“Crise e reconfigurações no Brasil e no Equador”

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ÁREA TEMÁTICA: “GLOBALIZAÇAÕ, POLÍTICA Y CIDADANIA”
“Crise e reconfigurações no Brasil e no Equador”
ARAÚJO DE SOUZA, Nilson
Doutor em Economia
Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA
[email protected]
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Resumo
O objetivo deste texto é examinar as causas da crise iniciada em 2007 nos Estados Unidos,
bem como seu impacto em dois países da América Latina: Brasil e Equador. A crise
representou o colapso da financeirização da economia mundial, mas, na essência, trata-se do
desdobramento da crise mais geral, que se deflagrou no começo dos anos de 1970 nos EUA.
O Brasil e o Equador estavam entre os países da América Latina melhor aparelhados para
defender-se da crise. A economia brasileira estava em pleno processo de expansão, induzida
pelas mudanças ocorridas no governo Lula, quando foi surpreendida por essa nova crise. É
possível afirmar que o governo brasileiro contava com condições mais favoráveis do que
antes para adotar medidas no sentido de proteger e fortalecer a economia nacional. No
entanto, as condições adversas também eram muito fortes. Na época, o Equador havia
recém iniciado um processo de transformação com base no programa implementado pelo
governo de Rafael Correa. Essa transformação, no entanto, defrontava-se com vários
obstáculos, dentre os quais se destacava a dolarização da economia. Esse limite bloqueava a
capacidade de o governo praticar políticas econômicas. Apesar disso, a economia
equatoriana foi uma das que melhor enfrentou a crise. O que existe de comum entre os dois
países é o fato de seus respectivos governos haverem reconstruído parte dos mecanismos de
ação estatal sobre a economia e promovido o fortalecimento do mercado interno.
Abstract
The aim of this text is to examine the causes of the crisis that began in 2007 in the
United States, as well as its impact in two Latin American countries: Brazil and Ecuador. The
crisis represented the collapse of the global economy financialization, but in essence it is the
unfolding of a more general crisis, which erupted in early 1970 in the USA. Brazil and Ecuador
were among the countries in Latin America that were better equipped to defend themselves
from the crisis. The Brazilian economy was in the process of expansion, induced by the
changes in Lula government, when it was surprised by this new crisis. It can be argued that the
Brazilian government had more favorable conditions than before to adopt measures to protect
and strengthen the national economy. However, the adverse conditions were also very heavy.
At the time, Ecuador had recently initiated a transformation process based on th eprogram
implemented by the government of Rafael Correa. This transformation, however, faced several
obstacles, among which stood out the dollarization of the economy. This limit blocked the
government’s ability to practice economic policies. Nevertheless, the Ecuadorian economy was
one of the economies that better faced the crisis. What these two countries have in common, is
that, their respective governments have rebuilt part of the mechanisms of state action on the
economy and promoted the strengthening of the internal market.
Palavras-chave:Crise; Financeirização; Brasil; Equador; Reconfigurações
Keywords: Crisis;Financialization;Brazil; Ecuador; State
PAP0579
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Nosso objetivo neste artigo é examinar a natureza da crise deflagrada no segundo semestre de 2007 nos EUA
e seu impacto em dois países da América Latina: Brasil e Equador. Tal crise foi deflagrada pela implosão da
“bolha” imobiliária nos EUA, mas provocou o colapso da financeirização da economia em nível mundial.
Na base dessa financeirização encontra-se o descontrolado endividamento dos Estados Unidos, por sua vez
derivado do déficit trigêmeo, o qual tem sua raiz no fato de que, há bastante tempo, o consumo total daquele
país supera sua capacidade produtiva. A origem mais remota desse “descolamento” entre produção e
consumo estaria na perda de competitividade da economia estadunidense e na queda da sua taxa geral de
lucro a partir do final dos anos de 1960. Isso significa que o colapso financeiro e a crise do final da primeira
década do novo milênio fazem parte da crise mais geral iniciada no começo da década de 1970.
Para examinar o impacto da crise, selecionamos o Brasil e o Equador porque, a despeito das diferenças entre
eles – dimensão da economia, nível de industrialização, estratégia de desenvolvimento, profundidade das
mudanças -, seus governos reagiram de forma semelhante e suas economias apresentaram resultados
similares.
