» Rev Bras Neurol, 46 (4 ): 7-11, 2010 Seção de NEUROPEDIATRIA Perfil de crianças com Mielomeningocele em hospital de referência - Rio de Janeiro. Profile of children with Myelomeningocele in a Reference Hospital – Rio de Janeiro - Brazil Miriam Ribeiro Calheiros de Sá 1, Marco Orsini 2, Lilia Abelheira 3, Marzia Puccioni Sohler 4 Resumo Introdução. A mielomeningocele (MMC) é uma das formas de disrafismo que resulta do defeito de fechamento da porção posterior do tubo neural, durante a quarta semana de gestação. Objetivos. Traçar o perfil epidemiológico dos recém-nascidos portadores de (MMC) no IFF/FIOCRUZ, encaminhados ao setor de Fisioterapia Motora. Material e Métodos. Estudo transversal, descritivo, institucional, no qual foram analisados prontuários de pacientes portadores de (MMC), entre janeiro de 2007 e junho de 2008. Resultados e Discussão. Houve predomínio do sexo masculino. Em 14 criancas detectou-se a presença de hidrocefalia. Quatro crianças apresentaram outras malformações do sistema nervoso, como disgenesias do corpo caloso. A maioria dos pacientes apresentou alterações ortopédicas, sendo a mais freqüente o pé torto congênito. Os maiores problemas estão relacionados com a possibilidade de levantar, deambular e controlar voluntariamente os sistemas vesical e intestinal. Conclusão. O tratamento de crianças com mielomeningocele requer intervenção clínica e cirúrgica precoces, além de tratamento reabilitativo. Palavras-chave: mielomeningocele epidemiologia Abstract Introduction. Myelomeningocele (MMC) is one of the forms of dysraphism that results from a defect in the closure of the posterior portion/section of the neural tube, during the fourth week of gestation. MMC affects the nervous, musculoskeletal and urogenital systems. Objectives. To map the epidemiological profile of the newborn with MMC in the IFF/FIOCRUZ, sent to the Physical Therapy service. Material and Methods. A transversal, descriptive and institutional study, in which the medical records of patients with MMC from January 2007 to June 2008 have been analyzed. Results and Discussion. There was predominance of the male sex. In 14 children the presence of hydrocephalus was detected. Four children presented other malformations of the nervous system, such as corpus callosum dysgenesis. The majority of the patients showed orthopedic changes, the most frequent of which were congenital foot deformities. The greatest problems were related to the possibility of standing, walking and voluntarily controlling the bladder and bowel systems. Conclusion. The treatment of children with MMC requires early clinical and surgical intervention, as well as rehabilitation treatment. Keywords: Malformations; Myelomeningocele; epidemiology; physical therapy; rehabilitation; early intervention. Serviço de Fisioterapia Motora – Instituto Fernandes Figueira |FIOCRUZ – RJ 1 2 Fisioterapeuta do Serviço de Neuropediatria; Instituto Fernandes Figueira – Fiocruz; Graduando em Medicina – Universidade do Grande Rio; Programa de Pós3 4 Graduação em Neurologia|Neurociências – HUAP – Universidade Federal Fluminense; Fisioterapeuta – UNISUAM; Neurologista, Departamento de Neurologia, UNIRIO; Serviço de Líquor, HUCFF, UFRJ. Endereço para correspondência: Miriam Calheiros e-mail: [email protected] Revista Brasileira de Neurologia » Volume 46 » No 4 » out - nov - dez, 2010 » 7 Sá MRC, Orsini M, Abelheira L, Sohler MP Introdução Os defeitos do tubo neural (DTN) são responsáveis pela maioria das anomalias congênitas do sistema nervoso central (SNC). A mielomeningocele ocorre entre a terceira e quarta semanas de desenvolvimento embrionário (Norrlin et al., 2003), e, estima-se que uma em cada 800 crianças brasileiras nascidas vivas apresente esta anomalia (Filguerias e Dytz, 2006). Estudos populacionais para nascidos com mal formação congênita tem sido limitados a relatos de instituições hospitalares, tais como aqueles encontrados no ECLAMC (Latin American Collaborative Study on Congenital Malformations). Estudos realizados entre 1995 a 1999 em instituições que participam do ECLAMC, apontam um percentual de 3,1% de neonatos que apresentam algum tipo de mal formação congênita (Costa et al., 2006). A Espinha Bífida|Mielomeningocele (MMC) é uma das mais freqüentes malformações congênitas no