1 PARECER SOBRE O PROCESSO DE IMPEDIMENTO Ementa. O rito do processo de impeachment. A tipificação dos crimes de responsabilidade na Constituição de 1988 e na Lei 1.079/1950. A responsabilidade pessoal do Presidente da República nos crimes de responsabilidade. O controle pelo Supremo Tribunal Federal do mérito do processo de impeachment. INTRODUÇÃO O Plenário do Instituto dos Advogados Brasileiros, no dia 14 de outubro de 2015, por Indicação do consócio Dr. João Carlos Castellar Pinto, deliberou que o IAB se pronunciasse, formalmente, sobre o processo de impedimento da Presidenta da República, nos termos do artigo 2º do Estatuto do IAB, que assim o dispõe: Art. 2º São fins do IAB: I. A defesa do Estado Democrático de Direito e seus princípios fundamentais. O sentido de Estado Democrático de Direito perseguido pelo IAB encontra na doutrina de José Afonso da Silva a força formal e material que é professado por todos os consócios. A democracia, ensina José Afonso da Silva, é “a realização dos valores da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa. São valores que alicerçam a convivência humana” (SILVA, 2000, p. 14). Este conceito abrange o Estado de Direito, de viés liberal. Com as transformações históricas e a superação do liberalismo clássico, o Estado de Democrático de Direito se vinculou à democracia, fonte de legitimidade de todos os poderes estatais e dos direitos fundamentais. A democracia, associada ao Estado de Direito, há que assegurar a igualdade substancial para que sejam estabelecidas regras que reconheçam as diferenças sociais, culturais e econômicas indispensáveis à convivência social (PEIXINHO, 2010, p.130). A indicação do ilustre proponente foi submetida ao exame de pertinência nos termos do artigo 66 do Regimento, in literris: 2 Artigo 66. Decidindo o Plenário pela pertinência de indicação objetivando o exame de ato ou fato que justifique a atuação institucional do IAB, segundo os seus objetivos estatutários, será encaminhada para Comissão ou Comissões com atribuições correspondentes, ou ainda a um ou mais membros, sempre a critério do Presidente. Em razão da urgência da matéria, o Plenário também aprovou que o parecer fosse feito em regime de urgência, nos termos do parágrafo único do artigo 65 do Regimento Interno, in verbis: Artigo 65. Omissis. Parágrafo único. Se for requerida urgência, apreciada e reconhecida ou afirmada pelo Plenário, será designado um relator, para que este ofereça, se possível, parecer oral, ainda na mesma Sessão. Desta forma, em razão da matéria está em perfeita pertinência com os fins perseguidos pelo IAB, a Comissão de Direito Constitucional incumbiu-me de elaborar um parecer sobre o tema sem que houvesse quaisquer defesas ideológicas ou políticopartidárias, apenas deveria a opinio juris se limitar ao exame de constitucionalidade e legalidade com o fito de contribuir para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e dos princípios republicanos. 1. OBJETIVO DO PARECER É de conhecimento público que o Brasil está passando por uma grave crise econômica e política e que há um embate ideológico entre os partidos de situação e oposição sobre os fundamentos jurídicos para um possível impedimento da Presidenta da República em razão de uma conjuntura instável. Como bem acentua Maurice Duverger (1996, p. 582), a ausência de consenso majoritário faz com que a composição do Parlamento interdite a formação de uma maioria parlamentar disciplinada e relativamente coerente, suscetível de durar normalmente durante uma legislatura. Assim, na ausência de maioria parlamentar estável e homogênea, os Parlamentos são onipotentes na aparência e os governos são frágeis. Neste parecer não será feito um estudo da conjuntura política na qual se insere o procedimento de impedimento da Chefe do Poder Executivo Federal. Antes, como já foi afirmado, o pronunciamento institucional do IAB se circunscreve a uma análise fundada na Constituição Federal, na Lei nº 1.079/1950 e nos 3 Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, acrescido de um detalhamento contextualizado da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O estudo do caso concreto sobre o impedimento da Presidenta da República tem como base teórica os direitos constitucional e administrativo, uma vez observada à pertinência da Comissão temática. Contudo, há estudos e pareceres sobre o processo de impedimento que já foram elaborados por estudiosos a partir de contributos dos direitos financeiro e tributário, o que não foi obstáculo para fossem feitas nesse parecer referências pontuais sobre os referidos estudos especializados. 2.CONCEITO DE IMPEACHMENT A expressão impeachment é derivada do francês (empêcher) e significa literalmente impedir, dificultar, acusar, imputar algum ilícito ou defeito a alguém. O ato de impeachment significa, ainda, desacreditar a retidão, conduta e a credibilidade (BABCOCK GOVE, 1961, p. 765). O sentido de impeachment também é utilizado para denotar um processo instaurado contra um agente público, instituído por uma acusação escrita. Na Inglaterra é privilégio da Câmara dos Comuns a instauração do impeachment, mas fica a cargo da Câmara dos Lordes julgá-lo no mérito. Nos Estados Unidos, o início do processo de impedimento começa na Câmara dos Deputados e o julgamento da responsabilidade cabe ao Senado (BLACK, M. A, 1990, p. 989 e LEAL, 1925, p. 436). No Brasil, similar aos países referenciados, o processo de impedimento tem início com a autorização da Câmara dos Deputados e o julgamento fica a cargo do Senado Federal. 1 3. O RITO DO PROCESSO DE IMPEACHMENT O rito processual adotado no caso de impedimento do Presidente da República está previsto na Constituição, regulado pela Lei nº 1.079/1950 e pelos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Porém, a ADPF 378 MC / DF2 alterou o teor de diversos dispositivos da Lei nº 1.079/1950 e dos Regimentos Internos. 1 A influência o instituto do impeachment estadunidense no direito brasileiro é registado por Margarida Lacombe Camargo e José Ribas Vieira (2016): “o debate travado hoje no Brasil a respeito da aplicação do instituto do Impeachment apresenta um ponto comum com o sistema constitucional norte-americano. Tanto no corpo da Constituição americana de 1787 quanto no quadro constitucional brasileiro, a adoção do Impeachment resultou de um processo de recepção. Os EUA herdaram da Inglaterra e nós dos americanos”. 2 ADPF 378 MC/DF-DISTRITO FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Relator (a): Min. EDSON FACHIN. Relator (a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO Julgamento: 17/12/2015. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação. PROCESSO ELETRÔNICO. DJe-043 DIVULG 07-03-2016. Publicado em 08-03-2016. 4 A seguir far-se-á uma análise dos dispositivos com as alterações advindas do Supremo Tribunal Federal-STF. Segundo o julgamento do STF, na ADPF 378 MC/DF, em interpretação conforme a Constituição do art. 38 da Lei nº 1.079/1950, “é possível a aplicação subsidiária dos Regimentos Internos da Câmara e do Senado ao processo de impeachment, desde sejam compatíveis com os preceitos legais e constitucionais pertinentes”. De acordo com a Lei nº 1.079/1950 e com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, para que seja admitida a acusação contra o Presidente da República, terão que ser observados os procedimentos a seguir descritos. Os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados dos Deputados e do Senado Federal são “leis orgânicas” do Poder Legislativo. O funcionamento do Parlamento é regulado pelo seu Regimento Interno, que é aprovado pelos parlamentes. José Afonso da Silva (2006, p. 344) afirma que os Regimentos Internos têm o objetivo de disciplinar a organização das duas Casas do Congresso Nacional para que não haja interferência indevida de uma Casa Legislativa em relação a outra. O Regimento Interno, ainda segundo José Afonso da Silva (2006, p. 345), tem importância como fonte normativa do processo legislativo que complementa a Constituição e garante a independência das Casas Legislativas ao ponto de a Constituição estabelecer “uma reserva de regimento interno sobre assuntos de sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção de cargos etc. Contudo, continua o celebrado constitucionalista, há uma clara distinção entre o Regimento Interno e a lei. O regimento interno regula as atividades interna corporis ao passo que a lei se destina à regulação das condutas humanas em geral. Porém, não há que se falar em hierarquia entre as espécies normativas, mas antes deve ser aplicado o princípio da competência. Ou seja, há uma reserva constitucional afetada ao Regimento interno e outra dirigida à lei em sentido formal. 4. A INSTAURAÇÃO DO PROCESSO DE IMPEACHMENT NA CÂMARA DOS DEPUTADOS O processo de impeachment se inicia com uma denúncia à Câmara dos Deputados que pode ser feita por qualquer cidadão que tenha conhecimento de fatos que se configurem crime de reponsabilidade 3. A denúncia deve ser fundamentada com a 3 Art. 15 da Lei nº 1.079/1950. 5 exposição de fatos e direito que demonstrem que a condutada do acusado se enquadra nos casos previstos na Constituição, na Lei nº 1.079/1950 e no Regimento Interno. 5. A DENÚNCIA NO PROCESSO DE IMPEACHMENT Compete ao Presidente da Câmara dos Deputados fazer o exame preliminar para o recebimento da denúncia.4 A avaliação dos pressupostos para o exame de admissibilidade da denúncia não se funda em decisão discricionária. Seria absurdo tal juízo porque os crimes de responsabilidades estão exaustivamente previstos nos atos normativos reguladores do impeachment. Da decisão que defere ou indefere o processamento da denúncia, cabe controle jurisdicional pelo Supremo Tribunal Federal porque a suposta conduta ilícita imputada ao agente político tem tipificação discriminada. Se a denúncia for deferida, desde que preenchidos os requisitos normativos, será encaminhada peça de libelo a uma Comissão Especial que a processará5. 6. A ADMISSIBILIDADE DO IMPEACHMENT NA COMISSÃO ESPECIAL Uma vez deferida a denúncia pelo Presidente da Câmara, inicia-se o processo de admissibilidade do impedimento do Presidente da República na Comissão Especial, que se reunirá no prazo de 48 (quarenta e oito horas) para eleger o Presidente e Relator.6 O acusado deve ser citado para apresentar a sua defesa prévia de dez sessões7 e a previsão para o término dos trabalhos da Comissão será de dez dias com a elaboração de parecer conclusivo sobre a admissibilidade da denúncia.8 A defesa deve demonstrar que a denúncia não está devidamente fundamentada com os argumentos jurídicos e com as provas que comprovam a prática indiciária do crime de responsabilidade. 