1. Raízes e desdobramento da crise
Em 2007, a economia estadunidense ingressou em nova e profunda crise, que se generalizou para a maior
parte da economia mundial. Nascida da implosão da “bolha” imobiliária em 2007, desdobrou-se em colapso
financeiro e em recessão generalizada no segundo semestre de 2008. A crise deflagrou-se pela incapacidade
de prosseguir o financiamento de um dos tripés do déficit trigêmeo: o déficit das famílias, as quais vinham,
desde 1999, consumindo mais do que ganham.
Segundo Peters Goodman, “em 1984, os norte-americanos economizavam mais de um décimo de sua renda,
de acordo com o governo. Uma década depois, a metade. Agora, o índice é negativo, sugerindo que gastam
mais do que a renda” (Goodman, 2008, fevereiro 6, p. B4). A causa básica desse déficit foi a política de
contenção salarial adotada a partir da administração de Ronald Reagan (1980-1988). Essa afirmação foi
comprovada por meio de estudo de John Foster sobre o endividamento familiar nos EUA1.
O objetivo dessa contenção salarial era recuperar a taxa de lucro e a competitividade externa da economia
estadunidense. A queda da taxa de lucro e a perda de competitividade frente ao Japão e à Alemanha desde o
final da década de 1960 haviam deflagrado o longo período de estagnação econômica dos EUA inaugurado
na primeira metade dos anos de 19702. Carlos Eduardo Martins constata que o padrão de baixa taxa de lucro
permaneceu posteriormente3.
O resultado do déficit familiar foi o aumento crescente do endividamento das famílias estadunidenses 4. Um
dos principais caminhos do endividamento familiar consistiu na tomada de empréstimos no mercado
imobiliário dando como garantia a própria residência, isto é, hipotecando-a. Enquanto de 1998 a2001 a
dívida hipotecária nos EUA cresceu em média a 3,8% ao ano, de 2001 a2004 a expansão foi de 27,3% anuais
(Foster, 2008, março 10)5.
Os bancos, havendo esgotado o mercado dos que dispunham de renda mais elevada, entraram com força total
nesse mercado dos que não tinham renda suficiente, mas contavam com um imóvel para dar em garantia. Por
isso, esses empréstimos passaram a ser designados de subprime. O resultado foi um intenso processo de
especulação imobiliária nos EUA. A relação entre o déficit familiar e a dívida hipotecária é assim sintetizada
por Peters Goodman:
Para os 34 milhões de domicílios que transformaram parte do patrimônio imobiliário em capital nos últimos
quatro anos, o índice de poupança era de menos 13% em 2006, segundo a Economy.com, da Moody´s: eles
estavam se endividando, usando seus ativos para financiar a vida cotidiana (...) Pelo final do ano passado, o
índice de poupança do grupo continuava em menos 7%, em larga medida porque critérios mais rígidos
dificultaram a obtenção de empréstimos (Goodman, 2008, fevereiro 6, p.B4).
Quando os juros estavam baixos6, foi possível disfarçar a incapacidade estrutural de honrar essas dívidas
(isto é, a ausência de poupança para pagar as prestações), mas, quando voltaram a subir até atingirem a taxa
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de 5,25% em 2006 e 2007, já não foi possível manter esse disfarce, e a bolha estourou em in adimplência,
tomada dos imóveis pelos bancos7, queda do valor dos imóveis8, desvalorização das hipotecas e dos
respectivos derivativos, crise do sistema bancário9 e encurtamento do crédito10. Assim, a elevação da taxa
básica de juros furou a “bolha” especulativa do mercado imobiliário.
A subida dos juros veio reforçar ainda mais a tendência à queda da taxa lucro nos EUA11. Além disso, ao
provocar a pulverização da riqueza financeira nas bolsas, derrubou ainda mais as taxas de lucro. Isso porque,
em grande medida, os lucros das corporações vinham sendo obtidas em aplicações no mercado financeiro,
isto é, não passavam de ganho fictício12. Essa queda da taxa de lucro haveria de provocar uma forte retração
da economia estadunidense.
Os juros subiram em face das dificuldades de seguir-se financiando o déficit trigêmeo, devido ao
incontrolável processo de endividamento externo e interno. O déficit externo indica que o conjunto do país
vinha consumindo mais do que produzia; o déficit público, que o setor público gastava mais do que
arrecadava; e o familiar, que as famílias consumiam mais do que ganhavam. Em síntese, isso significa que os
EUA consomem mais do que produzem e financiam esse “déficit” com endividamento externo, público e
familiar.
