guerra. O que nos interessa de fato é tentar articular uma resposta para a insistência demonstrada pelo Governo Dutra em manter-se irredutível no 8. Esta discussão a respeito de como considerar os reinvestimentos acabará, retornando, no início dos anos 60, na legislação que irá excluir, para efeito de remessa de lucros, a contabilização dos reinvestimentos. Ver a este respeito Gennari (1997). [17] tocante ao estabelecimento de restrições efetivas às remessas associadas ao capital externo. Tal questão se torna mais pertinente, quando sabemos que não houve semelhante cuidado no tocante à introdução de medidas mais restritivas em relação aos fluxos de comércio. Para tanto, nosso trajeto implica, em primeiro lugar, em demonstrar que mesmo os limites de 20% e 8% já mencionados não se constituíram, de fato, em qualquer tipo de restrição. Além da notória ineficiência do aparato fiscalizador e da carência de vontade política para implementar qualquer medida mais eficaz de controle, pretendemos demonstrar, na seção seguinte, que os valores envolvidos nas remessas se encontravam muito distantes dos limites máximos fixados pela legislação. Na seção três poderemos, então, avançar alguma tentativa de explicação alternativa. 3. Legislação liberal e remessa de lucros: o que dizem os números? Existe um certo consenso na literatura a respeito da liberalidade excessiva concedida pelo governo Dutra no tocante às remessas de lucros e dividendos por parte das empresas estrangeiras e como esse fato teria colaborado decisivamente para a aguda crise vivenciada pelo Brasil em seu balanço de pagamentos na segunda metade dos anos 1940 e início da década de 1950. Obviamente que as amplas possibilidades de importação mantidas até meados de seu governo também são ressaltadas, mas estas foram objeto de “absolvição”, na medida em que, a partir de 1947, restrições cada vez maiores foram sendo impostas, por meio de controles quantitativos. No entanto, essa “reviravolta contencionista” não se realizou no tocante aos fluxos de capitais, como vimos acima. Dessa forma, a associação do governo Dutra com uma política extemporaneamente liberal, a despeito das limitações impostas às importações de supérfluos, tornou-se dominante. [18] O inflamado discurso varguista do final de 31 de dezembro de 1951 contribuiu muito para que essa perspectiva se tornasse dominante. Vargas, nesse discurso, denunciou veementemente como um crime contra o "trabalho de milhões de brasileiros", a prática de incorporação da parcela dos lucros não remetida ao capital registrado, a qual teria se tornado possível mediante um regulamento expedido pela carteira de câmbio. Tal expediente, em franca oposição ao espírito da lei de 1946, teria ensejado, no entender de Vargas, uma evasão substancial de divisas para o exterior, com evidentes prejuízos para a economia brasileira9. Uma questão que pode ser aventada nesse momento diz respeito ao papel efetivo da legislação referente ao capital estrangeiro, implementada durante o interregno 1946-50, na crise do balanço de pagamentos do período. Os dados da tabela 3 podem nos ajudar a apreciar mais objetivamente esse papel. Tabela 3 Estoque de IED, Remessas de Lucros e Dividendos e Fluxo Líquido de IED: 1946-1950 US$ milhões Estoque de IED (1) 1946 1947 1948 1949 1950 Total 1.278 1.333 1.400 1.444 1.483 Lucros e Dividendos (2) (2)/(1) Lucros e Dividendos Remetidos (3) (3)/(1) IED Líquido (4) (4)/(1) 42 80 80 83 285 3,15% 5,71% 5,54% 5,60% 5,00%1 23 38 41 47 149 1,73% 2,71% 2,84% 3,17% 2,61%1 36 25 5 3 69 2,70% 1,79% 0,35% 0,20% 1,26%1 . Média Fonte: Dados Originais: Conjuntura Econômica, nov./1972, Apud Vianna (1987), p. 66 e Banco Central do Brasil 1 9. Com o fito de pôr um fim a este mecanismo, Vargas baixou o Decreto n o 30.363, em 03/01/1952, o qual, a par de manter as linhas básicas do Decreto-Lei no 9.025, restringiu, em seu artigo 2o, o direito a retorno apenas do capital "oriundo do estrangeiro". Os lucros que excedessem o percentual de 8%, conforme estabelecido no artigo 5 o, poderiam ser remetidos apenas nas mesmas condições impostas quanto à porcentagem e prazos ao retorno de capital (20% ao ano). [19] Como fica evidenciado nos