mundo, sendo responsável por importantes sequelas neurológicas. (Hisaba et al., 2003). Sua etilogia é multifatorial, envolvendo fatores genéticos e ambientais. A real dimensão do problema permanece ainda desconhecida, em vista da inexistência de levantamentos de abrangência nacional, e resultados divergentes dos estudos de prevalência (Filguerias e Dytz, 2006; Ogata et al., 1992). Segundo dados coletados nas onze maternidades acompanhadas pelo Estudo Latino-Americano Colaborativo de Malformações Congênitas (ECLAMC), o Brasil situa-se em quarto lugar na prevalência de espinha bífida dentre os 41 países pesquisados (Elias et al., 2008). Costa et al. (2006), em estudo envolvendo prevalência de mielomeningocele e fatores associados, identificaram um total de 162 casos de mal formações congênitas em 9286 nascidos|vivos, em maternidades do Rio de Janeiro de julho de 1999 a março de 2001. Do total de casos, o sistema nervoso central apresentara uma maior freqüência de eventos, com 7 casos de espinha bífida, 5 de hidrocefalia, 3 de encefalocele e 1 de microcefalia. Crianças com MMC podem apresentar incapacidades crônicas graves, sendo que as alterações motoras e sensitivas variam conforme o nível da lesão e o grau de comprometimento da medula espinhal (Hisaba et al., 2003). Em vista disso, torna-se importante observar a magnitude e a diversidade de apresentações quando se trata de uma população de crianças com 8 » Revista Brasileira de Neurologia » Volume 46 » grandes deficiências e lesões permanentes, com grande morbidade secundária ao longo de sua vida. Nos pacientes com MMC, a maioria das alterações clínicas envolve dificuldade ou inabilidade para adquirir ou manter-se em postura ortostática, deambular, exercer controle voluntário da bexiga urinária e intestinal. Estes pacientes usualmente apresentam comprometimento sensorial e motor nas extremidades inferiores, que impedem a aquisição de padrões normais de deambulação. Muitas vezes, a sobrecarga ou o excesso de utilização das extremidades superiores e tronco para compensar a paresia e os desequilíbrios musculares nos membros inferiores, provoca o surgimento de distúrbios músculo- esqueléticos, especialmente nos tecidos moles e peri-articulares. Outro aspecto relatado é o fato da densidade mineral óssea apresentar-se alterada nestes pacientes a partir dos 6 anos de idade, correlacionada a um aumento da percentagem corporal de tecido adiposo (Ausili et al., 2008). Por se tratar de uma doença de grande impacto social e econômico, como relatado por Rotter et al., (2007), e sendo o Instituto Fernandes Figueira-IFF/FIOCRUZ um dos principais hospitais da rede pública do Rio de Janeiro voltado para a saúde da mulher e da criança, este estudo tem por objetivo traçar o perfil epidemiológico dos recém-nascidos portadores de Mielomeningocele no IFF/FIOCRUZ, encaminhados para acompanhamento no setor de Fisioterapia Motora. Material e Métodos O estudo realizado foi do tipo transversal, descritivo, institucional. Foram analisados prontuários de pacientes portadores de Mielomeningocele, nascido no IFF/ FIOCRUZ, entre janeiro de 2007 e junho de 2008. A amostra foi do tipo selecionada, fazendo parte dela os bebês encaminhados ao serviço de fisioterapia motora para avaliação e acompanhamento. Como critérios de inclusão, têm-se crianças nascidas no IFF/FIOCRUZ entre janeiro de 2007 e junho de 2008, em cujos prontuários haja relato de procedimento neurocirúrgico para correção de espinha bífida cística e participantes do programa de acompanhamento do setor de fisioterapia motora. Os dados foram coletados a partir de informações clínicas coletadas dos prontuários dos pacientes. Informações referentes à avaliação fisioterapêutica, ultrasonografia transfontanela, ressonância nuclear magnética, tomografia computadorizada, radiografias simples, exame de urodinâmica, bem como No 4 » out - nov - dez, 2010 Perfil de crianças com Mielomeningocele em hospital de referência - Rio de Janeiro informações advindas do acompanhamento clínico e neurocirúrgico dos pacientes também foram analisadas pelos envolvidos no estudo. Realizou-se um estudo descritivo da população, por intermédio da análise das medidas de tendência central, e de dispersão e distribuição de frequência para as variáveis dependentes e