9 Porém, nesta fase processual, não há uma defesa de mérito com um lastro probatório rigoroso 10. 4 "Impeachment do presidente da República: apresentação da denúncia à Câmara dos Deputados: competência do presidente desta para o exame liminar da idoneidade da denúncia popular, 'que não se reduz à verificação das formalidades extrínsecas e da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se pode estender (...) à rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se ao controle do Plenário da Casa, mediante recurso (...)'. MS 20.941-DF, Sepúlveda Pertence, DJ de 31-81992." (MS 23.885, rel. min. Carlos Velloso, julgamento em 28-8-2002, Plenário, DJ de 20-9-2002.) Vide: MS 30.672-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 15-9-2011, Plenário, DJE de 18-10-2011. 5 “Recebida a denúncia pelo Presidente, verificada a existência dos requisitos de que trata o parágrafo anterior, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os Partidos”. 6 §7º do art. 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 7 Art. 20 da Lei nº 1.079/1950 e §4º do art. 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 8 §5º do artigo 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados) e §1º do artigo 20 da Lei nº 1.079/1950. 9 Art. 16 da Lei nº 1.079/1950 e §1º do artigo 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 10 Art. 22 da Lei nº 1.079/1950. Segundo o STF (ADPF 378 MC/DF não foram recepcionados pela CF/1988 os artigos 22, caput, 2ª parte (que se inicia com a expressão “no caso contrário...”), e §§ 1º, 2º, 3º e 4º, da 6 Contudo, a defesa deve demonstrar a atipicidade da conduta supostamente ilícita. Na defesa prévia não devem ser desprezadas as provas que posam desconstituir uma denúncia inepta ou infundada.11 Se a peça de acusação não preencher os mínimos requisitos necessários para a configuração preambular do crime de responsabilidade, a denúncia deve ser rejeitada pela Comissão Especial. Porém, o juízo de admissibilidade feito pela Comissão deve ser aprofundado porque as consequências de uma imputação se desdobrarão nas fases seguintes e poderão afetar um agente político que foi sufragado pelo desejo democrático. Na formação da Comissão Especial observar-se-á o princípio da proporcionalidade partidária, uma vez que é de fundamental relevância que as minorias partidárias sejam ser representadas. 12 A Comissão Especial, concluído o parecer, lê-lo-á e o publicá-lo-á no expediente na Câmara dos Deputados e no Diário Oficial da respectiva Casa Legislativa. 13 O parecer da Comissão será debatido pelos Deputados e submetido à votação nominal14. 7. O PROCESSO DE IMPEACHMENT NO PLENÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS Recebida a denúncia pela Comissão Especial, caberá ao Plenário da Câmara aprovar ou rejeitar a acusação. Rejeitada a acusação, o processo será arquivado. Se for aceita a denúncia, o processo seguirá para o Senado para que delibere sobre o mérito da acusação. O trâmite do processo de impeachment no Plenário da Câmara é apenas de ratificação ou indeferimento da denúncia. 15 Nessa fase processual processada na Câmara Lei nº 1.079/1950, que determinam dilação probatória e uma segunda deliberação na Câmara dos Deputados, partindo do pressuposto que caberia a tal Casa se pronunciar sobre o método da acusação). 11 Art. 18 da Lei nº 1.079/1950). Segundo o julgamento do STF na ADPF 378 MC/DF, “o art. 19 da Lei nº 1.079/1950, no ponto em que exige proporcionalidade na Comissão Especial da Câmara dos Deputados com base na participação dos partidos políticos, sem mencionar os blocos parlamentares, foi superado pelo regime constitucional de 1988. Este estabeleceu expressamente: (i) a possibilidade de se assegurar a representatividade por bloco (art. 58, § 1º) e (ii) a delegação da matéria ao Regimento Interno da Câmara (art. 58, caput). A opção pela aferição da proporcionalidade por bloco foi feita e vem sendo aplicada reiteradamente pela Câmara dos Deputados na formação de suas diversas Comissões, tendo sido seguida, inclusive, no caso Collor. Improcedência do pedido. Assentou, ainda, o STF na ADPF 378 MC/DF, que “não há direito a defesa prévia ao ato de recebimento pelo Presidente da Câmara dos Deputados previsto no art. 19 da Lei nº 1.079/1950”. 12 Art. 19 de Lei 1.079/1950. 13 §2º do art. 20 da Lei nº 1.079/1950) e §6º do art. 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 14 §8º do art. 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 15 Art. 21 da Lei 1.079/1950. No julgamento na ADPF 378 MC/DF o STF declarou “recepcionados pela CF/1988 os artigos 19, 20 e 21 da Lei nº 1.079/1950 interpretados conforme a Constituição, para que se entenda que as diligências e atividades ali previstas não se destinam a provar a (im) procedência da acusação, mas apenas a esclarecer a denúncia. 7 é admitida a realização de diligências com objetivo de esclarecer determinados pontos da denúncia, mas não é compatível com essa fase do processo a produção de provas que enfrentem o mérito da denúncia. O julgamento deve observar o teor da acusação prevista no relatório aprovado pela Comissão Especial. Será admitida a abertura do processo de impedimento mediante a aprovação de dois terços de votos dos membros da Casa Legislativa mediante votação nominal. 16 Acatada a denúncia, a Câmara dos Deputados enviará a comunicação formal ao Senado Federal para que delibere em juízo de admissibilidade e posteriormente sobre o mérito da acusação. Porém, o que na verdade ocorre durante a votação de admissibilidade do processo de impeachment é que os Deputados, salvo raríssimas exceções, votam de acordo com as suas convicções e seus interesses políticos e deixam de lado qualquer preocupação jurídica, o que esvazia, significativamente, o real objetivo do propósito do impedimento do mais alto agente político que foi sufragado pelo voto popular. Na hipótese de descaso à finalidade do processo de impedimento advém, inegavelmente, o desvio de finalidade do Poder Legislativo com afronta aos dispositivos constitucionais e legais norteadores do processo de impedimento. Existe inconstitucionalidade porque a Constituição prevê que os parlamentares deliberem sobre o impedimento do Presidente de acordo com as normas previstas na Carta Magna. Há mácula ao princípio da legalidade porque o ritual legal do processo de impedimento está positivado na Lei nº 1.079/1950 e não em convicções pessoais ou supostas ilações conjunturais políticas ou econômicas. Ora, muitos argumentos utilizados pelos Deputados Federais e por alguns Senadores para fundamentarem a admissibilidade do impeachment foi o cometimento de ilícitos pela Presidenta da República em razão do denominado “conjunto da obra”. Ora, os princípios da constitucionalidade e da legalidade (juridicidade) são a sustentação do Estado Democrático de Direito, sem os quais se eternizariam o dogma l'état c'est moi atribuído a um modelo de governo absolutista, o que inclui, sem dúvida, a usurpação do Poder Legislativo. Segundo o professor Luís Roberto Barroso, “nenhum ato contrário à Constituição pode ser válido. E a falta de validade traz 16 §9º do art. 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Artigo com redação dada pela Resolução nº 22, de 1992 e art. 23 da Lei nº 1.079/1950. 8 como consequência a nulidade ou a anulabilidade. Ato inconstitucional é o ato nulo de pleno direito” (BARROSO, 2012, p. 37). O princípio da legalidade sob o ponto de vista formal preserva a própria autoridade do Poder Legislativo e a hierarquia normativa em que a Constituição baliza os atos das autoridades públicas e protege o cidadão dos atos de arbítrio (RIVERO; WALINE, 1996, p. 79). Pode-se dizer que qualquer decisão administrativa sem o respaldo dos princípios da constitucionalidade e da legalidade desagua “no funcionamento patológico do poder (demonia), associado à forte presunção da possibilidade de transgressão dos seus limites” (QUEIROZ, 2009, p. 285), ou no que conceitua Jorge Miranda, de “desvio de poder legislativo” (MIRANDA, 2013, p.40). 8. O PROCESSO DE IMPEACHMENT NO SENADO FEDERAL Recebida a comunicação da Câmara com a autorização para a abertura do processo de impedimento, o Senado iniciará o processo mediante a observância de duas etapas processuais. A primeira etapa se dá com a distribuição da denúncia para uma Comissão Especial. A segunda etapa é feita pelo plenário. A Comissão Especial observará na sua composição, à semelhança do ocorre na Câmara, a proporcionalidade partidária 17. Competirá a Comissão Especial instruir o processo de acusação, coletar as provas necessárias, ouvir as partes interessadas e testemunhas. Contudo, a produção de provas nesta fase é apenas para deliberar sobre a admissibilidade da acusação. Nessa fase processual não há juízo de mérito. Contudo, em respeito ao princípio do devido processo legal, é fundamental que a Comissão prestigie os meios necessários à ampla defesa, ainda que de forma sumária. Após o cumprimento de todas as formalidades instrutórias, a comissão deliberará, por maioria simples, se aceita ou recusa a denúncia. Recebida a denúncia, será encaminhada a peça de libelo para a apreciação pelo plenário do Senado, que também deliberará por maioria simples se aceita ou recusa a denúncia. Recusada a denúncia, o processo será arquivado.18 17 Art. 52 da Constituição Federal, artigo 24 Lei nº 1.079/1950 e artigo 380 do Regimento Interno do Senado. 18 ADPF 378-MC, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, julgamento em 16-12-2015, Plenário, DJE de 8-32016. 