A causa básica da insuficiência da produção nos EUA reside na perda de competitividade da sua economia,
inicialmente em relação ao Japão e à Alemanha e, depois, em relação à China e a outros países ditos
emergentes. E, para “equacionar” essa incapacidade de a produção atender ao consumo, o país tem se
endividado de forma crescente e explosiva. Essa gigantesca dívida (externa, pública e familiar) foi, ao longo
dos anos, alavancando a emissão de derivativos, isto é, títulos emitidos com base em outros títulos,
conformando um processo especulativo inédito que funciona como um verdadeiro cassino.
Usando um conceito mais amplo de ativos financeiros, que inclui “as gigantescas operações nos mercados de
câmbio e de derivativos como opções, futuros e swaps”, Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani, em artigo de
2007, mostram a verdadeira dimensão dessa especulação global:
no fim de 2006, de acordo com a Associação Internacional de Swaps e Derivativos, o valor
de
swaps de juros, swaps cambiais e opções de juros no mercado tinha atingido US$ 286,0 trilhões,
aproximadamente seis vezes o Produto Mundial Bruto (...), em comparação com meros US$ 3,45
trilhões em 1990 (Marques & Nakatani, 2007, novembro 13-17).
2. O impacto da crise no Brasil e a reação do governo
Quando deflagrou a crise nos EUA, a economia brasileira, depois de duas décadas e meia de estagnação,
havia retomado o crescimento, ainda que a um ritmo moderado: a partir de 2004, como resultado das
mudanças econômicas ocorridas e da política exterior que diversificou as relações comerciais externas, o PIB
do país voltou a crescer a um ritmo mais elevado do que no período anterior13. O crescimento da taxa de
investimento, alavancada sobretudo pelos financiamentos do BNDES14, teve um papel importante nessa
melhoria da atividade econômica15. A dinamização do mercado interno, fomentada pelo incremento do poder
de compra do salário e dos programas de transferência de renda, também cumpriu papel importante na
retomada da economia16.
Depois de um período inicial em que predominou no governo Lula a continuidade da política econômica
herdada do governo anterior, a posição a favor da mudança dentro do governo se fortaleceu com a queda do
ministro da Fazenda, Antônio Palocci, em final de março de 2006. Para substituí-lo, foi nomeado o
economista Guido Mantega, que fora ministro do Planejamento no início do governo Lula e estava ocupando
o cargo de presidente do BNDES, e que, na época, vinha criticando a política monetária do Banco Central.
Mas a mudança principal ocorreu no segundo mandato, com a implementação do Programa de Aceleração do
Crescimento e do Programa de Desenvolvimento Produtivo.
A implementação desses dois programas significou três importantes mudanças na economia brasileira: 1) o
desenvolvimento voltou a ser prioridade na ação governamental; 2) recuperou-se a prática do planejamento;
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3) o Estado voltou a ter um papel importante não apenas na regulação da economia, mas também no
investimento produtivo e na distribuição dos recursos entre os distintos setores da economia.
Os investimentos do PAC deveriam se concentrar em logística (sobretudo transportes), energia e infraestrutura social (principalmente saneamento básico). O montante previsto inicialmente, para o período 20072010, era de R$ 503,9 bilhões, cabendo 76% ao Estado. O Programa de Desenvolvimento Produtivo visava
promover a substituição de importações e a modernização em setores fundamentais da economia, tais como:
o complexo industrial da saúde, energia nuclear, indústria da defesa, tecnologia da informação e da
comunicação, biotecnologia, bens de capital, indústria naval, o complexo aeronáutico, petróleo,
petroquímica, mineração e siderurgia. Os recursos para o PDP originam-se basicamente de financiamentos
do BNDES: R$ 210,4 bilhões para o período 2007-2010.
A economia brasileira estava nesse processo de expansão quando foi surpreendida pela crise nascida nos
EUA. Vejamos o impacto da crise sobre a economia brasileira. A profundidade desse impacto e sua duração
em cada economia nacional dependeriam, de um lado, das suas condições econômicas internas e da sua
forma de inserção internacional e, de outro, da forma de reação de seus governos diante de referido impacto.