independentes. Os dados foram armazenados em um banco de dados utilizando EPI INFO 2002. O projeto foi submetido à aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IFF, estando em conformidade com o estabelecido na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Um termo de consentimento livre e esclarecido foi assinado pelos responsáveis pelos pacientes do estudo, conforme preconizado na resolução supracitada. Resultados Foram analisados os prontuários médicos de 16 pacientes, dois com lesões em região torácica, onze com lesões em região lombar e três com lesões em região sacral. Segundo a distribuição por sexo, oito crianças eram do sexo masculino e dois do sexo feminino. Quanto ao peso ao nascer, 15 crianças (93,8%) eram AIG (Adequado para Idade Gestacional) e uma (6,3%) era PIG (Pequeno para a Idade Gestacional). Quanto a Idade gestacional, esta variou entre 36 e 39 semanas, sendo que duas crianças (12,5%) nasceram com 36 semanas de gestação; sete (43,8%) com 37 semanas; três (18,8%) com 38 semanas; três (18,8%) com 39 semanas e uma criança nasceu (5,3%) com 40 semanas de gestação. Um total de 6 mulheres eram (37,5%) primíparas, cinco (31,3%) na segunda gestação, quatro (25%) na terceira e uma (6,3%) na quarta gestação. A Idade materna variou entre 18 e 39 anos, com 81,3% das mulheres com idade inferior a 35 anos. Média de 28,12 e mediana de 28. Do total das envolvidas no estudo, 14 (87,5%) realizaram pré-natal no IFF. Com relação aos aspectos neurocirúrgicos, todas as crianças foram operadas nas primeiras 24 horas de nascimento. Em 14 criancas detectou-se a presença de hidrocefalia, sendo necessária a colocação de (derivação ventrículo-peritoneal) DVP entre o sétimo e o vigésimo primeiro dias de vida. Quatro crianças apresentaram outras malformações do sistema nervoso, como disgenesias do corpo caloso. Apenas dois pacientes não apresentaram hidrocefalia. No que diz respeito às anomalias ortopédicas, 14 (93,3%) pacientes apresentaram-nas, sendo as mais freqüentes o pé torto congênito (28,6%). A associação de mais de uma malformação ocorreu em 28,6% e displasia de quadril em (21,4%) de nossa amostra. Com relação às malformações cardíacas, uma criança apresentava ao nascer Forame Oval Patente (FOP); uma apresentou Comunicação inter atrial; 3 14 não apresentavam nenhum tipo de anomalia congênita deste sistema. Durante a avaliação urodinâmica precoce, todas as crianças apresentaram bexiga neurogênica. Destas, nove realizavam cateterismo intermitente de maneira regular. No que diz respeito à origem do encaminhamento ao ser viço de Fisioterapia, oito pacientes foram encaminhados para acompanhamento no primeiro trimestre de vida, três no segundo e quatro no terceiro, sendo este oriundo das unidades de internação e ambulatório de pediatria em 66.6% dos casos. Segundo classificação de Saraste 2001, entre a correlação entre nível de lesão medular e função muscular, observou-se que duas crianças (12,5%) nível L1 eram nível V; uma (6,3%) nível L2 era nível IV; quatro (25,0%) nível L3 eram nível III; uma (6,3%) L4 era nível III; três (18,8%) nível L5 eram níveis I e II e três (18,8%) nível S1 eram níveis I e II. Discussão Referente à freqüência da MMC na população estudada, valores maiores foram encontrados do que aqueles citados na literatura vigente (Castilla et al., 2001, Sipek et al. 2004). Outras pesquisas também relataram maior freqüência de EB em neonatos do sexo feminino (Farley et al., 2002, Castilla et al., 2004). Tais diferenças podem ser devidas a fatores geográficos, socioeconômicos, sazonais e raciais, o que sugere complexa interação de fatores ambientais e genéticos. Além disto, o fato do IFF-FIOCRUZ ser hospital de referência para nascimento de bebê de risco, deve ser considerado. Anteriormente ao ano de 1975, a taxa de mortalidade de crianças com seqüela de MMC era significativa (Dicianno, et al. 2008; Shurtleff, 1975), entretanto após esse período a sobrevivência elevou-se a 60% e 90% (Ito et al., 1977). Estudos de morbidade em crianças em algumas cidades da América Latina, indicam que as doenças genéticas e as malformações congênitas representam de 10 a 25% das hospitalizações, em hospitais que prestam atenção terciária (Costa et al., 2006). A MMC cursa com frequência com múltiplas Revista Brasileira de