9 Aceita a denúncia, o Presidente da República será afastado por até 180 dias. 19 Neste prazo será feito o juízo probatório elástico com a produção de todas as provas necessárias ao julgamento do mérito da acusação sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal. 20 Se o processo não for julgado no prazo de 180 dias, haverá o retorno do acusado. O Presidente do Supremo Tribunal Federal é a instância recursal natural para dirimir os conflitos que venham a ocorrer durante o julgamento do mérito do processo de impedimento. No julgamento do Senado, segundo o parágrafo único do artigo 52 da Constituição Federal e do artigo 378 do Regimento Interno do Senado há a obrigatoriedade de dois terços dos membros do Senado para que haja a condenação do acusado. No caso de autorização para abertura do processo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o quórum é de maioria simples, à semelhança do que ocorre para abertura do processo de julgamento de Ministros do STF e PGR21. A interpretação do Supremo Tribunal Federal que deu tratamento isonômico de quórum para abertura do processo de impedimento do Presidente, Vice-Presidente, Ministros do STF e o PGR é um duro revés para a democracia, uma vez que o Presidente da República é eleito pelo voto popular e mereceria um quórum qualificado. É muito mais viável a acusação conseguir a admissibilidade do processo por maioria simples do que com a maioria qualificada de dois terços. Neste caso, a interpretação do STF foi desfavorável ao réu e favorável ao acusador, até porque com a abertura do processo pelo plenário do Senado, o Presidente é afastado imediatamente da sua função por até 180 dias. Ora, se a Constituição é omissa quanto ao quórum para a abertura do processo de impedimento, o STF deveria optar, hermeneuticamente, pelo princípio mais favorável ao acusado, ou seja, deveria a Suprema Corte adotar o quórum que mais beneficiasse o réu.22 19 Constituição Federal, artigo 86, § 1º, II e § 2º. Constituição, art. 52, parágrafo único e parágrafo único do art. 377 do Regimento Interno do Senado Federal. 21 Art. 24 da. Lei nº 1.079/1950. O STF (ADPF 378 MC/DF) deu interpretação conforme a Constituição ao art. 24 da Lei nº 1.079/1950 a fim de declarar que, com o advento da CF/1988, o recebimento da denúncia no processo de impeachment ocorre apenas após a decisão do Plenário do Senado Federal, em votação nominal tomada por maioria simples e presente a maioria absoluta de seus membros. Assim, o STF (ADPF 378 MC/DF) declarou “constitucionalmente legítima a aplicação analógica dos artigos 44, 45, 46, 47, 48 e 49 da Lei nº 1.079/1950, os quais determinam o rito do processo de impeachment contra Ministros do STF e PGR ao processamento no Senado Federal de crime de responsabilidade contra Presidente da República”. Assim, o STF negou a interpretação que pretendia que Senado adotasse o quórum de 2/3 do Plenário para confirmar a instauração do processo. 22 Art. 38 da Lei 1070/1950. 20 10 Os Ministros do STF e o PRG não podem ser igualizados ao Presidente da República por um motivo muito singelo: os Ministros do STF são indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, enquanto o PRG é escolhido pelos seus pares e escolhido pelo Chefe do Poder Executivo. O Presidente da República é eleito pelo voto popular, a maior expressão da democracia representativa. 9. OS CRIMES DE RESPONSABILIDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS ANTERIORES À CONSTITUIÇÃO DE 1988 Os crimes de responsabilidade passíveis de violação pelo Presidente da República estão tipificados em todas as Constituições brasileiras, com exceção da Constituição Política do Império do Brasil (1824) em razão da milenar tradição monárquica absolutista traduzida nas expressões inglesa e francesa respectivamente the king can do no wrong e le roi ne peut mal faire23. Contudo, todas as Constituições posteriores, quais sejam, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988, dedicaram capítulos específicos aos crimes de responsabilidade. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 previu no artigo 54 os crimes de responsabilidade. É de se observar que a Constituição em comento positivou os crimes de responsabilidade para Deputados, Senadores, Presidente da República e Ministros. Porém, foi silente no caso de crime de responsabilidade praticado por Vice-Presidente da República. Segundo Carlos Maximiliano (1918, p. 643), a Constituição brasileira de então é mais precisa do que a Constituição estadunidense ao determinar o que se deve considerar crime de responsabilidade. Na tradição estadunidense, o processo de impeachment seria aplicável ao Presidente, ao VicePresidente e a todos os funcionários civis dos Estados Unidos em caso de condenação pela Câmara dos Deputados nos crimes de traição, suborno, outros crimes graves e atos ilícitos. Porém, as expressões são vagas e por demais elásticas. No caso brasileiro, a Constituição especificou os crimes de responsabilidade e exigiu que lei especial dispusesse as normas específicas. O artigo 57 da Constituição da Constituição de 1934 dispôs sobre os crimes de responsabilidade de forma diferente do contido na Constituição de 1891. Esta estatuía que Pedro Calmon escrevia, em 1938, que “o Presidente é absoluto” – sua órbita de constitucional. Não se comunica com o Congresso – absoluto na sua esfera exclusiva – senão no gozo do direito de veto das proposições legislativas” (CALMON, 1938, p. 272). 23 11 o Presidente da República fosse processado e julgado depois que a Câmara dos Deputados declarasse procedente a acusação perante o Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns. Quanto aos crimes de responsabilidade, caberia ao Senado julgá-los. A Constituição de 1934 alterou a sistemática da Constituição de 1891 e dispôs de forma diversa ao prever um Tribunal Especial para julgar o Presidente da República, formado por membros da Corte Suprema, membros do Senado Federal e Câmara Federal. Não havia na Constituição de 1891 nenhuma referência ao prazo de inabilitação. Apenas dizia que o Senado não poderia impor outras penas além da perda do cargo e da incapacidade para exercer qualquer outro cargo, sem prejuízo da possibilidade de o Presidente sofrer outra ação na justiça comum. De acordo com o artigo 3º da Lei 27 de 1892, o processo contra o Presidente somente seria possível na vigência do mandato presidencial e cessaria quando o Presidente deixasse o cargo (ARAUJO, 1936, p. 236). O artigo 89 e incisos da Constituição de 1946 dispõem sobre os crimes de responsabilidade. Os crimes de responsabilidade estão submetidos ao princípio da legalidade, ou seja, cabe ao legislador por meio de lei especial definir esses crimes e instituir as normas processuais aplicáveis à espécie. Esta doutrina é perfeitamente aceita na vigência tanto da Constituição de 1937, no artigo 54, §1º, §2º e §3º e da Constituição de 1946, no parágrafo único do artigo 89. A lei especial a que se refere à Constituição de 1946, é a Lei nº 1079/1950 (ESPINOLA, 1952, p. 423). A Constituição de 1967, a despeito do regime autoritário, prescreveu os casos de crimes de responsabilidade. Segundo Pontes de Miranda (1966, p. 345), os crimes de responsabilidade do Presidente da República são similares, salvo algumas diferenças, aos previstos no artigo 54 da Constituição de 1891. A Lei nº 30, de 1892 definiu os crimes a que se referia o artigo 54 e vigorou até 10 de abril de 1950. A Constituição de 1988, no que diz respeito à responsabilização do Presidente da República por atos anteriores ao mandato, ao vedá-la no §4º do artigo 86, insculpiu uma verdadeira imunidade presidencial. No dizer de Francis Hamon e Michel Troper “les immunités présidentielles dérogent au principe de l’égalité devant la loi: il est donc raisonnable de les limiter à ce risque vraiment d’empêcher le President de remplir la mission que le peuple lui confiée” (HAMNON; Michel, 2007, p. 626). Logo, o ato normativo que submente ao Plenário da Câmara dos Deputados os atos praticados pelo Presidente da República anteriores ao mandato, além de ser inconstitucional, é violador 12 de uma imunidade democrática porque macula a vontade popular preestabelecida pelo Poder Constituinte originário. 10. A TIPIFICAÇÃO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E NA LEI 1.079/1950 As normas jurídicas são impositivas, cogentes e impõem deveres e responsabilidades. São imperativas e o seu descumprimento importará em sanção ao infrator. As normas jurídico-políticas estão previstas na Constituição e dependem de diversos fatores para que sejam aplicadas pelos atores políticos. A conjuntura histórica, social, econômica e política determinam a eficácia e a legitimidade dessa espécie normativa. Paulo Brossard (1992, p. 75) deixou como legado doutrinário uma definição que se tornou clássica e é reproduzida à exaustão por muitos doutrinadores. Diz o saudoso jurista que tanto no direito brasileiro e argentino, “o impeachment tem feição política, não se origina senão em causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e julgado segundo critérios políticos – julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios jurídicos”. Destarte, ainda que o processo de impedimento reúna um conjunto de normas com feições políticas, as normas materiais e processuais estão sujeitas ao controle jurisdicional. A admissibilidade e o julgamento do impeachment são feitos por juízes políticos (Deputados e Senadores), mas o procedimento e o direito material são submetidos ao estreito controle do Poder Judiciário, conforme se pode observar do controle de legalidade e constitucionalidade feito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, que é a instância última na condução do processo no âmbito do Senado Federal. Evandro Lins e Silva (1992) faz uma análise severamente técnica e lúcida do papel do Senado Federal no julgamento do mérito do processo de impeachment: “no impeachment, a decisão do Senado não pode ser tachada de uma simples votação de lei ou de um mero ato do poder político. Tudo gira em torno uma regra constitucional, por um poder político da União, convertido em Tribunal”. Na mesma linha de raciocínio, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1992) aduz que no “presidencialismo, o Presidente da República não é politicamente responsável perante o Congresso Nacional. Isto significa que, em última análise, não poder ele ser afastado do cargo por motivos e razões meramente políticas, como as que decorrem da 13 desaprovação de sua política de governo, da orientação geral que imprime à ação governamental”. No presidencialismo, o Presidente desfruta de uma independência exclusiva na política nacional em razão de ter sido sufragado pelo voto popular MORRISON (2000, p. 42). 