É possível conjeturar que, durante essa nova crise, o governo brasileiro contava com condições mais
favoráveis do que antes para adotar medidas no sentido de enfrentar a crise. No entanto, as condições
adversas também eram muito fortes. Consideremos dois cenários: a) no cenário de curto prazo, devemos
examinar o impacto da turbulência financeira deflagrada nos EUA sobre a situação financeira do Brasil; b)
no médio/longo prazo, examina-se o impacto tanto da turbulência financeira quanto da recessão na economia
estadunidense sobre a balança comercial e a atividade econômica no Brasil.
Comecemos pelo primeiro cenário. É verdade que o Brasil estava mais preparado para se defender do
impacto de crises financeiras internacionais. Vários fatores possibilitavam que o país pudesse defender-se
melhor de uma eventual contaminação financeira da crise externa, a saber: a) um elevado volume de reservas
cambiais e de um saldo positivo e elevado na balança comercial; b) a dinâmica econômica vinha sendo
alavancada principalmente pelo crescimento do mercado interno; c) um razoável volume de poupança interna
e um baixo nível de endividamento.
A economia brasileira não sofreu imediatamente o impacto da crise, revelando que, de fato, estava mais
protegida. No entanto, depois do agravamento da crise nos EUA em setembro de 2008, o Brasil começou a
ser contaminado. A principal expressão foi a forte queda nas bolsas de valores17. Também houve suspensão
dos créditos externos para exportação e dos créditos internos para capital de giro e crediário ao consumidor.
A forte suspensão dos empréstimos implicou em grande queda das vendas e da produção de bens de
consumo duráveis, sobretudo automóveis, no último trimestre de 2008.
A intensa queda nas bolsas, no entanto, não se traduziu imediatamente em fuga de capitais. Muitos capitais
que saíram das bolsas permaneceram dentro do país. Expressão disso era a relativa estabilidade e, em alguns
casos, até aumento do volume de reservas cambiais18. Isso mostra que os fatores de defesa citados
anteriormente funcionaram de alguma forma.
Quanto ao possível impacto de uma recessão nos EUA sobre a balança comercial e a atividade econômica do
Brasil, cabe registrar, em primeiro lugar, que, também neste aspecto, a economia brasileira estava mais
preparada do que nas crises que ocorreram nos anos de 1990. Um aspecto decisivo era o fato de que os EUA
já não tinham o peso na economia mundial de antes. Segundo cálculos do FMI, com base no PIB medido por
Paridade do Poder de Compra, a participação dos EUA na economia mundial, em 2006, era de 19,7%, vindo
a China em segundo lugar, com 15,1% (Canzian, 2008, janeiro 27, p. B3). Ou seja, o impacto mundial da
crise iniciada nos EUA, ainda que grande, já não teria a mesma força do passado.
Além disso, houve mudanças na economia brasileira que a tornaram menos dependente da dinâmica da
economia dos EUA. Destacam-se duas: a) ainda que suas exportações ainda dependessem do mercado
estadunidense, houve uma forte diversificação de seus mercados19; b) apesar da forte contribuição das
exportações para o dinamismo recente dessa economia, o mercado interno vinha evoluindo positivamente20.
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No entanto, aqui também havia um forte elemento de vulnerabilidade: as importações brasileiras vinham
crescendo a um ritmo muito superior ao das exportações21, gerando um “desequilíbrio dinâmico”, que estava
deteriorando o saldo positivo na balança comercial; isso poderia levar a economia brasileira a depender
novamente da entrada de capitais externos para fechar seu balanço de pagamentos22.
A economia real do Brasil, na verdade, começou a ser impactada pela crise internacional no último trimestre
de 200823. A correia de transmissão foi o desaparecimento do crédito. Primeiro, os bancos internacionais
deixaram de financiar as exportações brasileiras. Segundo, os bancos instalados no Brasil começaram a
segurar o crédito interno para o capital de giro das empresas e para o crediário dos consumidores.
Para enfrentar o desaparecimento do crédito, o governo brasileiro: a) aumentou o financiamento dos bancos
públicos para exportação, agricultura e construção civil; b) adotou medidas para fortalecer o papel desses
bancos, como a autorização para que eles pudessem comprar carteiras ou bancos em dificuldades; c) injetou
mais dinheiro nos bancos privados24; d) aportou, através do Tesouro, R$ 100 bilhões ao BNDES para que o
banco financiasse o investimento em projetos nos setores de petróleo, gás, energia elétrica, infra-estrutura e
bens de capital.