dados acima apresentados, a remuneração média obtida pelos capitais externos existentes na economia brasileira alcançou, em média, uma rentabilidade diminuta, apenas 5%. Se considerarmos que parte desses rendimentos foi reinvestido, os percentuais de lucros e dividendos sobre o capital total das empresas estrangeiros remetidos para o exterior aumentam de forma consistente entre 1947 e 1950, mas de forma bastante modesta, de 1,73% para 3,17%, ficando, em média, em 2,61%. Não se trata, como é evidente, de uma remuneração elevada sob qualquer padrão de comparação internacional ou temporal10. Trata-se, também, como é óbvio, de percentual muito abaixo dos limites máximos fixados pela Lei 9.025, embora tenhamos em conta que não há aqui a diferenciação tão demandada pelos nacionalistas entre investimentos e reinvestimentos. O grande problema, de fato, refere-se à reduzidíssima entrada líquida de investimento externo direto no período em foco, como podemos vislumbrar nas duas últimas colunas da tabela 3. O total chega a apenas US$ 69 milhões de dólares, US$ 80 milhões a menos que o remetido a título de lucros e dividendos. Relativamente a este valor, consideramos que três observações são essenciais para que possamos ter uma medida mais adequada de sua importância relativa. A primeira diz respeito à comparação com os valores observados durante o Segundo Governo Vargas, a segunda refere-se ao confronte com outros itens que pesaram de forma muito mais significativa 10. Para efeito de comparação, em 2010 e 2011, últimos dados disponíveis, o estoque de IED no Brasil era de US$ 670,043 bilhões e US$ 688,588 bilhões, respectivamente. Considerando-se que o total de remessas de lucros e dividendos (rendas de investimento e investimento em carteira) foi de US$ 31,26 bilhões e US$ 39,97 bilhões nos mesmos anos, isso significa que o retorno do capital alcançou percentuais de 2,35% e 2,86%, respectivamente, sobre o estoque de capital externo internalizado na economia brasileira (Cf. dados fornecidos pelo Banco Central do Brasil). [20] no déficit externo do período e, por último, considerar o contexto internacional relativamente aos fluxos de IED. O já mencionado discurso de 31 de dezembro de Vargas a respeito das remessas de lucro tinha obviamente um interesse político muito bem determinado, buscar apoio e afirmar-se como líder dos setores nacionalistas da sociedade, notadamente após as resistências e críticas que assomaram após o projeto inicial para a criação da Petrobrás, encaminhado pelo presidente, sob os auspícios de sua Assessoria Econômica. A proposta “mais estatizante” encaminhada pela oposição fez com que Vargas ficasse na defensiva e procurasse, por meio de tal discurso, retomar a iniciativa no campo nacionalista. No entanto, um exame mais atento dos dados sobre remessas de lucros e dividendos entre os períodos Dutra e II Vargas mostra uma situação muito mais desfavorável para este último, conforme demonstrado nos dados da tabela 4 abaixo. Tabela 4 Estoque de IED, Remessas de Lucros e Dividendos e Fluxo Líquido de IED: 1946-1950 US$ milhões Estoque de IED (1) Lucros e Dividendos (2) (2)/(1) Lucros e Dividendos Remetidos (3) 8,86% 1951 1.546 137 6,04% 1952 1.640 99 7,76% 1953 1.700 132 5,31% 1954 1.751 93 1 Total 461 6,99% 1 . Média Fonte: Dados Originais: Conjuntura Econômica, nov./1972, do Brasil 70 14 94 53 231 (3)/(1) IED Líquido (4)/(1) 4,53% 0,85% 5,53% 3,03% -4 9 22 11 38 -0,26% 0,55% 1,29% 0,63% 1 3,48% 1 0,55% Apud Vianna (1987), p. 66 e Banco Central Se nos quatro anos do período Dutra, para os quais dispomos de dados, a diferença entre o total dos lucros e dividendos remetidos relativamente ao investimento líquido significou uma saída líquida de US$ 80 milhões, os quatro anos seguintes, durante a presidência de Vargas, implicaram uma “sangria” de US$ 193 milhões, mais que o dobro, portanto. [21] Quando levamos em conta o estoque de IED nos dois períodos e calculamos os indicadores pertinentes, constatamos um aumento tanto da “taxa de lucro” média das empresas multinacionais (de 5,0% para 7,0%) e da parcela do IED enviado para os acionistas em seus países de origem. Tal percentual expande-se, em média, de 