UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA Ana Carolina Malaquias Pietra “Do apito da Fábrica aos sons da orquestra”: percurso histórico-musical da Corporação Musical Cachoeira Grande Orientadora: Profª. Drª. Rosângela de Tugny Belo Horizonte 2016 2 Ana Carolina Malaquias Pietra “Do apito da Fábrica aos sons da orquestra”: percurso históricomusical da Corporação Musical Cachoeira Grande Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em música. Linha de Pesquisa: Música e Cultura Orientadora: Profª. Drª. Rosângela de Tugny Belo Horizonte 2016 3 4 Dedico este trabalho à memória de Brenno Malaquias. Querido e amado irmão. Anjo de luz que acompanha meus passos. Saudades sempre... 5 AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais amados, Gilmar e Antiste, pelo apoio incondicional em tantos aspectos da minha vida, inclusive na escolha desta profissão, incentivando sempre e auxiliando com amor. Ao meu irmão, Diego, querido companheiro e amigo, principalmente nas ‘aventuras’ musicais junto à banda. Ao meu marido, Fernando Pietra, agradeço pelo amor, carinho e por compreender minha ausência nas horas que precisei dedicar-me à presente pesquisa. Agradeço especialmente à minha orientadora, Prof. Dra. Rosângela de Tugny, pela acolhida com o presente projeto, permitindo que eu conduzisse meu trabalho com liberdade e amor. Pelas correções cuidadosas, questionamentos, reflexões e contribuições durante este percurso. Obrigada ainda pela confiança, paciência e auxílio nestes dois anos onde iniciei a caminhada enquanto pesquisadora. Pela leitura cuidadosa e sugestões advindas da competente leitura de parte deste trabalho para banca de qualificação, agradeço à querida Júnia Sales. À Dra. Helena Lopes e Dra. Glaura Lucas pela cuidadosa leitura deste trabalho, bem como a honrada presença na participação na banca de defesa. Grata aos professores Ana Cláudia Assis, Patrícia Furst, Glaura Lucas, Flávio Barbeitas e Eduardo Rossi, pelas matérias oferecidas ao longo do curso, que muito me enriqueceram. Pela amizade e bons conselhos desde meus primeiros anos na academia, agradeço ao professor Ângelo Nonato. Agradeço aos meus amigos da Corporação Musical Cachoeira Grande, que tão bem acolheram e auxiliaram durante todo trabalho de campo, em especial aos músicos: Reinaldo César, Markus Arthur, Tainara Tavares, Anderson Luiz e Diego Malaquias, que não desistiram do longo trabalho de organização do acervo e à Paula Madureira, que gentilmente trazia delícias para nossos lanches. Minha profunda gratidão ao querido músico e amigo José Ulisses, pelo trabalho longevo junto ao grupo, por mais de 50 anos, se tornando uma inspiração de amor, paciência, dedicação e amizade. Obrigada pelo auxílio em todo processo da pesquisa. Aos colaboradores que gentilmente cederam suas fotos para ampliação do acervo iconográfico da Corporação: Cássio Pezzinni, Jader Costa, Kátia Santanna, José Ulisses, Misael Elias, Geraldo Leão, Natércia Issa e Eddy Cruz. Estendo à imprensa local que auxiliou na divulgação da pesquisa: Jornal “Folha de Pedro Leopoldo”, “O Observador” e o site “Cidade Mix”. Gratidão aos entrevistados que prontamente enriqueceram o trabalho, compartilhando suas “vozes”, suas histórias e memórias: João Evangelista, Célia Pereira da Luz, Celina Pereira da Luz, Dilza Pereira da Luz, Mário Pereira Neto, Geraldo Leão, Maria Natércia Issa, Adalberto Barbosa, Claudiomarcus Serafim, Fabiano Melo, Marlon Luan,Gustavo Avelar, Shirley Costa, Kéula Carolina, Caroline Freitas, Raíssa Alves, Reinaldo César, Markus Arthur, Shirley Costa, Anderson Souza, Misael Elias e Eddy Cruz. Aos amigos do Coral Luiz Gonzaga, pela torcida, preces, suporte espiritual e amizade. Aos meus professores e amigos Lincoln Andrade e Dilson Florêncio, pela contribuição para formação musical e humana durante os anos de bacharelado. Aos funcionários da secretaria da graduação, em especial à Eliana Alves, e da pós-graduação. Aos meus colegas da graduação e do mestrado. À UFMG, pela oportunidade a mim concedida desde a graduação. 6 À CAPES/CNPq pelo suporte financeiro. Por fim, agradeço imensamente a Deus, pela oportunidade de trabalhar com o que acredito e amo. 6 PIETRA, Ana Carolina Malaquias. Do apito da Fábrica aos sons da orquestra: percurso histórico-musical da Corporação Musical Cachoeira Grande. 2016. 161f. Dissertação (Mestrado em Música), Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais. RESUMO As bandas de música têm sido uma constante nos trabalhos acadêmicos 1 atuais, abordadas nos diferentes âmbitos que envolvem tal prática, como em questões sociais e históricas, processos de ensino e aprendizagem, análise de acervo documental, características e transformações no repertório, dentre outros. Adentrando acerca de tal relevância e inspirada pela minha atuação no grupo enquanto maestrina e saxofonista, a presente pesquisa trata do percurso histórico-musical da Corporação Musical Cachoeira Grande, da cidade de Pedro Leopoldo – MG. Tal percurso foi construído por meio da intersecção de documentos e narrativas orais, do estudo do modo como as relações sociais tangenciam o fazer musical da banda e enriquecidos pela análise imagética e de repertório. Por fim, o cenário atual da corporação levanta pontos acerca da manutenção da tradição na banda civil e inovação da prática, contrapondo a tradicionalidade e memória afetiva que tais efetivos carregam consigo e a busca por novas experiências musicais, que no caso in voga, resultaram na criação da orquestra. O estudo das características identitárias e inerentes a corporação, fazem com que a mesma seja uma soma de valores agregados e específicos relativos ao fazer musical, tangenciando questões comportamentais, musicais e contextuais; sendo compreendida enquanto “complexo banda”. A pesquisa foi embasada nos preceitos da etnomusicologia, sociologia e musicologia histórica, visando compreender ainda de que modo a música vem sendo produzida na Corporação Musical Cachoeira Grande, as inter-relações existentes e o como fenômeno musical elucubra tradições, identidades, correntes estéticas e políticas. PALAVRA-CHAVE: Banda de Música, Etnomusicologia, Musicologia. 1 CHAGAS (2015), FAGUNDES (2010), COSTA (2011), ALMEIDA (2010), SARTORI (2012), REILY (2008), BARBOSA (2008), BENEDITO (2011), dentre outros. 7 PIETRA, Ana Carolina Malaquias. The whistle factory to the sounds of the orchestra: historical and musical career of Corporação Musical Cachoeira Grande - MG. 2016. 161f. Dissertação (Mestrado em Música), Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais. ABSTRACT The wind bands have been a constant in today's academic work2, addressed in different aspects involving the practice, as in social and historical issues, teaching and learning processes, document collection analysis, features and changes in the repertoire, among others. Entering about such relevance and inspired by my performance in the group as conductor and saxophonist, this research deals with the historical-musical path “Corporation Musical Cachoeira Grande”, the wind band of Pedro Leopoldo, a city in Minas Gerais (Brazil). This path was built through the intersection of documents and oral narratives, the way the study as social relations tangent to the music of the band and enriched by the imagery analysis and repertoire. Finally, the current corporate scenario raises points about the tradition of maintaining civil wind band and practice innovation, in contrast to traditionalism and affective memory that such effective carry with them and the search for new musical experiences, which in the case in vogue, resulted in creation of the orchestra. The study of identity and characteristics inherent in the corporation, make it to be a sum of aggregates and specific amounts related to music making, behavioral tangentially, musical and contextual issues; and can be understood as "complex band." The research was based on the precepts of ethnomusicology, sociology and historical musicology, aiming to further understand how the music has been produced in the Corporation Musical Cachoeira Grande, the existing interrelationships and as musical phenomenon reflects traditions, identities, aesthetic trends and policies. KEYWORD: Wind Band, Ethnomusicology, Musicology. 2 CHAGAS (2015), FAGUNDES (2010), COSTA (2011), ALMEIDA (2010), SARTORI (2012), REILY (2008), BARBOSA (2008), BENEDITO (2011), dentre outros. 8 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – “Parada da cachoeira”, em 1911. Ao lado dela, à esquerda, bonde de tração animal. Fonte: História do transporte urbano no Brasil, de Waldemar Corrêa Stiel (1985) ............................................... 34 Figura 2 – Corporação Musical Cachoeira Grande nos anos 40. Inauguração da Igreja Matriz. Fonte: Geraldo Leão. ............................................................................................................................................. 37 Figura 3 – Zeca Machado em sua adolescência. Fonte: Natércia Issa. À direita, a União Orquestra, no ano de 1925. Fonte: Geraldo Leão. ................................................................................................................... 51 Figura 4 – apresentação da Orquestra Cachoeira Grande em comemoração ao dia das mães, dentro da Igreja de São Judas Tadeu, em Maio/2014. Fonte: Acervo Do Grupo Tenores In Concert........................ 53 Figura 5 – Corporação Musical Cachoeira Grande, no “Quadro” da Fábrica De Tecidos, em 24/07/1949. Fonte: Geraldo Leão. .................................................................................................................................. 56 Figura 6 – Corporação Musical Cachoeira Grande, em frente sua sede, 1978. Fonte: Cássio Pezzinni. .... 58 Figura 7 – Inauguração do Pronto Atendimento e da Praça Zé Mineiro em 10/05/1986 . Fonte: Geraldo Leão. ........................................................................................................................................................... 61 Figura 8 – Ensaio do Maestro Júlio de Paula Machado, em 13/01/2012 . Fonte: Geraldo Leão. ............... 63 Figura 9 - Acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande. Fonte: Acervo Pessoal. ............................. 70 Figura 10 - Algumas fotografias de Eddy Cruz, compreendidas entre os anos de 2012 a 2015. Fonte: Eddy Cruz. ........................................................................................................................................................... 74 Figura 11 – Corporação Musical Cachoeira Grande, durante as festividades da primeira Exposição Agropecuária De Pedro Leopoldo, realizada na Fazenda Modelo do Ministério Da Agricultura, datada de 06 de Janeiro de 1924. Fonte: Jader Costa. ................................................................................................ 75 Figura 12 - Corporação Musical Cachoeira Grande recebendo a imagem de São Vicente, doada à cidade de Pedro Leopoldo, em 27/03/1949. Fonte: Geraldo Leão. ........................................................................ 81 Figura 13 - Corporação Musical Cachoeira Grande em homenagem, na casa do ex-maestro Zeca Machado, datada de 1966. Fonte: Geraldo Leão ........................................................................................ 85 Figura 14 - Corporação Musical Cachoeira Grande durante o Desfile De Sesquicentenário Da Independência, em 7/9/1972. Fonte: José Ulisses. ..................................................................................... 88 Figura 15 - Corporação Musical Cachoeira Grande, meados de 1980. Fonte: Acervo da Corporação. ..... 91 Figura 16 – Recorte da fotografia anterior. Mala de partituras da Banda Municipal De Várzea Da Palma. Fonte: Acervo da Corporação. .................................................................................................................... 94 Figura 17 - Corporação Musical Cachoeira Grande - Câmara Municipal. Fonte: Geraldo Leão. .............. 95 Figura 18 - Corporação Musical Cachoeira Grande em apresentação no Sinticom. Fonte: Geraldo Leão. 97 Figura 19 - Público no show da Orquestra Cachoeira Grande: Pop Sinfônica. Fonte Eddy Cruz. ............ 98 Figura 20 - Formação da banda em apresentações: à esquerda, modelo anterior a 2003 e à direita, modelo posterior a esta data, implantado por Adalberto. ...................................................................................... 100 Figura 21 - Corporação Musical Cachoeira Grande executando O Hino Nacional, em abertura do Desfile Da Independência, em 2010. Fonte: Misael Elias. ................................................................................... 103 Figura 22 - Dois armários da banda, antes do início do processo de organização e catalogação do acervo. .................................................................................................................................................................. 111 Figura 23 - Durante o processo de catalogação do acervo. Jan/2016 ....................................................... 113 9 Figura 24 - Resultado final: Organização de documentos. ....................................................................... 119 Figura 25 - Transcrição da cadência que antecede o início dos dobrados, feita pela percussão. .............. 140 Figura 26 - Algumas reportagens da imprensa local sobre os eventos da banda civil e da orquestra da corporação. (2013 - 2014) ........................................................................................................................ 153 10 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Distribuição das bandas no Brasil, por região, de acordo com o cadastro da FUNARTE. ...... 16 Gráfico 2 - Cinco principais gêneros do acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande .................... 123 Gráfico 3 - Principais gêneros musicais entre os anos de 1891 a 1942. ................................................... 126 Gráfico 4 - Principais gêneros musicais entre os anos de 1943 a 1976. ................................................... 129 Gráfico 5 - Principais gêneros musicais entre os anos de 1977 a 2003. ................................................... 132 Gráfico 6 - Principais gêneros musicais entre os anos de 2004 a 2015. ................................................... 133 11 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Quatro gêneros metodológicos da pesquisa, propostos no trabalho de BAFFI (2010) e a aplicação dos mesmos na presente pesquisa. .............................................................................................. 19 Tabela 2 – Perfil dos mestres de banda, segundo SILVA (2009:164) ........................................................ 45 Tabela 3- Cronologia dos maestros da Corporação Musical Cachoeira Grande ........................................ 48 Tabela 4- Resposta dos músicos sobre a definição sobre aspectos que fazem uma banda ter "qualidade". .................................................................................................................................................................. 102 TABELA 5- Campos da planilha de catalogação de parttituras, no acervo da CMCG. ........................... 115 Tabela 6 - Aplicação dos processos técnicos da arquivologia musical segundo COTTA (2006) no acervo da CMCG ................................................................................................................................................. 118 Tabela 7- Aspectos gerais sobre a forma dos dobrados ............................................................................ 143 Tabela 8- Sobre o funcionamento da banda civil e da orquestra .............................................................. 150 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 13 CAPÍTULO 1 – “DO APITO DA FÁBRICA”: OS PRIMEIROS ANOS DA CORPORAÇÃO MUSICAL CACHOEIRA GRANDE ..................................................................................................... 26 1.1. História de vida atrelada à história da Corporação. ...................................................................... 26 1.2. A cidade de Pedro Leopoldo ........................................................................................................... 31 1.3. O apito da fábrica: “Corporação Musical Cachoeira Grande” ..................................................... 35 CAPÍTULO 2 – COMO A BANDA TOCA: ELEMENTOS SOCIAIS E PERFORMÁTICOS DA CORPORAÇÃO ....................................................................................................................................... 39 2.1. O complexo “banda”: narrativas e construções de sentidos que delineiam o uso do termo. ......... 39 2.2. Conhecendo os mestres da “Cachoeira Grande”: traçando um percurso histórico sob uma perspectiva êmica ................................................................................................................................... 43 2.3. Retratos de um século: elementos iconográficos na construção da memória ................................. 66 2.3.1. Organização e catalogação das fotos ........................................................................................ 70 2.3.2. Análise de fotos ........................................................................................................................ 71 CAPÍTULO 3 – QUESTÕES ESTÉTICO-SONORAS DA CORPORAÇÃO .................................. 106 3.1. Banda e/ou furiosa: sinonimização dos termos ............................................................................. 106 3.2. Organização arquivística e análise de resultados ......................................................................... 109 3.2.1. Processo de catalogação ......................................................................................................... 110 3.2.2. Reflexão do resultado: catalogação de partituras.................................................................... 119 CAPÍTULO 4 - “PRA VER A BANDA PASSAR”: Manutenção da banda civil e o processo de reinvenção da prática musical na Corporação Musical Cachoeira Grande ...................................... 136 4.1. “AVISA!”: os dobrados da banda civil e a manutenção da tradição............................................ 139 4.2. Os sons da orquestra: novas experiências musicais ..................................................................... 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................. 155 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. 160 13 INTRODUÇÃO A Corporação Musical Cachoeira Grande, objeto central da presente pesquisa, é a centenária banda da cidade de Pedro Leopoldo (MG), inicialmente formada por operários e diretores de uma Fábrica de Tecidos, a primeira atividade econômica da então Vila - cujo nome era “Cachoeira das Três Moças”. É uma das instituições locais que foram criadas antes da emancipação do município e mantém de forma ininterrupta suas atividades, há 103 anos. A proposição ao trazer aqui o breve relato das formações de banda no Brasil apontadas nos trabalhos sobre a temática, não é discutir sua origem histórica, a ponto de chegarmos a uma versão comum: a narrativa histórica não é linear ou possui apenas um viés. Poderíamos considerar também o “desprezo” a outras formas instrumentais compostas por sopros e percussão existentes antes mesmo da chegada dos portugueses, através das formações que aqui já existiam. A proposta é ilustrar posteriormente quanto tais relatos historiográficos apontados nas pesquisas acadêmicas sobre bandas, poderão ser observados enquanto fatores que influenciam a prática musical que vem sendo desenvolvida pela Corporação em questão. Diversos fatores contribuíram para a consolidação das bandas no Brasil, sobretudo no Estado de Minas Gerais, fazendo com que as mesmas desempenhem por séculos suas funções sociais e musicais além de seu papel significativo no cenário cultural. Dentre autores que se interessam pelo estudo de tal formação musical, muitos3 sugerem que “as bandas de música tiveram uma maior importância e notoriedade com a criação das corporações musicais e só foram se consolidar a partir de alguns anos após a chegada da Família Real4” ao Brasil, no século XIX: “O grande impulso dado à formação das bandas militares no Brasil começou, com a transmigração da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Mas a banda da Brigada Real trazida por D. João VI, em 1808, ainda era arcaica. Em Portugal, a banda de música começou a se modernizar somente em 1814, quando seus soldados regressaram da guerra peninsular, trazendo brilhantes bandas de música, onde predominavam executantes contratados, principalmente espanhóis e alemães [...]. A música militar claramente aparecida em bases orgânicas, na metrópole, em 1814, forneceria o modelo para a formação das bandas civis”. (BINDER: 2006:12) 3 4 Como CHAGAS (2015), FAGUNDES (2010), COSTA (2011), BINDER (2006), dentre outros. (FAGUNDES, 2010:35) 14 Sobre um período anterior à vinda da Corte ao Brasil, muitos autores acreditam que avanço dos portugueses por novas terras e mercados teve por consequência a influência das tradições musicais de Portugal sob a música na América Portuguesa: “a tradição musical de banda começou no Brasil a partir de elementos importados de Portugal. Assim, é possível conjecturar que a introdução da banda no Brasil se deu com os primeiros colonos que aqui se estabeleceram5”. Outras formações musicais também contribuíam para a consolidação do gênero, como as bandas de fazendeiros 6 , dos barbeiros e de imigrantes alemães, que para além do gênero, recriaram grupos instrumentais baseados nas experiências musicais de seu país: “as bandas dos barbeiros eram, em sua maioria, escravos alforriados que trabalhavam com pequenos serviços, tais como aparar barba e cabelo. Essa era uma das poucas funções da época que garantia um tempo livre entre um trabalho e outro, sendo possível uma dedicação à música. Por essas razões, muitos se juntavam e formavam as bandas dos barbeiros” (CHAGAS, 2015:28) Através de performances em festas mais modestas, tais grupos contribuíram para o desenvolvimento e transmissão da música popular brasileira. A respeito desta contribuição, GOMES (2008) afirma que “a forte relação e influência que os músicos negros e escravos exerceram sobre os chorões7 era notória, e estes, por sua vez, sobre as primeiras bandas de impacto da história da música brasileira”. GOMES (2008:22) Retomando o período da vinda da Família Real ao Brasil, com a criação da Charamela da Brigada Real da Marinha e do Exército Nacional, outros grupos começaram a surgir e se espalhar por todo território nacional. Charamelas 8 eram as bandas criadas pelos senhores de engenho, compostas por percussão e instrumentos de sopro como trompa, trombone, trompete, fagote, clarinete e flauta. Sua função principal era acompanhar os eventos da família Real. Eram ainda dirigidas por maestros europeus, fato que contraria as estatísticas no Brasil, uma vez que “atualmente, praticamente não existe maestros estrangeiros à frente das Corporações9.” A constante exposição das bandas de música na vida monárquica popularizou sua divulgação enquanto grupos instrumentais que 5 (FAGUNDES, 2010:35) Formada por escravos sua função era atender as demandas dos fazendeiros e senhores das terras. 7 Se referindo aos grupos de choro do Rio de Janeiro. 