Além disso, na área do investimento, decidiu: a) acrescentar ao orçamento do PAC, que era de R$ 503
bilhões para o período 2007-2010, mais R$ 142 bilhões para o período 2009-2010; b) ampliar
significativamente o programa de investimentos da Petrobras, que aumentou de US$ 112,4 bilhões no
período 2008-2012 para US$ 174,4 bilhões no qüinqüênio 2009-2013.
Essas medidas, se foram insuficientes para bloquear a internalização da crise, contribuíram para que, a partir
do segundo trimestre de 2009, a economia brasileira tenha começado um processo de recuperação, que
redundou num crescimento de 7,5% em 2010.
3. O Equador na hora da crise e da re-fundação
O Equador havia recém iniciado um processo de mudança com base no programa implementado pelo
governo de Rafael Correa quando estourou a crise nos EUA. Essa transformação, no entanto, defrontava-se
com vários obstáculos, dentre os quais se destacava a dolarização da economia. Esse limite bloqueava a
capacidade de o governo praticar políticas monetária, fiscal e cambial, bem como programas de
desenvolvimento. Apesar disso, a economia equatoriana foi uma das que melhor enfrentou a crise.
O impacto da crise sobre a economia equatoriana se manifestou de maneira contraditória, pois, ao mesmo
tempo em que a reação interna estava limitada pela dolarização da economia, o governo que acabava de
assumir havia iniciado um processo que designou de “re-fundação” do país. Para implementar a re-fundação
prevista na nova Constituição, o governo de Rafael Correa defrontava-se com os limites impostos pelo
desmantelamento do aparelho estatal realizado pelos governos que o precederam, pela dolarização da
economia e pelo impacto da crise mundial.
O desmantelamento das estruturas estatais dificultava a realização dos investimentos públicos previstos no
Plano Nacional de Desenvolvimento, bem como o planejamento de longo prazo. Sem moeda própria, o
governo estava limitado em sua tarefa de fazer política econômica, dificultando a criação dos instrumentos
necessários à implementação do PND. A situação se complicava mais ainda diante do impacto da crise.
Como reagir a ela sem as estruturas estatais adequadas e cerceado na possibilidade de praticar políticas
cambial, monetária e fiscal?
Desde o primeiro ano de seu governo, Correa esteve às voltas com o impacto da crise no Equador. Para
enfrentá-la, contou com os elevados preços do petróleo. Num primeiro momento, decidiu aumentar a
participação do Estado na renda petroleira. “Em junho de 2006, o governo de Alfredo Palácio determinou a
destinação de 50% dos excedentes petroleiros para o Estado25 (...), percentual elevado para 99% pelo
governo de Rafael Correa em outubro de 2007” (Carvalho, Almeida, Wochler, Braga, & Pedroso, 2010, p.
10). Isso permitiu o aumento do investimento público: sua participação no PIB cresceu de 4% para 13%26.
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Além disso, montou uma nova arquitetura financeira doméstica, com o fortalecimento dos bancos públicos;
criaram-se instrumentos para proteger a indústria nacional; adotaram-se medidas com vistas a fortalecer a
economia popular, como o uso da renda petroleira para programas sociais: o gasto público social aumentou
de 4% do PIB para 8%27; e realizou-se a auditoria da dívida externa, o que redundou no abatimento do valor
da mesma28.
O governo foi recompondo a estrutura estatal e, com base nela, começou a implementar seu programa de
desenvolvimento. Iniciou a mudança da matriz produtiva, retomando o processo de industrialização29, e a
melhoria das condições de vida da população; além do aumento dos gastos sociais30, aumentou-se o salário
real: de um índice de 180,33 em dezembro de 200731, o salário mínimo real médio subiu para 194,80 em
dezembro de 200832. Caiu, em consequência, ainda que timidamente, o índice de pobreza da população: de
37,60% em dezembro de 2006 para 35,09% em dezembro de 2008 (INEC, 2011, março 3).