11. A INTERPRETAÇÃO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE A interpretação das hipóteses que configuram crimes de responsabilidade deve ser seguir a orientação da legalidade estrita da ciência penal. Segundo Juarez Tavares (2002, p. 30), o princípio da legalidade estrita “é aquele formalmente indicado pela lei como pressuposto necessário para a aplicação de uma pena, segundo a clássica fórmula nulla poena et nullum crimen sine lege”. Assim, diante uma interpretação estrita “não pode qualificar como delito todos (ou somente) os fenômenos que considere imorais ou, em todo caso, merecedores de sanção, mas apenas (e todos) os que, independentemente de sua valoração, venham designados pela lei como pressupostos de uma pena”. Por último, aduz Juarez Tavares (2002, p. 31) que “o princípio da legalidade estrita é pressuposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrária e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter constitutivo e não regulamentar daquilo que é punível”. Na lição sempre atual do saudoso professor espanhol Eduardo García de Enterría (2001, p. 166-167), os princípios inspiradores da ordem penal são aplicáveis ao direito sancionador estatal, uma vez que um mesmo bem jurídico pode ser protegido por técnicas administrativas e penais. Assim, em caso de lacuna no quadro normativo administrativo, é possível a utilização de normas penais. A explicação para uma intepretação restritiva das normas que tipificam crimes de responsabilidade é pedagógica: os crimes de responsabilidade têm consequências gravíssimas porque podem demitir do mandato eletivo um Presidente da República eleito diretamente pelo sufrágio popular. Destarte, os dispositivos incriminadores que configuram crime de responsabilidade não permitem interpretação analógica, extensiva, teleológica ou de qualquer outro método hermenêutico que expanda o conteúdo do tipo específico.24 Dito de maneira imperativa, fora do catálogo discriminado pelos atos normativos que tipificam os crimes de responsabilidade deve ser afastada a denúncia. Ademais, a denúncia só tem validade enquanto o imputado exercer 24 Sobre as interpretações declarativa, restritiva e extensiva, bem como sobre o método teleológico, cf. (PEIXINHO, 2015, p. 31 e 37) 14 o mandato eletivo. Se, por qualquer motivo, o indigitado deixar definitivamente o cargo, a denúncia perderá o objeto. A insistência na aplicação da ciência penal subsidiariamente ao processo de impeachment decorre da observância do artigo 38 da Lei 1.079/50: “no processo e julgamento do Presidente da República e dos Ministros de Estado, serão subsidiários desta lei, naquilo em que lhes forem aplicáveis, assim os regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, como o Código de Processo Penal. Ora, por uma questão de lógica metódica e racionalidade jurídica se o processo de impedimento segue o rito do processo penal numa aplicação subsidiária, as normas que configuram os crimes de responsabilidade se assemelham às normas penais materiais: são rígidas e inflexíveis e não autorizam que haja qualquer imputação se não houver previsão explícita nos catálogos punitivos as condutas reprováveis. Na Constituição de 1988, os crimes de responsabilidade estão tipificados no artigo 85. Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento. O artigo 4º Lei nº 1.079/1950 define os crimes de responsabilidade de acordo com a seguinte dicção. Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: I - A existência da União: II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; III - O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: IV - A segurança interna do país; V - A probidade na administração; VI - A lei orçamentária; VII - A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; VIII - O cumprimento das decisões judiciárias (Constituição, artigo 89). 15 Há a mesma tipificação para os crimes de responsabilidade tanto artigo 85 da Constituição quanto na Lei nº 1.079/1950. As únicas diferenças são as seguintes: (1) O inciso II do artigo 85 da Constituição tipifica como crime de responsabilidade atentar contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”, enquanto o inciso II da Lei nº 1.079/1950 tipifica como crime de responsabilidade a violação ao “livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados”. A Constituição de 1988 incluiu a tipificação dos atos presidenciais que violam o livre exercício do Ministério Público. (2) O inciso VII do artigo 85 da Constituição tipifica como crime de responsabilidade o descumprimento “das leis e das decisões judiciais”, enquanto o inciso VII da Lei nº 1.079/1950 tipifica como crime de responsabilidade violar “a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos”. A despeito da Constituição de 1988 não ter recepcionado esta tipificação, a prática de atos que “atentem contra a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos” já está tipificada no inciso V que veda a violação da “probidade na administração” e no inciso VI que impõe o respeito à lei orçamentária. Ambas as vedações também estão nos incisos V e VI respectivamente da Lei nº 1.079/1950. Quanto ao cotejo dos dispositivos constitucionais e legais, é relevante registrar que o parágrafo único do artigo 85 da Constituição aduz que os crimes de responsabilidade serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento. A lei especial a que se refere à Constituição é justamente a Lei nº 1.079/1950, que foi recepcionada pela Constituição de 1988 com as modificações impostas pela jurisprudência do STF. É importante distinguir os crimes comuns dos crimes de responsabilidade. Os crimes comuns são aqueles estatuídos no Código Penal e nas leis especiais que tipificam condutas reprováveis. Os crimes de responsabilidade, por sua vez, são ilícitos jurídicos praticados por agentes políticos. A tipificação dos crimes de responsabilidades está prevista no artigo 85 da Constituição e na Lei nº 1.079/1950 (BROSSARD, 1992, p. 56). Não é possível criar tipificações por meio de atos normativos infralegais e por analogia. Nesse sentido, a lição de Pontes de Miranda (1967, p. 350-352) é peremptória: “crimes de responsabilidade, no Brasil, são apenas aqueles que a lei apresenta – lei 16 necessariamente federal – como crimes de responsabilidade”. Acrescenta o saudoso jurista que “os atos que se encadeiam desde a denúncia ou queixa até a sentença final são atos do processo, para aplicação de regras jurídicas, concernentes ao investido da função pública...” “Temos, pois, que os princípios que regem a responsabilização do Presidente da República (e dos Governadores estaduais e dos Prefeitos) são princípios de direito constitucional e de princípios de direito processual”. 12. AS DIFERENÇAS ENTRE OS ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS E OS CRIMES DE RESPONSABILIDADE. Os crimes de responsabilidade estão tipificados de forma exaustiva no artigo 85 da Constituição Federal e no artigo 4º da Lei 1079/1950, conforme visto anteriormente. Assim, quando se trata de processo sancionatório em que há restrição de direitos e garantia, a interpretação do rol das tipificações deve ser restritiva, à semelhança do que ocorre com o direito penal e com o direito administrativo sancionador. O princípio da tipificação decorre diretamente do princípio da legalidade, a saber: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art.5º, II, CF/88). Por conseguinte, seria inconstitucional e ilegal a ampliação dos casos de crimes de responsabilidade fora dos estritos limites previstos nos atos normativos que regulam a matéria (OSÓRIO, 2000, p. 207-208). A feição que se dá ao princípio da legalidade não se confunde com a observância doentia à literalidade das leis, mas, ao contrário, o princípio da legalidade significa, na lição sempre atual de Miguel Seabra Fagundes (2010, p. 116) “que todas as atividades administrativas são limitadas pela subordinação à ordem jurídica, ou seja, à legalidade... Onde há lei escrita, não pode haver arbítrio. Por outro lado, sendo a função administrativa, que constitui o objeto das atividades da Administração Pública, essencialmente realizadora do direito, não se pode compreender seja exercida sem que haja texto legal autorizando-a ou além dos limites deste”. Assim, a função administrativa se caracteriza e deve definir-se por sua subordinação à lei (MALBERG, 2001, p.480). O recurso ao princípio da legalidade nos sentidos formal e substancial é indispensável à sustentação de legitimidade dos atos administrativos. Deve-se observar tanto a legalidade formal, ou seja, a vinculação dos atos administrativos ao estatuído pelo legislador, quanto à legalidade substancial, que 17 impõe aos agentes públicos uma ação administrativa que penetra no próprio exercício do poder (CARINGELLA, 2010, p. 46). No exame dos tipos definidos como crimes de responsabilidade, o ato administrativo que decidiu pela autorização de despesas sem que houvesse recursos suficientes para o pagamento das despesas não é tipificado como crime de responsabilidade. No rol constante do artigo 85 da Constituição e no elenco do artigo 4º da Lei 1079/1950 não está previsto o ilícito denominado “autorização de despesas não autorizadas e sem os recursos orçamentários”. A acusação de que as “pedaladas” tiveram o objetivo de maquiar as contas públicas e majorar o déficit primário pode ser uma decisão administrativa reprovável, mas não se constitui em crime de responsabilidade. Na decisão do Tribunal de Contas da União-TCU (Acórdão 825/2015) ficou caracterizado o ilícito administrativo nos seguintes termos: passando agora ao objeto inicial desta representação, qual seja, o suposto atraso, por parte da União, nos repasses de valores destinados ao pagamento de benefícios de programas sociais, subsídios e subvenções de sua responsabilidade, restou confirmado nos autos que: i) despesas concernentes ao bolsa família, ao seguro-desemprego e ao abono foram pagas pela Caixa: ii) subsídios do Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV vêm sendo financiados pelo FGTS; e iii) subvenções econômicas, sob a modalidade de equalização de taxas de juros, vêm sendo bancadas pelo BNDES ou pelo Banco do Brasil. Uma vez caracterizados como operações de crédito, tais procedimentos violam restrições e limitações impostas pela LRF. Primeiro, porque, no que se refere aos recursos disponibilizados pela Caixa e pelo BNDES, envolvem instituições financeiras públicas controladas pelo ente beneficiário dos valores, contrariando o art. 36 da LRF, segundo o qual é “proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. Depois, porque não atendem às formalidades requeridas no art. 32 da referida lei, em especial a necessidade de prévia e expressa autorização no texto da lei orçamentária para sua contratação, estabelecida no inciso I do § 1° do referido artigo. E, ainda, porque, circunstancialmente, infringem a vedação do art. 38, 18 inciso IV, alínea “b”, da Lei, que proíbe a contratação de crédito por antecipação de receita no último mandato do Presidente da República. O segundo argumento que daria ensejo ao