2,61% para 3,48%. Quando analisamos os dados anuais percebe-se nitidamente que as variações abruptas observadas em 1952 e 1953 se compensam, ou seja, a imposição de medidas restritivas em 1952, a qual redundou em forte redução na remessa de lucros, foi seguida de forte liberalização a partir de janeiro de 1953, ensejando expressivo aumento das remessas. No conjunto, os dois anos confirmam a tendência de aumento das remessas que já vinha se formando nos anos anteriores, não havendo, portanto, durante o Segundo Governo observada Vargas, que, uma na efetiva verdade, interrupção não se da mostrava situação tão anteriormente dadivosa com os investidores externos, mas sim manutenção da mesma tendência anterior. Um outro ponto a ser abordado diz respeito aos demais itens deficitários, bem mais significativos que a remessa de lucros e dividendos. Quando cotejamos este valor de US$ 80 milhões com os demais itens deficitários nas contas externas brasileiras no período 1947-1950, torna-se inescapável a conclusão de que se trata de valor modesto. Se atentarmos para o saldo da conta de serviços não-fatores verificaremos que seu saldo negativo acumulado entre 1947 e 1950 ascendeu a US$ 810 milhões, mais de dez vezes superior. O destaque nesta conta cabe, sem qualquer sombra de dúvida, às despesas referentes a fretes, cujo saldo negativo alcançou US$ 530 milhões. Além da ausência de uma marinha mercante de longo curso e do maior volume de importações que se verifica no pós-guerra, há que se destacar também a cobrança que se tornou contumaz das taxas de sobre estadia, sobretaxas [22] cobradas nos fretes em virtude do tempo de demora para os navios desembarcarem em portos brasileiros, em virtude das deficiências de nossa infraestrutura portuária (VIANNA, 1987, p. 63). Um vislumbre das demais contas de serviços revela-nos despesas elevadas também no que tange aos serviços governamentais (US$ 108 milhões), viagens internacionais (US$ 64 milhões) e seguros (US$ 36 milhões). Um outro fator importante a contribuir para os problemas do balanço de pagamentos é apontado por Huddle (1964, p. 19). Trata-se da redução abrupta das exportações de produtos secundários na pauta de exportações brasileira (couros e peles, rícino, cera de carnaúba, fumo, borracha e tecidos de algodão). Estes produtos viram o valor total de suas exportações se reduzir em US$ 90 milhões entre 1947 e 1948. Somente as exportações de tecidos de algodão diminuíram US$ 44 milhões. Tal decréscimo encontravase relacionado, de um lado, à “tendência verificada nos governos estrangeiros para subsidiar e proteger suas próprias indústrias, cortando e até eliminando as importações” e, de outro, à queda dos preços em virtude da recuperação da produção nos anos pós-guerra. Em vista de tais valores, o saldo negativo relativamente à conta de remessas de lucros e dividendos perde muito de sua relevância, como voltaremos a examinar mais à frente. Finalmente, uma última questão que poderíamos atentar diz respeito à por que, então, dada a política liberal adotada, a afluência de capitais externos privados foi tão restrita? A resposta a tal questão deve ser buscada, como já fizeram outros autores, ao contexto da economia mundial nesse momento. Os anos imediatamente posteriores ao final da segunda guerra mundial até meados da década de 1950 caracterizaram-se por um reduzido volume de investimentos externos diretos privados em todo o mundo. No entanto, a [23] participação relativa do Brasil revelou-se bastante significativa, tanto no contexto mundial quanto latino-americano11. Referindo-se a um período que compreende apenas os dois anos finais do governo Dutra e a maior parte do Segundo Governo Vargas, as constatações de Vianna (1987, p. 67) são inequívocas: “Entre 1949 e 1954, o investimento líquido norteamericano em manufaturas no Brasil representou 53% do mesmo em todo o resto da América Latina e 17% do realizado no mundo (34% se excluirmos o Canadá). Nenhum outro país do mundo, à exceção do Canadá, recebeu investimentos em manufaturas no montante sequer próximo ao do aplicado no Brasil. Mesmo considerando os investimentos líquidos norte-americanos em todos os setores (o que inclui principalmente petróleo e mineração), apenas a Venezuela se aproximaria do total aplicado no Brasil” Não se trata, portanto, de falta de atratividade da economia brasileira face a outros países potenciais concorrentes, mas sim de um contexto internacional desfavorável no qual as empresas privadas ainda se encontram reticentes quanto a ampliar sua participação no mercado mundial, dadas as incertezas ainda vigentes. 