8 GOMES (2008) explica que “esses conjuntos de músicos levavam o nome de charameleiros por causa da charamela - instrumento de sopro que pertence à família das palhetas, trazido ao Brasil pelos portugueses e tocado primeiramente pelos índios que aqui se encontravam”. GOMES (2008:19) 9 SILVA (2009:12) 6 15 “muitas vezes tomavam parte das festas oficiais da monarquia luso-brasileira, tanto em honra à família real e imperial - aniversários, noivados, casamentos, batizados etc – quanto por razões de Estado - aclamações, vitórias militares e celebrações cívico-políticas em geral”. (BINDER, 2006:12) Com a criação da Guarda Nacional, em 1831, iniciou-se a organização de concertos públicos onde os músicos passaram a incluir em seus repertórios, alguns trechos de motivos populares e de música erudita, como valsas, polcas, mazurcas e maxixes; contribuindo para a transformação de gêneros musicais estrangeiros que aqui chegaram e para o cultivo de músicas europeias. Trabalhos como os de CHAGAS (2015), PEREIRA (2008), COSTA (2011) e CARVALHO (2006), apontam para o início da vida musical de grupos compostos por sopros e percussão, associadas a guerras ou batalhas, na organização das tropas ou para repassar informações: “parece que a música estava ligada às ações militares desde tempos muito remotos, não apenas como meio de comunicação no campo de batalha, como também como elemento psicológico, animando as tropas e atemorizando os inimigos”. (CARVALHO, 2006:1) COSTA (2011) converge para tal apontamento “Desse modo, sua instrumentação se desenvolveu por sua capacidade de projeção em ambientes abertos, incluindo trompetes, trombones, tubas, flautas, clarinetes, saxofones e percussão, especialmente caixas, bumbos e pratos. O fato de tocar com muito volume está relacionado com a necessidade de ser ouvida, pois a maioria de suas apresentações é ao ar livre e se locomovendo”. (COSTA, 2011:256) A partir do início do século XIX, grupos civis começaram a se organizar em diversos centros urbanos, “matizadas nas bandas militares que serviram como modelo e inspiração para o surgimento das bandas civis, que possuem até os dias atuais características que nos remetem a tais bandas 10 ” e intensificaram rapidamente a sua ocupação nas ruas, praças, festas e em outras ocasiões. Segundo FAGUNDES (2010), o surgimento das bandas militares como conjunto de sopro e percussão iniciou uma fase de valorização das bandas de música, propiciando o surgimento das bandas civis. No início, eram conjuntos de constituição instrumental ainda muito simples com uma instrumentação baseada nas bandas militares portuguesas. (FAGUNDES, 2010:38) 10 (CHAGAS, 2015:30) 16 As bandas passaram a desenvolver uma música para um maior número de pessoas, através das apresentações em praças públicas, sem vinculação direta com as festas oficiais, disseminando, desta forma, um tipo de música acessível a um grande público. Foi justamente nas ruas das cidades que as práticas das bandas de música permitiram manifestações visíveis do que foi o entrecruzamento de várias tradições culturais. “Com a exaltação do nacionalismo, houve a necessidade de criação de hinos cívicos e marchas. Surgiram, então, corporações musicais civis que serviam à corte e à igreja, com vestimentas semelhantes aos uniformes militares, marchando e cumprindo atividades parecidas com as militares, porém de cunho cívico. Em consequência dessas transformações, a banda de música deixou de ser somente um entretenimento na vida social da elite e parte do culto divino, para ser um elemento importante na vida cultural da população”. (COSTA, 2011:243) Atualmente, o Brasil possui 2455 bandas cadastradas no site da FUNARTE Fundação Nacional de Arte, órgão vinculado ao Ministério da Cultura (MINC) - a maioria destas subsidiadas por prefeituras: “Estudos apontam que o número de bandas no Brasil pode chegar a 5.000 grupos, uma vez que o cadastro da FUNARTE não contempla as bandas militares e aquelas existentes nas congregações religiosas. Observamos ainda que, na década de 1950, o número de bandas de música no Brasil era estimado em 500 grupos”. ALMEIDA (2010:43) O Estado de Minas Gerais, ainda segundo a FUNARTE 11 , é o que possui o maior número de bandas cadastradas neste órgão, com 482 grupos, seguido do estado do Ceará, que possui 201: Número de bandas no Brasil 912 819 356 149 174 GRÁFICO 1 - Distribuição das bandas no Brasil, por região, de acordo com o cadastro da FUNARTE. 11 Disponível em: http://www.funarte.gov.br/projeto-bandas-2/ Acessado em Agosto/2015. 17 Apesar do grande número de bandas, sobretudo no estado de Minas Gerais, a realidade é que muitos grupos enfrentam dificuldades para se manterem ativos, seja por questões financeiras, motivacionais - desaguando na dificuldade para renovação no quadro de músicos - tendo por consequência: a decadência deste patrimônio cultural resultando numa perda significativa para a cultura local, fazendo com que “fique esquecido e o seu repertório cada vez menos tocado e ouvido” 12 . Apesar das dificuldades acima citadas, as corporações ainda trazem consigo grandes cargas de tradição, memória e afetividade, sobretudo passadas nas gerações que participam da banda e da sociedade que acompanha por anos, motivo pelo qual CARVALHO (1998) aponta para a importância de estudos sobre a temática como forma de auxiliar no resgate de tais instituições, verdadeiros patrimônios vivos. Trabalhos sobre a temática podem ser abordados sob as mais diferentes óticas: estudo de caso, análise de processos musicais dentro de tais grupos, questões históricas e musicológicas, ligadas à arquivologia, estudo de composições próprias para tais grupos, dentre outros. Apesar do aumento nas pesquisas e da ampliação das perspectivas que consideram o estudo da produção musical das bandas dentro de seu contexto de atuação, os estudos sobre a temática ainda são pequenos dentro da academia. Segundo BINDER (2006) as pesquisas de cunho musicológico foram, por muito tempo, indiferentes à prática das bandas, à sua história e em virtude dos poucos estudos que aprofundam em tal temática, ainda há muito que ser explorado. LUCAS (2008) traça um paralelo onde associa a carência de trabalhos na área à dificuldade encontrada pela Etnomusicologia frente às disciplinas amparadas pela História da Musica Ocidental, sujeito muitas vezes ao preconceito, à desvalorização ou à ligação com o “exótico”, que evocam o estado de penúria, decadência, passadismo e até mesmo uma certa posição anacrônica dessas instituições musicais [as bandas] face a uma suposta dinamicidade de outras situadas em plena modernidade organizacional, tecnológica, midiática. Essa oposição tradicional-moderno aflorada a todo instante quando se compara no senso comum diferentes instituições musicais, e que relega as bandas de música e seus integrantes a uma posição nostálgica, perdida no tempo, com uma certa dose de exotismo, não se difere das posições que a Etnomusicologia teve que enfrentar, e ainda enfrenta, em relação às expressões musicais que se distanciam e se diferenciam daquelas amparadas e consagradas na história da música ocidental”. (LUCAS, 2008: 56) Há ainda autores que apontam para o descaso ou preconceito existentes - nos diversos níveis sociais e artísticos em relação ao trabalho - como um dos fatos que justifiquem o baixo número de trabalhos sobre as bandas. 12 (GOMES, 2008:11) 18 Compartilhando das proposições de autores que consideram a pesquisa sobre bandas como relevantes e enriquecedoras para o estudo científico, o trabalho possui como objetivo central o levantamento do percurso histórico-musical da Corporação Musical Cachoeira Grande, atentando para questões de atuação social que influenciaram sua prática durante os anos de atividade. Para construção de tal percurso, a contextualização inicial com o cenário onde a Corporação foi fundada, os primeiros anos de vida, publicações sobre a cidade de Pedro Leopoldo, narrativas e documentos históricos foram as principais fontes consultadas. O estudo e análise dos registros imagéticos e a construção do percurso sob a perspectiva êmica foram embasados em trabalhos etnomusicológicos como suporte para as reflexões e associações com as pessoas que produziam a música no grupo, bem como as contingências que giravam em torno do fazer musical. Trabalhos de cunho musicológico foram de suma importância para embasar os procedimentos organizacionais do acervo, à luz da arquivologia, da catalogação e de outras vertentes metodológicas propostas por DUCKLES (1980). Para a análise dos processos de manutenção da tradição e criação da orquestra, foram utilizadas pesquisas que dialoguem com as transformações das tradições performáticas em geral, bem como das ferramentas para preservação cultural de tais formações. Estudos recentes sobre bandas foram utilizados a todo o momento, para comparação com resultados encontrados, observância de conflitos e problemáticas similares ao objeto de pesquisa. Com base nas proposições de Demo (1994 e 2000), BAFFI (2010:2 e 3) distingue a metodologia das pesquisas em quatro gêneros, delineados pela forma de condução e objetivo central. Para que a visualização seja efetiva, desenvolvi o quatro abaixo, onde é possível perceber os principais conceitos característicos de cada gênero proposto pela autora, bem como sua aplicação na presente pesquisa: NOME PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS PESQUISA TEÓRICA Pesquisas destinadas à revisão ou estabelecimento de novos conceitos, teorias, ideologias bem como a contestação daqueles preceitos já PESQUISA METODOLÓGICA Voltada para o estudo de paradigmas, dos métodos e das técnicas que delineiam a produção científica. PESQUISA EMPÍRICA Trabalho dedicado ao empirismo e à produção e análise de dados, oferecendo maior credibilidade às proposições. A compreensão PESQUISA PRÁTICA Pesquisa que tem na prática a fonte de conhecimento científico, onde a ideologia não está oculta mas submetida ao rigor metodológico. Segundo o 19 existentes, aprimorando fundamentações teóricas. FORMA DE APLICAÇÃO NA PRESENTE PESQUISA Tratamento e discussão de conceitos que tangenciam a prática das bandas, sob a ótica de que tal formação seja um complexo, não sendo possível aplicar de forma genérica certos paradigmas a todos os grupos desta formação. dos significados empíricos é subordinada ao referencial teórico, facilitando a aproximação dos mesmos com a prática em si. Procedimentos metodológicos da musicologia arquivística aplicados à organização documental e de partituras do acervo da banda, no tratamento e destino do material encontrado. Contraposição de dados e referenciais teóricos à prática cotidiana da banda, para convergência de colocações ou considerações contrárias às proposições teóricas trazidas. autor, a pesquisa participante, pesquisa-ação se enquadram neste gênero. Gênero amplamente presente na pesquisa através da utilização do discurso dos músicos, fotografias pessoais, levantamento do percurso histórico através de entrevistas como principal base de apoio a construção de caracteres genuínos ao grupo no trabalho. TABELA 1 - Quatro gêneros metodológicos da pesquisa, propostos no trabalho de BAFFI (2010) e a aplicação dos mesmos na presente pesquisa. A própria autora – BAFFI - acentua que nenhum dos gêneros é completo ou suficiente, e para melhor fundamentação de resultados encontrados é necessário mesclálos a fim de obter diferentes vias metodológicas visando o enriquecimento do trabalho. Para além das questões de condução metodológica do trabalho, SEEGER (1977) aborda ainda a ótica utilizada no desenvolvimento das pesquisas em música, sobretudo naquelas onde há a relação entre música e sociedade. Segundo o autor, os estudos deste tipo permanecem “frequentemente nos níveis de classificação ou valores e/ou não tratam dos sons em si, ou são severamente criticados por sua falta de acuidade musical. Inversamente, a maioria dos estudos centrados nas estruturas sonoras não considera as relações entre estas estruturas e outros aspectos da sociedade cuja música se está analisando13”. É preciso romper com tais generalizações e investigar todos os campos que influem na forma com a música é produzida, sejam as estruturas sonoras e a relação 13 (SEEGER, 1977:40) 20 com as pessoas que a produzem, expandindo a abordagem da música enquanto produto, interpretando as relações dos processos sociais e contextuais, além de examinar a maneira como a música faz parte da própria construção. A primeira etapa do trabalho de campo para a presente pesquisa foi realizada através de conversas informais com os músicos antigos, abordando memórias e lembranças, especialmente estimuladas pelas fotos que havia na sede. A organização do acervo e dos documentos da Corporação para mapear a possibilidade de estudo documental e melhoramento da forma de preservação dos mesmos foi o segundo passo. No terceiro passo desenvolvemos o processo de organização documental e catalogação do acervo14, que teve início em Agosto de 2015 e finalizado em Janeiro de 2016. Paralelamente ao andamento deste processo, prosseguimos às entrevistas com músicos, ex-maestros e ex-músicos da banda. Ao todo foram realizadas dezenove entrevistas - semiestruturadas ou informais - com acompanhamento de acervo fotográfico próprio dos entrevistados, digitalizados para a pesquisa: Célia Pereira da Luz, Celina Pereira da Luz e Dilza Pereira da Luz: as três filhas do ex-maestro Mário Pereira da Luz (Mestre Mário) foram entrevistadas, na própria residência, o mesmo imóvel cedido pela Fábrica quando o maestro se mudou para Pedro Leopoldo, para trabalhar na banda. Realizada em abril de 2015, a audiência ateve-se à atuação de Mestre Mário frente à banda, acompanhada de informações desenvolvidas em torno das fotografias previamente selecionadas para a diligência e sobre a atuação de Célia - clarinetista da banda e primeira mulher presente no grupo. Maria Natércia Issa: filha do ex-maestro José Flaviano Machado (Zeca Machado), foi a última entrevista realizada, em maio de 2016. Por motivos pessoais e de saúde, remarcamos a conversa por inúmeras vezes, mas durante toda pesquisa, a mesma também contribuiu com fotos para o acervo e livros publicados pelo seu marido, José Issa, narrando eventos e histórias sobre a banda e a cidade de Pedro Leopoldo; Antônio Maria, padre da paróquia da Igreja Matriz: depoimento informal sobre seu apoio às apresentações da corporação dentro as igrejas locais, 14 Mais detalhes em: “3.2. O acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande: documentos e repertório”. 21 dado informalmente durante uma reunião sobre a realização do concerto na diocese, em Outubro de 2015; Misael Elias: diretor social da Corporação e sobrinho de um dos músicos mais antigos, respondeu à entrevista semiestruturada sobre a banda e a orquestra, no segundo semestre de 2015. O diretor também participou dos processos de limpeza e organização voluntários citados acima e da diretoria que presidia durante o processo de criação da orquestra; Eddy Cruz: fotógrafo que realiza a cobertura dos eventos e apresentações da banda, em caráter voluntário, desde o ano de 2013. Foram duas entrevistas, uma anterior ao processo de análise imagética (Janeiro de 2016) e outra posterior, esclarecendo pontos específicos sobre suas fotografias (Maio de 2016); Geraldo Leão: memorialista da cidade de Pedro Leopoldo e também detentor de um grande acervo imagético da história da banda. O Sr. Geraldo foi procurado por diversos momentos durante a pesquisa, para digitalização de seu material acerca da corporação, entrevista sobre a história da banda e da cidade e posteriormente para me auxiliar na interpretação das fotos que seriam analisadas na sessão 2.3.; Adalberto Barbosa da Silva: ex-saxofonista e ex-maestro da banda. Respondendo a duas entrevistas ao longo do processo de pesquisa desenvolvido, com as mesmas perguntas de outros da mesma categoria, para facilitar o processo de comparação e análise e outra com perguntas específicas sobre seu momento de atuação frente ao grupo; João Evangelista de Paula (o Capitão): ex-maestro que atuou por mais tempo frente ao grupo, hoje com 98 anos. Participando de duas entrevistas, seguindo os moldes aplicados aos ex-maestros, conforme citado acima. O Sr. João também colaborou com reportagens de seu período, fotos e um DVD da banda em um encontro de bandas; Claudiomarcus Serafim e Fabiano Melo: dois ex-músicos da Corporação, hoje desligados do grupo (Claudiomarcus faz participações esporádicas com a orquestra). Responderam a uma entrevista formulada para exmúsicos, via email, ambos no segundo semestre de 2015; 22 Os músicos Markus Arthur (tubista), Shirley Costa (percussionista), Keula Carolina (saxofonista), Anderson Silva (saxofonista), Reinaldo César (saxofonista), Rayssa Rodrigues (trompetista), Gustavo Avelar (trompetista) e Marlon Luan (clarinetista) responderam a duas entrevistas semiestruturadas, sendo uma em 2015 e outra em 2016. Todos são músicos da banda civil, e alguns atuam na orquestra; José Ulisses Gonçalves: bombardinista e o músico mais antigo da Corporação (seu filho, neto e sobrinho fazem parte do grupo). O Sr. José respondeu a três entrevistas - duas eram as mesmas aplicadas aos músicos atuais, além de uma específica para ele, pelo fato de se recordar de muitos fatos aqui narrados, por estar no grupo há mais de 50 anos. Colaborou com fotografias para o acervo digital, além de me acompanhar nas visitas à casa do ex-maestro João Evangelista , foi inúmeras vezes ao meu encontro para esclarecer dúvidas e participou da sessão da análise iconográfica, pois estava presente em muitos contextos fotográficos estudados. O processo de organização do acervo e catalogação das partituras foi descrito com maiores detalhes na sessão “3.2. O acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande: documentos e repertório”. Os documentos encontrados foram organizados, realocados e utilizados como fonte de comprovação de algumas informações dadas em entrevistas bem como o cruzamento das datas e nomes dos mesmos foi de suma importância para construção do percurso histórico-musical do grupo, com a leitura de atas, livros de presença, prestação de contas, ficha de inscrição de ex-alunos e até mesmo uma agenda com as atividades da banda, pertencente ao ex-maestro João Evangelista. A metodologia utilizada para o levantamento de registros imagéticos foi mudando ao longo do trabalho de campo. A ideia sempre foi construir um acervo digital que ficasse disponível na banda, mantendo com os próprios proprietários os originais e facultando consulta plena a todos os interessados, de forma que as pessoas que cedessem suas fotos para o acervo não precisasse necessariamente abrir mão das mesmas e que todos os músicos e pessoas ligadas à banda pudessem consultá-las a qualquer momento, além de ser uma forma de preservá-las sem os danos causados pelo tempo ou má conservação. 23 As primeiras fotos foram colaboração de alguns músicos e do Sr. Geraldo Leão memorialista detentor de considerável acervo fotográfico. Após digitalizar as fotos, fiz o mesmo com as fotografias da sede e dos músicos. Sempre que marcava entrevista com as pessoas acima listadas, pedia que elas separassem fotos para construção do acervo digital do grupo, explicando-lhes qual era o objetivo. Em Janeiro deste ano, já havia esgotado as possibilidades de reunião do material com as pessoas que conhecia e me veio à mente que eu estava limitando a colaboração por procurar pessoas que conhecia, e certamente havia outras histórias de vida ligadas à história do grupo que não eram de meu conhecimento. Tendo em vista tal conclusão, publiquei na minha página pessoal de rede internacional de relacionamentos que estava à procura de pessoas com histórias para contar e fotos da banda. Foram inúmeras as respostas e indicações que até então não estavam na minha lista de entrevistados. Os jornalistas locais procuraram-me oferecendo que a divulgação fosse feita também nos impressos periódicos, a fim de atingir um maior número de pessoas. Meu e-mail pessoal foi disponibilizado na matéria, possibilitando a recepção de considerável número de fotografias. Certamente este processo de construção do acervo foi muito enriquecedor, sobretudo pela oportunidade de conversar e entrar em contato com pessoas que antes não conhecia, ouvir suas histórias e observar a boa-vontade na colaboração na construção do acervo digital da banda. As fotografias cedidas por Cássio Pezzinni e Jader Costa, utilizadas na análise imagética do capítulo “2.3. “Retratos de um século”: elementos iconográficos na construção da memória” chegaram até mim via email, após as publicações acima descritas. As fotografias de Célia Pereira e José Ulisses foram cedidas durante as entrevistas. A construção do acervo digital da Corporação Musical Cachoeira Grande não está concluída uma vez que, de tempos em tempos, recebo contatos de pessoas enviando suas fotografias digitalizadas, acompanhadas de legendas e “causos” para que sejam anexadas à memória do grupo. Compilações, comparações e análises do material do trabalho de campo foram realizadas embasadas nos referenciais teóricos para desenvolver o percurso históricomusical da banda bem como as relações sociais, musicais e interpessoais encontradas na mesma. O primeiro capítulo, “Do apito da Fábrica” trata inicialmente da história de vida atrelada à histórica do grupo bem como a questão pesquisadora/maestrina, além do distanciamento, neutralidade e imparcialidade defendidos pelo paradigma positivista. 24 Apresento posteriormente a contextualização histórica do cenário onde a Corporação foi fundada, através de uma breve descrição que dialogue e caminhe para a instalação da Fábrica de Tecidos, responsável pela criação da banda. Finalmente, apresento o resultado das primeiras análises documentais e entrevistas: os anos iniciais da Corporação Musical Cachoeira Grande e seu processo de criação, relacionado à Fábrica, às relações de poder e às atividades sociais desenvolvidas na época. O segundo capítulo, “Como a banda toca”, aborda elementos sociais e performáticos do grupo. Inicio o capítulo discutindo a utilização do termo “banda” bem como os conceitos que delineiam as principais definições, sob a perspectiva dos músicos e das pesquisas recentes dentro da temática, compreendendo a existência de elementos convergentes e divergentes, mas, sobretudo, conferindo autoridade científica à fala dos nativos. A segunda sessão se trata do objetivo central do trabalho: a construção do percurso histórico-musical em si, construído sob a perspectiva do campo de atuação dos maestros que estiveram frente ao grupo, bem como a influência que as escolhas musicais, comportamentais e educacionais afetavam o fazer musical. A análise do perfil dos maestros, questões relativas ao contexto de atuação da banda e a constante relação com a história local também são estudadas na sessão em questão. Por fim, apresento como o estudo de registros imagéticos pode auxiliar na construção e na identificação de elementos da performance musical através de conceitos da iconografia, iconologia e do estudo de oito imagens da corporação, onde é possível comparar os resultados encontrados às proposições feitas na sessão anterior. As questões estético-sonoras foram tratadas no terceiro capítulo. Inicio discutindo sobre a sinonimização de um termo encontrado em algumas pesquisas e que não é considerado como unívoco na banda em questão: furiosa. Posteriormente trato do acervo documental do grupo, onde a descrição do processo de catalogação das partituras e organização arquivística é feita sob a ótica dos trabalhos musicológicos, que tratam da pesquisa documental. A associação de repertório com o contexto, bem como a análise desde a sua criação - em 1912 – até os dias atuais, foram feitas por gêneros e anos de atuação dos maestros para que a correlação com o capítulo anterior possa ser mais clara e coesa. Apresento ainda proposições sobre a função de tal repertório bem como as questões que delineiam as escolhas musicais. No quarto e último capítulo, proponho o diálogo entre as ferramentas de conservação e a busca por novas experiências musicais desenvolvidos nos dias atuais da corporação. Inicialmente apresento as pesquisas que corroboram para a necessidade de 25 uma atualização da linguagem como forma de sobrevivência das bandas. Um estudo dos dobrados enquanto gênero característico - comprovado após a análise do acervo de partituras – é feito neste capítulo como forma de conhecer as principais características estruturais do gênero bem como a opção encontrada para manutenção da tradição performática na banda civil do grupo. A busca por novas experiências musicais – a orquestra – é relatada através da narrativa construída explicitando como se deu a escolha da criação de um novo grupo para que a banda civil não fosse descaracterizada pela demanda da inovação ou da reinvenção da prática musical que vinha sendo desenvolvida, bem como as primeiras consequências que tal escolha trouxe para o núcleo musical que a Corporação Musical Cachoeira Grande15 se tornou. Outros elementos inerentes às práticas musicais desenvolvidas pela banda são pontuados de forma direta ou indireta nos capítulos precedentes, bem como a utilização de todo material coletado em pesquisa de campo. Para além de tais questões, apresento considerações finais, referências teóricas e anexos complementares. A expectativa é de que a gama das possibilidades de pesquisa acerca das corporações musicais seja explicitada no presente trabalho e os questionamentos aqui trazidos incentivem futuras pesquisas sobre as questões que tangenciam tais grupos, importantes baluartes do cenário cultural brasileiro. 15 Hoje composta pela sua escola de música, banda civil e orquestra. 