“Porque a perda de alguém nos faz sofrer?” “Todo mundo é capaz

Propaganda
“Porque a perda de alguém nos faz sofrer?”
“Todo mundo é capaz de suportar uma dor, com exceção de quem a sente.”
William Shakespeare
Dayene Batista Ferreira1
Resumo
O presente trabalho aborda a singularidade da condição de dor no contexto hospitalar, e como
a escuta é fundamental no processo análise. O estudo foi realizado a partir da análise de um
caso de um paciente com Insuficiência Renal Crônica (IRC) atendido na UARC (Unidade de
Assistência ao Renal Crônico) do Hospital da Baleia.
Palavras chaves
Insuficiência Renal Crônica, Recordar, Repetir, Escuta, Luto, Dor.
Introdução
Os rins são órgãos de grande importância para o corpo, pois são responsáveis
pela filtragem e eliminação de substâncias tóxicas no organismo humano.
Quando há uma perda dessa função ocorre o que é chamado de Insuficiência
Renal Crônica (IRC), que é uma doença caracterizada pela perda progressiva e
irreversível das funções renais. (Maciel, apud Angerami, 2002, p.57)
O paciente renal crônico passa por uma brusca mudança de vida, deve se
adaptar a uma nova situação, além de seguir um tratamento rígido, que
consiste em restrições alimentares e líquidas, controle médico com frequência,
e também fazer o procedimento de diálise.
Com relação à diálise, Maciel (apud Angerami, 2002, p.61) cita dois tipos: a
diálise peritoneal (DP) ou CAPD que é realizada pelo próprio paciente através
de uma membrana semipermeável natural, e que elimina as substâncias
tóxicas do organismo, e a hemodiálise, onde realiza um procedimento diferente
¹ Aluna do 9º período de psicologia da Faculdade FEAD – Centro de Gestão Empreendedora; Com supervisão da
Psicóloga Daniela Silva Moreira (Hospital da Baleia).
1
do anterior, pois, neste caso o paciente deve ir a UARC (Unidade de
Assistência ao Renal Crônico) três vezes por semana por aproximadamente
quatro horas/dia devido à exigência do uso de máquinas especiais. Neste
método ocorre o processo de filtragem do sangue, através do bombeamento
para dentro da máquina onde há uma membrana artificial com uma solução
que elimina as substâncias tóxicas e o excesso de líquido.
Todas essas exigências do tratamento causam diversos transtornos, que
refletem diretamente na qualidade de vida dos pacientes, que expõem seus
recursos emocionais de várias formas devido às situações de perdas
decorrentes do adoecimento, o que torna necessário e importante a atuação do
psicólogo junto a esse paciente.
O psicólogo hospitalar diante de todos esses problemas que afetam o paciente
irá atuar com o intuito de ajudá-lo a lidar com a situação ao qual está vivendo e
também a diminuir o sofrimento físico e psíquico causado pela doença, além de
auxiliá-lo na adesão ao tratamento. Na maioria dos casos o atendimento
hospitalar ocorre na própria máquina, interferindo na privacidade do paciente, o
que não impede que o psicólogo estabeleça com ele um vínculo de confiança e
empatia, e por meio da escuta proporcionar a colocação de seus sentimentos.
Através da escuta o analista deve ter um olhar atento, de forma particular, e
escutar o paciente na sua totalidade, pois, às vezes o que é trazido como
queixa diz respeito a questões pessoais e não a sua doença. Tais questões
podem estar relacionadas a perdas afetivas as quais ainda não foram
elaboradas, deixando-o preso a repetições compulsivas e que exigem um
processo de luto.
Ao falar de perda afetiva, pode-se também relacionar a perda da pessoa
amada, e quando esta ocorre de forma inesperada pode causar no paciente o
que é chamado de dor.
O QUE DÓI MAIS: DOR FÍSICA OU DOR DE AMAR?
O psicólogo hospitalar atua com intuito de dar oportunidade para que o
paciente expresse seus sentimentos e descubra qual a melhor forma de lidar
2
com eles e com os limites que a doença lhe impôs, e também dar espaço para
que questões emergentes sejam trabalhadas.
É preciso considerar que o hospital é um ambiente atípico e o psicólogo deve
estar atento ao surgimento de outras possíveis demandas, capazes de causar
um sofrimento ainda maior, afetando o aspecto psíquico do paciente. A equipe
atuante no hospital espera que o paciente se queixe apenas da sua doença
(demanda objetiva), focando no aspecto físico, e pouco se preocupam com o
que ele diz a respeito da sua subjetividade e de seu contexto.