crime de responsabilidade fiscal é a utilização por parte do acusado de decretos não numerados que foram utilizados no dia 27/07/2015 a visar à abertura de créditos suplementares. Sob a análise financeira e tributária, o professor Ricardo Lodi (2015, p. 27-29) com a cultura que lhe é peculiar, fez uma análise dois fundamentos utilizados pelo TCU para fundamentar a rejeição das contas da Presidenta Dilma Russeff. a) As chamadas pedaladas fiscais, assim entendidas como o atraso do repasse para o adimplemento dos benefícios sociais pelos bancos públicos, a partir do fluxo de caixa para o suprimento de fundos estabelecidos no âmbito a relação de prestação de serviços dessas instituições financeiras e a União, não se traduzem em operações financeiras, não se enquadrando, portanto, na vedação prevista no artigo 36 da LRF; b) a violação da LRF não se confunde com a violação da lei orçamentária como permissivo para a abertura do processo de impeachment, não havendo na Constituição e na Lei nº 1.079/50 qualquer previsão de crime de responsabilidade consistente na violação da lei de responsabilidade fiscal; c) não há no art. 10 da Lei nº 1.079/50 a descrição de qualquer conduta a que, em tese, se pudessem subsumir os fatos narrados no parecer do TCU, da denúncia dos juristas ou na decisão do Presidente da Câmara dos Deputados; d) não há possibilidade de processar a Presidente da República por condutas supostamente praticadas antes do início do seu mandato, que se iniciou em 01/01/15; por isso, os fatos descritos no Parecer Prévio do TCU no Processo TC nº 005.335/2015.9, que sugeriu a rejeição das contas da Presidência da República em 2014, não se prestam para o processamento do processo de impeachment; e) a abertura de créditos suplementares foi autorizada pelo artigo 4º da Lei Orçamentária Anual de 2015, com a alteração da meta primária levada a efeito pela Lei nº 13.199/15, não havendo que se falar em abertura de créditos sem previsão legal; 19 f) os procedimentos imputados à Presidente Dilma Rousseff no ano de 2015 são amparados pela jurisprudência do TCU estabelecida até 2014, em posicionamentos aprovados pelo Congresso Nacional; g) a modificação dos critérios de interpretação das leis financeiras e dos fatos pelo TCU e pelo Congresso Nacional devem ter efeitos prospectivos, sob pena de violar a proteção à confiança legítima, a segurança jurídica e a democracia; h) não é qualquer violação à lei de orçamento que pode ensejar a caracterização de crime de responsabilidade, devendo os princípios orçamentários serem ponderados com outros, como o da continuidade do serviço público e com a previsão de riscos de bancarrota estatal; i) não há razões jurídicas para a admissibilidade de processo para a apuração de crime de responsabilidade da Presidente Dilma Rousseff a partir do pedido formulado por Miguel Reale Jr., Hélio Bicudo e Janaina Paschoal, e que foi recebido pelo Presidente da Câmara dos Deputados. Como se pode observar da análise feita pelo professor Ricardo Lodi Ribeiro, as razões deduzidas pelo Tribunal de Contas da União e, respectivamente, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado são desprovidas de fundamentação jurídica porque não violam as leis orçamentárias e nem a Lei de Responsabilidade Fiscal. No que diz respeito ao objeto da análise deste parecer, à luz do direito administrativo e do direito constitucional, as denominadas pedaladas fiscais e a utilização de decretos não autorizados que deram ensejo à abertura de créditos suplementares não são tipificados como crimes de responsabilidades pelo artigo 85 (I a VII) da Constituição Federal e nem pelo artigo 4º (I a VIII) da Lei 1079/1950. 13. A RESPONSABILIDADE PESSOAL DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA NOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE Um dos princípios fundamentais do direito administrativo é o princípio da hierarquia ou o poder hierárquico. A Administração Pública é composta de órgãos e servidores públicos que são dispostos nas diversas instâncias administrativas a visar o cumprimento do interesse público. Segundo a lição sempre atual do saudoso professor Hely Lopes Meirelles (2008, p. 123), “o poder hierárquico é o de que dispõe o Executivo 20 para distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre servidores do seu quadro funcional”. Porém, o poder hierárquico deve ser compatibilizado com a desconcentração administrativa que visa possibilitar que os diversos órgãos administrativos sejam ágeis, céleres e eficientes para que a máquina burocrática estatal25 alcance os objetivos perseguidos pelas políticas governamentais. A desconcentração administrativa significa, de acordo com a lição do professor Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 154), “a distribuição interna de plexos de competências decisórias, agrupadas em unidades individualizadas”. Segundo, ainda, o douto administrativista, a desconcentração “se faz em razão da matéria, isto é, em razão do assunto (por exemplo, Ministério da Justiça, da Saúde, da Educação), como em razão do grau (hierarquia), ou seja, do nível de responsabilidade decisória conferido aos distintos escalões que corresponderão aos diversos patamares de autoridades (por exemplo, diretor de Departamento, diretor de Divisão, chefe de Sessão, encarregado de Setor”. Ao discorrer sobre os princípios da organização do Poder Executivo, Alexandre Santos Aragão (2012, p. 106), cita, dentre os referidos princípios, o princípio da especialidade, que “é inerente à descentralização e à desconcentração administrativa, pela qual o estado destaca algumas de suas atividades para serem desempenhadas por determinadas entidades ou órgãos”. O princípio da especialidade é fundamental na estrutura da organização administrativa porque não somente permite uma divisão de competência mais transparente, mas, também, possibilita melhor eficiência na prestação dos serviços públicos, uma vez que na figura do Presidente da República não podem ser concentradas todas as competências. Na Tomada de Contas de Contas - TC 021.643/2014-8, o Tribunal de Contas da União-TCU decidiu acolher a representação feita pelo Ministério Público junto ao TCU “acerca de indícios de irregularidades, noticiados em jornais e revistas de grande 25 A burocracia estatal, segundo Max Weber (1999, p.142-143) exige a presença de elementos estruturadores da organização estatal, dentre os quais podem ser enumeradas as competências legais e um quadro administrativo formado por servidores públicos com qualificação profissional estruturados em cargos públicos hierarquizados. A administração pública burocrática se exige a forma mais racional do exercício de dominação para que seja alcançada na finalidade estatal “o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade 21 circulação no país, relacionados ao atraso no repasse às instituições financeiras dos valores destinados ao pagamento de despesas de responsabilidade da União, tais como o bolsa família, o abono salarial, o seguro-desemprego, os subsídios de financiamento agrícola e os benefícios previdenciários”. Na referida representação são chamados ao processo administrativo diversos entes administrativos que compõem a Administração Pública Direta e Indireta e agentes públicos, a exemplo, dentre outros, do Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional (STN), Banco Central do Brasil (Bacen), Caixa Econômica Federal (CAIXA), Banco do Brasil S.A. (BB), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Ministério das Cidades e Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Os agentes públicos que foram chamados a integrarem o processo administrativo foram: Guido Mantega (Ministro de Estado da Fazenda), Nelson Henrique Barbosa Filho (Ministro de Estado da Fazenda interino), Dyogo Henrique de Oliveira (Ministro de Estado da Fazenda interino), Arno Hugo Augustin Filho (Secretário do Tesouro Nacional), Marcus Pereira Aucélio (Subsecretário de Política Fiscal da Secretaria do Tesouro Nacional), Marcelo Pereira de Amorim (Coordenador-Geral de Programação Financeira da Secretaria do Tesouro Nacional), Adriano Pereira de Paula (CoordenadorGeral de Operações de Crédito do Tesouro Nacional), Alexandre Antônio Tombini (Presidente do Banco Central do Brasil), Tulio José Lenti Maciel (Chefe do Departamento Econômico do Banco Central do Brasil), Jorge Fontes Hereda (Presidente da Caixa Econômica Federal), Aldemir Bendine (Presidente do Banco do Brasil), Luciano Galvão Coutinho (Presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), Manoel Dias (Ministro do Trabalho e Emprego), Tereza Helena Gabrielli Barreto Campello (Ministra de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome), Gilberto Magalhães Occhi (Ministro de Estado das Cidades), Carlos Antonio Vieira Fernandes (Secretário Executivo do Ministério das Cidades), Laércio Roberto Lemos de Souza (Subsecretário de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério das Cidades), Lindolfo Neto de Oliveira Sales (Presidente do Instituto Nacional do Seguro Social) e Laércio Roberto Lemos de Souza (Subsecretário de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério das Cidades). 