26 CAPÍTULO 1 – “DO APITO DA FÁBRICA”: OS PRIMEIROS ANOS DA CORPORAÇÃO MUSICAL CACHOEIRA GRANDE 1.1. HISTÓRIA DE VIDA ATRELADA À HISTÓRIA DA C ORPORAÇÃO. O interesse em ter a Corporação Musical Cachoeira Grande como tema de pesquisa, foi construído a partir de uma somatória das experiências vivenciadas desde minha infância na cidade de Pedro Leopoldo (MG). Aos seis anos, ingressei em aulas particulares de teclado, mas já conhecia a banda, pois sempre a via em eventos locais, cívicos, inaugurações dentre outros. Recebi o convite de um primo que tocava no grupo - o músico Ivan Egídio – e fui levada à banda aos 12 anos, juntamente com meu irmão, após concluir o curso de teclado. Neste contexto, tive meu primeiro contato direto com instrumentos de sopro, como requintista (clarineta em Eb) e mais tarde como saxofonista, quando pedi ao meu pai que trocasse minha “festa de 15 anos” pelo meu saxofone. Desde sempre, me recordo da assiduidade, do prazer e da dedicação que tínhamos ao participar da banda, por inúmeras vezes deixando de viajar ou frequentar eventos familiares para tocar com o grupo. Com o maestro Júlio de Paula Machado, desenvolvi minhas primeiras atividades como contramestre, despertando meu interesse para a área da regência, pois eu o substituía sempre que o mesmo precisava faltar. Neste período, também lecionava saxofone para os alunos novatos e tocava meus primeiros solos com a banda. Em 2005, ingressei no curso de saxofone, na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais e mais tarde, em 2008, comecei o curso de regência. Tendo em vista os dois bacharelados que possuo, é inquestionável como a banda influenciou na minha formação profissional, pois toda prática anterior à vivência acadêmica - tanto na questão instrumental quanto da teoria musical necessária para o vestibular - foi adquirida na banda. Para além desta questão, cabe aqui afirmar ainda o papel que as bandas desempenham enquanto agentes socializadores, sendo “um espaço de reprodução de valores, (...) e a disciplina e cidadania são também elementos importantes na formação dos futuros músicos16”. A corporação foi, sem dúvida, relevante para minha formação pessoal, uma vez que ingressei no grupo ainda pré-adolescente e permaneço até os dias 16 (CARDOSO, 2012:5) 27 atuais. Meus pais sempre analisam sobre as noções de colaboração, trabalho em grupo, disciplina, respeito aos mais velhos, dedicação, força de vontade e todos os valores que o grupo agregou a mim e ao meu irmão durante esses anos, reforçando a questão socializadora que tal formação é capaz de desempenhar em seus músicos. Tal potencialidade nestes grupos foi descrita por autores como ALVES (1999), quando afirma que: “A inserção numa coletividade, como se verifica nas atividades com bandas de música, revela um importante aspecto social, fruto de um convívio comunitário. A busca por um convívio amistoso e agradável, demonstra o quanto convém manter uma postura respeitosa face aos indivíduos que tomam parte em uma determinada coletividade, bem como as suas ideias, posições e características. Naturalmente, surgem, em qualquer contexto social, grupos sólidos de amigos que, muitas vezes, por apresentarem afinidades específicas, aproximam-se de forma mais efetiva”. (ALVES, 1999:9) Entre os anos de 2005 e 2007, atuei como maestrina titular do grupo pela primeira vez, participando diretamente das escolhas e dos problemas encontrados na prática, como a questão de apoio financeiro, da escolha de repertório dentro do nível de dificuldade adequado ao grupo quando desde então comecei a fazer meus primeiros arranjos para a formação da banda. Encontrei algumas partituras que constava o nome do músico, ao invés do instrumento, devido ao grau de dificuldade da peça, pois assim todos conseguiriam tocar. Participei ainda dos processos de manutenção e compra de instrumentos, e a gestão da motivação dos músicos para frequentar ensaios e apresentações, cumprindo adequadamente os horários, dentre outros. Após este período, troquei de função com o atual maestro da banda civil, João Paulo Pereira, e fiquei responsável pelas aulas de teoria musical, retomando a frente da Corporação no ano de 2012, para seu concerto de centenário. Com os preparativos do concerto comemorativo, a história da banda começou a despertar meu interesse. Na apresentação em questão, faríamos homenagens aos ex-maestros, músicos mais antigos, diretoria, além confeccionar os convites com fotografias antigas do acervo da banda, enquanto regente, participei ativamente dos bastidores. Somado a este fato, foram realizadas várias limpezas na sede, contando com a ajuda voluntária dos músicos e da diretoria da época, para limparmos todos os troféus, fotos e instrumentos antigos que ficam expostos. Conforme dito anteriormente, uma gama de fatores despertou para a presente pesquisa: o fato de estar à frente do grupo em um concerto tão importante para a história da banda, os preparativos para o mesmo, o voluntariado nas limpezas da sede, além dos 28 anos de atuação no grupo. A primeira ideia ao iniciar o pré-projeto para o processo seletivo do mestrado, foi resgatar a história da banda, gerando conhecimento principalmente para aqueles que estão ingressando ou ingressarão no grupo, através do percurso-histórico musical. Posteriormente, no início da pesquisa de campo e das leituras de trabalhos que dialogam com a temática, me dei conta de quão rico é o complexo banda, as relações sociais que influenciam a prática, a importância de seu acervo, repleto de composições inéditas, as fotografias e outros recursos de mídia, documentos, os “causos” e todo desenrolar das inter-relações que trouxeram a banda até os dias atuais, nestes 103 anos de atividades ininterruptas. Em 2013, em reunião com a diretoria da época e os músicos, fui convidada a fundar a Orquestra Cachoeira Grande17, onde a banda civil seria acrescida de cordas de orquestra e desenvolveria um trabalho diferente do grupo existente, com repertório e contexto de atuação bem distinto. Atualmente, a banda civil possui outro maestro, mas participo como saxofonista quando solicitada; e estou à frente da orquestra desde sua fundação. A história de vida atrelada à história da Corporação bem como a condição de maestrina e toda “autoridade” conferida ao cargo, são questões que influenciam diretamente no resultado do trabalho, uma vez que me considero nativa por estar no grupo há 18 anos e ter pertencido a diferentes categorias dentro do grupo: aluna, saxofonista, monitora, professora de teoria e maestrina. Termos como insider e nativo aparecem com frequência e são discutidos em pesquisas em diferentes áreas relacionadas à etnmusicologia e antropologia. CHAGAS (2015) cita Cook para explicar os limites tênues que delineam os conceitos de atuação: “Em um mundo de identidades culturais múltiplas e superpostas, onde é que os insiders acabam e os outsiders começam? [...] As estáveis distinções entre o insider e o outsider, o si próprio e o outro, o êmico e o ético, não estão mais encaixadas na prática musicológica ou etnomusicológica: são resíduos do colonialismo” (COOK, 2008 apud CHAGAS, 2015:15) SEEGER (1977) corrobora afirmando que, em todo momento durante sua etnografia se sentia observado, estudado e avaliado, considerando o trabalho de campo como uma constante “troca de informações, um interação sutil de personalidades, situando-se em um contexto sócio-econômico e político mais amplo 18 ”. Na presente 17 18 O processo de criação da orquestra, bem como as razões para tal são discutidos no CAPÍTULO 4. (SEEGER, 1977:58) 29 pesquisa os músicos acompanharam de perto a evolução do trabalho, muitas vezes indo comigo a entrevistas na casa de ex-maestros ou músicos, formando comissões para auxiliar na organização de partituras e documentos, enviando informações sobre pessoas que eu podia procurar para entrevistas, dentre outras coisas. Acredito que, o fato de eu ser uma das musicistas mais antigas do grupo e ter passado por situações desafiadoras 19 durante esses anos possa transmitir uma certa segurança de que não estaria me apropriando indevidamente da história do grupo ou que faria a pesquisa e não retornaria a eles. Por outro lado, a relação estreita com o grupo, dificulta a neutralidade científica defendida pelo paradigma positivista fundamentado. Como escreveu TYGUEL (2009), a ideia de que os princípios que estruturam a realidade objetiva dos fatos sociais podem ser desvendados e compreendidos por meio de uma postura metodológica de distanciamento, neutralidade e imparcialidade do pesquisador frente ao contexto observado. (...) Os paradigmas estruturam visões de mundo, procedimentos, metodologias e técnicas de investigação, construindo padrões compartilhados pela comunidade científica. (TYGEL, 2009:19) Outros autores constatam ainda que a exterioridade e neutralidade do pesquisador, sobretudo nas ciências humanas, são um mito, uma vez que a própria escolha metodológica é delineada pelas questões pessoais que objetivam o andamento da pesquisa, além de conduzir a “um recorte específico da realidade, que está longe de poder ser imparcial, objetivo e neutro, como apregoava o paradigma positivista”. (TYGEL, 2009:21) Em seu trabalho BAFFI (2010) questiona sobre a análise desapaixonada, traçando um paralelo da posição do insider com o grupo analisado, podendo ser aplicado às pesquisas onde o autor tenha uma ligação afetiva com o objeto de estudo. Segundo a autora, é sabido que, para se fazer uma análise desapaixonada de qualquer tema, é necessário que o pesquisador mantenha uma certa distância emocional do assunto abordado. Mas será isso possível? Seria possível um padre, ao analisar a evolução histórica da Igreja, manter-se afastado de sua própria história de vida? Ou ao contrário, um pesquisador ateu abordar um tema religioso sem um consequente envolvimento ideológico nos caminhos de sua pesquisa? (BAFFI 2010:5) 19 Foram inúmeras as vezes que precisamos nos unir para manter o grupo ativo ou fazer uma determinada apresentação, seja por falta de músicos numa determinada data, falta de apoio público, diretoria desorganizada, instrumentos estragados. Já trabalhei no grupo por quase um ano de salários atrasados, emprestei meu próprio instrumento para apresentações, comprei arranjos de determinado repertório que eles queriam fazer, dentre outras coisas. As situações cotidianas anteriores ao início da pesquisa, bem como o amor que tenho ao grupo, agregaram confiança e colaboraram para o apoio que tive durante todo percurso que a pesquisa foi realizada. 30 A resposta negativa diante dos questionamentos colocados pela autora nos traz a consciência de que, enquanto pesquisadora, a formação cultural e os valores estão intimamente ligados às escolhas metodológicas feitas na presente pesquisa, uma vez que as esferas da vida social estão entrelaçadas. A opção por este ou aquela metodologia induz a resultados específicos, uma vez que a análise e a interpretação dos dados serão feitos por um determinado ângulo. TYGEL (2009) cita BOURDIEU (1977) para ampliar as noções acerca da interpretação do pesquisador e da relatividade da ciência enquanto produtora de conhecimentos, uma vez que também está inserida na cultura, representando a visão de um grupo específico, contextualizado histórico, social e politicamente: “A maior parte das obras humanas que temos o hábito de considerar como universais – o direito, a ciência, a arte, a moral, a religião etc. – são indissociáveis do ponto de vista escolástico e das condições econômicas e sociais que as tornaram possíveis e que não têm nada de universal. Elas são engendradas nesses universos sociais muito específicos que são os campos de produção cultural (campo jurídico, campo científico, campo artístico, campo filosófico etc.) e no quais estão engajados agentes que têm em comum o privilégio de lutar pelo monopólio do universal, contribuindo assim para levar avante, aos poucos, verdades e valores tidos, em cada momento, como universais, isto é, eternos.” (BOURDIEU, 1997 apud TYGEL, 2009:23) Minha condição de nativa e pesquisadora poderia comprometer o trabalho de campo pela minha proximidade com os entrevistados, através da distorção das ações e dos depoimentos. Por outro lado, a construção da presente pesquisa foi realizada através da colaboração dos membros da banda, nas mais diferentes formas e etapas do processo, bem como a tentativa de – sempre que possível - dar voz aos mesmos no discurso da pesquisa, majorando a perspectiva e a percepção dos mesmos sobre a banda, suas concepções musicais e comportamentais. Tais posicionamentos foram escolhas metodológicas, para construção do percurso-histórico e do discurso em diferentes óticas, compreendendo ainda as individualidades que compõe o grupo, bem como os sentidos convergentes ou divergentes; uma escolha ética, quando há conhecimento e produção de conhecimento com os autóctones; e ainda uma forma de minimizar os efeitos do pertencimento ao grupo, explicitando e elaborando cada vez melhor este lugar enquanto pesquisadora nativa. A questão ocasionada pela minha condição de maestrina/pesquisadora, que considerei mais complexa durante a pesquisa, foi o distanciamento de elementos familiares, tidos como naturais: inúmeras vezes tal condição limitava minha capacidade crítica ou fazia com que elementos importantes a serem questionados e estudados passassem despercebidos, por serem naturais e cotidianos para mim. SILVA (2009) 31 complementa explicando que, em um viés a iniciação do antropólogo ou a atribuição de um cargo hierárquico podem ajudar na observação e na pesquisa, por outro podem fazer com que o mesmo precise sair de sua condição de observador para participar das atividades. Nesses momentos sua interlocução adquire outras dimensões, pois fica presa à sua posição dentro do grupo. Para minimizar tal questão, procurei a leitura exaustiva das pesquisas atuais sobre bandas, para esmiuçar elementos que pudessem ser analisados dentro do grupo e que foram trabalhados nas demais pesquisas da área. Contei ainda com a grande colaboração da minha orientadora para atentar a aspectos que pudessem passar despercebidos, despertando em mim o crivo crítico para questões que me eram rotineiras. Por fim, são inquestionáveis as inúmeras possibilidades de investigação dentro do contexto das bandas. O estudo acerca da Corporação Musical Cachoeira Grande com várias temáticas - história, música, relações pessoais, contexto de atuação, reinvenção da prática, manutenção da tradição - não se encerra após a conclusão da presente pesquisa. 1.2. A CIDADE DE PEDRO LEOPOLDO Pedro Leopoldo é um município brasileiro do estado de Minas Gerais, situado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, 46 quilômetros a noroeste da capital mineira. A breve contextualização da cidade de surgimento da Corporação Musical Cachoeira Grande, é de suma importância, pois, conforme apresentado no decorrer da pesquisa, será possível determinar inúmeros momentos de inter-relação entre a história local e da banda, além da inquestionável influência que o meio exerce dentro das práticas culturais. Os primeiros registros de ocupação humana encontrados em Pedro Leopoldo são os mais antigos da América - segundo o site da Associação os Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte20 - tendo sido encontrado o crânio de Luzia, de idade estimada em doze mil anos, no sítio arqueológico da Lapa Vermelha IV. Celso Vale21 20 Disponível em: http://granbel.com.br/index.php/municipios-metropolitanos/105-municipio-de-pedroleopoldomg-municipio-de-pedro-leopoldomg/162-historia-de-pedro-leopoldomg.html Acessado em 23\06\2015 21 Professor de Zoologia da UFMG. Em ¹Diário de Minas – Sumidouro será cuidado agora com carinho. – 16/01/1975. 32 explica que tal sítio "é de muita importância pré-histórica, pois (...) existe a Lapa do Sumidouro, o Lago do Sumidouro – de um acervo paisagístico muito grande – Gruta do Baú, Gruta da Cerca Grande, local considerado como berço da pré-história do Brasil”. Restos de cerâmicas, instrumentos, fósseis humanos em bom estado de conservação, pinturas rupestres, entre outros, foram encontrados pelo naturalista dinamarquês Peter Lund que lá se instalou, em 1835, para estudar a pré-história da região. Um dos distritos do município em questão, às margens do Rio das Velhas, denominado Quinta do Sumidouro, até hoje constitui outro importante registro histórico através da conservação de construções como a casa do bandeirante Fernão Dias Paes Leme, do ano de 1674, e a Capela do Rosário, em estilo barroco, uma das primeiras do Estado, cujo altar foi esculpido por Aleijadinho. MARTINS (2006) descreve: "Na época áurea da extração de ouro e pedras em Minas Gerais, a região passou a fazer parte do caminho de abastecimento da região aurífera, ou seja, as fazendas da região produziam gêneros alimentícios: milho, feijão e mandioca, criavam animais: porco, galinha e boi, com o objetivo de abastecer as regiões produtoras de ouro com as quais mantinham um intenso comércio. (...) Ao redor do atual município de Pedro Leopoldo, a partir da Segunda metade do século XVII, aparecem referências a diversas localidades: Curral d’el Rei (hoje Belo Horizonte), Contagem das Abóboras, Capela Nova do Betim, Santa Quitélia (hoje Esmeraldas), Sete Lagoas, Venda Nova, Riacho da Areia, Olhos d’água, Pindaíbas (próxima a Venda Nova). A maioria destas localidades surgiram associadas ao fluxo comercial que se desenvolvia na região." (MARTINS, 2006:21). Direcionando a narrativa a questões que estão atreladas à história e surgimento da Corporação, ISSA FILHO (2012) conta que, logo no inicio do povoado, algumas pessoas procedentes de Pompéu se transferiram para o território de Pedro Leopoldo. Dentre tais, as “três moças”, motivo pelo qual o aglomerado foi nomeado inicialmente de “Cachoeira das Moças, por causa das três moças que moraram ao lado da cachoeira. Com a instalação da fábrica de tecidos [...] ficou o nome de Cachoeira Grande. Vila Cachoeira Grande”. (ISSA FILHO, 2012:24) Cruzando os relatos historiográficos, é contado que o surgimento da região central da cidade de Pedro Leopoldo teve seu início quando Antônio Alves Ferreira da Silva visitou sua irmã na Fazenda Quilombo, em Pindaíba no ano de 1890, quando conheceu a Cachoeira Grande e percebeu nela um potencial hidráulico maior do que o da sua fazenda, a Cachoeira dos Macacos. Em 1893, Antônio Alves adquiriu a fazenda das “Três moças”, iniciando as obras da fábrica têxtil (Companhia Cachoeira Grande), e 33 inaugurando-a no ano de 1895. Sobre a vinda das famílias das cidades vizinhas neste período, ISSA FILHO (2014) conta que “no começo da construção da fábrica de tecidos muitas famílias de Sabará vieram morar em nossa terra, que nesta época não passava de um pequeno povoado, onde estavam chegando os trilhos da estrada de ferro 22 ” e inclusive uma destas famílias era a do primeiro maestro da banda: Cândido Moreira. De forma poética, ISSA FILHO (2014) conta como o povoado crescia com a chegada de novos moradores e das aspirações musicais que muitos traziam consigo, bem como toda família de “Seu Candu23”: Um povoado que começava a crescer e que crescia feliz, com uma gente boa e alegre. Uma gente que, na maioria, amava a música, gostava de ter ao lado da casa ou na frente dela um jardim com bonitas flores e guardava no coração a bondade e a alegria da infância. Bondade e alegria da infância que dava à nossa gente amor aos pássaros, amor à música, amor às flores. Bondade e alegria da infância que dava à nossa terra a beleza e o colorido de um conto de fadas”. (ISSA FILHO, 2014:36) A Companhia Cachoeira Grande foi a primeira atividade econômica relevante na cidade, e, por muito tempo, a dominante, junto à atividade agropecuária. Posteriormente, no princípio do século XX, a ampliação da fábrica e a instalação de uma unidade de “branqueamento” do tecido, atraíram para Pedro Leopoldo mais famílias da região, desencadeando no surgimento das primeiras casas, cedidas gratuitamente pela empresa até o ano de 1920, que abrigavam os funcionários da produção, manutenção e administração da Fábrica. Este terreno se tratava de “uma grande área quadrada, cercada pela fábrica de tecidos e pelas casas em que moravam seus operários. Eram casas pequenas construídas pela companhia, quase encostadas umas nas outras, todas iguais, os telhados em duas águas, as paredes caiadas de branco, duas janelas azuis na frente, como se fossem olhos. [...] Com o correr dos anos, a fábrica foi crescendo, aproximandose das casas, e o Quadro foi-se estreitando. Acabou reduzindo a menos quatro metros de largura. E aí as casas foram demolidas (os homens de negócio não perdem tempo com sentimentalismos)”. (ISSA FILHO, 1993:19) Este complexo que abarcava as casas dos operários, o clube da Fábrica e inclusive a sede do nosso objeto de estudo, é conhecido - até hoje - como “Quadro”. Outra consequência do crescimento da região, advindo das atividades têxteis, foi a construção da Estação Ferroviária Central do Brasil24, inaugurada em 19 de Julho de 1895, aqui denominada Dr. Pedro Leopoldo, nome do engenheiro que havia feito o projeto e veio a falecer um ano antes de sua inauguração. 22 (ISSA FILHO, 2014:36) Apelido do maestro Cândido Moreira. 24 Atualmente a Estação funciona como biblioteca pública e praça para realização de eventos e concertos. 23 34 FIGURA 1 – “Parada da cachoeira”, em 1911. Ao lado dela, à esquerda, bonde de tração animal. Fonte: História do transporte urbano no Brasil, de Waldemar Corrêa Stiel (1985)25 Tal Estação - construída em um terreno doado pela Fábrica de Tecidos, ás margens do Ribeirão da Mata - foi chamada em sua escritura de “Parada da Cachoeira”. Seu funcionamento auxiliaria no desenvolvimento da região nas questões ligadas a produção agrícola, relação com outras localidades, transporte de matéria-prima e produto industrializado, fazendo com que, aos poucos a região que até então era chamada de “Cachoeira Grande”, passasse a ser conhecida como “Pedro Leopoldo”. Sobre tal homenagem, ISSA FILHO (2012), em seu livro “Coisas do Reino de Pedro Leopoldo”, critica as razões que envolvem a escolha do nome da cidade: “Nesta época, foi construída a estação da estrada de ferro, que recebeu o nome de Estação Ferroviária de Pedro Leopoldo. E em 1901, nossos políticos resolveram adotar o nome da Estação para a vila que então começava a crescer: Vila Pedro Leopoldo. E mais tarde cidade de Pedro Leopoldo. Nunca entendi o motivo dessa mudança. Talvez, quem sabe, uma fineza política, sem o menor sentimento poético. (...) O Dr. Pedro Leopoldo nunca esteve em nossa terra. Construiu, é verdade, o trecho da Estrada de Ferro entre Santa Luzia e Capitão Eduardo e morreu um pouco depois”. (ISSA FILHO, 2012: 50) E complementa: “E se hoje eu tivesse o poder de mudar o nome desta terra, mudaria para Cachoeira da Saudade. Sei que haverá quem me condene pelo que acabo de escrever; mas tenho certeza de que quem conheceu nossa cachoeira nos tempos áureos não me condenará”. (ISSA FILHO, 2012: 50) É possível perceber como, neste momento, a Fábrica (suas atividades e funcionários) era diretamente responsável pelo desenvolvimento econômico, social e agora cultural, da cidade de Pedro Leopoldo. 25 Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_mg_linhacentro/pedro.htm Acessado em 06/06/2016. 35 1.3. O APITO DA FÁBRICA : “CORPORAÇÃO MUSICAL CACHOEIRA GRANDE” “Ouvindo o apito da fábrica de tecidos, começou a crescer o lugarejo de Cachoeira das Moças. Um lugarejo de gente humilde e boa. (...) Ah, como era alegre aquela gente. Uma gente cuja paixão maior era a música”. (ISSA FILHO: 2014, 190) Neste cenário surgiu em 1912, a banda de música chamada “Corporação Musical Cachoeira Grande”, criada por diretores da antiga cia. Fabril Cachoeira Grande e funcionários, para fins de apresentações em festas, eventos religiosos, cívicos e principalmente entretenimento, uma vez que, era de interesse da Fábrica que o envolvimento entre trabalhador/empresa aumentasse, facilitando seu funcionamento e atraindo cada vez mais mão-de-obra para região. Nesta mesma época, os diretores também criaram o “Clube da Fábrica”, onde eram oferecidas atividades esportivas, bailes dançantes e shows de jazz. A formação da banda dialoga com efetivos musicais de comunidades locais, tradicionais – que sempre formam grupos instrumentais – mas está, neste momento, intimamente ligada a empreendimentos que marcam o avanço do capitalismo e da urbanização do Sudeste do Brasil. A chegada de uma indústria têxtil, se alia à necessidade de disciplinar e ao mesmo tempo proporcionar lazer e união, atraindo mão de obra, e faz da Corporação Musical Cachoeira Grande, um aparelho bastante próx imo do seu projeto capitalista. Os primeiros anos da história da Corporação estiveram arraigados ao desenvolvimento industrial e à urbanização local, conforme citado anteriormente. Um antigo periódico local26 descreve: “Decorreram três anos e meio para construção do prédio e instalação do maquinário (da fábrica de tecidos). E para cá então, mesmo antes da inauguração da fábrica, vieram várias famílias, que passaram a prestar seus serviços na organização e funcionamento da indústria [...]. Dentre tais famílias, Cândido Moreira27 estava entre elas, com inúmeros filhos já adultos e com o fim de encontrar trabalho na recente indústria, nela labutando por anos. Cândido fundou a primeira banda de música, que passou a ter o nome da localidade28, nome este que a Corporação mantém até hoje”. 26 FERREIRA, Elysio Alves Gonçalves. “A verdadeira história da origem de Pedro Leopoldo”. Publicado pelo periódico local, nomeado de “Oficina Humana”. Sem ano. 27 Seu Candu, como era conhecido da intimidade. Seus filhos se tornariam futuros músicos da Corporação Musical Cachoeira Grande: Raimundo, José, Altina, Nietaa, Lôra, Mario, Guilhermina e Elvira. 