4. À guisa de conclusão Os dados apresentados por Piketty (2014, p. 121-3) a respeito do papel destacado para a economia do Reino Unido e da França da renda líquida recebida do exterior durante a Belle Époque são eloquentes. Ao longo do século XIX e até o início do século XX, ambos os países acumularam um montante de ativos em relação ao restante do mundo até então nunca alcançados. Segundo seu levantamento, o Reino Unido possuía ativos 11. No período posterior (1956-1961) há uma ampliação substancial dos influxos de IED em termos de valores absolutos, não obstante a redução no porcentual desses investimentos alocados para o Brasil proporcionalmente ao total da América Latina e mundial. Ou seja, há, na segunda metade dos anos 1950, uma perda relativa de atratividade do Brasil. [24] externos equivalentes a quase dois anos de sua renda nacional. Considerando que a remuneração média desses ativos ficava em torno de 5% ao ano, isso equivale a dizer que os britânicos, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, recebiam lucros, dividendos, juros e aluguéis correspondentes a cerca de 10% de sua renda nacional. A França, segundo maior império colonial, por sua vez, possuía, na mesma época, posses no exterior correspondentes a mais de um ano da renda nacional, permitindo que seus cidadãos incorporassem à renda produzida dentro do país mais 5% a título de remuneração pelos seus ativos externos. Tal situação permitia a ambos países financiar um déficit comercial correspondente a cerca de 1% a 2% da renda nacional e, ainda assim, continuar ampliando sua posição patrimonial externa. “Ou seja, o resto do mundo trabalhava para que o consumo das potências coloniais crescesse, ao mesmo tempo que ficava cada vez mais endividado perante essas mesmas potências” (PIKETTY, 2014, p. 123). Todavia, os eventos dramáticos que abalaram a economia mundial nas quatro décadas seguintes – as duas guerras mundiais, a grande depressão da década de 1930 e o processo de descolonização - fizeram desaparecer esses enormes estoques de ativos externos, de forma que, nos anos 1950, as posições patrimoniais líquidas dessas duas nações estava próxima de zero12. Voltando ao período precedente a 1914, é interessante observar que essa constatação de Piketty em trabalho recente se coaduna de forma inequívoca com outra observação, feita há quase meio século, por Goran Ohlin, quando este examinava de forma crítica a contribuição do capital externo para o . Segundo os dados constantes de seu anexo estatístico, o estoque de capital externo líquido britânico correspondia a 176% da renda nacional em 1910, recuando para -6% em 1950, enquanto que os mesmos percentuais para a França foram 123% e 3%, respectivamente. 12 [25] balanço de pagamentos dos países subdesenvolvidos nas décadas circundantes ao início do século XX. “A tão propalada Idade de Ouro dos investimentos estrangeiros, que teria ocorrido antes de 1913, presenciou efetivamente um longo e continuado desenvolvimento de aplicações financeiras inglesas e francesas no além-mar, mas é oportuno notar-se que a receita desses investimentos, durante a maior parte do período, era superior ao montante líquido da exportação de capitais. O grande movimento de fundos, por conseguinte, era em direção contrária, isto é, rumo aos países investidores. E eles aplicavam uma parte – apenas uma parte – de seus lucros em novos investimentos” (OHLIN, Goran. Aid and indebtdeness. Paris, 1966, p. 37. Apud GASPARIAN (1973, p. 113). Não se trata de novidade, portanto, a apuração de saldo líquido negativo para o balanço de pagamentos dos países devedores quando computadas as entradas e saídas de capitais externos e suas remunerações. O que chama a atenção, à primeira vista, no caso brasileiro entre 1947 e 1954, é