Investimentos públicos, coadjuvados pela expansão do mercado interno, haveriam de proporcionar o
crescimento da economia. Isso foi possível, em grande medida, devido ao aumento da renda petroleira: em
função dos elevados preços que vigoraram até meados de 2008, o valor das exportações do produto
aumentou de US$ 8,3 bilhões em 2007 para US$ 11,7 bilhões em 200833. Assim, o PIB equatoriano cresceu
2,5% em 2007 e 6,5% em 2008 (BCE, 16.02.2011). Em consequência, a taxa de desemprego caiu de 9,03%
da população economicamente ativa em dezembro de 2006 para 7,5% em igual mês de 2007 e 200834.
Essas medidas se enquadravam na visão do novo governo, que definira a retomada da industrialização por
substituição de importações como caminho para o desenvolvimento e considerava fundamental o aumento do
papel do Estado como instrumento desse processo, ao lado de uma inserção internacional soberana35. O
presidente Correa deixou isso claro em seu livro de 2010:
Para que estas restrições possam ser superadas novamente se requerem estratégias explícitas de
desenvolvimento, tais como a integração regional, a priorização de compras públicas para
produtores nacionais, adequadas proteções ao comércio exterior, e planificação nacional em geral.
Cabe indicar que a qualidade das políticas públicas também pode considerar-se como um bem
público (Correa, 2010, p. 181).
Apesar do forte impulso desenvolvimentista promovido pelo Estado, persistia o engessamento imposto pela
dolarização, o que limitava a possibilidade de implementar política econômica própria. Esse problema pôde
ser contornado enquanto os preços do petróleo e, em consequência, a renda petroleira estavam aumentando,
mas tenderia a aparecer de maneira mais contundente com o agravamento do impacto da crise internacional.
Mesmo havendo considerado a dolarização uma “barbaridade técnica” à época da sua decretação, Rafael
Correa não a extinguiu depois que assumiu a presidência da República. Sua estratégia para sair da
dolarização passa pela integração regional e pela criação de uma moeda regional (Correa, 2010, pp. 182183).
Quando o impacto da crise se fez sentir mais fortemente na economia equatoriana, sobretudo a partir de
2008-09 com a queda do preço do petróleo36 e a diminuição das compras internacionais37, o governo do
Equador, de um lado, contava para agir com a retomada da reconstrução das estruturas estatais, mas, de
outro, estava engessado pela dolarização e, por conseguinte, limitado em implementar políticas
macroeconômicas para enfrentar os efeitos da crise.
Apesar dessa limitação, o governo utilizou os instrumentos de que dispunha para agir. Para garantir os
investimentos públicos, recorreu às reservas monetárias acumuladas durante o período de alta do preço do
petróleo38, realizou uma reforma tributária que viabilizou o aumento da receita pública39e utilizou recursos da
Previdência Social. Além disso, solicitou novos créditos em organismos internacionais, particularmente o
BID e a Corporação Andina de Fomento, além da China, Venezuela e Irã40. Ao mesmo tempo, aumentou as
tarifas externas para conter as importações e fortalecer a industrialização por substituição de importações e
elevou o imposto sobre saída de divisas, de 0,5% para 1%. O salário real, por sua vez, seguiu subindo,
fortalecendo o mercado interno:o índice do salário mínimo real médio, que fora de 194,80 em dezembro de
2008, subiu para 210,63 em dezembro de 2009 e 216,95 em dezembro de 201041.
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Não foi possível evitar inteiramente o impacto da crise, mas, além de o impacto haver sido menor do que em
outros lugares42, desapareceu mais rapidamente43. O desemprego, por sua vez, depois de haver permanecido
estável durante o pior momento (2009), voltou a cair no ano seguinte: a taxa elevou-se de 7,5% em dezembro
de 2008 para7,93% em dezembro de 2009, para voltar a cair, para 6,11%, em dezembro de 201044.
As ações anti-cíclicas do governo durante a crise contribuíram para esse resultado, mas nada disso teria sido
possível se Rafael Correa não houvesse começado a reconstruir as estruturas estatais no período anterior.
Sem isso, teria sido impossível a ação estatal para viabilizar o investimento e o financiamento públicos, bem
como a proteção da produção doméstica. A retomada do aumento do preço do petróleo a partir de 2009
também deu sua contribuição45.
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10 de 12
1
Segundo esse autor, “não há dúvidas quanto à crescente compressão dos rendimentos baseados nos salários. Exceto no
que se refere a uma pequena subida nos anos 90, há décadas que os salários reais estão a marcar passo” (Foster, 2008,
março 10).