28 Vale ressaltar que a banda de música foi criada no ano de 1912, alguns anos antes de sua emancipação e da troca de nome do vilarejo. Nesta época, ainda se chamava “Cachoeira Grande”. 36 José Nicolau da Silva Lopes – o primeiro presidente da Corporação – e o maestro, Seu Candu, a pedido da Fábrica, reuniram as pessoas que sabiam tocar algum instrumento, incluindo seus familiares, e, numa casa cedida pela empresa, começaram os ensaios da banda. “Vou é falar sobre seu Candu, músico respeitado de minha terra, que foi maestro da banda de Música Cachoeira Grande de 1912 a 1920. Era pai de Mário de Candu e Dudu de Candu, todos dois também bons músicos. (...) As pessoas não costumavam acreditar em muita coisa que acredito. E acho que eles têm razão, não viveram naqueles dias, não conheceram a fábrica de tecidos nos seus bons tempos. Não conheceram o Quadro e sua gente, seu Candu com sua clarineta. O Cine Otoni do tempo do cinema mudo. Seu Candu com outros músicos animando aqueles filmes”. ISSA FILHO (2014:155) De acordo com as entrevistas realizadas, nos anos iniciais, era comum que as pessoas fizessem aula particular de música e somente após saberem tocar um instrumento, eles procuravam a banda. Um dos músicos comenta ainda que, até a década de 70, havia dificuldade em conseguir instrumentos musicais, por isso a escola não funcionava de forma ativa, uma vez que a banda não tinha instrumento suficiente para atender a todos interessados em ingressar no grupo. No período em questão, as principais apresentações da Corporação eram para a igreja católica e alguns músicos formavam grupos para as sessões do cinema mudo. Nesta época de cinema mudo, “havia um conjunto que tocava enquanto as imagens se moviam na tela (...). Tocavam músicas mais apressadas ou mais lentas, de acordo com as cenas. Se o filme terminava com um beijo, o conjunto tocava Sobre as ondas e se terminasse sem beijo, Danúbio Azul”. ISSA FILHO (1996:174) Segundo relatos de músicos antigos e da diretoria, a primeira apresentação da banda foi em 08/12/1912, data de aniversário da Fábrica, da Corporação e de Imaculada Conceição, esta última, sempre comemorada com uma procissão e a participação da banda. 37 FIGURA 2 – Corporação Musical Cachoeira Grande nos anos 40. Inauguração da Igreja Matriz 29. Fonte: Geraldo Leão. Um excerto de redação manuscrita e preservada pelo memorialista Geraldo Leão em seu acervo, cita a atuação da banda na recepção de um político importante em passagem pela cidade: “No dia 22 de julho, houve o seguinte: o pessoal Pedroleopoldense convidou o Secretário da Agricultura, Sr. Daniel de Carvalho, para assistir às corridas. Então no dia 22 deste, às onze horas, a banda de música foi à Estação. Na hora em que o Vsa. Excia desembarcou, soltaram fogos e a banda de música entoou lindos toques 30”. Outro evento importante para a história local, que contou com a presença da Corporação, foi a cerimônia de passagem de “Aldeia” para “Vila”, datada de 1921. Segundo MARTINS (2006), “em função da incorporação da Companhia Fabril Cachoeira Grande pela Companhia Industrial de Belo Horizonte em 1920, fato que ocasionou ampliação das instalações da fábrica e provocou significativo afluxo de pessoas para Pedro Leopoldo, a Prefeitura recém-criada teve que, a partir de 1924, criar novos logradouros públicos, como também executar obras de infraestrutura urbana”. Assim, de acordo com informações cedidas pela Prefeitura Municipal, a lei Estadual nº 843 de 1923 elevou Pedro Leopoldo à categoria de Município, sendo este instalado em 29 Músicos, da esquerda para direita: Ulisses Fonseca, José Xavier, José Pires, José João Nassif, Urbino Joaquim De Souza, Zé Boi, Miro, Antônio Barbosa Chaves, Alípio Lúcio Ribeiro, Antônio Hilário Rodrigues, Mario Pereira Da Luz, José Tibúrcio, José Valdomiro, José Rigolô, Gercino Rodrigues. 30 Caderno de Rosária Laranjeira – 24 de julho de 1923 38 27 de janeiro de 1924, para no ano seguinte, 1925, ter sua sede elevada à categoria de cidade. ISSA FILHO (2014) conta que nesse dia deslocaram-se para nossa terra, vindo de Belo Horizonte, altas autoridades do Governo do Estado de Minas Gerais. As ruas, todas elas, ornamentadas com suas bandeirolas coloridas, serpentinas e balões. Duas bandas de música tocando bonitos dobrados, movendo-se pelas ruas da cidade, abrilhantando a festa. Foguetes espocavam nos morros em volta, sinos da igrejinha Nossa Senhora da Conceição, no centro da cidade, não paravam de tocar. Foi oferecido aos convidados, naquele dia, um lauto banquete com a orquestra local, regida por José Flaviano Machado, brindando os presentes com belas músicas. ISSA FILHO (2014:95) Geraldo Leão explica que a orquestra citada no relato – a União Orquestra - foi organizada pelo então maestro da banda, Zeca Machado, exclusivamente para tocar no banquete oferecido ao Dr. Melo Viana, representando o governador Raul Soares, que tava doente na época. Então o banquete foi oferecido pra ele e outras autoridades. Quer dizer, eles falam que era orquestra, mas não tinha corda ,né?Nem um violino, não tinha nada. Mas tocaram,né? (...) Deve ter sido criada em 1923, pra dar tempo de ensaiar e tocar em 1924”. A questão da instrumentação é controversa, pois em entrevista, Natércia Issa, filha de Zeca Machado e esposa do escritor local José ISSA, explana que “alguns músicos de cordas da orquestra, eram instrumentistas de sopros da banda, de forma que, a grande maioria de músicos da Corporação Musical Cachoeira Grande participou das festividades”. Algumas partituras da União Orquestra31 se encontram no acervo da Corporação, não constam partes de cordas, mas não podemos garantir que o arranjo esteja completo. Dados os documentos, fotos32 e entrevistas, não foi possível afirmar se existiam cordas ou não, na formação da União Orquestra. Um fato comum a todos os relatos e fotos é que os músicos da Corporação estavam presentes neste grupo formado exclusivamente para tal evento. Detalhes sobre a atuação da banda com relação aos músicos, contexto, repertório, instrumentação, dentre outros, serão abordados mais a fundo ao longo da presente pesquisa. Expusemos aqui a forte ligação da história local com o surgimento e os anos iniciais da banda, para que se compreenda melhor o desenrolar da narrativa e análise de elementos do percurso histórico, atrelado às questões que envolvem contexto e atuação social. 31 32 Partituras carimbadas com os dizeres: União Orquestra, 1924. Tive acesso a apenas uma foto da União. Na mesma, não constavam instrumentos de cordas. 39 CAPÍTULO 2 – COMO A BANDA TOCA: ELEMENTOS SOCIAIS E PERFORMÁTICOS DA CORPORAÇÃO 2.1. O COMPLEXO “BANDA”: NARRATIVAS E CONSTRUÇÕES DE SENTIDOS QUE DELINEIAM O USO DO TERMO . Ao longo da presente pesquisa, observei a presença de diferentes formas de pensar ou construir o sentido da banda, principalmente ao colocarmos lado a lado conceitos trazidos por pesquisadores e aqueles presentes na fala dos músicos da Corporação Cachoeira Grande durante as entrevistas. O fato comum às abordagens é que banda civil, em termos gerais, possui uma formação musical muito antiga, composta por sopros e percussão. Por mais frequente que tal referência seja, seria suficiente resumi-la apenas à instrumentação utilizada? Assim como em outras tradições, é válido considerar que os grupos que se mantêm ativos por anos, vêm assumindo características próprias conforme a maneira como se dá o desenvolvimento das atividades em diferentes tempos e lugares. As respostas à pergunta– o que é banda? – poderiam ser ilimitadas, dada à quantidade de variáveis específicas de um local ou época a que a banda se insere; da forma de fazer música ou dos músicos enquanto indivíduos. BINDER (2006) nos atenta para a existência de duas problemáticas acerca do termo, que impossibilitam, dentre outras coisas, um parecer mais claro acerca das questões que tangem as primeiras formações de bandas no Brasil, por exemplo. Segundo o autor, “uma peculiaridade do termo banda é a certa raridade em encontrá-lo sozinho, desacompanhado. Quase sempre, ao lado de banda existe um adjetivo ou locução adjetiva: banda civil, banda militar, banda religiosa (...). Esta grande diversidade de usos e termos complica o trabalho do pesquisador, principalmente para fins de classificação33”. Além desta problemática, o termo banda nem sempre foi utilizado de forma uniforme ao longo dos relatos historiográficos sobre tal formação: “historiadores, musicólogos e folcloristas discutiram repetidas vezes a origem da palavra banda, procurando em sua etimologia informações que ajudassem a compreender a história destes 33 (BINDER, 2006:13) 40 conjuntos. Atiraram no alvo errado, pois, até onde nos foi possível examinar, somente na segunda década do século XIX é que a locução adjetiva banda de música passou a ser usada com frequência no Brasil”. (BINDER, 2006:29) Tal descompasso entre os termos e sua escrita de forma composta – banda civil, banda militar, dentre outros - contribui para que a atuação das bandas passasse, por vezes, despercebida, dentro dos estudos ou pesquisas sobre as bandas. Esta questão trazida por BINDER (2006) pode ser percebida na conceituação de banda - presente no trabalho de FAGUNDES (2010) - deixando clara a pluralidade no emprego de diferentes termos que demarcam tal formação: “As bandas são conjuntos de músicos que se caracterizam pelo emprego mais acentuado de sopro com pouco uso de percussão. Quando suficientemente organizadas, recebem múltiplas denominações como: Corporação Musical, Agremiação, Grêmio Musical, Filarmônica, Clube Musical, Lira, Banda de Música e, mais frequentemente, Sociedade Musical” (SANTIAGO, 1998 apud FAGUNDES, 2010:18) Os dicionários apresentam diversas definições para o termo, onde são abordados diferentes aspectos que tangenciam sua prática: “Cualquier conjunto instrumental mayor que una orquesta de cámara, incluído, especialmente en la terminologia anglosajona, la orquesta. [...] cualquier conjunto diferente de las combinaciones tradicionales de la música culta occidental, a veces identificado por el tipo de el instrumento(s) incluído(s) o por el repertório interpretado”. (DICIONÁRIO HARVARD DE MÚSICA, 2001:141) E “Conjunto instrumental. Em sua forma mais livre, banda é usada para qualquer conjunto maior do que um grupo de câmara. A palavra pode ter origem no latim medieval bandum (“estandarte”), a bandeira sob a qual marchavam os soldados. Essa origem parece se refletir em seu uso para um grupo de músicos militares tocando metais, madeira e percussão, que vão de alguns pífaros e tambores até uma banda militar de grande escala. Na Inglaterra do séc. XVIII, a palavra era usada coloquialmente para designar uma orquestra. Hoje em dia costuma ser usada com referência a grupos de instrumentos relacionados, como “banda de metais”, “banda de sopros”, “banda de trompas”. Vários tipos recebiam seus nomes mais pela função do que pela constituição (banda de dança, banda de jaz, banda de ensaio, banda de palco). A banda destinada para desfile (marching band), que se originou nos EUA, consiste de instrumentos de sopro de madeira e metais, uma grande seção de percussão, balizas, porta-bandeiras, etc. Um outro desenvolvimento moderno é a banda sinfônica de sopros, norte-americana, que se origina de grupos como Gilmore’s Banda (1859) E Us Marine Band, dirigida por John Philip Sousa (188092)”. (SADIE, 1994:74) As duas definições evidenciam a formação instrumental enquanto principal elemento delineador da prática. A última colocação vai um pouco além e aborda a 41 funcionalidade e atividade musical desempenhada por tais grupos, porém não comporta as figurações e funções sociais34 que a banda representa - sobretudo em solo brasileiro. Sobre a instrumentação, SILVA (2009) explica que ainda há uma confusão sobre a classificação – por parte dos leigos – confundindo muitas vezes “fanfarras com as bandas de música. (...) as fanfarras são grupos formados por instrumentos melódicos simples, tais como cornetas, liras, escaletas, pífaros etc. (...) e executam suas obras em deslocamento35”. Extrapolando as classificações puramente organológicas, BOTELHO (2006) divide as bandas de música em três grupos básicos de classificação – bandas militares, bandas pertencentes a uma instituição e bandas sociedades musicais -, levando em consideração as instituições mantenedoras dos grupos: “As Bandas Militares seriam aquelas pertencentes a instituições militares, portanto profissionais. As Bandas pertencentes a uma instituição seriam aquelas mantidas por Igrejas, colégios, fábricas, etc., podendo ser amadoras ou semiprofissionais (seus participantes recebem algum tipo de pagamento). (...) as Bandas Sociedades Musicais seriam, como dito anteriormente, aquela banda mantida por uma instituição, uma Sociedade Musical, que teria como único ou principal objetivo atividades relacionadas direta ou indiretamente à manutenção desta banda”. (BOTELHO, 2006:13) Por fim, apresento a conceituação de NASCIMENTO (2007) que aborda, além das questões instrumentais, aspectos de repertório e atuação: “Grupo formado majoritariamente por instrumentos de sopro e percussão, podendo ter alguns instrumentos de sopro de pequeno porte utilizados nas orquestras, como é o caso do oboé e do fagote. Podem executar um repertório bastante variado, com exceção de grandes peças escritas para orquestras sinfônicas. Seu emprego ocorrer (sic) em deslocamento ou parado, porém não enfatiza as evoluções”. (NASCIMENTO, 2007:39) Em outro viés, BATISTA (2010), explica que a relevância social da banda de música está além daquilo que se consegue perceber, “pois a sua importância é relativa e somente aqueles que fazem parte dela podem realmente expressar o verdadeiro significado e valor da banda de música para a sociedade, que nela interage e vivencia suas práticas36”. Seguindo esta ótica, a intenção ao explanar inicialmente as diferentes abordagens científicas é trazer, por conseguinte as colocações trazidas pelos músicos da Corporação Musical Cachoeira Grande, que atuam no grupo há anos e explicam com propriedade de autóctnes, o que seria banda de música, bem como as principais características que delineiam o conceito. 34 Elementos de suma importância para delinear paradigmas musicais na atividade que ela desempenha. (SILVA, 2009:158) 36 (BATISTA, 2010 apud JUNIOR, 2014:4) 35 42 Claudiomarcus Serafim, ex-trompetista da Corporação, hoje atuando como profissional e professor universitário, define o conceito como “conjunto de instrumentos de sopro e percussão que tem como objetivo principal tocar quer seja um repertório tradicional ou não, para a população da comunidade a qual está inserida”. Até mesmo o músico profissional não se atém ao termo apenas na questão organológica, e amplia a variedade de repertório que cabe às bandas de hoje em dia bem como considera como definição a sua atuação social. Gustavo Avelar, trompetista amador que atua em duas bandas locais, corrobora com a gama de possibilidades de repertório citada por Claudiomarcus, definido o termo como: “um grupo de sopro e bateria que pode abranger qualquer estilo musical”. Apesar disto, a abrangência de diferentes estilos, não é consenso entre os músicos, e muitos veem o repertório essencialmente composto por dobrados e músicas populares: “Pra mim, banda civil é um grupo musical composto basicamente por instrumentos de sopros que tem em seu repertório principalmente marcha militar e música popular37”. “Banda civil é aquela que tem uma cultura de tocar dobrados, músicas populares e etc. Contam com muitos músicos voluntários, alguns que seguem carreira profissionalmente, outros mais como hobby e tem certo compromisso com a sociedade, a fim de apresentar em variadas festas, procissões, atos civis38”. Anderson Luiz traz em seu depoimento outros elementos que relacionados à prática da banda em questão: o voluntariado dos músicos e compromisso social. Interessante observar como todos os outros músicos que participaram da entrevista abordaram exclusivamente questões sociais, a atuação dos músicos enquanto indivíduos e sua relação com a prestação de serviço à comunidade em que a banda está inserida, sem ao menos mencionar qualquer aspecto sonoro ou musical: “Banda civil é um conjunto de músicos voluntários que tocam por amor à música. Quando se apresentam, fazem com que a população tenha um dia melhor. Cultura, patrimônio da cidade. Lugar em que vários músicos começam sua jornada e esse sentimento”. (Reinaldo Gonçalves, saxofonista) “É um conjunto de músicos com o comprometimento”. (Caroline Freitas, clarinetista) “Músicos ou não-músicos (referindo-me também à diretoria que não são músicos mas atuam diretamente), cumprindo com excelência seu objetivo de tocar com qualidade e encantar o público”. (Fabiano Melo, ex-músico da banda) “Um grupo de músicos, onde exista união, organização e comprometimento por parte de todos envolvidos, fazendo um trabalho que garanta sucesso, alegrias e que estreitem laços, criando vínculo entre as pessoas e a sociedade, com dedicação que reflita a importância da banda 37 38 Marlon Luan, clarinetista e estudante de música. Anderson Luiz, saxofonista amador. 43 através da música, com músicos que não tocam por tocar e sim com a alma”. (Shirley Costa, percussionista) As respostas dos entrevistados reafirmaram para mim, enquanto pesquisadora, que a Corporação Musical Cachoeira Grande influencia diretamente nas questões pessoais dos músicos que atuam na mesma, reconhecendo-a como pertencente ao cenário cultural e da vida social na cidade de Pedro Leopoldo. Acredito que, o fato dos mesmos terem em mente a atuação social do grupo, mude a forma de atuação e desempenho nas apresentações cotidianas, pois pelas respostas, percebemos que eles se preocupam em transmitir uma mensagem ao público, além de manter a motivação pessoal e comprometimento como alicerce da prática musical. Assim, os conceitos encontrados na literatura e nos dicionários da área, somados às definições dos entrevistados em questão, corroboram para o fato de que, as bandas representam mais abordagens sob uma ótica ou eixo de atuação do grupo, seja ele a instrumentação, repertório, performance, transmissão do conhecimento, envolvimento social e pessoal, motivação e voluntariado. As conceituações aqui trazidas não são excludentes, mas narrativas, entendimentos, formulações, sentidos construídos sobre o “complexo banda”. 2.2. CONHECENDO OS MESTRES DA “CACHOEIRA GRANDE”: TRAÇANDO UM PERCURSO HISTÓRICO SOB UMA PERSPECTIVA ÊMICA A etimologia da palavra Maestro origina do italiano e significa mestre. Os grupos anteriores ao período Romântico não demandavam uma liderança para marcação da rítmica, expressividade ou dinâmica, uma vez que conseguiam se entreolhar, como acontece nos grupos de câmara atuais. Durante o classicismo, o primeiro violino ou instrumentista de teclado conduzia as performances dos grupos - que ainda não eram tão grandes – sentados ao instrumento. Na metade do século XVIII, os compositores eram aqueles que, geralmente, assumiam tal função. Com o crescimento dos grupos e surgimento das orquestras sinfônicas no Romantismo, a manutenção do equilíbrio dos planos sonoros de uma obra musical se torna mais complexa e na segunda metade do século XIX, surgiu a figura do maestro como conhecemos atualmente. O mapeamento dos perfis e estudo das práticas dos maestros na Corporação Musical Cachoeira Grande é de suma importância, pois, além de nunca ter sido feito anteriormente, auxiliará no registro histórico dos 103 anos do grupo, muitas vezes 44 realizado somente através da oralidade. Será possível compreender por que e como tal posição influencia diretamente o fazer musical e compreender signos e símbolos intrínsecos na prática da Corporação. Segundo os entrevistados e ex-músicos, nos anos iniciais do grupo, o regente deveria ser versátil e ter noção do funcionamento de todos os instrumentos e teoria musical, pois era ele quem ministrava as aulas no grupo, quando houvesse algum interessado. Seria ainda desejável que o maestro tivesse noções de arranjo, composição e outras habilidades musicais, uma vez que era o responsável por trazer músicas novas e escolher aquelas que seriam tocadas. Após os 103 anos de existência - considerando que as tradições performáticas não são estáticas - era de se esperar que houvesse uma mudança gradativa no perfil dos maestros. Com o surgimento do cargo de professor ou monitor de música dentro da Corporação, era dispensável que o maestro ministrasse aulas de todos os instrumentos e de teoria musical, exercendo exclusivamente a função de regente. SILVA (2009) delineia em seu trabalho, a fase mais antiga e mais atual dos perfis de regentes de banda, que não são antagônicas, nem excludentes, mas convergem com a história do grupo pesquisado. Com base neste autor, desenvolvi a tabela abaixo, para que as características dos regentes sejam mais facilmente visualizadas e posteriormente comparadas aos perfis dos maestros da Corporação Musical Cachoeira Grande: MAESTRO TRADICIONAL MAESTRO MODERNO Em geral, é do sexo masculino. Presença crescente de mulheres. Obteve seus ensinamentos musicais em Tem ou terá curso superior de música. uma banda de música desde criança. Tem noções de cada instrumento e de Não necessariamente toca diversos regência, é arranjador e comumente instrumentos, utilizando-se dos monitores- compositor. músicos da própria banda ou mesmo de professores específicos de instrumento. 45 Grande parte destes desenvolve suas Procura fazer com que sua banda de funções em bandas do interior, sendo música seja sinfônica, além de exercer as comum o caso dos músicos que atividades inerentes à banda de música ou aprenderam em uma banda da cidade e musical. depois de atuarem profissionalmente em uma banda militar, retornaram para assumir a função de “mestre”. Normalmente não recebem remuneração Este mestre normalmente é remunerado ou apenas uma ajuda de custo. TABELA 2 – Perfil dos mestres de banda, segundo SILVA (2009:164) A nomenclatura - “tradicional” e “moderno” - foi utilizada respeitando as proposições do autor em seu trabalho, mas aqui, dissociadas de eventuais depreciações que os termos possam trazer. O objetivo ao comparar a tipologia de SILVA (2009) aos perfis dos maestros da Corporação é ilustrar as mudanças gradativas de tais perfis, sem categorizá-las enquanto opostas, excludentes e heterogêneas, uma vez que será possível perceber maestros que permutam entre as duas vertentes. Através do estudo do perfil e formação dos maestros, pode-se perceber também que são os músicos e a diretoria que escolhem o maestro – através da aceitação e contratação - sendo necessário que o mesmo traga valores musicais e comportamentais semelhantes aos que o grupo tem interesse em transmitir e manter. Tais valores podem ser percebidos na fala dos músicos atuais, quando citam por diversas vezes a palavra motivação como uma das principais funções a ser desenvolvida pelos maestros atualmente, sobrepondo muitas vezes às funções estritamente musicais, conforme observado nos exemplos abaixo: “Penso que o maestro, sendo um líder, exerce diversas influências, tanto que as que já são características da sua própria vida profissional, como também ele pode exercer uma influência que o grupo precisa naquele momento, como a motivação”. – Marlon Luan “O maestro tem que conhecer bem seu grupo e estar em sintonia com ele. Deve buscar estratégias que motive o grupo”. – Gustavo Avelar “A influência que o regente tem para os demais é como o comandante, a pessoa que faz com que a música se complete com a união e colaboração de cada instrumento, pessoa que motiva, 46 coloca respeito, mas sem fazer com que os músicos passem a não gostar. Decide repertório, partituras, sabe o que é melhor para cada músico e sabe do potencial de cada um”. – Reinaldo César “Além de ser a estrela da companhia, o maestro é também o termômetro da banda. É ele quem motiva a todos para não desanimar com as coisas que às vezes esta difícil, ele fala que vai dar tudo certo. Na disciplina musical, se o músico é comprometido com aquilo ou não, o repertório ele escolhe para agradar a todos e fluir o trabalho”. – Anderson Luiz “O regente é essencial para manter a ordem e motivação dos integrantes sendo a figura responsável por aqueles envolvidos no sentido de acompanhar e ajudar, fazer que a comunicação seja fluida e que os envolvidos mantenham o foco de alcançar o objetivo. Também assim é na banda, um regente mobiliza e incentiva, é responsável pela preparação do grupo e do envolvimento com o nosso universo e se compromete a realizar o trabalho da melhor maneira”. - Shirley Costa Nas bandas, inclusive no grupo em questão, o maestro quem exerce influência direta sobre a disciplina, prática musical, “na formação educacional e na formação geral do músico 39 ”, principalmente através do exemplo: se o maestro for engajado, disciplinado, estudioso, pontual, atualizado e etc, formará uma banda com estas características. Caso contrário... 