talvez a “precocidade” com que esse saldo teria se tornado negativo e o montante relativamente elevado que essa diferença desfavorável assumiu nesse período. Quando examinamos o caso brasileiro, percebemos que esse custo relativamente elevado em termos de divisas relacionado à remessa de lucros é anterior à fase mais intensa do processo de substituição de importações, que ocorre a partir de meados da década de 1950. Já antes disso, no imediato pós-guerra e início dos anos 1950, é possível constatar um balanço negativo entre o montante de divisas a sair do país por meio das remessas de lucros e dividendos e a entrada de novos investimentos externos. O fato é que o montante de capital externo ingressado no Brasil desde o século XIX até a Segunda Guerra Mundial, juntamente com as condições específicas do pós-guerra – reduzido nível de novos investimentos externos – [26] é que se constitui, em última instância, como principal responsável por essa situação. Em nosso entendimento, o papel da liberalidade da legislação ou mesmo da valorização cambial constituem fatores meramente acessórios, uma vez que o percentual relativo aos lucros e dividendos saídos do país nesse período relativamente ao estoque de IED revelam-se reduzidos. Parece-nos óbvio que uma eventual legislação mais restritiva no tocante às remessas de lucros poderia ter atenuado a saída, mas certamente, não de forma expressiva e a um enorme custo político. É evidente que oitenta milhões de dólares13 colaborariam para minimizar os problemas das contas externas, mas essa ajuda seria muita diminuta face ao risco que uma eventual política de enfrentamento com os investidores externos e o governo dos Estados Unidos poderia conduzir. Que o digam Vargas e Goulart quando tentaram, de forma temerária proceder a esse tipo de confrontação. Vargas foi obrigado a recuar um ano depois e Goulart só se decidiu por tal medida em janeiro de 1964, quando todas suas pontes com as forças conservadoras já haviam sido queimadas e sua busca de apoio junto às forças nacionalistas e de esquerda era o único caminho possível. A relação custo/benefício, portanto, era muito alta. Restava, portanto, se aferrar ao discurso da expectativa de ampliação substancial dos fluxos de investimentos externos, o que se afigurava totalmente consistente com o posicionamento ideológico do governo Dutra e com o quadro internacional. Duas outras restrições, a nosso ver, condicionaram a postura “mais passiva” do Governo Dutra a esse respeito. Em primeiro lugar, o amplo apoio de parcela importante do empresariado e da opinião pública – o apoio efetivo da burocracia estatal é questionável, dada a abrupta mudança de perspectiva dos técnicos do Banco do Brasil com a mudança de governo – 13. Equivalente a US$ 850 milhões em dólares de 2015. [27] à política de liberalização financeira, vista como necessária e benigna para a economia brasileira naquele momento, ao contrário do que ocorreu na década seguinte. A semelhança com o processo de privatização nos anos 1990 e a reversão do posicionamento da opinião pública a esse respeito na década seguinte parece-nos muito ilustrativa. Para finalizar, uma outra restrição encontra-se relacionada ao poder de barganha de que dispunha a administração Dutra nesse momento relativamente aos investidores externos e ao seu posicionamento ideológico. Os benefícios e o poder de barganha possíveis de serem usufruídos pelos países periféricos relativamente ao capital externo são tanto mais amplos quanto mais acirrada for a competição intercapitalista entre os países centrais e particularmente a disputa oligopolista entre as empresas transnacionais destas nações. Todavia, a utilização em maior ou menor grau desta maior margem de manobra depende da correlação de forças políticas internas. Uma identificação maior destas forças políticas com o diagnóstico e receituário liberal tende a divisar com maior ênfase os aspectos positivos das inversões externas e a emprestar menor importância aos seus aspectos deletérios. Vistos como intrinsecamente virtuosos, os capitais externos dificilmente serão alvo de restrições ou imposição de quaisquer restrições que venham a atingir seus