Neurologia » Volume 46 » No 4 » out - nov - dez, 2010 » 9 Sá MRC, Orsini M, Abelheira L, Sohler MP anomalias congênitas, sendo que as comumente associadas são principalmente as malformacão cardíaca, do sistema nervoso central e as anormalidade do trato gênito-urinário ( Kolaski, 2006). De acordo com a literatura vigente, a hidrocefalia e a Síndrome de Arnold Chiari II foram as anormalidades do Sistema Nervoso Central (SNC) mais frequentemente encontradas (Dicianno et al., 2008; Bowman et al., 2001; Shurtleff ,2000; Shingal et al., 1999; Salomão, 1998). Em nosso estudo apenas um paciente não necessitou colocação de derivação ventrículoperitoneal (DVP). Fobe et al. (1999), destacam o fato de que a idade de colocação da derivação, assim como sistemáticas revisões do sistema por funcionamento inadequado, estão diretamente associadas ao desempenho cognitivo. Isto leva a implicacões a longo prazo, relativas à qualidade de vida quando adulto, à escolarização e ao ingresso no mercado de trabalho. As lesões provocadas pela MMC podem afetar o funcionamento da bexiga urinária de formas várias. A combinação de degeneração e regeneração dos nervos intrínsecos do músculo detrusor tem sido destacada em diversas lesões do SNC, levando a bexiga neurogênica, onde a retenção configura o padrão vesical mais comum (Chancellor et al., 2006; Haferkamp et al., 2003). A avaliacão urodinâmica precoce é considerada o padrão-ouro para o diagnóstico da bexiga neurogênica. Sem a avaliação e o tratamento precoce da disfunção vesical, o trato urinário superior pode ser gravemente afetado. A intervenção precoce permite salvaguardar a função renal e preserva-la ao longo da vida. Com relação aos dados observados neste estudo, 100% das crianças apresentaram ao exame de urodinâmica beixga neurogênica. Tais resultados confirmam aqueles citados na literatura, reforçando assim a importância da avaliação e inter venção urológica precoce, que influem diretamente no prognóstico destes pacientes. A abordagem ortopédica também se propõe a ser precoce nestas crianças, entre seis e 18 meses (Banta et al., 1990). Deformidades dos pés em pacientes portadores de MMC são frequentes. A despeito da variedade destas deformidades, cerca de 20% dos casos apresentam deformidade do tipo equinovaro (Fucs et al., 2007). As duas deformidades dos pés nas crianças com MMC que comumente requerem correção são o equinovaro e o equinocavovaro (Specht et al., 1974). Sharrard e cols (1964), apontam para o fato de que 10 » Revista Brasileira de Neurologia » Volume 46 » a luxacão do quadril não ocorre quando existe paralisia total da musculatura de tal articulação. Em adição, afirmam que no segmento medular lombar alto, devido ao desequilíbrio muscular, ocorre luxação de moderada a grave, associada a progressiva deformidade em flexãoadução e à coxa valga, luxação esta desenvolvida durante o primeiro ano de vida, em 58 dos 70 pacientes examinados em tal estudo. A luxação do quadril ocorreu no primeiro ano de vida em 72 de 85 pacientes com lesão lombar baixa, devido à forte ação dos flexores e adutores do quadril, associada à paralisia dos extensores e abdutores. Tais pesquisadores destacam que, se a forca dos extensores do quadril não for acentuada, não haverá deformidades ao nascimento, entretanto ocorrerá a presença de um quadril deslocável. No caso da forca muscular dos extensores do quadril encontrar-se preservada, não haverá luxação nem deslocamento do mesmo. Conclusão No grupo estudado, algumas peculiaridades foram encontradas, que podemos creditar ao fato de ser o IFF-FIOCRUZ referência para nascimentos de crianças com mal formação congênita, além de uma complexa interação de fatores. Evidenciou-se também a necessidade de atendimento interdisciplinar, se possível em centros de referência, pois tornou- se evidente que a multiplicidade de apresentação das co-morbidades associadas a MMC demanda a ação coordenada de uma equipe interdisciplinar, com habilidade para lidar com os diferentes aspectos apresentados nesta patologia. Referências AGUIAR MJB, CAMPOS AS, AGUIAR ALP, LANA AMA, MAGALHÃES RL, BABETO LT. Defeitos de fechamento do tubo neural e fatores associados em recém-nascidos vivos e natimortos. J Pediatr (Rio RJ) 2003; 79(2):129-34. 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