40 ”. Tais colocações ilustram os valores que a corporação presa ao contratar ou buscar um maestro para estar frente ao grupo, bem como a ciência que os mesmos têm sobre a importância do mesmo na prática musical e no bom andamento dos trabalhos. Uma hierarquização quase familiar é apontada pelo músico Reinaldo César. Para o saxofonista, o regente é “como se fosse o técnico de um time de futebol, o pai ou a mãe de uma família”, convergindo para o apontamento de SILVA (2009) quando afirma que, o maestro “tem uma posição parecida com o chefe de uma família, tomando decisões, aconselhando e em muitos casos agindo realmente como um pai. Talvez este seja o motivo pelo qual os integrantes destes grupos muitas vezes considerem a banda de música como segundo lar, quando não o primeiro41”. Por diversas vezes esta relação próxima foi vivenciada por mim e pelos músicos contemporâneos à minha época, onde o grupo possuía “também um significado a partir de relacionamentos pessoais estabelecidos pelos músicos chegando mesmo a ser entendida como uma extensão familiar para muitos (...)42”.São inúmeras as histórias e relatos dos momentos em que a banda cumpre papel familiar, onde os parentes dos 39 SILVA (2009:167) Claudiomarcus Serafim, trompetista e ex-músico da Corporação. 41 SILVA (2009:167) 42 (GRANJA, 1984 apud FAGUNDES, 2010:45) 40 47 músicos consideram outros membros como da estirpe, fazendo da banda um “grupo de pessoas que, por meio da música, promovem a alegria, descontração, harmonia e união para a população e também para si mesmo”, conforme define Markus Arthur. O ponto fundamental para construção da presente sessão foi pesquisar informações básicas sobre os regentes: quem era o maestro, período de atuação e formação musical. Com o cruzamento de informações em livros de atas, documentos, catalogação das partituras, entrevistas, elementos iconográficos da Corporação e de memorialistas da cidade, foi possível chegar à tabela cronológica abaixo, sobre a atuação dos maestros da corporação desde seu surgimento43: NOME DO MAESTRO Cândido Moreira PERÍODO FRENTE À CORPORAÇÃO FORMAÇÃO 1912 – 1920 José Flaviano Machado 1920 – 1942 Mário Pereira da Luz 1942 – 1962 - 1962 – 1976 43 Clarinetista. Vindo de família de músicos, fundou a Corporação. Não possui registros de arranjos ou composições. Violinista e pianista. Músico de uma orquestra de Belo Horizonte. Veio a convite de seu pai, presidente da Fábrica, reger a banda. Não possui registros de arranjos. Compôs duas músicas. Clarinetista. Iniciou seus estudos na banda de Lagoa Santa. Foi o maior compositor da Corporação, além de ter feito alguns arranjos. Neste período, a Corporação ficou sem maestro fixo. Os músicos da época revezavam esta função. Vale ressaltar que aqui constam apenas os maestros da banda civil. Aspectos referentes à Orquestra serão tratados na próxima seção. 48 João Evangelista de Paula 1976 – 1999 Júlio Machado Adalberto Barbosa Ana Carolina Malaquias João Paulo Pereira 1999 – 2003 2003 – 2005 2005 – 2007 Clarinetista, militar e arranjador. Iniciou seus estudos na banda de Dores do Indaiá. Era arranjador e não compunha. Bacharel em saxofone. Iniciou seus estudos na Corporação. Não era arranjador nem compositor. Bacharel em saxofone e regência. Iniciou seus estudos com teclado, em aulas particulares. Primeira mulher à frente da Corporação. Não compunha, mas fazia arranjos. 2012 – 2015 2007 – 2012 2014 – 2016 Clarinetista e maestro da banda da Polícia Militar. Iniciou seus estudos na banda de Rio Espera. Era arranjador, mas não compunha. Bacharel em clarineta. Iniciou seus estudos na corporação de Vera Cruz (distrito de Pedro Leopoldo). Não compõe nem faz arranjos. TABELA 3- Cronologia dos maestros da Corporação Musical Cachoeira Grande Conforme dito anteriormente, ao colocarmos lado a lado as duas tabelas anteriores – Tabela 1 e Tabela 2 – é possível observar como o perfil delineado pela tabela de SILVA (2009), de certa forma, converge com os perfis dos maestros da Corporação; existindo congruência, por exemplo, no que tange a formação musical, aqui explicitada na sequência: 1912 – 1962 – Maestros civis. Sem curso superior. 1976 – 2003 – Maestros militares. Sem curso superior. 2003 – 2015 – Maestros civis. Com curso superior. 49 Importante frisar que todos os maestros são naturais de Minas Gerais e o Conservatório Mineiro de Música foi inaugurado em 5 de setembro de 1926, federalizado em 1950 e transformou-se em estabelecimento de ensino superior 44 ; ou seja: os maestros que atuaram nos anos anteriores não tinham a possibilidade de se profissionalizar dentro do Estado. Acredito que, após a leitura completa deste trabalho, será possível perceber como a formação dos regentes e a forma de pensar e conceber a música, estão diretamente ligados a aspectos da perfomance e atuação da banda45. O fato de serem músicos remunerados ou não46, é inerente à formação musical do maestro, sendo estabelecido pela estrutura funcional da banda em cada período. Narrativas orais contam que, apenas os maestros Seu Candu e Zeca Machado, talvez tenham passado por um período sem remuneração, uma vez que tinham outras funções enquanto funcionários da Fábrica de Tecidos e recebiam seus salários por tais. Infelizmente, não há livro de contas ou outros documentos que comprovem tais afirmações. Célia Pereira, filha do terceiro maestro, Mário Pereira, afirma que a Fábrica contratou seu pai para o cargo exclusivo de maestro, não tendo outras atribuições dentro da empresa e sendo remunerado por exercer tal atividade. O Capitão conta que: “a única banda onde eu ganhei um dinheirinho foi lá, quando José Ulisses que me arranjou e serviu muito pra mim. Eu ganhava um ordenado e depois Geraldo Marques (presidente da época) aumentou. Eu recebia na boca do caixa, pela prefeitura, não era empregado da secretaria de cultura não. E foi assim 27 anos que eu fiquei lá. Os sócios também auxiliavam nas contas da banda”. Os sócios os quais o maestro se refere, eram membros da sociedade Pedroleopoldense que auxiliavam nas despesas da banda. Pela ausência de registros, não é possível verificar se havia esta modalidade nos anos anteriores ao Estatuto do grupo, datado de 20 de Julho de 1976. Tais sócios eram nomeados e beneficiados de acordo com a quantia que pagavam: Art. 17. – O Quadro social da Corporação Musical Cachoeira Grande, será composto de três classes de sócios (obrigados a contribuir com a quantia mínima de Cr$5,00 47): a) Sócios Efetivos (fundadores, contribuintes, beneméritos, remidos) b) Sócios Honorários (honorários, protetores) c) Sócios de Mérito (mérito, benfeitores, remidos ou benfeitores) 44 Informações retiradas do site oficial do Conservatório. Acessado em: 20/10/2015. https://www.ufmg.br/conservatorio/paginas/quem_somos_historia.html 45 Questões como: a banda marchar ou não, uniformes impecáveis, repertório, escolha de apresentações. 46 Aspecto abordado na Tabela 1, de SILVA (2009). 47 Cr$ se refere à silga de cruzeiro, moeda brasileira do período. 50 Fundadores – todos os associados que começaram a pagar suas contribuições de maio a dezembro de 1976; Contribuintes – os que ingressarem, a partir do mês de maio de 1976; Benfeitores – são os sócios que façam jus a esta distinção por terem prestado relevantes serviços à Corporação e contribuído para os cofres desta, com importância equivalente ou superior a Cr$1.000,00 (um mil cruzeiros) e que sejam indicados pela Diretoria em reunião de Assembleia Deliberativa, ou os que dentro de um ano proponham 50 sócios efetivos, ou de mérito que hajam pago 120 mensalidades; Nesta época, era uma forma de adquirir notoriedade social ser sócio da banda, pois com isto tinham direito a algumas contrapartidas por parte da Corporação e podiam participar ativamente da vida do grupo: Art. 10. A diretoria será eleita na segunda quinzena de Abril de cada biênio, pelos sócios em Assembleia. Durante os anos iniciais da Corporação, os instrumentos, uniformes e pagamento dos maestros eram mantidos pela Fábrica, uma vez que o grupo foi fundado pela mesma48 e Seu Candu, convidado dos diretores daquela época. Em 1920, a Companhia Fabril Cachoeira Grande recebia seu novo gerente, José Sérgio Machado, que incentivou seu filho – Zeca Machado – a assumir a regência da Corporação. Zeca Machado era violinista e pianista, “tocava na orquestra do cinema mudo em BH e dava aulas de música. Ele era assim, muito tratável, educado, então Seu Candu continuou tocando na banda quando ele era maestro, até falecer”, explica Maria Natércia Machado Issa, filha de Zeca Machado. 48 Para mais detalhes sobre a criação da banda, a Fábrica de Tecidos, ou a cidade, vide Cap.1. 51 FIGURA 3 – Zeca Machado em sua adolescência. Fonte: Natércia Issa. À direita, a União Orquestra, no ano de 1925. Fonte: Geraldo Leão. A figura acima, fornecida pela Dona Natércia Issa, se trata de Zeca Machado, com seu violino, em sua adolescência. Esta foto foi tirada na cidade de Belo Horizonte, onde morava com seus pais, num período anterior à sua vinda para Pedro Leopoldo. À direita, é a única foto que tive acesso, da União Orquestra, datada de 1925. Tal imagem foi fornecida pelo memorialista Geraldo Leão e ilustra a participação efetiva dos músicos da Corporação Musical Cachoeira Grande na formação: “Em pé, da esquerda para direita é Mário de Candú, Nico Pedreiro e Pedro Hilário. E sentados, da esquerda para direita: Antônio Drumond, Mundinho Baiano e Quincas Almeida. Todos eram músicos da Corporação. (...) Essas crianças eram filhos dos músicos por que sei que naquele período criança não podia tocar na banda não. Deviam estar lá assistindo, por isto tão segurando as caixas dos instrumentos49”. Desde os anos iniciais, a banda atuava em eventos esportivos, cívicos, religiosos, cinema mudo e outras apresentações populares, o que, por consequência, sempre garantiu um repertório diversificado 50 . O entretenimento da cidade naquele período, também era marcado pelos ”bailes e horas dançantes. O Clube Social não existia, a Fábrica de Tecidos tinha uma sede para as famílias dos empregados e lá aconteciam as horas dançantes animadas pelo Jazz 51 , que era formado por músicos da banda”. (VIANA, 2006:31). Sempre foi costume da Corporação que os músicos se organizassem - com auxílio ou não dos maestros - para tocar em eventos que não coubessem a atuação da banda, desenvolvendo uma atividade complementar ao grupo. Segundo entrevistas, 49 Geraldo Leão. No capítulo sobre repertório, arranjos e catalogação, trataremos com mais profundidade deste elemento. 51 Segundo Geraldo Leão, o “Jazz” que a autora se refere, era a “União Orquestra”, já citada no capítulo 1. 50 52 eram os músicos quem tocavam nos bailes de carnaval, na festa de Pré-Carnaval – Boi da Manta – ou em outras bandas existentes. Inclusive nos dias atuais esta prática se mantém. Atento aqui para o fato de que, a história da banda está fortemente atrelada às práticas das igrejas católicas pelo fato de seu maior contexto de atuação, desde os anos iniciais, ser o centro da cidade. Isto não significa, de forma alguma, que a cidade de Pedro Leopoldo seja hegemônica, uma vez que a cultura local sempre foi fortemente marcada pelas atuações das comunidades quilombolas (como em Pimentel) e pelas festas de reisado e congado - inclusive a banda participou, durante a abertura da festa de Nossa Senhora do Rosário, no bairro de Magalhães52. Durante as primeiras missas locais, a corporação tocava hinos católicos e os fiéis cantavam em latim53. De acordo com as leituras, manuscritos, relatos em entrevistas e experiência ao longo dos anos, observou-se que a ligação da Corporação com a igreja católica sempre permaneceu forte, principalmente se tratando da análise de fotografias antigas e de partituras encontradas no acervo da banda. Um dos entrevistados - que solicitou o anonimato ao fazer tal colocação - abordou uma questão interessante a respeito: “desde que eu tô na banda, a relação da Igreja foi de exploração sempre. Eles nunca tiveram nem aí, pra saber se a gente precisava de dinheiro para alguma coisa, se a gente tava com o uniforme feio ou outra coisa. Só querem saber da gente ir apresentar quando eles pedem durante o ano, todos os anos”. E complementa ainda que, entende que seja um contexto de atuação da Corporação ao longo dos anos e que é importante estar presente neste tipo de evento, mas que realmente “a Igreja não dá nada em troca como forma de agradecimento”. O que seria cabível numa situação como esta, que, sob a ótica do músico entrevistado 54, é uma via de mão única? E o que tange a manutenção de tal função social como forma de preservar a tradição performática que vem sendo desenvolvida ao longo da história da banda? Atualmente, a “contrapartida” da Igreja desde 2010, tem sido emprestar seu espaço para concertos e apresentações da banda e da orquestra, uma vez que Pedro 52 Tais performances não são aqui estudadas afundo, pois dentro dos 103 anos, a atuação nestes contextos foram casos isolados. 53 As partituras manuscritas de alguns hinos se encontram no arquivo da Corporação. 54 Tal colocação é uma opinião pessoal e não necessariamente representa os valores da Corporação Musical Cachoeira Grande, uma vez que nenhum outro colaborador abordou esta questão. 53 Leopoldo não possui teatro ou local adequado para apresentações de grande número de músicos ou grande público. FIGURA 4 – apresentação da Orquestra Cachoeira Grande em comemoração ao dia das mães, dentro da Igreja de São Judas Tadeu, em Maio/2014. Fonte: Acervo Do Grupo Tenores In Concert. De acordo com o atual padre da Igreja Matriz, Antônio Luzia, “a igreja tem orgulho de participar da divulgação de boa música e bons hábitos, sobretudo valorizando a grande presença de jovens tocando e assistindo os concertos”. Cabe observar como de certa forma, foi iniciada a quebra do processo histórico de silenciamento de outras formas culturais, uma vez que a diocese sequer solicita a lista com repertório ou detalhes performáticos antes das apresentações 55. Acredito que, pela total liberdade em conceber as apresentações dentro da Igreja, o Padre se refira a “boas músicas e bons hábitos” na questão da música instrumental, pouco difundida na cultura local e da prática em grupo, trabalhando valores como colaboração, companheirismo e trabalho em grupo. VIANA (2006) reforça esta fala sobre valorização dos jovens na cultura local, quando afirma especificamente sobre aqueles que se dirigem à Sede da Corporação Musical Cachoeira Grande para as aulas e ensaios “desejosos de conhecer novos instrumentos, de iniciar o aprendizado e fazer parte do grupo. Enquanto alguns em poucos dias desanimam, porque veem que não é fácil, pois exige disciplina, dedicação e paciência, outros permanecem ali, tomam gosto, e passam hora junto dos músicos, aprendendo a bela arte quando poderiam estas nas ruas desaprendendo os ensinamentos que receberam em suas casas”. (VIANA, 2006:8) Outra característica da prática no fazer musical de eventos religiosos que a banda atua, é que, durante as procissões a mesma percorre as ruas da cidade, atrás do andor e ao lado dos fiéis que caminham em filas orando e cantando. Aqui em Pedro 55 Um fato que demonstra tal abertura a outras culturas formadoras do rico tecido social local, não apenas com a Corporação, é o constante empréstimo para apresentações do coral espírita da cidade. 54 Leopoldo, é incomum associar elementos militares a festas de igreja, missas e procissões. Segundo José Ulisses, os dobrados são tocados nas procissões de cunho festivo e comemorativo, para festejar o dia “do Santo”, escolhidos não pelo seu gênero, mas pelo fato de seus toques serem “alegres e ritmados”, o ethos festivo56. Em algumas festas, os dobrados são alternados a Hinos da Igreja, e na procissão da Semana Santa, são tocadas apenas Marchas Fúnebres, fazendo alusão à via crucis e morte de Jesus. CHAGAS (2015) completa que: “Em algumas cidades vizinhas da cidade de Raposos, as bandas aguardam e tocam o Hino Nacional brasileiro ao fim da consagração ou durante o hasteamento da bandeira do santo padroeiro, momento que ocorre no fim das celebrações e no qual é comum também a execução de algum dobrado ou marcha”. CHAGAS (2015:33) Desde meu ingresso na Corporação Musical Cachoeira Grande, há 18 anos, o Hino Nacional é executado apenas durante a consagração, na missa, não nas procissões. MARTINS (2006) conta que muitas atividades sociais da comunidade giravam em torno da igreja, suas festas e procissões, entre os anos de 30, 40 e 50: “A procissão de Corpus Christie, realizada às 5 horas da manhã, seguia em sentido oposto ao da procissão do Enterro. E, ao invés de ser conduzida ao som macabro e funéreo das matracas, era alegrada pelos acordes festivos da banda. Ao chegar à Praça Dr. Senra, em frente à casa do prefeito, onde era armado um altar, a procissão parava, o padre erguia o ostensório, os fieis ajoelhavam-se e a banda rompia o silencio da manhã tocando (...) o Hino Nacional”. MARTINS (2006:146) Ao associarmos tal declaração a trabalhos de autores como BLACKING, SEEGER e MERRIAM57, em que discutem sobre função da música, seus simbolismos e significações, além de outros aspectos ligados a relação entre música e vida social, chegaremos a um questionamento: até que ponto a execução do Hino Nacional no interior da estrutura de uma procissão é puramente ligada ao festejo da Igreja e à religiosidade? Analisando como se dá a prática nas procissões em outros anos, associadas à observância com relação ao período que tal relato foi feito, veremos que o mesmo, por coincidência ou não, se enquadra ao período do regime militar de Vargas – 1937 - quando o Estado utilizava de todas as estratégias possíveis, por meio de simbolismos cívicos, para enaltecer os valores do nacionalismo e patriotismo58. Apesar 56 (GRANJA, 1984) Por exemplo, em trabalhos como A etnografia de Música (SEEGER), The study of Etnomusicology (MERRIAM) e How musical is a man (BLACKING). 58 Mais detalhes sobre a influência do Estado na prática da banda, ver sessão “2.4. Retratos de um século”. 57 55 de tal questionamento, segundo os entrevistados, esta não foi uma prática comum e, para ser mais exata, segundo o músico mais antigo do grupo, desde seu ingresso na banda nunca foi pedido o Hino Nacional na procissão. Apesar de não obtermos um parecer definitivo sobre este questionamento, a associação de elementos simbólicos servirá para ressaltar e analisar os fatos sob um crivo mais crítico, buscando entender quanto os fatores externos estão presentes no simbolismo do discurso musical e associados à performance das Corporações, inclusive se tratando de cidade “pequena” como Pedro Leopoldo. No ano de 1942, Mário Pereira da Luz, natural de Lagoa Santa e então morador de Confins, começaria a reger a banda. A convite de Zeca Machado e Sr. Juca Machado (ainda gerente da Companhia), Mestre Mário foi procurado para assumir o grupo, atividade que desempenhava na banda de Lagoa Santa desde os 12 anos. Segundo sua filha Célia, ele havia recusado um convite para ir ao Rio integrar a banda naval, por ser muito apegado à família, cedendo sua vaga a Manuel Jesus, um de seus alunos, que se aposentou no cargo. Este “apego” era também o fator responsável pelo fato de não aceitar inicialmente o cargo de maestro da banda, uma vez que, apesar das cidades hoje serem próximas, naquela época geralmente o transporte acontecia à cavalo ou à pé. Com tal recusa, a Fábrica se empenhou para que o músico aceitasse a oferta: “eles arrumaram o mais depressa possível emprego pra nós, pra trazer papai para cá. Eu chorei e xinguei, não tava na idade de sair de casa pra trabalhar não, uai. Ia fazer 14 anos”, afirma Célia. O então gerente empregou toda a família do Mestre Mário, e como eles seriam funcionários, tinham direito a escolher uma casa 59 para morar, nos “Quadro”, o “conjunto habitacional”, nos arredores da Fábrica. Neste local, a Fábrica de Tecidos ocupava um lado e nos outros três lados ficavam as casas dos operários; no meio um espaço grande gramado. “Havia uma banda de música que, sob a regência do Mestre Mário, respeitado maestro e compositor, fazia alvorada pelas ruas de nossa terra – no dia de Nossa Senhora, a padroeira do lugar, no dia do aniversário da cidade e da fábrica de tecidos – tocando alegres músicas. E nas ruas por onde passava, os moradores abriam as janelas de suas casas, mesmo nas manhãs muito frias, para ver a banda passar”. ISSA FILHO (2012:64) 59 A entrevista foi realizada nesta casa, onde três filhas do Mestre ainda moram, em frente à antiga fábrica e perto da sede da banda. 56 Durante os 20 anos que regeu a banda, fundou as corporações de Confins, Vera Cruz de Minas, Fidalgo, São José da Lapa, Lapinha e matinha a tradição de ministrar as aulas de todos os instrumentos e teoria. A sede da banda nesta época foi transferida para dentro da fábrica, salão onde ainda acontecem os ensaios. “Ele começou como regente junto com Zeca. Mas quando Mestre Mário veio para Pedro Leopoldo, Zeca começou a mexer mais com o coral60 e papai com a banda” - Célia. Talvez daí se justifique as duas partes de coro em latim deste período, encontradas no acervo da banda e sem descrição de nenhum instrumento utilizado pelo grupo, o que tornaria compreensível sua manutenção nos manuscritos da banda. FIGURA 5 – Corporação Musical Cachoeira Grande, no “Quadro” da Fábrica De Tecidos, em 24/07/1949. Fonte: Geraldo Leão. Através das vivências musicais que ele oportunizava aos seus filhos, levando-os em apresentações da banda, criou-se um vínculo forte entre o fazer musical e a família de Mestre Mário e praticamente toda sua família enveredou pelos caminhos da música. Seus filhos José e Antônio ingressaram na Corporação, tocando clarineta, requinta, trombone de vara e sax61. Nenhumas das três filhas tocavam nessa época, pois não era comum a presença de mulheres em bandas. Apesar de não descrever especificamente a Corporação Musical Cachoeira Grande, o trabalho de COELHO (2014) se adequa à realidade daquele período, quando engloba a presença feminina nas bandas em geral: 60 Este coral fazia as missas em latim, conforme citado anteriormente. Atualmente Célia, sua filha, está afastada por motivo de saúde, mas é clarinetista da banda civil. Seu neto, Mario Pereira Neto, violinista da Orquestra e a irmã dele e também sobrinha de Mário, Neuza Nasimento, foi presidente da banda. 61 57 “a presença feminina na Corporação, se deu primordialmente pela realização de aulas de música, em que as mulheres puderam ter contato com a teoria musical e assim entrar efetivamente na corporação. De fato, fotos de corporações musicais da cidade e da região mostram que recentemente há um número relevante de mulheres nas corporações. Fotos mais antigas mostram bandas e orquestras compostas inteiramente por homens 62”. (COELHO, 2014:115) Mestre Mário, foi sem dúvida, o maior compositor da Corporação, além de escrever arranjos e cópias. Ao fim da catalogação das partituras do acervo, dentre as 948 peças totais, 69 são de sua autoria ou foram arranjadas por ele63. Compôs o Hino da Companhia Industrial, um dobrado com nome de José Sergio Machado 64 , além de outros dobrados, valsas, marchas fúnebres, religiosas, fantasias, todas sem registro. A riqueza de suas composições é algo interessante, que poderia ser estudado mais profundamente no futuro, em uma nova pesquisa. Segundo Célia, “todo dobrado que ele fazia, tinha o nome de um amigo dele. Entrava em casa sempre assoviando uma composição. Mamãe acordava de madrugada e perguntava: O que você está fazendo aí? Ele respondia: Psiu! A música está aqui... (dizia ele, apontando para seus ouvidos). E ele escrevia a música”. Regeu a Corporação até seu falecimento, em 15 de outubro de 1962, aos 75 anos. idem “Quando papai internou com câncer, ele já sabia que não voltaria. Aí ele pediu Zé Tibúrcio para separar as músicas que seriam tocadas no enterro dele, “Viuvinha” e “Última despedida”65. Todo mundo fala que aqui em Pedro Leopoldo, nunca teve um enterro como o dele. Duas bandas de música, onze horas do dia, o sol quente... Padre Arthur com uma capona preta, coitado! Subindo o morro e gente até. Aqui em Pedro Leopoldo nunca teve um enterro como o de papai. Era “pretinho” mas era muito estimado”. Este período post mortem do Mestre Mário foi uma época complicada para a Corporação. Vários músicos 66 tentaram amenizar a ausência de um maestro entre os anos de 1962 a 1976, inclusive um dos filhos do antigo mestre. José Ulisses conta que a dificuldade em achar um substituto se dava ao grande preparo musical de Mestre Mário: “ninguém ia aceitar que chegasse qualquer um para reger depois dele. Tinha que ser 62 Na sessão “2.4. Retratos de um século”, através da análise iconográfica, abordaremos mais profundamente sobre a presença das mulheres na Corporação bem como a mudança no perfil dos músicos ao longo dos anos. 63 Sobre as composições de Mestre Mário, ver a sessão sobre a Análise de resultados do processo de catalogação. 