Bastide: manifestações do preconceito de cor "o preconceito de cor, somente nós, negros, podemos senti-lo" A Voz da Raça Preconceito e dignidade "0 negro que não vê o preconceito é o que ainda não conhece o valor da sua personalidade; não pode sentir-se ferido uma vez que ainda não chegou ao senso da dignidade humana". (informante negro, chefe) O preconceito de não ter preconceito "Nós, brasileiros, temos o preconceito de não ter preconceito. E esse simples fato basta para mostrar a que ponto está arraigado no nosso meio social". (informante branco) Ambigüidade e atomização “ ... não há no Brasil, como nos Estados Unidos, uma pressão maciça de um grupo sobre outro; os estereótipos variam conforme os setores da sociedade; as relações humanas atomizam-se numa poeira de relações inter-individuais; as atitudes raciais variam conforme as famílias ou as pessoas. Entretanto, por trás desse caos aparente, é possível descobrir certas leis.” Democracia racial: o ideal “É verdade que esse ideal de democracia [racial] impede as manifestações demasiado brutais, disfarça a raça sob a classe, limita os perigos de um conflito aberto.” Democracia racial: efeitos “A opinião pública é sensível ao bom nome do Brasil, a tudo o que poderia prejudicar a sua tradição de democracia racial. As reações da imprensa de São Paulo contra anúncios de jornais tais como: "Procura-se uma cozinheira branca. Inútil apresentar-se se for preta" - ou contra a queixa dos comerciantes da rua Direita a propósito da afluência dos pretos naquela artéria - ou ainda contra a recusa, pelo Hotel Esplanada, de receber Katherine Dunham, são testemunhos disso.” A omissão como prática “De modo que o crime de que mais amargamente se queixam os pretos é o que se poderia chamar de "pecado de omissão", a falta de uma política governamental a favor da ascensão do homem de cor na sociedade, por um auxílio econômico e medidas educativas apropriadas, quando há tantas leis a favor, dos imigrantes.” A denegação “É sempre mais fácil descrever manifestações aparentes. Ora, o Brasil, nas suas constituições, leis, imprensa, proclama altamente a sua repulsão a todo e qualquer ataque à dignidade do homem negro. É mais difícil descobrir o que pode estar oculto sob a indiferença, as omissões ou as faltas. Será preciso recorrer, muitas vezes, não à analise de comportamentos, mas à da ausência de comportamentos.” As famílias tradicionais “Assim, a família tradicional conservou seus antigos valores, essa mistura de bondade e de superioridade racial, que já não se pode adaptar à situação nova, criada pela metrópole industrial. A jovem geração afirmará a existência do preconceito. Somente a velha o negará.” Técnicas psicanalíticas “Tentamos, com o auxílio de técnicas psicanalíticas, mostrar, até nesses conformados, a presença de um ressentimento recalcado que só se revela na filigrana das imagens noturnas. Um exemplo bastará para mostrar o aparecimento, no sonho, da oposição da doméstica de cor ao meio branco:” O sonho “Uma colega de grupo escolar tomou um tonel de salmoura e despejou-o sobre Gisela (uma branca) porque ela era "puro sangue". A filha da patroa perguntou: mas onde está Gisela? A minha colega respondeu-lhe: veja, é um monte de sangue". Os imigrantes “Há quem atribua o nascimento ou a exasperação das idéias racistas, na sociedade paulista, sobretudo os brancos nacionais e os mulatos claros, ao estrangeiro. Mas o preto retinto em geral repele essa insinuação; para ele, o imigrante chega ao Brasil sem preconceito; é aqui que o aprende, através das velhas famílias tradicionais. Assimilar o preconceito é, para ele, um meio de se elevar na sociedade.” O grupo sírio “Em suma, encontramos no sírio algo de análogo ao que se vê nas velhas famílias tradicionais de S. Paulo, o que se explica pela estrutura patriarcal do regime doméstico - a integração, outrora, da doméstica de cor à casa, mas numa posição subalterna - a recusa, hoje, do "novo negro".” O grupo português Preconceito nas classes médias Nos filhos de imigrantes, mais que nos próprios imigrantes. “Dir-se-ia que o preconceito se aprende, que é menos uma tendência étnica natural do que uma luta contra uma tendência que o impele, atualmente como dantes, a ligar-se afetivamente aos negros, sem levar em conta a cor da pele. É uma forma primária de um nacionalismo nascente.” O grupo italiano “Não se pode pois negar que, mesmo na classe baixa, exista um certo preconceito italiano contra o negro. Mas esse preconceito vai-se intensificando à medida que se sobe na escala social.” “A família tradicional, habituada ao contacto íntimo com o negro na escravatura, aceita-o sempre como doméstico e trata-o com bondade, contanto que ele fique no seu lugar, enquanto a burguesia saída da imigração se recusa a pactuar com o negro, mesmo quando este último tem uma posição subordinada. Repele-o pura e simplesmente” (informante italiana) Primeiras conclusões de Bastide “Naturalmente tudo isso precisa ser matizado. 