26 26 Cf. http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/1/2686756.PDF 22 Ora, como se pode observar, de acordo com o princípio da hierarquia e da desconcentração administrativa, a responsabilidade por possíveis atos de irregularidades, se existiram, devem ser atribuídos aos agentes públicos a que foram delegadas as competências administrativas, uma vez que as instâncias administrativas desconcentradas autorizam que os diversos agentes públicos atuem com autonomia administrativa no âmbito de suas competências. O Presidente da República exerce, de acordo com a Constituição, na competência de chefe de governo, “com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal (artigo, 84, II). A direção superior da administração federal, exige, necessariamente, uma competência desconcentrada distribuída pelos diversos agentes públicos, a exemplo dos Ministros de Estado, Secretários de Estado, dentre outros servidores públicos altamente qualificados. Seria despropositado e absurdo se todos os atos administrativos de competência dos diversos agentes públicos fossem obrigatoriamente homologados pelo Presidente da República: a máquina administrativa não funcionaria. Na verdade, os atos administrativos que devem ser homologados pelo Presidente da República são aqueles explícitos na Constituição e na lei. Observe-se que a Constituição Federal elencou as intervenções prioritárias do Presidente da República e que não podem ser exercidas por agentes delegados, a não ser que o próprio texto constitucional o autorize. É o caso das competências privativas previstas no rol do artigo 84, incisos I até XXVII.27 Os poderes do Presidente, segundo Queiroga Lavié (1987, p.230) se exercem de forma individual, em razão de seus Ministros não formarem um colegiado, adotadas suas resoluções com unidade de decisão, a qual garante a eficácia e uniformidade na ação do Estado. No presidencialismo, os auxiliares do Presidente, a exemplo do Presidente, são responsáveis pelos atos de sua competência e há um vínculo de solidariedade com os outros agentes públicos que atuam nas diversas esferas de competência (ZARINI, 1999, p.802), porém a solidariedade não implica nem na ausência de autonomia das instâncias administrativas e nem na fragmentação das competências. Desta forma, os agentes 27 Citem-se, apenas à guisa de exemplo, algumas competências; I - nomear e exonerar os Ministros de Estado; II - exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal; III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição; IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; V - vetar projetos de lei, total ou parcialmente; VI – dispor, mediante decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001) a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001) b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001). 23 públicos que auxiliam o Presidente da República atuam com autonomia e de acordo com regras de competência. Nestas regras, segundo Klaus Stern (286) são reconhecidas competências a determinados órgãos do Estado ou se delimitam esferas de competência entre órgãos do Estado. As competências dos órgãos públicos são esferas de atribuições que nem sempre são detalhadas, mas, ao contrário, são cláusulas abertas para possibilitar que a atuação Administração Pública seja dinâmica. No plano legal podem ser citadas, dentre outras intervenções obrigatórias do Presidente da República: (1) cessão de servidor público federal28; (2) autorização para servidor público ausentar-se do país29; (3) as autorizações presidenciais em matéria de política monetária previstas na Lei nº 4.595/1964.30 A Lei Complementar nº 101/2000, que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal atribui diretamente a reponsabilidade do Presidente da República nas seguintes hipóteses: Art. 30. No prazo de noventa dias após a publicação desta Lei Complementar, o Presidente da República submeterá ao: I - Senado Federal: proposta de limites globais para o montante da dívida consolidada da União, Estados e Municípios, cumprindo o que estabelece o inciso VI do art. 52 da Constituição, bem como de limites e condições relativos aos incisos VII, VIII e IX do mesmo artigo; II Congresso Nacional: projeto de lei que estabeleça limites para o montante da dívida mobiliária federal a que se refere o inciso XIV do art. 48 da Constituição, acompanhado da demonstração de sua adequação aos limites fixados para a 28 § 4º do art. 93 da Lei 8112/1990. Art. 95 da Lei 8112/1990. 30 Citem como exemplo as seguintes competências. Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República: (Redação dada pela Lei nº 6.045, de 15/05/74) (Vetado) I - Autorizar as emissões de papel-moeda (Vetado) as quais ficarão na prévia dependência de autorização legislativa quando se destinarem ao financiamento direto pelo Banco Central da República do Brasil, das operações de crédito com o Tesouro Nacional, nos termos do artigo 49 desta Lei. (Vide Lei nº 8.392, de 30.12.91) II - Estabelecer condições para que o Banco Central da República do Brasil emita moeda-papel (Vetado) de curso forçado, nos termos e limites decorrentes desta Lei, bem como as normas reguladoras do meio circulante; III - Aprovar os orçamentos monetários, preparados pelo Banco Central da República do Brasil, por meio dos quais se estimarão as necessidades globais de moeda e crédito; IV - Determinar as características gerais (Vetado) das cédulas e das moedas; V - Fixar as diretrizes e normas (VETADO) da política cambial, inclusive compra e venda de ouro e quaisquer operações em moeda estrangeira. 29 24 dívida consolidada da União, atendido o disposto no inciso I do § 1º deste artigo (Grifei). § 5º No prazo previsto no art. 5º, o Presidente da República enviará ao Senado Federal ou ao Congresso Nacional, conforme o caso, proposta de manutenção ou alteração dos limites e condições previstos nos incisos I e II do caput (grifei). § 6º Sempre que alterados os fundamentos das propostas de que trata este artigo, em razão de instabilidade econômica ou alterações nas políticas monetária ou cambial, o Presidente da República poderá encaminhar ao Senado Federal ou ao Congresso Nacional solicitação de revisão dos limites (grifei). No que diz respeito ao Poder Executivo, a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, atribui as seguintes responsabilidades: Art. 8º Até trinta dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea c do inciso I do art. 4o, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso. (Vide Decreto nº 4.959, de 2004) (Vide Decreto nº 5.356, de 2005) (Grifei). Art. 9º Omissis. §3º No caso de os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação no prazo estabelecido no caput, é o Poder Executivo autorizado a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias. (Vide ADIN 2.238-5) §4º Até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro, o Poder Executivo demonstrará e avaliará o cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre, em audiência pública na comissão referida no § 1o do art. 166 da Constituição ou equivalente nas Casas Legislativas estaduais e municipais. Art. 12. Omissis. §3º O Poder Executivo de cada ente colocará à disposição dos demais Poderes e do Ministério Público, no mínimo trinta dias antes do prazo final para encaminhamento de suas propostas orçamentárias, os estudos e as estimativas das 25 receitas para o exercício subsequente, inclusive da corrente líquida, e as respectivas memórias de cálculo (grifei). Art. 13. No prazo previsto no art. 8º, as receitas previstas serão desdobradas, pelo Poder Executivo, em metas bimestrais de arrecadação, com a especificação, em separado, quando cabível, das medidas de combate à evasão e à sonegação, da quantidade e valores de ações ajuizadas para cobrança da dívida ativa, bem como da evolução do montante dos créditos tributários passíveis de cobrança administrativa (Grifei). Art. 31. Omissis. §3º As restrições do § 1º aplicam-se imediatamente se o montante da dívida exceder o limite no primeiro quadrimestre do último ano do mandato do Chefe do Poder Executivo (Grifei). Art. 45. Omissis. Parágrafo único. O Poder Executivo de cada ente encaminhará ao Legislativo, até a data do envio do projeto de lei de diretrizes orçamentárias, relatório com as informações necessárias ao cumprimento do disposto neste artigo, ao qual será dada ampla divulgação (Grifei). Art. 48. Omissis. Parágrafo único. Omissis. III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A. (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009) (Vide Decreto nº 7.185, de 2010) (Grifei). Art. 51. O Poder Executivo da União promoverá, até o dia trinta de junho, a consolidação, nacional e por esfera de governo, das contas dos entes da Federação relativas ao exercício anterior, e a sua divulgação, inclusive por meio eletrônico de acesso público (Grifei). §1º Os Estados e os Municípios encaminharão suas contas ao Poder Executivo da União nos seguintes prazos: (Grifei). 26 I - Municípios, com cópia para o Poder Executivo do respectivo Estado, até trinta de abril; (Grifei). Art. 54. Ao final de cada quadrimestre será emitido pelos titulares dos Poderes e órgãos referidos no art. 20 Relatório de Gestão Fiscal, assinado pelo: I - Chefe do Poder Executivo; (Grifei). Art. 56. As contas prestadas pelos Chefes do Poder Executivo incluirão, além das suas próprias, as dos Presidentes dos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Chefe do Ministério Público, referidos no art. 20, as quais receberão parecer prévio, separadamente, do respectivo Tribunal de Contas (Grifei). As competências supracitadas são de responsabilidade direta do Presidente da República ou do Poder do Executivo da União, dos Estados e dos Municípios. Não é sem razão que quando a Lei Complementar nº 101/2000 discrimina as responsabilidades do Presidente da República, fá-lo expressamente. Logo, é de se concluir, de acordo com a boa hermenêutica, que fora dos casos discriminados não há responsabilidade ou ilícito que se possa atribuir ao Presidente da República. Desta forma, o Presidente da República deve ser responsabilizado individualmente com dolo pelos crimes de responsabilidade que cometa, independente da ação culposa ou dolosa que seus ministros ou auxiliares vierem a infringir (CASTRO,1936, p. 239). Assim, a conclusão perícia realizada pela Comissão Especial do Senado Federal que opina que os Decretos não numerados que abriram crédito suplementar e “promoveram alterações na programação orçamentária são incompatíveis com a obtenção da meta de resultado primário vigente à época da edição dos decretos e, por isso, configuram “ato omisso da Sra. Presidente da República”, 31 não é sustentável porque os atos que podem ser tipificados como crimes de responsabilidade devem ser dolosos em razão da única e possível exegese prevista no artigo 85 da Constituição porque está evidente que os crimes de responsabilidade atribuídos ao Presidente da República são os atos que atentem contra a Constituição Federal. Assim, a locução constitucional “atentar contra” pressupõe uma ação do agente político claramente dolosa. Não é por acaso que a Constituição estadunidense (artigo 2º, seção 4ª) prevê a hipótese de impedimento do 31 Cf. emhttp://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?1&codcol=2016. Acesso em 06.06.2016. 