64 Diretor da fábrica na época que o mestre estava frente à banda. 65 Atualmente essas marchas fúnebres são tocadas nas procissões da Semana Santa. Estes foram os músicos que se revezavam nas atividades de regentes: Ubino Joaquim de Souza (Bino Baiano), Tiago Venâncio, Geraldo Gonçalves da Silva José Tibúrcio dos Santos, José Pereira da Luz (filho de Mestre Mário) e Antônio Barbosa Chaves 66 58 alguém realmente preparado pra ser maestro. Os músicos não aceitavam mais qualquer pessoa. Isso também acontece hoje. Não queremos ninguém aqui pra benzer67 a gente”. A Corporação não deixou de atender às demandas, pois além das entrevistas, há fotos que comprovem a presença da mesma em eventos cumprindo a agenda de compromissos normalmente. Através da leitura completa da presente pesquisa, será possível perceber como a ausência de um líder estava intrínseca em diversos elementos na prática musical da corporação, como disciplina e repertório, por exemplo. Neste período, a gerência de José Sérgio Machado terminou e a relação da Corporação com a Fábrica foi diminuindo. Apesar disto, até os dias atuais, a banda ensaia no local cedido desde o ano de 1976, ainda pertencente às propriedades da Fábrica de Tecidos68. FIGURA 6 – Corporação Musical Cachoeira Grande, em frente sua sede, 1978. Fonte: Cássio Pezzinni. No ano de 1976, o maestro João Evangelista de Paula (o “Capitão), foi convidado pelo prefeito, presidente da Corporação Dr. Paulo Gomes e um dos músicos, o trompetista Vespasiano. O Capitão “aceitou o convite do então prefeito Cecé [César Julião Cecé de Sales], com o salário de três mil cruzeiros por mês. Em 15 de agosto de 1976, deu-se o primeiro ensaio no Salão do Clube Cachoeira Grande”. (CARMO, 67 Expressão utilizada entre os músicos da banda, quando se referem ao maestro que apenas rege, no sentido de balançar os braços; mas que não atua diretamente nas outras funções que se espera. 68 A Fábrica hoje está inativa e foi demolida, restando apenas sua antiga chaminé. O terreno foi comprado por uma empresa local de transporte, que a transformou em garagem. A sede da Corporação, apesar de estar dentro das propriedades, foi tombada pelo patrimônio e a banda possui autorização de ensaiar no local por tempo indeterminado. 59 1995:52) Em entrevista realizada às vésperas do aniversário de 98 anos do Sr. João, o maestro mais antigo ainda vivo descreve seu ingresso na banda e o processo de recrutamento dos músicos: “Quando cheguei lá em Pedro Leopoldo, Dr. Paulo me apresentou ao prefeito. Fizemos um panfleto convidando a turma e naquela época encheu a sala, 40 e tantos músicos e alunos. Desses 40 e tanto, fiz a primeira seleção e sobraram 30. Depois 20 dos alunos, todos bons, foi muito bom. Esses continuaram na casa, apertado. Aí tiveram que arrumar outro lugar pra ir, pois os ensaios aconteciam numa casa. Fomos até a fábrica de tecidos e arranjamos a casa aonde funciona hoje. Pedimos o diretor e explicamos que precisávamos de uma casa maior. Fomos lecionando e os músicos desenvolvendo. Entregamos instrumentos e a turma que tinha na banda de Pedro Leopoldo, uns 8 músicos bons, que tocaram um dobrado quando cheguei. Eles me serviram muito na banda, a turma nova ouvindo tocando e serviu demais da conta”. Natural de Rio Espera/MG, aos 13 anos iniciou seus estudos no sax-horne. Mudou-se para Belo Horizonte em 1941 e ingressou na Polícia Militar, onde serviu como músico e maestro por 30 anos. Sua vida como regente começou dentro da Polícia: “Entrei na polícia como clarinetista. O maestro da banda foi transferido e me colocaram para assumir o lugar dele. Apresentação de banda que elevou o nome de Pedro Leopoldo nas grimpas69”. Na Corporação existem três peças em homenagem ao maestro João Evangelista, de diferentes compositores. Acredito que sejam comemorativas, pois levam o nome das patentes que o maestro teve na polícia: “Sargento João Evangelista”, “Tenente João Evangelista” e “Capitão João Evangelista”. Este último ainda é tocado com frequência pela banda. Para ressaltar esta nova fase, o maestro escolheu um novo uniforme para o grupo, escolhendo a padronagem e as cores: “quando fizeram a primeira reunião, o maestro comunicou a todos que não precisariam ir de uniforme, que deixaria em casa. Depois, ele instituiu um uniforme novo, encomendado na Militar Mineira 70”, afirma José Ulisses. O primeiro uniforme foi dado pela fábrica, o segundo, desta época, pela prefeitura e o terceiro patrocinado pelo Banco do Brasil. O Capitão foi presidente da Associação de Bandas do estado de Minas Gerais e possui várias matérias em periódicos locais com alusões à sua “mania de fazer bandas”, como ele mesmo diz. Fundou as bandas de: 69 Colégio Anchieta, de Belo Horizonte; Nossa Senhora da Abadia; Termo antigo que significa: nas alturas. E conforme citado na sessão 2.4., o uniforme das bandas que ele trabalhava (Várzea da Palma e Pedro Leopoldo) eram idênticos. Assim, facilitaria o trânsito de músicos entre as duas bandas. 70 60 Campina Verde; Várzea da Palma; Diogo Vasconcelos; Jeceaba. Segundo o maestro, ainda esteve presente da banda de Inauguração do Mineirão e da antiga TV Itacolomi. Toda esta estirpe militar e pró-ativa trazia contigo uma grande carga de “disciplina”, seja em ensaios ou apresentações. Ao fim da entrevista, perguntei a ele qual a principal função do regente de uma banda. Incisivo e objetivo, respondeu: _ “Disciplinar os músicos. A disciplina valia 100%”. Com base no estudo de diferentes aspectos que tangem a prática musical, esta frase, dita pelo próprio maestro, é uma das melhores formas de definir todo período que o Capitão esteve frente ao grupo. São muitas histórias dele, dos músicos e das quais eu me recordo perfeitamente, pois quando ingressei na Corporação, foi sob a regência do Sr. João. Praticamente todos os aspectos ligados à performance - como uniformes impecáveis, meias e sapatos idênticos, barba feita e cabelo cortado, instrumento polido, preferência dos mais velhos para comer e entrar no ônibus, tocar dobrado sempre marchando, não comer duas vezes quando a banda almoçava fora - estavam sob o crivo e vigilância atenta do maestro. Além disto, os famosos “Encontros de bandas” premiavam as melhores Corporações, e o mestre preparava cuidadosamente o repertório, visando um troféu ou menção honrosa toda vez que seu grupo fosse participar. De acordo com José Ulisses, o único músico que estava na reunião de chegada do maestro em 1976 e que ainda é membro da banda, esta disciplina militar no grupo afastava muitas pessoas. São inúmeras as histórias de constrangimento onde o mestre mandava o músico voltar para casa e não o deixava tocar naquele dia e “sua mania de corrigir as pessoas em público afastava muitos músicos. Isso de certa forma humilhava o sujeito71”. O próprio Sr. João conta que “a disciplina era rígida. Eu exigia barba feita, sapato e meia iguais, uniforme. Quando íamos viajar, eu exigia que os mais velhos entrassem primeiro e só depois os novos podiam entrar. Ensinei até os músicos a comer. Quando os festeiros me perguntavam quantos músicos tinham e eu dava a conta exata: tinham 30 bifes, quem comer 2 deixa alguém sem comer”. Uma associação válida com relação ao cumprimento de ordens e disciplina instauradas pelo Capitão, é que tal “metodologia de trabalho” convergia com projeto 71 José Ulisses. 61 político e militar no Brasil durante dos anos de 1964 a 1985, que abarca os primeiros anos de sua estadia frente à Corporação e todo país vivenciava uma rigidez maior em todos os campos de atuação, inclusive nas artes. O Sr. João entende que aquela conduta era uma somatória de regras necessárias para a boa convivência entre os músicos e para um bom resultado sonoro72. Sua forma de conceber a prática musical afetava inclusive os ouvintes: segundo o mesmo, quando a Corporação executava o Hino Nacional, “exigia que as pessoas presentes ficassem de pé, tirassem o chapéu e colocassem a mão no coração, nem podiam olhar um pro outro, tinham que cantar o Hino. Era uma lição de moral que ele dava à banda”. COSTA (2011) reitera que toda esta relação próxima das bandas com o poder, sempre estiveram presentes “desde sua origem (...) apresentando funções simbólicas73”. FIGURA 7 – Inauguração do Pronto Atendimento e da Praça Zé Mineiro em 10/05/1986 . Fonte: Geraldo Leão. João Evangelista compôs quatro dobrados, um chamado “José Mendes Pordeus74”, dedicado a um comandante do batalhão, gravado pela banda de Mariana. Vale lembrar que, em todas as situações em que os dobrados eram tocados, o maestro exigia que eles marchassem. Recordo-me que, às vésperas do desfile de 7 de setembro, ele nos colocou na rua marchando – sem tocar, apenas com a percussão marcando os tempos – e passava batendo a batuta nas pernas das pessoas que estivessem desencontradas. Resultado: marchávamos impecavelmente. Para escolha de repertório, ele sempre buscava algo que fosse atrair o público quando a banda tocasse, seja tocando 72 Quando contei para o Sr. João, no dia da entrevista, que a banda atualmente só marchava no desfile de 7 de Setembro, ele disse que ligaria para um Major amigo dele nos visitar e ensinar a banda a marchar de novo. Segundo ele, estávamos sendo muito “bonzinhos” com os músicos. 73 COSTA (2011:246) 74 Tal dobrado não se encontra no acervo da Corporação. 62 os dobrados mais conhecidos, ou nas músicas populares. Ele conta que “escolhia de acordo com a apresentação, para segurar o pessoal que assistia a banda. Intercalava uma música conhecida e outra não”. E realmente: após a análise do acervo foi possível verificar um aumento significativo de obras populares nos anos de atuação do maestro. Naquele período, o contramestre – Tarcísio Drummond – auxiliava-o nas aulas de música, substituía-o quando não podia ir, desenvolvendo ainda atividades de copista e arranjador. Compôs ainda 19 peças para a formação da Corporação, além de ser o braço direito do Sr. João, sempre gratuitamente. O ex-maestro Adalberto Barbosa, conta que ele foi uma de suas principais referências no grupo: “Foi meu verdadeiro mestre na banda. Você pode notar que o Capitão nem me conhece direito, tive poucas aulas com ele. Estudei o Bona 75 com ele (...) e por volta do final do mês de Novembro, o Capitão pediu que o Tarcísio me desse um instrumento. Tarcisio deu o sangue dele pela CMCG76 e não viveu muito depois da sua saída”. Com a saída do Capitão, por motivos de segurança77, o maestro Mateus esteve à frente do grupo apenas por dois meses. No mesmo ano, em 1999, Júlio Machado assumiu. Natural de Dores do Indaiá, também era militar, mas possuía uma concepção musical e comportamental diferente do antigo maestro: possuía uma predileção em seu repertório por músicas de solo instrumental, de caráter “erudito” e que explorassem a técnica dos instrumentistas que se sobressaíssem durante os ensaios78. Interessante que, nós, os solistas deste período seríamos os três maestros dos anos seguintes, conforme conta Adalberto Barbosa: “Seu Júlio foi certeiro quando tirou a gente da bancada e colocou para solar, mesmo quando a gente ainda era bem novinho. Fomos os três que resolvemos fazer faculdade de música”. O maestro ainda cedia espaço para que eu regesse a banda, fazendo-me de contramestre dele em todo período que esteve à frente do grupo, despertando meu interesse para uma área que dei seguimento na vida profissional. 75 Método de solfejo utilizado nas aulas de teoria musical daquele período. Para que o aluno começasse a aprender um instrumento, era necessário que solfejasse metade dos exercícios. 76 Sigla de Corporação Musical Cachoeira Grande. 77 O maestro durante todo este tempo continuou morando em Belo Horizonte e trabalhando em Pedro Leopoldo. Após ser vítima de um assalto mais hostil, sua família pressionou para que ele largasse o grupo, uma vez que já estava com idade avançada e estas “viagens” começaram a trazer riscos. 78 Inclusive os três últimos regentes da Corporação eram os instrumentistas das peças solo que o maestro fazia. 63 FIGURA 8 – Ensaio do Maestro Júlio de Paula Machado, em 13/01/2012 . Fonte: Geraldo Leão. Lecionava teoria para os músicos da Corporação, em aulas semanais, designando monitores para os naipes de palhetas e metais. Iniciou ainda um ciclo de ensaios para resgatar os dobrados inéditos compostos por Mestre Mário, incluísse-os de forma mais efetiva em seu repertório. No trabalho de VIANA (2006:39), o maestro conta um pouco do início de sua temporada no grupo: “Fui convidado pelo Ulisses para ser maestro da banda, substituindo o Capitão João Evangelista. Quando cheguei, a banda estava ativa e nós fizemos um plano de aulas: na sexta de manhã e a tarde, no sábado pela manhã e de 16:00 às 19:00 ensaio da banda. Então achei a banda em pleno vapor e para nossas aulas tínhamos 14 jovens aprendendo e 3 fazendo faculdade de música. Hoje somos 34 músicos dando continuidade ao trabalho, com todo vapor, prestando serviço à comunidade. Nosso trabalho é esse aí”. Infelizmente, não foi possível realizar uma entrevista com o mesmo, pois o Sr. Júlio deixou a Corporação em 2003 para tratamento de um câncer, quando veio a falecer 79 . Após sua saída, Adalberto Barbosa da Silva assume. Natural de Pedro Leopoldo, iniciou seus estudos na Corporação Musica Cachoeira Grande e atualmente vive na França como saxofonista e professor. Durante sua regência, inseriu músicas do repertório de banda sinfônica, com transcrições e adaptações, pois tinha este tipo de formação como referência sonora e estética de seu trabalho, como será possível 79 Na Corporação não há telefone ou dados dos familiares para uma possível entrevista ou conversa. 64 observar, sobretudo nas sessões que se tratam da análise do acervo de partituras e no estudo iconográfico de um concerto realizado por ele. As visões e os valores acadêmicos inclusos na metodologia de trabalho dos regentes foram inevitáveis, pois todos seriam graduados em música, inclusive pela mesma instituição, a Universidade Federal de Minas Gerais. A Corporação desde então, não marcha em procissões, apenas nos desfiles de 7 de Setembro, quando os ritos de hasteamento da bandeira e a execução de hinos pátrios, presença das escolas, Polícia Militar, Aeronáutica, reforçam o conservadorismo da festa (mesmo tendo sua importância e real significado contestado por muitos). As músicas, marchas, balizas, fanfarras são rituais e símbolos construídos para institucionalização de uma memória nacional neste dia; sendo assim ele opta por manter a apresentação marcial, em respeito ao sentido patriótico e cívico da época em que tal prática foi instituída. O evento é mantido em calendário anual do grupo, sendo um compromisso de todos os instrumentistas de sopro e percussão, uma vez que a maioria dos músicos atribui ao mesmo o sentido da manutenção da tradição, dos valores que contribuem para existência da banda até os dias de hoje, o que não necessariamente seja um a concordância com o evento cívico em si, ou a todo seu significado: “O Desfile é muito importante para que a banda mantenha suas tradições e continue com as participações em eventos cívicos. Para nós é importantíssimo. Desde quando eu entrei na banda, no ano de 1962, participo de todos80”. Adalberto ficou à frente da Corporação até sua ida para França, em 2005. Neste período fui convidada a assumir o grupo, pois já havia atuado diversas vezes substituindo o Sr. Júlio e o próprio Adalberto. Markus, tubista desde o ano de 2008, descreve que, desde este último, o “repertório era voltado mais para a música popular brasileira e internacional e passava também dobrados”. Permaneci conduzindo a banda por dois anos, quando troquei de função com o então professor de teoria João Paulo, que regeu até o ano de 2012. João Paulo também graduou-se em música, como clarinetista e teve seu primeiro contato musical na banda do distrito onde nasceu - Vera Cruz situado em Pedro Leopoldo. Atualmente é o maestro da banda civil da Corporação em questão e da corporação onde teve sua iniciação musical. Sua metodologia ainda mais conservadora e baseada nas fundamentações acadêmicas recebidas durante seu 80 José Ulisses. 65 bacharelado, destrincha detalhes musicais ao extremo, ensaiando mínimos detalhes como afinação, apoggiaturas, articulações, dentre outros. Isto gera uma divergência de opiniões e alguns músicos sentem “preguiça”, uma vez que estão mais acostumados com a oralidade, tão característica no ensino musical das bandas. FAGUNDES (2010) descreve em seu trabalho: “Pude observar que as formas usadas no ensino-aprendizado e na transmissão de conhecimento nas bandas são únicas, diferenciadas, práticas e adaptadas ao contexto que a banda vivencia e no qual socializa. O ensino de músicas nas bandas, muitas vezes, se dá informal e oralmente, com uma metodologia peculiar”. FAGUNDES (2010:70) Na época do Capitão, por exemplo, os músicos começavam a frequentar os ensaios no mesmo dia que tinham o primeiro contato com seu instrumento, ou seja: aprendiam de ouvido, acompanhando o colega ao lado: “eu mesmo, to na banda há anos, sei todos os dobrados de cor, mas não vi partitura de muitos, né? Mas pense comigo, se a banda já toca a música e toca bem, pra quê o maestro vai gastar tempo de ensaio com ele, concorda81?”. Recordo-me de saber muitos dobrados de memória sem nunca ter visto suas partituras. Em 2012, assumi novamente o grupo, para o ano de comemorações de seu centenário, quando as atenções locais estavam voltadas para Corporação, por sermos o grupo mais antigo da cidade, com atividade ininterrupta. Neste período, com fortalecimento do repertório popular, aumento de demanda de apresentações, a banda se desdobrava para atender todos os pedidos. Em conjunto com a diretoria, após o concerto e a gravação do DVD de centenário da banda, criamos a Orquestra Cachoeira Grande82 , com sua estreia em dezembro de 2013. A Corporação Musical Cachoeira Grande atualmente é um núcleo de música, composto por uma escola de música, orquestra83 e a centenária banda civil. Com a criação dos dois grupos, a regência dos mesmos foi segmentada - fui encarregada dos trabalhos com relação à orquestra e João Paulo assumiu novamente o comando da banda civil – bem como seus dias de ensaio, repertório e agenda de apresentações. 81 José Ulisses. Mais detalhes sobre a orquestra e sua criação no capítulo 4. 83 No capítulo 4 trataremos especificamente sobre o processo de reinvenção para criação da Orquestra e a manutenção da tradição, resgatando valores da banda civil. 82 66 2.3. RETRATOS DE UM SÉCULO : ELEMENTOS ICONOGRÁFICOS NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA ”A História é o seguinte, vou te mostrar num exemplo muito clássico: Jesus Cristo. Se pode ver, Jesus nasceu, depois foi perseguido, fugiu pro Egito, voltou pra Nazaré, aí desaparece da história. Aparece aos 12 anos no Templo de Jerusalém. Depois some outra vez, só aparece aos 33 anos que foi quando ele morreu. Olha pra você ver: já pensou se preencher os buracos dessa história que maravilha que seria pra humanidade? É interessante, e assim tem outras coisas. Na História do Brasil (...), Pedro Leopoldo, por exemplo: as três moças. Não tem uma sequencia histórica. Elas entram na história e saem rapidamente”. - Geraldo Leão Muitos sistemas contidos nas práticas musicais das corporações podem ser decifrados ou compreendidos através da análise de elementos do acervo documental das bandas. Considerar tais registros enquanto fonte de pesquisa historiográfica foi uma prática adotada com a chamada Escola de Annales, em 1920: esperava-se que o historiador preenchesse as lacunas da informação com todos os documentos considerados vestígios da passagem do homem, inclusive aquelas que pertencem à categoria imagética84·. CERQUEIRA (2008) complementa que “esta ampliação somente se tornou possível a partir de meados do século passado (...) quando foram revistos vários pressupostos da ciência histórica, entre os quais o conceito vigente na História Metódica de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, que definia somente o documento escrito, e preferencialmente o documento oficial, como fonte histórica válida e confiável, relegando os testemunhos visuais a um lugar desprezível na construção do conhecimento histórico”. (CERQUEIRA, 2008:114) Sobre as fotografias especificamente, KOSSOY (1989) diverge afirmando que, até 1980, não eram consideradas peças de acervo ou documentos85. Para a presente pesquisa, utilizamos o estudo de tais elementos como tentativa de compreender o contexto, os agentes sociais e diversos aspectos que não foram relatados em documentos e entrevistas, na tentativa de alargar nosso entendimento sobre a história da Corporação Musical Cachoeira Grande durante estes seus 103 anos, eliminando do acervo a condição de ser apenas a reunião de papéis, fotos e documentos. O conceito de iconografia é o ponto de partida para condução da dialética metodológica nesta sessão. Segundo CASTAGNA (2008), a iconografia 84 85 (SOUZA e NETO, 2004:2) (KOSSOY, 1989:16) 67 “é o estudo de fontes visuais relacionadas à música, as quais apresentam informações sobre instrumentos musicais e suas formas de execução, número e tipos de intérpretes, formas, dimensões e características dos espaços de apresentação musical (em teatros, igrejas, residências ou ao ar livre), figurino e cenários operísticos, etc” 86. Em seu trabalho, o autor complementa ainda que a iconografia é uma das nove vertentes da pesquisa musicológica proposta por Vincent DUCKLES (1980) e que, à medida que se tornou um eficaz método de pesquisa musicológica, houve a necessidade de uma sistematização internacional de fontes para catalogação, localização e consulta, quando em 1977, surgiu o RIdIM (Répertoire International d'Iconographie Musical). Utilizados para designar o significado simbólico e descrição de imagens, mantendo “relação de interdependência com as categorias sociais, políticas, culturais e econômicas predominantes em cada época87”, a iconografia “se dedica a identificar, descrever, classificar e interpretar a temática das artes figurativas; estuda sua origem e formação” e “até fins do século XVI, era associada à simbologia de imagens inseridas num contexto religioso. Atualmente, refere-se ao estudo da história e da significação de qualquer grupo temático“. (MARIANO, 2013:14) Sobre a etimologia da palavra, PAIVA (2002) explica que a iconografia “deriva da palavra eikos, que significa imagem. Daí eikonografhia que se transformou em iconographia no latim, transformando-se em iconografia em português”. (PAIVA, 2002:14). Adentrando acerca da relevância de tal investigação para a presente pesquisa, a análise iconográfica possibilita a imersão do estudo da música para além das questões definidas enquanto sonoras, acrescendo outros valores e reflexões acerca do sentido da música na sociedade e das relações que envolvem/envolveram o fazer musical da Corporação Musical Cachoeira Grande. Tal pesquisa só é possível pela capacidade que os registros imagéticos possuem de retratar - com sua natureza discursiva - o período em questão. MARTINS (2012) corrobora sobre esta nova tendência, inclusive dentro das pesquisas atuais no Brasil: “as mais novas gerações de historiadores brasileiros têm utilizado a pesquisa iconográfica como fonte privilegiada de informações, que quando associados a outros registros transformam-se em certidões visuais do passado88”. 86 87 (CASTAGNA, 2008: 25) (MARIANO, 2013:9) 68 Considerando toda gama proporcionada pela pesquisa imagética, escolhi a análise de fotografias como forma de ampliar o discurso historiográfico levantado na presente pesquisa, uma vez que as mesmas presentificam o passado, revelando aspectos do período que complementam a descrição verbal - principalmente pelo fato de poucos entrevistados serem contemporâneos ao período que as fotografias foram feitas89 - além de instigar a novos questionamentos. Não obstante, é preciso considerar que “as pesquisas históricas buscam a desconstrução das verdades absolutas; daí uns dos grandes riscos da utilização da imagem como objeto de estudos sem analisa-las profundamente 90 ”. Registros iconográficos não possuem a capacidade afirmativa e soberana, mas sugerem “perguntas e no exercício para respondê-las, a imaginação flui através do que parecem ser realidades 91”; possibilitando ainda a análise do contexto sociocultural, fazendo necessária também a associação com questões do período para que se chegue o mais próximo possível dos significados e símbolos de tais registros. Com relação ao contexto em que a fotografia foi feita, é válido lembrar que é um recorte da vida cotidiana da banda, da rotina do grupo, porém carregada de simbolismos culturais. A fotografia enquanto construção é um produto cultural resultado das correlações existentes no grupo social e de sentidos da época. Sobre tal questão, CERQUEIRA (2008) e CAZAES (2014) convergem: “A fotografia, na sua condição de um recorte no fluxo do tempo, impõe a situação de ser uma elaboração técnica, e mesmo assim resultado de criação, na qual são determinantes as relações de intermediação entre o meio cultural onde o fotógrafo está inserido, seu repertório individual e a imagem ideal pela qual o fotografado gostaria de ser visto”. (CERQUEIRA, 2008:133) “As imagens refletem as redes imbricadas de relações sociais do comportamento dos sujeitos fotografados e códigos culturais”. (CAZAES 2014:45) Considerando as questões apontadas acima, é preciso estar atento “aos limites existentes nesses procedimentos de interpretação, sob [a] pena de, no extremo, inventarmos realidades históricas para podermos adaptá-las à iconografia examinada92”. É necessário ainda observar a dualidade presente em tais fontes, visto que - ainda 88 (PAIVA, 2006 apud MARTINS, 2012:5) A primeira fotografia da Corporação, por exemplo, é datada de 1924 e nenhum dos entrevistados estava na Corporação no período em questão. 