interesses. Uma correlação de forças políticas menos identificada com a ortodoxia tenderia a conceder maior realce aos aspectos prejudiciais do capital estrangeiro e, nesse sentido, a procurar formas de restringir sua atuação e/ou impor condições que melhor atendam aos interesses do país, na perspectiva deste grupo. Há uma diferença importante entre um alinhamento acrítico e aprazível ao capital externo e uma postura de negociação, que envolva eventualmente – [28] dadas as possibilidades colocadas pelo contexto externo – a imposição de determinadas exigências e condições, visando a busca de maximização dos interesses do país, segundo a ótica do governante de plantão. Nesse sentido, os anos imediatamente posteriores ao final da Segunda Guerra Mundial evidenciam a situação extremamente frágil em que se encontra o Governo Dutra. Como podemos vislumbrar na tabela 5 abaixo, a hegemonia do Canadá e dos Estados Unidos no total dos investimentos externos sediados em território brasileiro revela-se irrefutável. [29] Tabela 5 Capitais estrangeiros invertidos em firmas comerciais, companhias e sociedades do País, registrados até 31/12/50 Países credores Em moeda estrangeira Valor em moeda Equivalência em moeda estrangeira nacional Alemanha --América do Norte US$ 389.651.614 Argentina M$N 1.047.807 Áustria --Bélgica Fr.Blg. 64.725.253 Bolívia --Chile --Dinamarca --Equador --Espanha --França Fr.Fr. 173.420.310 Holanda Fls. 5.769 Índia --Inglaterra ₤ 38.434.205-10-10 Itália --Luxemburgo --Noruega --Peru --Portugal Esc. 13.091.704 Suécia Sw.Kr. 2.906.522 Suíça Fr.Sw. 11.100.383 Tanger --Uruguai O$U 639.934 Diversos --Total Fonte: Relatório do Banco do Brasil de 1950, p. 162 --7.294.278.222 1.404.062 --24.453.201 ----------9.277.986 28.349 --2.014.567.319 --------8.603.867 10.524.224 48.793.953 --5.829.481 --9.417.760.664 Em moeda nacional 881.779 10.497.709.030 61.729.848 217.041 785.947.641 4.287.737 3.097.149 7.206.733 4.009.840 7.441.603 806.143.816 46.500.761 21.997 2.353.827.554 16.733.845 20.674.913 823.716 269.704 117.441.816 54.520.186 201.500.032 5.812.573 721.357.904 327.000 15.718.484.218 [30] Valor total % Valor total em em dólares cruzeiros 881.779 47.104 0,00% 17.791.987.252 950.426.669 70,78% 63.133.910 3.372.538 0,25% 217.041 11.594 0,00% 810.400.842 43.290.643 3,22% 4.287.737 229.046 0,02% 3.097.149 165.446 0,01% 7.206.733 384.975 0,03% 4.009.840 214.201 0,02% 7.441.603 397.522 0,03% 815.421.802 43.558.857 3,24% 46.529.110 2.485.529 0,19% 21.997 1.175 0,00% 4.368.394.873 233.354.427 17,38% 16.733.845 893.902 0,07% 20.674.913 1.104.429 0,08% 823.716 44.002 0,00% 269.704 14.407 0,00% 126.045.683 6.733.210 0,50% 65.044.410 3.474.595 0,26% 250.293.985 13.370.405 1,00% 5.812.573 310.501 0,02% 727.187.385 38.845.480 2,89% 327.000 17.468 0,00% 25.136.244.882 1.342.748.124 100,00% Como podemos verificar nos dados acima dispostos, mais de 70% do estoque total de capital externo internalizado no Brasil em 1950 corresponde a investimentos provenientes da América do Norte – considerando a enorme participação relativa e a íntima relação dos interesses da Brazilian Traction com os Estados Unidos –, como seria de se esperar, dada a situação de carência vivenciada pelas economias europeias. Nesse sentido, a posição de que desfrutava o Governo Dutra para eventualmente assumir uma postura mais “agressiva” era bastante frágil sob este aspecto. Referências Bibliográficas ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ALMEIDA FILHO, João Batista Pereira de. “Apontamentos sobre o controle cambiário”. Revista Industrial de São Paulo, n. 1 (1): 65-66, dez/1944. BANCO DO BRASIL. Relatório Anual. Vários anos. COSTA, Valeriano Mendes Ferreira. Política de desenvolvimento econômico e crise institucional no segundo governo Vargas: 1951-1954. São Paulo, 1996. Tese de doutorado apresentada à FFLCH-USP. DIB, Maria de Fátima Serro Pombal. Importações brasileiras: políticas de controle e determinantes da demanda. Rio de Janeiro: BNDES, 1985. FIESP/CIESP. Investimentos estrangeiros no Brasil: legislação, estímulos e desestímulos. 2ª ed. São Paulo: Serviço de Publicações FIESP/CIESP, 1971. 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