2
De 1973 a1993, a taxa média anual de crescimento do PIB daquele país situou-se em torno de 1%.
3
Segundo sua pesquisa, a taxa de lucro nos EUA caiu de 10,3% no período 1959-1966 (possivelmente reproduzindo a
taxa que vinha desde o imediato pós-guerra) para 6,7% no período 1967-1993. A partir de 1994, quando houve certa
melhora na atividade econômica naquele país, a taxa de lucro voltou a subir, situando-se em 8,4% em 1994-2000, mas
ainda permaneceu num nível inferior ao primeiro período (Martins, 2001, pp. 15-16).
4
O conjunto da dívida familiar pulou de US$ 6,96 trilhões em 2000 (96,8% da renda disponível) para US$ 11,5 trilhões
em 2005 (127,2% da renda). Era de apenas US$ 736,3 bilhões em 1975 (62% da renda) (Foster, op. cit.).
5
Como conseqüência, a dívida hipotecária em dezembro de 2005 já era de US$ 8,66 trilhões (69,4% do PIB) (Financial
Markets Center, 2006, março 19).
6
Em 2003, a taxa básica praticada pelo Banco da Reserva Federal, o banco central dos EUA, chegou ao patamar de 1%
ao ano.
7
O ritmo de despejos passou de 1,2 milhão de imóveis em 2006 para 2,2 milhões em 2007 e 2,4 milhões nos dez
primeiros meses de 2008 (Canzian, 2008, novembro 26, p.B3).
8
De acordo com o índice S&P-Case/Shiller, em 2007, esse valor caiu cerca de 7% e em 2008 mais 19%; a queda foi de
27% desde o “pico” em meados de 2006, levando o preço das residências em 20 grandes áreas metropolitanas dos EUA
ao menor patamar desde abril de 2004.
9
O economista Paul Krugman apresentou estimativa de US$ 1 trilhão, enquanto o economista Nouriel Roubini, que
inicialmente estimara prejuízos de US$ 1,15 trilhão, reestimou-os depois para cerca de US$ 3 trilhões.
10
Se o prejuízo fosse de apenas US$ 400 bilhões, “esses bancos [contrairiam] a oferta de crédito em US$ 2 trilhões”
(Nakano, 2008, fevereiro 24, p.B4).
11
Segundo o The Wall Street Journal, a taxa de lucro caiu 8,4% no último quadrimestre de 2007.
12
Os lucros obtidos no mercado financeiro como percentagem dos lucros das corporações passaram de 10% em 1980
para 40% em 2007 (Guillén, 2009, outubro 22-24).
13
De 2004 a 2008, o ritmo médio de crescimento anual foi de 4,7%, contra uma média de 2% nos 23 anos anteriores
14
O BNDES, que, historicamente, tem sido o principal instrumento governamental destinado a financiar o investimento
de longo prazo, teve um recorde de empréstimo em 2004: contratou um montante de R$ 40 bilhões, 14,3% acima dos
R$ 35 bilhões de 2003.
15
A taxa de investimento, medida pela relação entre a formação bruta de capital fixo e o PIB, que baixara de 18,33%
em 2002 para 18,05% em 2003, subiu para 19,6% em 2004 e para 20,1% em 2005.
16
Os 50% mais pobres da população aumentaram sua participação na renda nacional de 10,07% em outubro de 2002
para 12,24% em outubro de 2005.
17
O índice Bovespa caiu 41,22% em 2008.
18
No Brasil, houve aumento das reservas de US$ 180,3 bilhões em dezembro de 2007 para US$ 206,8 bilhões em
dezembro de 2008.
19
Segundo o Ministério do Desenvolvimento, a participação dos EUA na pauta de exportação brasileira chegou a
superar os 30% na segunda metade da década de 1990; em 2007, não passava de 17%.
20
No Brasil, o conjunto da demanda interna (incluindo bens de consumo e meios de produção) cresceu 5,2% em 2006 e
7% em 2007, segundo estimativa da LCA Consultores (Folha de S. Paulo, 2008, fevereiro 25, p. B2).
21
Em 2007, no Brasil, as importações cresceram 32,04% contra 16,58% das exportações; essa dinâmica se reproduziu
em 2008: 43,6% contra 23,2%.