90 (SOUZA e NETO, 2004:2) 91 (CERQUEIRA, 2008:134) 92 (PAIVA, 2004:31) 89 69 segundo PAIVA (2004) - podem ser consideradas enquanto imagem e representação por meio da imagem, e, como propõe Cerqueira, em complemento a esta proposta, “ao mesmo tempo em que ela possui elementos do real, ela é uma escolha feita pelos agentes históricos, os quais procuram transmitir através dela a sua visão da instituição, das pessoas envolvidas, visão essa prenhe da dimensão simbólica constitutiva da percepção do real”. (CERQUEIRA, 2008:135) Uma vez atento aos cuidados que se deve tomar ao realizar uma análise imagética, o estudo destes recursos contribui com detalhes e especificidades não obtidas em outras fontes da pesquisa e gera um discurso visual capaz de auxiliar na interlocução da memória, compreensão do presente e nas perspectivas futuras - é a reativação da história. Busca-se ainda mapear as representações sociais, espaços e vivências. CAZAES (2014) explica, por exemplo, que “a maneira como os sujeitos se posicionavam no espaço fotográfico pode evidenciar as relações de poder no grupo, os uniformes, os instrumentos e as expressões corporais dos músicos 93 ”: em determinadas fotografias podemos observar influências militares como calcanhares unidos, cabeça apontando para frente, coluna ereta, instrumento ao lado do corpo, peito estufado e palmas das mãos apoiadas nas laterais das coxas, como a posição de “sentido” em tais práticas. Assim, parto da premissa de que realizar a análise iconográfica não apenas no âmbito da descrição, mas levando em consideração as possíveis interpretações, é considerá-las como agregadores na construção de sentido e do fazer musical da Corporação nestes anos, reiterando o que propõe Molino na análise do fato musical: “o conceito e o conhecimento sobre música passa pelo estudo do som construído e reconhecido por uma cultura, procurando reconhecer esses diversos níveis de interpretação no documento imagético94”. O registro iconográfico é um recurso histórico/social importante, servindo como fonte para novos questionamentos e respostas, após ter sua natureza discursiva interpretada e compreendida. A presente sessão tratará da descrição do conteúdo de um conjunto de 8 fotografias, bem como as reflexões associadas às imagens. Finalizo com a colocação de COSTA (2011), que, apesar de não ser especificamente sobre o grupo em questão, converge com a afeição à memória que os músicos da Corporação possuem: 93 (CAZAES, 2014:22) MOLINO, Jean. “Facto Musical e Semiologia da Música”. In: SEIXO, Maria Alzira (Org.). Semiologia da Música. Lisboa: Veja, 1975. p. 109-164. 94 70 Nas paredes, retratos de “pessoas ilustres”, fundadores, diretores, sócios beneméritos, momentos marcantes de apresentações das bandas. Tais representações revelam uma realidade dominada por um profundo apego à tradição. [...] nesse espaço físico se organiza todo um universo simbólico, onde as bandas deixam de ser apenas um conjunto musical para adquirirem as características de uma comunidade em toda a sua dinâmica de relação humana. Desta forma, consideramos que tais bandas podem ser vistas como um autêntico lugar de “arquivo vivo”, pois ali encontramos a possibilidade de “ler” uma prática musical relacionada a diferentes contextos. (COSTA, 2011:240) 2.3.1. ORGANIZAÇÃO E CATALOGAÇÃO DAS FOTOS Com o objetivo inicial de ampliar o acervo fotográfico da Corporação, em 2015 comecei uma busca por pessoas que tivessem em seu acervo pessoal, fotos do grupo, em qualquer período. A banda possui de certa forma, poucas fotografias, considerando seus 103 anos de existência. Todas ficam expostas em quadros, na parede de uma das salas que funciona como escritório e no salão principal, onde acontecem os ensaios, junto com os troféus, medalhas e placas. FIGURA 9 - Acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande. Fonte: Acervo Pessoal. Inicialmente, minha ideia era o estudo das fotos do acervo que auxiliassem na abordagem de alguns pontos, sobretudo nos anos iniciais da banda, onde há dificuldade de encontrar pessoas que viveram naquela época ou sabiam de fatos para a entrevista. Pelas limitações do acervo da banda, procurei o memorialista da cidade, Geraldo Leão, para consultar as fotos de seu acervo - hoje o maior detentor das fotos da Corporação Musical Cachoeira Grande, além de possuir vídeos de ensaios e apresentações. 71 A partir deste momento, com a obtenção de novas fotos, surgiu a ideia de elaborar um acervo digital das fotografias da banda, onde seriam digitalizadas aquelas que o grupo já possui, somadas às fotos do Geraldo Leão e de ex-músicos, parentes e pessoas que tiveram alguma relação com a banda. Apesar de ter ampliado a busca, até então o acervo se limitava à colaboração das pessoas que eu conhecia. Em janeiro de 2016, me veio a ideia de solicitar em minha página de redes sociais da rede internacional de computadores que as pessoas mantenedoras de fotos da banda, as digitalizassem e enviasse para meu email, com uma legenda ou mais informações sobre o material. Após tal fato, os veículos de mídia local se dispuseram a auxiliar e publicaram notas a respeito da minha busca por fotos do grupo, aumentando o âmbito de colaboradores com o material iconográfico para este trabalho. As fotos de Cássio Pezzinni e Jader Costa, utilizadas na presente pesquisa, chegaram até mim digitalizadas - via email - após as publicações. Ao fim do trabalho, será entregue à diretoria da banda, todo material digital colhido durante o processo, fruto da pesquisa e da ação de colaboradores, somando cerca de 200 fotos para o acervo. Tal material foi sistematizado, organizado cronologicamente, e cada foto contém a “legenda” fornecida pelo colaborador e, quando possível, a data e contexto de atuação, ou ainda outras informações relevantes, que podem ser consultadas sem o contato direto com as fotografias originais: fato fundamental para a conservação das mesmas e principalmente para que os colaboradores não precisassem dispor de suas fotos pessoais em função da pesquisa. Tal coleta encontra-se em andamento, posto que novas colaborações estão sempre surgindo. No entanto, consideramos dispor de um material significativo para realizar uma análise preliminar do significado que nos traz muitas destas fotografias. Acredito que a ampliação do acervo iconográfico contribua para a representação visual da história do grupo, dos elementos e indivíduos que contribuíram diretamente para que a Corporação desenvolva a prática da forma como é realizada nos dias atuais. A relação da memória com as fotografias pode ser encarada de duas formas: evidenciando o seu caráter histórico, quando traz à tona um passado que por vezes muitos músicos desconhecem e demonstrando a construção diária da memória imagética da banda para a posteridade, uma vez que a fotografia tem sido amplamente utilizada nos dias atuais. 2.3.2. ANÁLISE DE FOTOS 72 Trataremos nesta sessão da análise iconográfica de fotos da Corporação Musical Cachoeira Grande, com o objetivo de aproximar o máximo possível dos elementos e símbolos que compõem tal representação imagética, interpretando significados e aspectos de seu tempo, lembrando sempre das questões já apresentadas anteriormente. Antes de adentrarmos no estudo imagético em si, a reflexão sobre o ponto de vista do fotógrafo e suas reais proposições, instigou a entrevista com Eddy Cruz, que vem fotografando os eventos da Corporação, desde o ano de 2012. Eddy é fotógrafo profissional, natural da cidade de Pedro Leopoldo e possui uma ligação com a banda mesmo antes de começar a fotografar como ouvimos em seu testemunho: “participava da banda de música do meu bairro e sempre aos sábados íamos assistir ao ensaio da Cachoeira Grande. Em 2012 foi contratado pela Corporação para registrar seu concerto de centenário e, a partir daí, está sempre presente nas apresentações da banda e da orquestra, registrando de forma voluntária o evento e publicando em sua página pessoal os registros, para que todos tenham acesso às fotografias. Eddy explica que, “na verdade, essa ideia de fotografar veio de convite da própria corporação. (...) Às vezes, esqueço que estou fotografando e me pego emocionado com dobrados que me fazem lembrar da minha infância”. Acredito que sua memória afetiva em torno da corporação, além da paixão pela fotografia, sejam dois dos elementos motivadores para seu trabalho junto à banda. Em entrevista para a presente pesquisa, questionei-o ainda se já havia refletido sobre a importância de seu trabalho – voluntário - para a construção e continuação do acervo iconográfico da banda, contribuindo para que as memórias do grupo se perpetuassem. De forma quase poética, Eddy conta: “Acredito que sim. Cada registro, cada imagem de uma nota, cada expressão no rosto, cada olhar, cada palma são materiais fundamentais para contar uma história através da fotografia. É nossa máquina do tempo, é através daquele papel que voltamos como um simples passe de mágica naquele tempo. E que esses momentos venham com música”. É interessante ainda observar pela sua fala, como o fotógrafo em questão entende que a performance musical vai além dos aspectos sonoros, citando a “expressão no rosto, o olhar e a palma do público”, reiterando que os elementos que circundam a prática musical fazem parte da performance, ampliando o conceito de “música” restrito exclusivamente ao fato sonoro. A observância de tais elementos auxilia no estudo das práticas musicais da corporação, uma vez que, 73 “(...) para se tornar íntimo de uma manifestação musical não basta conhecer suas organizações sonoras. Na busca da compreensão de um estilo e sua teoria vigente, nos deparamos com o fato de que o que denominamos música não pode ser reduzido ao evento sonoro. Música não é uma entidade autônoma95”. Retomando a questão de restringir a música apenas aos aspectos sonoros, MOLINO (1975) afirma que “não há a música, mas um fato musical total. Este fato musical é um fato social total96” complementando que - para o estudo do fato social total - é preciso levar em conta o triplo modo de existência do fato musical em três âmbitos: neutro, objeto produzido (poiético) e objeto recebido (estésico), além ainda de produzir sentido dentro do fazer musical da banda. SEEGER (2015) afirma que “qualquer estudo etnomusicológico de música deveria começar pelo exame da música em relação a outras formas de arte, já que nada existe em si mesmo97”, ou seja é tarefa do pesquisador relacionar a música a outras formas artísticas, no caso, a fotografia, a fim de complementar o discurso musical, uma vez que o sentido se transforma quando dissociado de elementos que circundam sua produção. Eddy nos ajuda a confirmar tal proposição quando fala em sua resposta sobre o caráter discursivo dos elementos extramusicais nas representações imagéticas, considerando-os como “fundamentais para contar uma história através da fotografia” e corroborando para a capacidade de construção da memória dos registros fotográficos, como ”máquina do tempo”. Sobre as questões já apontadas nesta sessão, a respeito da intencionalidade das fotografias, sobre toda carga de simbolismos culturais e talvez de idealismos e sentidos denotativos, Eddy afirma que seu objetivo em fotografar o grupo e as perfomances da banda é “captar música nas imagens, emoções, notas. Meu propósito é proporcionar não apenas uma lembrança de uma imagem, mas uma lembrança de uma música”. As proposições - relatadas na entrevista - com tal prestação de serviço para a Corporação Musical Cachoeira Grande, podem ser percebidas através do conteúdo artístico de suas fotos, uma vez que “a evidência iconográfica por vezes não é realista nem representacional, mas sim um modo visual para interpretar uma impressão, uma abstração ou a performance do artista”98. 95 (CARDOSO, 2006:83) (MOLINO, 1975:114) 97 (SEEGER,2015:67) 98 (MARIANO, 2013:29) 96 74 FIGURA 10 - Algumas fotografias de Eddy Cruz, compreendidas entre os anos de 2012 a 2015. Fonte: Eddy Cruz. O fotógrafo afirma ainda que, a possibilidade de estar no palco registrando imagens durante os concertos e shows, facilita na captação da mensagem e da energia transmitida pela música e pelos músicos, buscando captar expressões faciais e olhares de forma minimalista, enfatizadas através de enfoques e filtros: “gostaria que as pessoas que vissem minhas fotos tivessem a sensação de estar ouvindo a música que estava sendo tocada naquele momento”, ele explica. Para o processo de análise, selecionei oito fotos que retratassem os diferentes momentos da corporação, com relação a período, local de atuação e regência, para que abrangesse as mais variadas circunstâncias, de forma que não restringisse a banda a apenas um contexto performático nestes 103 anos e ainda que seja possível fazer uma associação dos resultados com as outras sessões da presente pesquisa, sobretudo as que tratam da catalogação, análise do acervo e construção do percurso histórico-musical 75 ilustrando a influência dos maestros em cada período99. Ressalto aqui o fato de que, a construção do acervo fotográfico, de partituras e documental da banda, se estende até os dias atuais, razão pela qual considerei importante adentrar também no registro que retrate a prática do grupo nos dias de hoje. FIGURA 11 – Corporação Musical Cachoeira Grande, durante as festividades da primeira Exposição Agropecuária De Pedro Leopoldo, realizada na Fazenda Modelo do Ministério Da Agricultura, datada de 06 de Janeiro de 1924. Fonte: Jader Costa. Iniciamos a análise pela primeira foto (fig. 11) de que se tem registro da Corporação Musical Cachoeira Grande. É datada de 1924 ainda que segundo a história oral e seu estatuto de 1976, as atividades da banda são realizadas desde o ano de 1912 100 . Infelizmente não existem outros documentos a respeito do período anterior ao da foto em questão. Para tal questionamento, procurei o memorialista Geraldo Leão, detentor de grande parte das atas, fotografias, vídeos e outros documentos que dizem respeito à história local. Sobre a história da banda, ele conta: 99 Vide: 2.2. Conhecendo os mestres da “Cachoeira Grande”: traçando um percurso histórico sob uma perspectiva êmica” e 3.2. “O processo de catalogação, organização documental e análise de resultados”. 100 Há arranjos e partituras deste período. Por haver ainda registros em anos anteriores, acredito que as partituras não comprovam que as músicas foram de fato executadas no período contemporâneo às datas. Por exemplo: existem partes datadas de 1891, quando a banda ainda não havia sido fundada. 76 “Documento não existe, né? Nem foto, nem ata de fundação. Engraçado por que já tinha o recurso fotográfico. Talvez se perdeu ao longo dos anos”. Para os padrões atuais, a banda era relativamente pequena, pois na fotografia vemos 12 músicos, dispostos em duas fileiras, contento os seguintes instrumentos: 2 clarinetas, trompete, 2 saxhornes, trombone, bombardino, helicon, prato, tarol e bumbo. Geraldo Leão complementa que os músicos Zeca Machado (maestro), seu Candu, Mário Candu, Raimundo, Pedro Hilário, Quincas de Almeida, Dudú de Candu, Zé de Vevelha estão na foto. “Eu tenho essa escalação toda anotada, mas infelizmente meu arquivo tá todo empilhado, depois que eu saí lá de cima tá amontoado num quartinho de quatro metros quadrados. Pra entrar lá é um sacrifício101”, conta Geraldo. Retomando a questão organológica, a presença maciça de instrumentos de metais e percussão sugere uma preocupação com a projeção sonora ao ar livre, uma vez que demandaria mais instrumentistas para que as madeiras soassem com a mesma projeção que os metais 102 . Para além desta questão, a formação instrumental deste período possivelmente foi escolhida segundo a influência das bandas militares, que também utilizavam tal organologia. Tal suposição dialoga com trabalhos de CHAGAS (2015), PEREIRA (2008), COSTA (2011) e CARVALHO (2006), que apontam para o início da vida musical de grupos compostos por sopros e percussão, arraigadas na vida militar e na importância da projeção sonora: “Parece que a música estava ligada às ações militares desde tempos muito remotos, não apenas como meio de comunicação no campo de batalha, como também como elemento psicológico, animando as tropas e atemorizando os inimigos”. (CARVALHO, 2006:1) Sobre esta questão, FAGUNDES (2010) completa que o surgimento das bandas militares “como conjunto de sopro e percussão iniciou uma fase de valorização das bandas de música, propiciando o surgimento das bandas civis. No início, eram conjuntos de constituição instrumental ainda muito simples com uma instrumentação 101 O memorialista se refere ao fechamento de seu Arquivo, antes situado em uma das casas do “Quadro”, a mesma região da Fábrica de Tecidos e da Sede da Corporação. Com este fato, o Sr. Geraldo precisou tirar suas coisas e armazená-las em casa, pois não possui mais espaço para expor e organizar de forma mais funcional, possibilitando consultas anteriormente feitas. 102 “desse modo, sua instrumentação se desenvolveu por sua capacidade de projeção em ambientes abertos, incluindo trompetes, trombones, tubas, flautas, clarinetes, saxofones e percussão, especialmente caixas, bumbos e pratos. O fato de tocar com muito volume está relacionado com a necessidade de ser ouvida, pois a maioria de suas apresentações é ao ar livre e se locomovendo”. (COSTA, 2011:256) 77 baseada nas bandas militares portuguesas 103 ”, introduzidas a partir de 1808, com a transferência da corte portuguesa ao Rio de Janeiro: “O grande impulso dado à formação das bandas militares no Brasil começou, com a transmigração da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Mas a banda da Brigada Real, trazida por D. João VI, em 1808, ainda era arcaica. Em Portugal, a banda de música começou a se modernizar somente em 1814, quando seus soldados regressaram da guerra peninsular, trazendo brilhantes bandas de música, onde predominavam executantes contratados, principalmente espanhóis e alemães [...]. A música militar claramente aparecida em bases orgânicas, na metrópole, em 1814, forneceria o modelo para a formação das bandas civis”. (BINDER: 2006:12) Com a criação da Charamela da Brigada Real da Marinha e do Exército Nacional, outros grupos começaram a surgir e se espalhar por todo território nacional. Tal banda era composta por percussão e instrumentos de sopro como trompa, trombone, trompete, fagote, clarinete e flauta e acompanhava os eventos da família Real. Charamelas eram as bandas criadas pelos senhores de engenho, dirigidas por maestros europeus, fato que contraria as estatísticas no Brasil, uma vez que “atualmente, praticamente não existes maestros estrangeiros à frente das Corporações 104.” GOMES (2008:19) explica que “esses conjuntos de músicos levavam o nome de charameleiros por causa da charamela - instrumento de sopro que pertence à família das palhetas, trazido ao Brasil pelos portugueses e tocado primeiramente pelos índios que aqui se encontravam”. Mesmo mantendo ligação aos tempos antigos, os instrumentos de percussão – bumbo, prato e caixa – são os mesmos utilizados atualmente pela banda, quando em desfile ou procissões105. Sobre os outros instrumentos da primeira fotografia, observa-se a utilização da família dos Saxhorns – como bombardino e helicon - não se notando a presença de “Ophicleides” ou “Serpentões”, instrumentos bastante comuns nas bandas deste período. CHAGAS (2015:25) conta que “foi pela dinâmica das performances das bandas – nas ruas em deslocamento – que alguns instrumentos deixaram de ser utilizados e outros foram idealizados ou modificados. Dos que deixaram de ser utilizados, podemos destacar o “Serpentão” e o “Ophicleide”, que desempenharam nas primeiras bandas, tais como as conhecemos hoje, a função atual das tubas”, e no caso da corporação em questão, os próprios saxhornes 106 . Através da análise dos registros, 103 (FAGUNDES, 2010:38) (SILVA, 2009:12) 105 Para apresentações populares, a banda utiliza ainda bateria americana, bongô, carrilhão, pandeirola e triângulo. 106 Conforme narrados na sessão “3.2.2. Reflexão do resultado: catalogação de partituras”. 104 78 organizados de forma cronológica, tais questões organológicas poderão ser facilmente percebidas. Na primeira fileira existem 5 homens sentados, alguns em posição militar – instrumento ao lado do corpo, coluna ereta e mãos espalmadas sob as pernas – e outros relaxados, com pernas cruzadas ou instrumentos apoiados no colo, o que sugere que as influências militares no âmbito comportamental e disciplinar não eram tão rígidas como em outros períodos da história do grupo, apesar do semblante rígido dos músicos. Tal fato pode ser reforçado pelo fato do maestro deste período, Zeca Machado107, não ter raízes militares108. Na segunda fileira, todos estão em pé e ainda sem posição de sentido: podemos perceber cabeças levemente tombadas, instrumentos carregados de diferentes formas, além de alguns corpos apoiados em uma das pernas. De acordo com os registros da banda, em todos os períodos, é possível identificar um perfil social e étnico dos músicos, de forma geral, bem diversificado, uma vez que sua formação inicial se deu por trabalhadores da Fábrica de Tecidos, conforme narrado em diversos momentos da presente pesquisa. A faixa etária dos músicos é fator contrastante com o período atual, pela mudança do perfil dos músicos e da função social da banda ao longo dos anos. Ao acompanharmos o processo, através da observância dos registros imagéticos, vemos que hoje, a banda é composta, quase que exclusivamente por jovens até os 30 anos 109 . Este fato reflete diretamente na escolha do repertório, questões comportamentais, uniforme, dentre outros. Observa-se uma sutil diferença entre o uniforme dos músicos e do maestro, provavelmente para enfocar a posição deste último dentro na banda, como é o caso, em “reconhecimento da sua posição, o seu uniforme diferia ligeiramente dos outros músicos: podia ter rendas em ouro ou prata em vez de tecido, um chapéu de plumas em vez de um capacete ou boina e o seu uniforme teria uma melhor qualidade de manufatura”. (PEREIRA, 2008:31) Apesar da diferenciação, todos estão fardados, sobrepondo a unidade do grupo à individualidade do músico, e “com a função de esconder seu portador – o indivíduo, anônimo, sem regalias – (...) em outra realidade – a banda, como individualidade 107 Zeca Machado, o maestro deste período, é o quarto músico, da esquerda para direita, em pé. Seu Candu, o regente no período anterior, é o quarto músico sentado, da esquerda para direita. 109 Acompanhei grande parte de tal transição, pois quando iniciei na Corporação, em 1997, havia aula de música para crianças, mas entre os músicos atuantes, cerca de 90% se encontravam acima dos 20 anos. Tal mudança deu-se gradativamente, por uma série de motivos, que vão desde o maior número de alunos ingressando ainda crianças nas aulas oferecidas pelo grupo, alguns se afastando por motivos de emprego ou estudo, bem como as questões de saúde que impossibilitaram alguns músicos mais antigos de continuarem. 