27 Presidente da República, do Vice-Presidente e de todos os funcionários civis dos Estados Unidos somente em casos de condenação por traição, suborno, outros crimes graves e atos ilícitos32. Ou seja, os tipos que configuram crimes de responsabilidade na tradição estadunidense são gravíssimos e extrapolam a configuração dos ilícitos comuns. No âmbito das reponsabilidades, é preciso fazer uma distinção entre o Presidente da República, o Poder Executivo e administração pública. Roberto Dromi (209, p. 114115) doutrina que a Administração Pública é um conjunto de recursos humanos e materiais com que conta o Poder Executivo na prestação de serviços públicos a fim de cumprir a missão que lhe é imposta pela Constituição e pelas leis. O Poder Executivo se diferencia, assim, da figura do Presidente da República porque no âmbito do Poder Executivo existe uma organização hierárquica com uma estrutura piramidal em que em no posto mais elevado se encontra o Chefe do Poder Executivo. A Constituição, no artigo 76, diferencia as duas noções ao estatuir que “o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado”. Já no artigo 84, II, há a competência privativa do Presidente da República, que é “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal”. Logo, é de se concluir que o Poder Executivo é formado pelo Presidente da República, pelos Ministros de Estado e pelos servidores subordinados. O Decreto-Lei nº 200/1967, com alterações legislativas ulteriores, regulamenta a organização da administração pública federal. De acordo com o artigo 1º, “o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República auxiliado pelos Ministros de Estado”. Já no artigo 2º o “Presidente da República e os Ministros de Estado exercem as atribuições de sua competência constitucional, legal e regulamentar com o auxílio dos órgãos que compõem a Administração Federal”. No artigo 4°, inciso, I, por seu turno, prescreve que “a Administração Federal compreende a Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios”. Há, ainda, uma última distinção, que é a diferença entre o Presidente da República e a Presidência da República, de acordo com e estrutura prevista na Lei nº “The President, Vice President and all civil Officers of the United States, shall be removed from Office on Impeachment for, and Conviction of, Treason, Bribery, or other high Crimes and Misdemeanors.” Cf. em http://constitutionus.com/. Acesso em 05.06.2016. 32 28 10.683, de 28 de maio de 2003. Hodiernamente, a Presidência da República é formada, de acordo com o artigo 1º pela seguinte estrutura: I - pela Casa Civil; II – pela Secretaria de Governo da Presidência da República; V - pelo Gabinete Pessoal; VI – pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; § 1o Integram a Presidência da República, como órgãos de assessoramento imediato ao Presidente da República: I - o Conselho de Governo; II - o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social; III - o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; IV - o Conselho Nacional de Política Energética; V - o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte; VI - o Advogado-Geral da União; VII - a Assessoria Especial do Presidente da República; § 2º Junto à Presidência da República funcionarão, como órgãos de consulta do Presidente da República: I - o Conselho da República; II - o Conselho de Defesa Nacional. §3º Integra, ainda, a Presidência da República a Câmara de Comércio Exterior - CAMEX. (Redação dada pela Medida Provisória nº 726, de 2016). Dessa forma, é preciso concluir, preliminarmente, que há duas espécies de responsabilidades que não se confundem, quais sejam: a responsabilidade subjetiva do Presidente da República e a responsabilidade objetiva da administração pública. No Poder Executivo é preciso separar a responsabilidade do Presidente da República, que é o Chefe do Poder Executivo e de seus subordinados, Ministros, Secretários etc. Na aferição do crime de responsabilidade é preciso saber se a responsabilidade é subjetiva do Presidente da República ou é dos agentes públicos que compõem o Poder Executivo. Na peça de denúncia apresentada à Câmara dos Deputados, os denunciantes requereram ao Parlamento o recebimento da peça acusatória com fundamento nos dispositivos que supostamente configuram crime de reponsabilidade, quais sejam, o artigo 85, incisos V, I e VII, da Constituição Federal; nos artigos 4º., incisos V e VI; 9º, números 3 e 7; 10 números 6, 7, 8 e 9; e 11, número 3, da Lei 1.079/1950. No exame detalhado dos diversos dispositivos citados, é de fácil percepção que os denunciantes não provaram que a Presidenta da República teve responsabilidade pessoal direta que violasse a probidade na administração, a lei orçamentária e o cumprimento das leis. A imputação genérica de responsabilidade não pode ser atribuída à Presidenta da República. 29 As imputações constitucionais e legais que tipificaram os crimes de responsabilidade exigem que haja prova irrefutável de atuação dolosa do Presidente da República. Se as violações impostas pelos atos normativos a título de responsabilidade somente são atos típicos se forem praticados pelo Chefe do Poder Executivo. Verifica-se, a título de comprovação histórica, que na denúncia feita contra o então Presidente Fernando Afonso Collor de Mello, os denunciantes, Barbosa Lima Sobrinho e Marcello Lavenere Machado (1993, p. 39) dizem, na peça de acusação, “que desde 15 de março de 1990, o denunciado, pessoalmente, bem como alguns de seus familiares – a mulher, a exmulher, a mãe – receberam indevidamente vultosas quantias em dinheiro, além de outros bens, sem indicação da origem lícita dessas vantagens”. No libelo acusatório o então Presidente foi acusado de ter mentido em razão da constatação de ter havido “depósitos feitos em sua conta por emitentes de cheques que usavam falsa identidade – os fantasmas - projeções de P.C. Farias” (1993, p. 97). Como se pode observar do precedente histórico, a imputação por crime de responsabilidade ao Presidente da República deve ser pessoal e não cabe, assim, a imputação quando os ilícitos recaírem na responsabilidade de terceiros. Quanto à acusação de que a Presidenta da República assinou decretos não autorizados pelo Parlamento, é preciso discorrer sobre a natureza dos referidos decretos. Assim, a Presidente teria assinado 6 (seis) decretos de créditos suplementares no período que vai de 27 de julho até 20 de agosto de 2015 em afronta à lei orçamentária. Haveria, com a assinatura dos decretos, a configuração do crime de responsabilidade. A previsão legal para a abertura de créditos suplementares se encontra positivada na Lei Orçamentária Anual-LOA (Lei nº 13.115/2015) que dispõe no artigo 4º, que: Art. 4º. Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8o da LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal] e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emendas individuais, para o atendimento de despesas. 30 O artigo 7º da referida Lei dispõe que a competência para a abertura de créditos suplementares é do Poder Executivo, in verbis: Art. 7º Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares, observados os limites e condições estabelecidos neste artigo, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015, para as seguintes finalidades. Logo, é perceptível a constatação que a lei orçamentária concede ao Poder Executivo a competência para abertura dos referidos créditos. Os decretos são atos administrativos que passam por diversas fases de elaboração e verificação de legalidade e legitimidade até que sejam assinados pelo Presidente da República. Pode-se, assim, dizer, que o decreto é um ato administrativo composto. São assim chamados, segundo José dos Santos Carvalho Filho (2016, p. 136), porque ao contrário dos atos complexos, “não se compõem de vontades autônomas, embora múltiplas. Há, na verdade, uma só vontade autônoma, de conteúdo próprio. As demais são meramente instrumentais, porque se limitam a verificação de legitimidade do ato de conteúdo próprio”. No decreto que autorizou a abertura de créditos suplementares intervieram diversas autoridades administrativas desde a concepção do ato até a assinatura do decreto pelo chefe do Poder Executivo. Na organização administrativa é impossível que o Presidente da República detenha todo o controle das decisões técnicas. Assim, em primeiro lugar, ao assinar o decreto que autorizou a abertura de créditos suplementares, o Presidente apenas homologou uma decisão já deliberada por diversas instâncias administrativas da área econômica. Em segundo lugar, a decisão executória que decidiu pela abertura de crédito suplementar não se constitui em crime de responsabilidade porque não está capitulado como delito imputável no rol dos deveres e obrigações presidenciais. Em terceiro lugar, a decisão de abertura de crédito suplementar prevista no inciso V do artigo 167 da Constituição, que prevê que “a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes”, não se configura ilícito porque os créditos estavam previstos no orçamento de 2015. 31 Os supostos créditos suplementares de 2014 ficaram fora da denúncia acatada pelo Presidente da Câmara em razão da vedação constitucional prevista no artigo 86, que veda que Presidente possa responder por atos praticados anteriormente ao seu mandato. Não se pode, também, arguir, que o decreto presidencial violou o inciso VI do artigo 85 da Constituição Federal, que diz ser crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a lei orçamentária. Orçamento público é, segundo a clássica definição de António Luciano de Sousa Franco (1974, p. 626-627), “uma instituição jurídica fundamental e o quadro básico em que se situa a atividade financeira dos Estados modernos (liberais ou não). Nem toda atividade financeira, contudo, se confina ao orçamento: zonas há em que por ele não são previstas nem autorizadas”. 33 Dessa forma, está-se diante de um plano de investimento em que estão presentes os planos e programas nacionais, regionais e setoriais e que devem estar contemplados no plano plurianual. Na lei de diretrizes orçamentárias estão incluídas as metas e prioridades da Administração Pública federal e as despesas de capital para o exercício do ano subsequente. Esta lei tem o objetivo de orientar a elaboração da lei orçamentária anual e estabelecer as alterações na legislação tributária, a política de aplicação das diretrizes das agências financeiras oficiais de fomento. O objetivo precípuo da lei de diretrizes orçamentárias é orientar na feitura da lei orçamentária anual. Na lei orçamentária anual haverá três orçamentos: a) orçamento fiscal; b) orçamento de investimento e c) o investimento da seguridade social. No investimento fiscal é referente ao Poderes da União, seus fundos de pensão, órgãos e entidades da administração direta e indireta, com a inclusão das fundações instituídas e mantidas pelo Poder Pública. O orçamento de investimento das empresas se refere às empresas em que a União, direta ou indiretamente tenha a maioria do capital social com direito a voto. O orçamento da seguridade social diz respeito às entidades e órgãos a ala vinculados, da administração pública direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público (CUNHA JUNIOR, 2009, p. 1105). Os orçamentos públicos se sujeitam aos princípios da exclusividade, da programação e da legalidade (§4º, §8º, art. 165 da Constituição Federal). Atentar contra 33 No plano constitucional há três leis fundamentais que regulam o sistema orçamentário, a saber: 1) a lei do plano plurianual; 2) a lei das diretrizes orçamentária e a 3) lei do orçamento anual. Na lei plurianual são estabelecidas regionalmente as diretrizes, os objetivos e as metas da Administração Pública federal referentes às despesas de capital e outras consectárias e outras relativas ao programa de duração continuada. 