O paciente hospitalizado se depara com sentimentos que até então não tinha
se dado conta, e perde várias referências do seu mundo externo, o que o leva
a perceber então, uma necessidade de ajuda do outro. (Alamy, 2005, p. 17)
Segundo Mendonça (apud Alamy, 2005, p. 6), é normal que tais sentimentos
apareçam depois de sua própria reflexão sobre sua história ainda não
elaborada ou revivida. Neste momento se percebe a necessidade do paciente
de ser escutado, sem às vezes ser questionado, uma vez que, o que lhe falta é
este espaço para falar e ser escutado sobre algo que não esteja relacionado à
sua doença.
O processo de análise está sempre em construção, e esta, depende da relação
estabelecida entre analista-paciente. Quando algo que incomoda o paciente
ainda não foi trabalhado, ele repete muitas vezes sem se dar conta do que está
repetindo. Freud em seu texto Recordar, repetir e elaborar (1914, p. 82)
salienta que, “enquanto o paciente se acha em tratamento, não pode fugir a
esta compulsão a repetição; e, no final, compreendemos que esta é a sua
maneira de recordar”.
O paciente ao repetir, demanda trazer à lembrança fatos da vida real, e da sua
realidade psíquica. Quando ele apresenta em seu discurso uma intensidade da
repetição, tal discurso aponta que há uma necessidade de ser trabalhado e
representado por ele (paciente). Caso isso não ocorra o paciente irá passar por
um processo de luto que paralisa sua vida por um longo período de tempo.
3
Em Luto e melancolia (1914, p. 124), Freud define o luto como “reação a perda
de um ente querido, a perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um
ente querido”. A perda da pessoa amada leva o sujeito a perder o interesse
pelo mundo externo, - que para ele se torna pobre e sem sentido -, e a
capacidade de investir em outra pessoa para colocá-lo no lugar do objeto
amado.
De acordo com Nasio (1997, p. 87), no trabalho de luto é preciso que o sujeito
faça um desinvestimento afetivo do seu objeto de amor, e retire as lembranças
relacionadas a este objeto, ou seja, é necessário retirar o excesso desse afeto,
colocando-o
entre
outras
representações.
Durante
o
período
de
desinvestimento o sujeito passa a conviver com o fenômeno da dor.
Falar simplesmente em dor não significa que esteja falando da dor do luto. A
dor do luto aqui apresentada não quer dizer da perda pela morte, mas de uma
pessoa com a qual se está intimamente ligada. A dor segundo Nasio (1997,
p.66) “é uma reação à perda do amado, à perda do seu amor, à perda da
minha integridade corporal, ou ainda à perda da integridade de minha imagem”.
Freud (apud Nasio,1997, p. 165) faz uma distinção das três etapas da dor, que
é a dor física onde o sujeito faz um investimento do representante psíquico do
local onde ocorreu uma lesão no corpo e desinveste do mundo externo. A dor
psíquica, que é a dor da separação, aqui há uma mudança de investimento,
que agora passa a ser o amado perdido. E finalmente a última etapa, que é a
dor luto, que não é uma dor da separação, mas uma dor de amar, pois, o que
dói não é o fato da separação, mas o excesso de investimento e da
representação marcante nesse objeto perdido.
Para ilustrar o trabalho aqui exposto será utilizado um caso clínico, de um
paciente que foi atendido na UARC (Unidade de Assistência ao Renal Crônico
– Hospital da Baleia), sob a orientação da Psicóloga Daniela Moreira com base
na abordagem psicanalítica, no período de março a junho de 2011.
Caso Clínico:
4
Paciente N. de 49 anos, divorciado. N. tem Insuficiência Renal Crônica e
hipertensão arterial. Faz hemodiálise há sete anos (desde 2004), desde então
foi internado cinco vezes, dentre elas, duas vezes chegou a ir para o CTI, com
um quadro de saúde grave. Segundo ele reage bem e demonstra aceitação em
relação ao tratamento. “Já estou conformado em ter que fazer hemodiálise”.