22
O déficit em transações correntes retornou fortemente em 2008 (US$ 28,3 bilhões), devido à queda do superávit
comercial (de US$ 40 bilhões em 2007 para US$ 24,7 bilhões em 2008) e ao amento de 51% das remessas de lucros,
que atingiram US$ 33,88 bilhões em 2008.
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23
A produção industrial brasileira, que, na base anualizada, cresceu a 6,4% até setembro de 2008, fechou o ano em
3,1%, devido à forte retração econômica ocorrida no último trimestre do ano, quando a produção industrial caiu 6,2%
contra igual trimestre do ano anterior (fonte: IBGE).
24
O mecanismo através do qual injetou esses recursos consistiu na diminuição do compulsório bancário, isto é, do
montante dos recursos que os bancos são obrigados a depositar no Banco Central.
25
Antes, eram apenas 20%, cabendo os demais 80% às companhias petroleiras.
26
Cf. palestra realizada em 19.07.2010, para um grupo de pesquisadores brasileiros, pelo Dr. Pedro Paz, ex-ministro da
Economia do governo Correa, de onde saiu para ser responsável pela coordenação de uma nova arquitetura financeira
para a região.
27
Conforme palestra ministrada por Alberto Acosta, no dia 22.07.2010, a um grupo de pesquisadores brasileiros.
Alberto Acosta, antigo professor de Economia da FLACSO do Equador, foi ministro de Rafael Correa.
28
De acordo com o BCE, graças à auditoria, a relação dívida externa/PIB caiu à metade, isto é, da faixa de 25% para
cerca de 12,5%.
29
Apesar disso, o setor industrial ainda “não conseguiu constituir-se num eixo de acumulação que garanta o
desenvolvimento nacional” (Saltos, & Vázquez, 2009, p. 238).
30
Entre os programas sociais, destaca-se o Bono de Desenvolvimento Humano, “que em meados de 2009 se situava em
30 USD, com aproximadamente 800 mil receptores diretos” (Ibid., 297).
31
Deflacionado pelo Índice de Preços ao Consumidor mensal.
32
Fonte: www.bce.fin.ec.
33
Fonte: www.bce.fin.ec.
34
Fonte: www.bce.fin.ec.
35
Cf. palestra do Dr. Pedro Paz, já citada.
36
O preço do produto, que subira de US$ 80 em fins de 2007 para US$ 156 em julho de 2008, baixou para US$ 30,18
no primeiro trimestre de 2009 (Saltos, & Vázquez, 2009, p. 65).
37
O valor das exportações de petróleo pelo Equador caiu de US$ 11,7 bilhões em 2008 para US$ 7 bilhões em 2009.
Em consequência, as exportações totais caíram de US$ 18,5 bilhões para US$ 13,8 bilhões (fonte: www.bce.fin.ec).
38
As reservas monetárias, numa economia dolarizada, coincidem com as reservas cambiais. Elas haviam subido de US$
2 bilhões em dezembro de 2006 para US$ 6,1 bilhões em dezembro de 2008 e caíram para US$ 3,3 bilhões em
dezembro de 2010 (fonte: Banco Central do Equador).
39
Entre janeiro-novembro de 2009 e igual período de 2010, a receita pública subiu 27% e a despesa, 20%. O aumento
da receita se deveu, basicamente, ao incremento do Imposto de Valor Agregado (fonte: www.bece.fin.ec).
40
Cf. palestra de Acosta já citada.
41
Fonte: www.bce.fin.ec.
42
O PIB cresceu 0,36% em 2009 (BCE, 2011, fevereiro 16), quando os países centrais e boa parte da América Latina
amargaram uma forte retração da atividade econômica. O PIB da América Latina caiu 1,9% naquele ano.
43
A primeira estimativa do Banco Central do Equador é de que o PIB teria crescido 3,75% em 2010 (BCE, 2011,
fevereiro 16).
44
Fonte: www.bce.fin.ec.
45
A cotação do produto, que caíra para US$ 26,09 em dezembro de 2008, subiu para US$ 67,82 em dezembro de 2009
e US$ 81,52 em dezembro de 2010 (www.bce.fin.ec). Em fevereiro de 2011, em função do processo especulativo
desencadeado pela crise política no mundo árabe, já havia ultrapassado os US$ 100.
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