32 a lei orçamentária significa obstruir o procedimento de tramitação da lei, conforme previsto, por exemplo no artigo 165 da Constituição Federal ou descumprir dolosamente as diretrizes orçamentárias. É que o referido dispositivo constitucional prevê as obrigações formais a que o Poder Executivo está vinculado na elaboração do orçamento. Assim, por exemplo, o Poder Executivo ao elaborar a lei não poderá deixar de prever o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais. Também a lei encaminhada pelo Chefe do Poder Executivo referente ao plano plurianual não poderá deixar de estabelecer de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada. Ora, em primeiro lugar, se o Presidente da República não observar todas as formalidades legislativas previstas no artigo 165 incorrerá, sem qualquer dúvida, em crime de responsabilidade porque estará atentando contra a lei orçamentária. Em segundo lugar, a Constituição Federal prevê que determinados investimentos são vinculados orçamentariamente. São desobediências ao orçamento público, por exemplo, a despesa de pessoal da União que ultrapasse 50% da receita líquida (art. 19, I da Lei Complementar nº 101/2000). Assim, o disposto no parágrafo único do artigo 8º é claro ao prescrever que “os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso”. Desta forma, a inobservância estas regras específicas constituem desrespeito à lei orçamentária. 14. O CONTROLE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DO MÉRITO DO PROCESSO DE IMPEACHMENT É corrente afirmação - quase um senso comum - que o Supremo Tribunal Federal está obstado de examinar o mérito do processo de impedimento do Presidente da República por ser o referido julgamento um processo político. Destarte, estaria a Suprema Corte vinculada, exclusivamente, ao controle do processo e não do mérito do impeachment por ser o processo de impedimento do Presidente da República exclusivamente político. É verdade que o Senado Federal funciona no processo de impeachment, no dizer de José Afonso da Silva (2000, p. 132), como “um tribunal de juízo político”. No plano dos crimes de responsabilidade, a Câmara dos Deputados - à semelhança da pronúncia no processo penal - e o Senado Federal – que faz o juízo de 33 mérito - na lição insuperável de Miguel Seabra Fagundes (2010, p. 168) - exercem uma função “tipicamente judicante”. Diz, ainda, o ilustre administrativista que por “seu caráter eminentemente político, não deixa o juízo de responsabilidade de se exercer por meio de um verdadeiro julgamento, com apuração do fato (delito), aplicação do direito (pena ou absolvição) e irretratabilidade (coisa julgada). Na trilha da hermenêutica dominante da Constituição de 1988 e na intepretação do artigo 5º, XXXV, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Este fundamento constitucional consagra a supremacia do Estado de Direito em que quaisquer atos administrativos, legislativos e jurisdicionais não podem ser imunizados se provocam lesão ao cidadão. Os atos ditos políticos, que afastam o controle jurisdicional têm uma dimensão muito bem delineada: “são os que, embora administrativos na forma e na substância, ostentam finalidade exclusivamente política, circunscrita à atividade inter corporis da Administração Pública, e que, por esse motivo, não atinge, ao menos diretamente, direitos subjetivos dos administrados” (TUCCI, 1988, p. 93). Na lição de Rui Barbosa (1933, 41-42), as questões políticas podem ser transformadas em questões jurídicas: Político fora da presença da justiça, um litígio pode assumir o caráter de judiciário, assumindo a forma regular de uma ação. O efeito da interferência da justiça, muitas vezes, não consiste senão em transformar, pelo aspecto com que se apresenta o acaso, uma questão política em questão jurídica”. E mais acentuadamente, fulmina Ruy Barbosa: “quando a pendência toca a direitos individuais, a justiça não se pode abster de julgar, ainda que a hipótese entenda com os interesses políticos de mais elevada monta”. Ora, como se pode ver dos doutos ensinamentos doutrinários, não é possível admitir que ainda que seja um julgamento político, não se pode negar que o Supremo Tribunal Federal faça o controle de mérito dos crimes de responsabilidades previstos na Constituição e na Lei nº 1.079/1950. Os crimes de responsabilidades previstos no artigo 85 da Constituição de 1988 e na Lei nº 1.079/1950 são numerus clausus e passíveis de controle de constitucionalidade e legalidade pelo Supremo Tribunal Federal porque afetam os direitos subjetivos do Presidente da República e dos demais agentes políticos que são submetidos ao julgamento do Senado Federal. Na função indeclinável de preservar a integridade da Constituição, o STF tem a última palavra seja no controle do processo de impedimento seja no controle 34 de legalidade e constitucionalidade dos atos normativos que discriminam os crimes de responsabilidade. Nas palavras do Ministro Celso de Mello: A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal - a quem se atribuiu a função eminente de "guarda da Constituição" (CF, art. 102, "caput") - assume papel de fundamental importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político-jurídico vigente em nosso País conferiu, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental. 34 Dessa forma, é inconcebível, data máxima vênia aos doutos juízes da Corte Suprema, que um julgamento de impeachment regulado por normas legais e constitucionais que importam numa sanção gravíssima que pode demitir o mais alto agente político da República, não possa ser objeto de controle de mérito pelo Poder Judiciário. Assim, com a devida escusa à Corte Suprema, não é razoável que seja firmado um precedente que interprete os crimes de responsabilidade como atos normativos interna corporis, conforme fica delineada neste julgado: Impeachment. O direito a ser amparado pela via mandamental diz respeito à observância do regular processamento legal da denúncia. Questões referentes à sua conveniência ou ao seu mérito não competem ao Poder Judiciário, sob pena de substituir-se ao Legislativo na análise eminentemente política que envolvem essas controvérsias.35 O recebimento da renúncia e o julgamento do mérito feitos pelas Casas Legislativas no processo de impedimento devem estar em perfeita consonância com os princípios da constitucionalidade e da legalidade, fundamentos do Estado Democrático de Direito. A jurisdição constitucional36 do Supremo Tribunal Federal tem o dever 34 MS 26603/ DF. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento: 04/10/2007. Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação 19-12-2008. 35 (MS 30.672-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 15-9-2011, Plenário, DJE de 18-102011.) Vide: MS 23.885, rel. min. Carlos Velloso, julgamento em 28-8-2002, Plenário, DJ de 20-9-2002. 36 Jurisdição Constitucional tem o objetivo de “verificar a concordância das normas de hierarquia inferior, leis, atos administrativos, com a Constituição, desde que violaram as formas impostas pelo texto constitucional ou estão em contradição com o preceito da Constituição, pelo que os órgãos competentes devem declarar sua inconstitucionalidade e consequente inaplicabilidade”. Cf. (BARACHO, 1984, p. 98). 35 histórico e indeclinável de apreciar as possíveis lesões decorrentes do julgamento dos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal. Ronald Dworkin tem uma lição doutrinária que me parece indispensável quando existem possíveis usurpações de autoridades públicas. Diz Dworkin que “os Estados Unidos são uma sociedade mais justa do que teriam sido se seus direitos constitucionais tivessem sido confiados a consciência de instituições majoritárias. Em todo caso, Marshall decidiu que os tribunais em geral, e a Suprema Corte em última instância, têm o poder de decidir pelo governo como um todo o que a Constituição pretende dizer, e de declarar inválidos os atos de outros órgãos públicos sempre que excedam os poderes que lhes são outorgados pela Constituição, corretamente entendida” (DWORKIN, 1999, pp. 426-427). CONCLUSÃO Por todas as razões aduzidas, a Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiro entende que o processo de impeachment da Presidenta Dilma Vana Rousseff viola a Constituição e a Lei nº 1.079/1950, uma vez que a acusação de que as “pedaladas” tiveram o objetivo de maquiar as contas públicas e majorar o déficit primário pode ser uma decisão administrativa reprovável, mas não se constitui em crime de responsabilidade. Do exposto, opina a Comissão de Direito Constitucional seja aprovado este Parecer e encaminhado incontinenti à Presidência do Senado Federal e ao Supremo Tribunal Federal como manifestação formal deste Excelso Instituto Advogados Brasileiros. Rio de Janeiro. Dr. Manoel Messias Peixinho Relator Subscritores Dr. José Ribas Vieira (Presidente) Dr. José Guilherme Berman C. Pinto (Secretário) Dr. Sérgio Sant’Anna Dr. Hariberto de Miranda Jordão Filho 36 Dr. Alexandre Tolipan Dr. Alexandre Brandão Martins Ferreira Dr. Jorge Rubem Folena de Oliveira BIBLIOGRAFIA ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012. BABCOCK GOVE, Philip. WEBSTER'S. New International Dictionary of the English Language 1961. BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal brasileira. São Paulo: saraiva, 1932. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. BLACK, M. A, Henry Campbell. Black's Law Dictionary. 6th ed., St. Paul, West, 1990. Law KF 156 B62 1990. BROSSARD, Paulo. O Impeachment. São Paulo: Saraiva, 1992. CALMON, Pedro. Curso de Direito Público. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1938. 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