0 Brasil é o tipo do país das meias tintas. As atitudes variam de um indivíduo para outro, formando uma gama que vai do máximo de preconceito à sua ausência total. Se insistimos entretanto nessas manifestações por parte de grupos considerados geralmente como favoráveis à gente cor, é porque são reveladoras de sentimentos muitas vezes ocultos.” Discriminação no mercado de trabalho “Mais particularmente, o empreiteiro ou o industrial estrangeiro reserva, na proporção permitida pelas leis trabalhistas, os melhores lugares para os seus compatriotas ou descendentes deles. Muitos negros queixam-se da recusa polida mas inflexível que esses patrões opõem aos seus pedidos de emprego.” Preconceito de raça ou de classe? “Um certo número de fatos já nos permite discernir um preconceito de cor independente do de classe; outros fatos permanecem duvidosos. Ora, é esse o ponto essencial do nosso inquérito. Se o negro é repelido como classe, uma melhora da sua situação econômica fará automaticamente desaparecer o problema. Se é repelido como negro, a questão torna-se mais grave.” A estratégia de verificação “É preciso, pois, agora, esquecendo as origens étnicas, considerar a população paulista sob outro ângulo, como uma pirâmide de ocupações, de “estatuto” e de "papéis", e examinar sucessivamente as relações dos brancos com os negros das duas classes superpostas e dentro de cada classe.” Cor e classe "Num bar, entra um casal de cor; imediatamente um branco resmunga: este bar era antigamente um lugar bem freqüentado. Basta isso. O garçom aproxima-se do casal, murmura algumas palavras no ouvido do marido. Os dois deixam o salão. Num outro bar, um negro aparece, o garçom imediatamente tira a garrafa de pinga; o cliente protesta: quero uma coca-cola; o Sr. não pode ver um negro sem imaginar logo que se trata de um bêbado". “ 0 segundo fato esclarece o primeiro. 0 estereótipo de cor é no fundo um preconceito de classe.” Cor, como símbolo de classe “A cor desempenha um papel, evidentemente, mas o papel de um símbolo, é o critério bem visível que situa um indivíduo num certo degrau da escala social; e as exceções são ainda demasiado raras para solapar a força desse símbolo.” “Mas se o preconceito de cor se confunde com o de classe, num grande número de casos; será possível generalizar o fenômeno?” Relações horizontais (dentro da mesma classe) “Assim a cor não se confunde completamente com a classe, dentro da própria classe desempenha um papel discriminador. “ “0 que acabamos de dizer sobre a classe baixa aplica-se ainda melhor à classe média e à alta. Aqui a discriminação surge sob a forma de restrições mais ou menos severas à atividade social ou mesmo à atividade profissional.” “A cor age, pois, de duas maneiras, seja como estigma racial, seja como símbolo de um estatuto social inferior.” “Num dos seus artigos, o sociólogo norteamericano Donald Pierson escreveu: "0 branco nunca achou que o negro ou o mulato representasse uma ameaça para o seu próprio estatuto” e assim explica a ausência de um preconceito de cor como o que prevalece nos Estados Unidos.” Pierson versus Bastide; Bahia versus São Paulo “Mas se a frase de Pierson ainda se aplica a muitas regiões do Brasil, já não se aplica a São Paulo, onde a facilidade da instrução, as oportunidades da industrialização, o enfraquecimento do controle dos brancos devido à dispersão das famílias tradicionais numa imensa cidade, permitiram uma ascensão dos negros já não como indivíduos isolados, mas como grupo social. A partir desse momento, o branco começou a sentir-se ameaçado nos seus postos de direção e de mando.” Preconceito na escola “São essas disputas, e em certos casos somente as injustiças dos educadores, essas brigas nas quais os meninos brancos fazem sentir ao preto a diferença de pele, que explicam o horror da criança de cor pela escola e levam os pais a afastar os filhos. É a primeira barreira informal.” Preconceito estético “Chegamos assim a uma forma do preconceito particularmente marcante, o preconceito estético. Uma população branca na sua maioria desenvolve com efeito uma série de normas de beleza relacionadas com a sua própria cor, e, na medida em que um indivíduo se afasta dessas normas, é considerado feio. A preta é particularmente vítima desse estado de coisas. As pessoas de cor são relegadas para longe da vista do público, nas oficinas internas; não são aceitas nos escritórios a que o público tem acesso, como secretárias ou datilógrafas.” A força das relações pessoais “Sem dúvida em São Paulo tudo depende dos indivíduos, e nós poderíamos, para contrabalançar essas histórias de recusa, contar outras em que brancos impuseram amigos pretos, defenderam-nos e mantiveram-nos em excelentes empregos.” Vantagem do racismo americano “Se compararmos a solução brasileira do problema racial à dos Estados Unidos, veremos que a “linha de cor" facilita a subida do preto mais que a ausência de segregação institucional, pois o preto é obrigado a criar os seus próprios bancos de crédito, as suas universidades e suas escolas profissionais, os seus médicos e advogados, engenheiros e técnicos, uma vez que o branco o repele.” A “solução brasileira” “A mistura incessante dos sangues faz desaparecer progressivamente as oposições de cor, fundindo-os numa "raça morena", e tende assim a abolir o problema racial da melhor maneira possível, suprimindo simplesmente as raças.” A miscigenação “Contudo, a miscigenação, tomada em si mesma, e embora tenha como resultado remoto o desaparecimento do preconceito de cor, não prova que, no curso do processo, o preconceito não exista. Por vezes chega mesmo a torná-lo mais visível”. “0 único fato que fica demonstrado é que a repugnância física entre as raças nada tem de instintivo, que é um produto da cultura. Mas o preconceito aparece por trás da miscigenação, quando se considera a mulher de cor, não como uma futura companheira mas como um simples objeto de prazer, uma presa mais fácil para o desejo do homem branco...” Embranquecimento estatístico “... segundo as pesquisas feitas por G. Mortara, [ ] todos os anos, um certo número de pretos transpõem definitivamente a linha e são incorporados ao grupo branco. São Paulo não faz exceção à regra geral do Brasil.” Miscigenação e concorrência sexual “Em resumo, há na classe preta uma espécie de nostalgia da cor branca, a preta tendendo a aceitar como uma honra as carícias do branco, e o preto tendendo a procurar, a fim de mostrálas ostensivamente aos amigos, amigas brancas, quando não amantes. A miscigenação, quando se produz sob formas ilegítimas, revela-nos, pois, menos a fraternidade das cores que a concorrência sexual.”