(Sic), e a sua queixa é o fato de não conseguir dormir bem. No decorrer dos
atendimentos o paciente N. relata sua história de vida, e não se queixa de sua
doença. Fala sobre suas três separações, e a falta de apoio familiar diante da
situação de adoecimento. Ele relata que conheceu sua ex-esposa na UARC
(Unidade de Assistência ao Renal Crônico – Hospital da Baleia), e teve um
relacionamento de três anos e meio. Afirma que a separação ocorreu de forma
inesperada, “Ela foi na delegacia e me denunciou de ter ameaçado ela, sem
primeiro conversar comigo para resolver de outra maneira, se tivesse
conversado estaríamos juntos até hoje”. (sic) Diz ter ficado surpreso e
revoltado com a separação. “Estou revoltado com ela, dei tudo, realizei o sonho
dela que era o de casar, cuidei dos filhos dela, coisas que outro homem não
faria, e ela fez isso comigo”. (Sic). Durante vários atendimentos o paciente N.
traz como queixa principal, o fim do casamento que ocorreu há noves meses.
Este relato se tornou frequente em vários atendimentos. A partir da freqüência
e da forma em que ocorre esse discurso percebe-se que essa questão (fim do
casamento) ainda não está bem elaborada para ele e encontra dificuldades na
elaboração da mesma, uma vez que a doença e o tratamento não aparecem
como queixa principal em seu discurso durante os atendimentos realizados.
No caso deste paciente a dor de amar dói mais que a dor física, pois em todos
os atendimentos sua queixa principal é a última separação e em nenhum
momento se queixa da doença e do tratamento. Considera-se a sua dor de dor
de amar porque ele ainda está em trabalho de luto da perda da pessoa amada,
o que dói não é simplesmente a separação, mas o fato de ter feito um grande
investimento afetivo nesta pessoa.
Conclusão
Após a experiência de atender este paciente referido no caso clínico, foi
possível observar que a atuação do psicólogo num ambiente hospitalar não
5
consiste apenas da queixa da doença. É possível o surgimento de demandas
que não dizem respeito apenas a doença do paciente, mas também a uma
demanda subjetiva, pois às vezes aquele é o único espaço onde o sujeito tem
para falar e ser escutado.
É preciso estar atento ao que o paciente traz, pois muitas vezes a dor de
perder uma pessoa que ama é muito pior do que a dor física. A dor
apresentada pelos pacientes deve ser escutada de forma particular, pois cada
um tem uma representação diferente no seu modo de sentir.
Algumas vezes cheguei a me questionar se deveria desistir deste paciente
pensando que talvez ele não apresentasse nenhuma demanda de atendimento
psicológico, no entanto percebi que se trata de um caso atípico, o que nos
demonstra outra forma de aprendizado. Nosso instrumento de trabalho consiste
de nossa própria subjetividade, sendo, portanto, impossível fazer com que
todos os atendimentos sejam iguais.
A partir disso ressalto a importância da escuta, que é o principal instrumento de
trabalho do analista, enfatizando que ela pode ser tão importante quanto o
medicamento que o paciente precisa.
Este trabalho foi para mim um desafio, mas também uma oportunidade para
ampliar os meus conhecimentos tanto no que relaciona a atuação no ambiente
hospitalar quanto aos possíveis fenômenos que surgem no decorrer dos
atendimentos, e principalmente despertando o meu interesse para atuar na
área da Psicologia hospitalar.
Referências Bibliográficas
ALAMY, Susana. A prática hospitalar – como é a atuação do psicólogo?
Psicópio – Revista Virtual de Psicologia Hospitalar e da Saúde, Belo Horizonte,
v.1,
n.1,
p.17
jan.-jul.
2005.
Disponível
em:
http://geocities.yahoo.com.br/revistavirtualpsicopio. Acesso em: 16 jun. 2011
6
MACIEL, S. C. “A importância do atendimento psicológico ao paciente renal
crônico em hemodiálise”, in Angerami, V. A. (org.). Novos rumos da Psicologia
da saúde. São Paulo: Ed. Pinheira, 2002.
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar, vol. XII da ESB. Imago: Rio de
Janeiro, 1976.
_______. Luto e melancolia, vol. XIV da ESB. Imago:Rio de Janeiro, 1980.
MEDONÇA, Lucinda Moreira dos Santos. O sujeito, o desamparo e o analista.
Psicópio – Revista Virtual de Psicologia Hospitalar e da Saúde, Belo Horizonte,
v.1,
n.1,
p.6
jan.-jul.
2005.
Disponível
em:
http://geocities.yahoo.com.br/revistavirtualpsicopio. Acesso em: 16 jun. 2011
NASIO, J.D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
NAZIO, J.D. A dor de amar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
7
Download