108 79 coletiva respeitada por um público que a aplaude – separando ainda o papel que define sua posição no ritual” (GRANJA, 1984:77). Ao ampliarmos a foto, percebemos dois modelos diferentes de sapatos, sugerindo que eles não fazem parte do uniforme, fato que ocorre nos dias atuais, onde é acordado apenas a cor de sapato comum para todos os músicos da banda. Apesar da consonância neste quesito, entre o período atual e o da foto em questão, recordo-me que, na época do maestro João Evangelista, o sapato fazia parte do uniforme da banda, que mantinha um convênio com uma sapataria local que os fornecia nas numerações corretas ou os trocava, caso não estivessem em bom estado. Sobre o contexto, a legenda fornecida pelo memorialista Geraldo Leão, que possuía uma cópia da fotografia de Jader Costa, informa o local de atuação do grupo, mas, por termos aqui uma foto que foi produzida intencionalmente, onde a banda é o foco, não conseguimos analisar outros aspectos importantes, como público, local e condições de apresentação. É interessante observar ainda que, desde seus anos iniciais, heterogeneidade racial é uma característica marcante no grupo, acredito que se deva pelo fato de ter sido fundada por diretores e funcionários da Fábrica de Tecidos, e pela participação livre de membros da comunidade. Nenhum dos relatos de entrevistas, documentos ou registros imagéticos ilustram uma tentativa de homogeneidade racial. A segunda foto (fig. 12) analisada é também o segundo registro imagético mais antigo da Corporação. Há uma grande defasagem documental em todos os acervos110 procurados para a presente pesquisa, entre os anos da primeira e da segunda foto, mais precisamente de 1924 a 1947, e os únicos documentos deste período são os arranjos e orquestrações, fazendo da pós-memória um elemento fundamental para sessão. Construir o percurso histórico-musical debruçado somente em memórias individuais e partituras 111 impossibilita uma narrativa ampla e polifônica, onde seria importante levar em conta “os elementos que envolvem a produção musical; o conceito que se tem sobre música e a função que ela desempenha em sua cultura; a percepção e o comportamento que se tem diante dos sons musicais; e o valor que se dá ao fenômeno musical dentro de seu habitat, a aparição de questionamentos em relação à experiência de quem observa 112 (...)”; a fim de detalhar referências importantes para riqueza do estudo acerca do fazer musical na Corporação Musical Cachoeira Grande. 110 Acervo da Corporação, do memorialista Geraldo Leão e acervos pessoais. Como é o caso do período em que há a lacuna em questão, entre 1924 e 1947. 112 (CARDOSO, 2006:89) 111 80 Por outro lado, ter a oportunidade de estabelecer uma narrativa auxiliada pela pós-memória dos envolvidos e seus relatos, é importante e complementar nas informações que podem ser “lidas” nos materiais levantados para a presente pesquisa: “Seria possível experimentar um tipo particular de diálogo, relação e encontro etnográfico a partir de práticas supostamente limitadas aos pesquisadores de arquivos, tais como "ler documentos", "ver imagens" e "ouvir sons/vozes"?” (CUNHA, 2005:17) A experiência de entrevistar Geraldo Leão, que detentor da maioria das fotos analisadas nesta sessão, foi indispensável para compreensão do contexto em que a fotografia 2 se encaixava, pois eu e os membros da corporação acreditávamos que tal foto retratava uma procissão comum, fato que corrobora com as questões colocadas anteriormente. O memorialista conta que se trata da procissão de chegada da imagem de São Vicente de Paula à cidade de Pedro Leopoldo: “A imagem chegou aqui de trem, veio do Rio de Janeiro. Essa imagem tá aqui, ó 113, foi doada aqui pra sociedade, então veio o cortejo. Essa foto foi tirada, imagina, da sacada do Cine Otoni (...), ali era um prédio neoclássico de dois pavimentos e era o cinema e teatro de Pedro Leopoldo. Infelizmente, virou pó. Acabou em 1946. Tinha telas, as galerias tipo teatro da Europa. Não sei pra onde é que foi esse material”. 113 Geraldo Leão aponta para a rua, referindo-se à Liga Operária (União Auxiliar Operária,) localizada próxima a casa dele. 81 FIGURA 12 - Corporação Musical Cachoeira Grande recebendo a imagem de São Vicente, doada à cidade de Pedro Leopoldo, em 27/03/1949. Fonte: Geraldo Leão. A foto escolhida, apesar de não ser uma fonte imagética nítida - o que dificulta a análise de elementos anteriormente citados, como expressão facial e perfil étnico dos músicos, identificação dos instrumentos ou expressão dos fiéis que acompanham a procissão - apresenta detalhes importantes sobre o contexto e a atuação, aspectos que o primeiro registro não trazia. Podemos observar inicialmente como se dava a formação da banda, para atuações em movimento, nesta ocasião, composta por 26 músicos, todos 82 uniformizados, nos mesmos moldes da foto anterior, apesar de não ser o mesmo uniforme114. Não há como identificar o maestro da época, Mário Pereira da Luz, não sendo possível ainda afirmar se o mesmo tocava junto com os músicos ou andava na frente do grupo - duas práticas comuns durante as procissões. Podemos perceber ainda que, pelo alinhamento das pernas dos músicos, eles marchavam, sugerindo que não executavam um hino santo ou música católica, mas algum dos dobrados, “que são suficientemente leves para dar à procissão um ethos festivo e estimular os passos dos fiéis sem carnavalizar o evento, tirando-lhe o caráter devocional115”. O perfil militar atualmente compete com paradigmas performáticos do ensino erudito acadêmico e da gama de possibilidades de repertório trazidas pela música de mídia, observados, por exemplo, pela mudança de repertório em retretas e apresentações, além do uso de roupa preta e terno em apresentações de gala da banda, ao invés de túnicas e quepes. Esta readequação das tradições às influências e moldes atuais, significa “observar a manutenção de valores do passado em atitudes do presente, o que ocorre não apenas em formas híbridas, mas também em processos históricos constitutivos de práticas do presente116”, onde é possível observar as inspirações e quais elementos ainda fazem sentido no contexto atual da Corporação Musical Cachoeira Grande. Dentre as possibilidades analíticas que a foto em questão carrega, observar a disposição dos participantes da procissão é uma delas. A primeira coisa que me chamou atenção em tal imagem foi o de que o cortejo se faz exclusivamente por homens, e as mulheres e crianças se encontram nas calçadas. Antes da entrevista, questionei-me se este era um hábito comum antigamente ou se tratava apenas deste evento específico, sugerindo uma ocasião especial. Tal resposta veio apenas após a entrevista com Geraldo Leão, onde carreguei as fotografias para que o mesmo esclarecesse pontos ainda em aberto. Ele conta que, “por causa do evento de São Vicente de Paula, essa sociedade era formada mais por homens. Agora não, entrou as senhoras, mas antigamente era só homem”. Geraldo Leão complementa que encontrou os registros desta sociedade em um 114 Segundo relatos, o uniforme anterior foi trocado por desgaste com o tempo de uso. (GRANJA, 1984 apud COSTA, 2011:258). 116 (SANTOS, 2000: 84). 115 83 saco de lixo, lamentando o descuido e a falta de importância que se dá ao material histórico nas instituições locais como um todo: “Tenho muito documento dessa sociedade que ia ser jogado fora. (...) Jogar fora um trem desse, é brincadeira. Eu guardei, e daí? Tá guardado. Ele foi exposto algumas vezes, muita gente admirou esse material. Inclusive seu bisavô está no meio do pessoal dessa época. (...) e se deixar vai perder mais coisa”. E ainda, por diversos momentos durante as quase duas horas de conversa, Sr. Geraldo lamenta o descuido com tais elementos construtores da memória cultural local: “Nós temos um grave problema cultural aqui em Pedro Leopoldo por que os registros são todos descuidados. Aqui era pra ter um museu histórico bem organizado, climatizado e infelizmente não temos, nossa cultura é muito pobre, infelizmente. (...) Essas coisas tem que ter cuidado, principalmente fotografia. A película é muito sensível, tem que ser com luva. Não só fotografia como qualquer tipo de documento”. Outro fator sobre a performance em movimento, é a questão das partituras. Não é possível afirmar se alguns músicos utilizavam ou não um suporte de partituras que podiam ser apoiados nas costas do companheiro da frente, pois não há visibilidade a partir dos músicos da segunda fileira. Fato é que os primeiros estavam tocando de cor. Usualmente, a corporação traz ao longo dos anos, alguns dobrados de memória, para serem executados nestas ocasiões. CHAGAS (2015:73), conta em seu trabalho sobre a banda de Raposos (MG) que “a utilização das partituras durante as performances em movimento pode ser verificada principalmente nas ocasiões em que a banda toca as marchas festivas ou fúnebres, pois são poucos músicos que as tocam de cor. Essas marchas são tocadas poucas vezes durante o ano e isto dificulta o processo de memorização, pois raramente fazem parte do repertório que é estudado durante os ensaios. Elas estão ligadas aos eventos de cunho religioso. (...) Além da Semana Santa, as marchas fúnebres eram tocadas quando falecia alguma pessoa ligada à banda, porém atualmente este tipo de atuação caiu em desuso”. Tal colocação encontra-se parcialmente em consonância com a prática adotada também no objeto de estudo desta pesquisa, onde as marchas fúnebres são utilizadas durante as procissões de semana santa. A única questão divergente é o fato de ainda ser comum à execução das marchas em enterros de ex-membros da banda. Sobre os instrumentos, podemos observar com nitidez apenas os quatro da primeira fileira – dois saxhornes e dois sousafones 117 , ambos foram inventados ou “evoluíram tecnicamente para se adequar às funções e necessidades das bandas”. (CHAGAS, 2015:24) 117 Instrumento idealizado por John Philip Sousa (1854 – 1932). 84 Ressalto que, nas fotografias que recolhi, esta é a primeira vez que o sousafone aparece como instrumento da formação da banda, substituindo possivelmente o helicon, que não foi mais visto em tais registros imagéticos ou nas orquestrações feitas para banda. No que tange o perfil social dos músicos neste período, através de entrevistas e análise documental, sabemos que o maestro era pago pela Fábrica, mas a banda não era restrita apenas aos funcionários, fato que amplia a diversidade no perfil social dos músicos em comparação aos anos iniciais. A terceira foto (fig. 13) inicialmente continha apenas a data de 1966. Geraldo Leão explicou-me que o registro foi feito na casa de Zeca Machado, antigo maestro da banda, mas que a data estava errada, pois o maestro Mário Pereira da Luz (Mestre Mário 118 ) estava na fotografia e o mesmo faleceu em 1962: “estão aí também Vespasiano, Zezeca Nassif, Pedrão do baixo, Zé Tibúrcio, Peru, Zé Prego, Sr. Altino, Zé Valdomiro. Deve ter sido alguma homenagem a Zeca Machado, nessa época ele tava vivo ainda”. 118 Em destaque. 85 FIGURA 13 - Corporação Musical Cachoeira Grande em homenagem, na casa do ex-maestro Zeca Machado, datada de 1966. Fonte: Geraldo Leão Apesar da inicial ausência de informações sobre a foto, escolhi este registro para análise por que as feições descontraídas dos músicos saltaram aos meus olhos quando a encontrei, mesmo sendo uma foto tirada intencionalmente. Fiquei instigada a descobrir quem era o maestro, qual contexto, o que tocaram e outros elementos que talvez auxiliassem na compreensão da “leveza” das expressões faciais. Ao aproximar a foto, poucos músicos estão sérios, com feições rígidas. A princípio, além da descontração na face dos músicos, suas expressões corporais sugeriam-me que realmente não havia rigidez em tal ocasião: a forma relaxada (não no sentido pejorativo) com que eles seguram seus instrumentos e posam para a foto, os braços em diferentes posições – apenas o segundo músico da direita, na primeira fileira, segura seu instrumento ao longo do corpo, se assemelhando à posição militarizada -, a posição das pernas dispostas de diversas formas diferentes, além da simetria entre as duas fileiras: podemos compará-la à primeira fotografia analisada para perceber melhor estes contrastes. Não obstante, após a investigação através de entrevistas, foi-me revelado que tal descontração se tratava apenas de um momento específico, em função do contexto da fotografia: uma das homenagens de aniversário do ex-maestro Zeca Machado. “Eram grandes festas, com comida e bebida. A banda nunca deixava de ir homenagear papai”, conta Natércia Issa. José Ulisses completou que o sorriso no rosto dos músicos provavelmente seria devido ao álcool, uma vez que após as homenagens, os músicos ficavam na festa para confraternizar. Podemos observar que o foco do fotógrafo era a banda, pois os convidados, a casa ou o próprio homenageado – Zeca Machado, que neste período não pertencia mais à banda - não apareceram na imagem. Porém, não é possível visualizarmos nitidamente os músicos da segunda fileira, ou ainda todos os instrumentos da banda e segundo relatos, apenas parte do efetivo da banda está presente. Adentrando acerca das questões relativas aos instrumentos e número de músicos, percebemos que a formação da banda ainda era pequena, neste dia contando com 14 músicos, incluindo o maestro. Como aconteceu na primeira fotografia a ser analisada, não podemos afirmar se a formação instrumental quase que exclusivamente composta por instrumentos de metais e percussão, assim acontecia pelas limitações instrumentais 86 da banda, que talvez não possuísse outros instrumentos, ou ainda pela questão da projeção sonora, devido a “necessidade que todos os músicos da banda têm, quando estão marchando, em ouvir bem todos os demais instrumentos119”, sobretudo contando com poucos músicos. Esta dinâmica performática, associada ao local, repertório, movimento e número de músicos, constrói diariamente uma série de paradigmas estético-sonoros, e contribui para, “além da consolidação de uma formação com instrumentos de características sonoras e funcionais específicas, imprimir uma sonoridade impregnada de significados. O perfil dos músicos que compõe algumas bandas, grande parte deles amadores (...) também contribui para a consolidação de uma estética sonora atrelada a estas formações”. (CHAGAS, 2015:27) VIANA (2006) conta em seu trabalho que José Hilário, trombonista da época de Mestre Mário – período em que a foto foi tirada – relatava sobre as dificuldades com relação a instrumentos, sugerindo que, talvez a formação instrumental encontrada na fotografia seja mais influenciada por limitações da banda do que por preocupações com a sonoridade. A autora conta que José Hilário “se dedicou desde muito jovem à Corporação, até ficar impossibilitado de tocar trombone, pois foi proibido de fazer esforço para não perder a visão. Ele sempre falava das dificuldades que a banda tinha para comprar instrumentos e consertar os que tinham lá”. (VIANA, 2006:44) Através do uniforme utilizado pela banda, podemos analisar que ainda existiam algumas similaridades com o vestuário das bandas militares: os músicos estão trajados com uma calça reta, camisa social com ombreiras e boinas. Apesar de tal semelhança, observam-se as gravatas em diferentes tamanhos e um dos músicos com a boina apoiada na cabeça, denotando a não formalidade do evento e dos padrões estéticos da época. Pelo registro é possível observar que os sapatos agora fazem parte do uniforme e que o maestro não possui uniforme diferente dos demais músicos120. A faixa etária foi outro elemento que despertou interesse neste registro, pois podemos ver a presença de dois rapazes aparentemente mais jovens que os músicos que aparecem nas imagens até então. Segundo o Geraldo Leão, ainda não havia aula de música para crianças na banda, por isto talvez, não observamos pessoas ainda mais jovens. Reitero que, ao me deparar com todas as fotos recolhidas para a pesquisa, percebemos que as questões raciais dos músicos não foram tão relevantes quanto àquelas que tangem o gênero. A faixa etária dos músicos tem sido delimitada mais 119 (BARBOSA, 2008:67) Mestre Mário possui uma espécie de casaco apoiado nos ombros. Pela qualidade da fotografia não conseguimos afirmar com clareza do que se trata e se seria parte do uniforme ou não. 120 87 fortemente pela prática adotada nas aulas de música da banda, que em seus primeiros anos não atendia crianças121. Acredito que a presença da mulher seja a mais relevante questão social dentro do grupo e será tratada mais adiante. A quarta foto (fig. 14) trata de um momento delicado para a Corporação: a ausência da figura do maestro, período em que os músicos se revezavam no comando do grupo. Pelas nuances da foto, é possível ver que a cor dos ternos não era padronizada e que os músicos não estavam marchando. Mais tarde, em entrevista com o músico José Ulisses, que estava presente neste dia, foi-me relatado que tais nuances na cor dos ternos eram os músicos das outras bandas que vinham ajudar quando solicitados, assim era de costume entre os grupos da região: “as nuances da foto são ternos de cores diferentes, por que o povo tentava vir com uma cor parecida com nosso uniforme para padronizar, mas nem sempre conseguia”. A existência de dois saxofones pode ser notada, além dos instrumentos percebidos anteriormente. Curioso observar que o saxhorn é um instrumento presente desde os anos iniciais na formação da Corporação Musical Cachoeira Grande, mesmo que inventado em 1843, três anos após a invenção do saxofone. Pelo registro, a formação era de 25 músicos, e não é possível saber se algum deles estava à frente do grupo no desfile, fazendo o papel de maestro. O registro trata ainda de um evento importante na história do Brasil: o desfile da Independência, mais precisamente do aniversário de Sesquicentenário da Independência do Brasil, dentro de um “contexto complexo, após a edição do Ato Institucional número 5 em 1968 e o consequente aumento substantivo da repressão contra os grupos de oposição ao regime122”. Geraldo Leão comenta sobre a foto: “Essa aqui é interessante, Sesquicentenário da Independência. Pode ver que eles estão com um chapéu na cabeça com as cores verde e amarelo. Eu lembro desse evento. (...) No chapéu de papel tava escrito: 1822 a 1972”. D. Pedro I foi a figura central dos eventos comemorativos, estreitando as relações existentes entre Brasil e Portugal123: “a transladação dos restos mortais de d. Pedro I assinalou o início das comemorações (...). Não por acaso, os dois países viviam 121 O primeiro documento do acervo da banda é datado de 1947 e não cita a idade mínima para frequentar as aulas da banda neste período ou nos anos anteriores. 122 (CORDEIRO, 2008:4) 123 ALMEIDA (2008) conta que as tentativas de estreitamento na relação “Brasil x Portugal” ocorreram ainda em âmbito cultural, com o lançamento do filme Independência ou Morte, em 4 de setembro de 1972; e no esporte, com a integração da Taça Independência ao programa oficial de comemorações do Sesquicentenário, ocorrida nos meses de junho e julho de 1972 (não por acaso, a decisão da Taça foi entre Brasil e Portugal). 88 sob regime autoritário, além de seus Presidentes serem originários da alta cúpula militar: o general Emilio Garrastazu Médici (Brasil) e o almirante Américo Tomás (Portugal) 124 ”. As comemorações em âmbito nacional ocorreram em 21 de abril de 1972, “dia de Tiradentes, com a realização do I Encontro Cívico Nacional que reuniu em praças públicas o povo para ouvir o pronunciamento do Presidente da República, assistir o hasteamento da Bandeira e cantar o Hino Nacional (...). A programação estendeu-se até a semana da Pátria, em setembro desse mesmo ano, tendo se encerrado com os desfiles militares do dia 7 125 ”. O desfile da cidade de Pedro Leopoldo é o contexto retratado na foto abaixo: FIGURA 14 - Corporação Musical Cachoeira Grande durante o Desfile De Sesquicentenário Da Independência, em 7/9/1972. Fonte: José Ulisses. A memória nacional que a ditadura procurava imprimir nos cidadãos é resultado de um trabalho onde havia circulação e produção de sentidos e valores intrínsecos em vários âmbitos sociais, inclusive em comemorações deste porte. CORDEIRO (2008) complementa que, 124 125 (ALMEIDA, 2008:1) (CORDEIRO, 2008:2) 89 “para além de observar a construção e reafirmação de uma história oficial da Independência do Brasil como forma de legitimar o regime, é preciso, antes, analisar os valores e os sentimentos que tal comemoração mobilizava no imaginário coletivo da sociedade, para desta forma compreender os mecanismos da adesão e da formação do consenso em torno do regime”. (CORDEIRO, 2008:3) Apesar do cuidado em não nos atermos a reducionismos baseados simplesmente no poder de manipulação, propaganda e repressão do governo vigente, é interessante a forma com que a autora nos chama atenção para a criação de tal comemoração pelo poder público, enquanto “invenção de uma determinada tradição, a criação de lugares de memórias126”, hipótese discutida em seu artigo com base em outros trabalhos sobre o tema, encarando a festa da Independência de 1972 como “internalização social” das práticas pregadas pela ditadura. Existem ainda outras questões e formas de atuação do governo a serem estudadas mais a fundo, para que se compreenda todo contexto ditatorial e como a lógica que alicerçava o regime decaía sobre as manifestações culturais e aqueles que dela participavam. CORDEIRO (2008) cita AARÃO REIS (2008) na abordagem do termo “consenso” como uma das categorias de comportamento social em tais circunstâncias, utilizado na compreensão das relações complexas entre as partes – sociedade e regime – denominando “a formação de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade, explícito ou implícito, compreendendo o apoio ativo, a simpatia acolhedora, a neutralidade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação de absoluta impotência127”. Através dos discursos nas entrevistas é possível perceber que não necessariamente a banda ou as pessoas que tocaram em tal ocasião eram apoiadores ou simpatizantes do regime, e que, “entre a recusa das práticas empregadas pelo Estado e a resistência de um lado; a simpatia e o apoio manifesto ao regime do outro, existe também a indiferença e/ou os que alegavam e alegam nada saber 128”, preferindo não se manifestar diante da situação ou que realmente eram indiferentes e consideravam apenas mais um desfile da Independência, “com um enfeite de papel que eles inventaram para por na nossa cabeça129”. 126 (CORDEIRO, 2002:4) (AARÃO REIS, 2008 apud CORDEIRO, 2008:6) 128 (CORDEIRO, 2008:8) 129 José Ulisses, sobre a diferença entre este desfile para os demais que participou. O “enfeite de papel” se trata daquele relatado acima pelo Sr. Geraldo Leão. 127 90 A comemoração serviu ainda como “uma forma de legitimação do governo”, representando uma importante ocasião para “se observar a adesão e o consentimento social com relação ao regime(...) 130 ”. Entretanto, por trás da complexidade dos comportamentos coletivos e individualidades dos músicos – expostas ou não – acerca da atuação do grupo, não se enquadram conceitos antagonicamente delimitados. É necessário ainda compreender que a atuação e o “consentimento” com a comemoração proposta pelo regime, aconteciam não somente aqueles que participaram de maneira ativa, mas também o público que assistia silenciosamente as festividades, os atores sociais. Para quinta imagem (fig. 15), escolhi uma foto que fosse do período seguinte: a chegada do Capitão João Evangelista de Paula, localizada na página seguinte. Infelizmente não temos a data exata do registro, que se encontra em um quadro fixado na parede da sede da Corporação e o local. A maioria dos consultados acredita ser a parte lateral da igreja Matriz, Geraldo Leão explica: ‘Teve um evento aqui que veio a banda de lá. (...) Lembro desse evento que eles tocaram em frente a prefeitura e vieram pra cá. Igreja Matriz sim, na lateral dela. Não tenho certeza mas acho que é a Matriz sim”. Pelo uniforme, sabemos que se trata de um registro compreendido entre os anos de 1976, ano da chegada do maestro, a 1989, ano em que ocorreu a estreia do 4º uniforme da banda. 130 (CORDEIRO, 2008:5) 91 FIGURA 15 - Corporação Musical Cachoeira Grande, meados de 1980. Fonte: Acervo da Corporação. Desde os anos inicias da Corporação, é possível observar como a questão racial é diversificada, inclusive nos cargos de chefia do grupo, mas na presente foto, o que chama atenção é a ampliação no que tange o gênero com a primeira participação feminina no grupo (no círculo em vermelho). Conforme observado nas fotos analisadas anteriormente, a presença unicamente masculina na banda se estendeu por muitos anos. Através das fontes iconográficas, pesquisa documental e entrevistas, somente após entrada de Célia, em meados de 1976, foi possível comprovar a presença feminina em diferentes funções, inclusive enquanto presidente. Vale ressaltar que tais fontes retratam determinados momentos da performance ou contextos específicos, portanto não é possível afirmar com exatidão se as mulheres exerciam outras funções dentro do grupo, conforme conta CAZAES (2014:160): “As mulheres não participavam da diretoria das instituições, mas estavam sempre presentes nas reuniões. Estas organizavam eventos, como as quermesses, oferecendo sorteio de brindes que eram revertidos para manutenção das instituições, aquisição de instrumentos e fardamentos”. Célia Pereira é uma das filhas de mestre Mário Pereira da Luz, ex-maestro da banda, e a única das três a ingressar efetivamente no grupo. Celina, a outra filha, conta que a vida musical das três irmãs, acontecia no coral da Igreja, ou quando iam assistir a banda tocar: “A gente ia cantar em Vespasiano na semana Santa. Ia na segunda feira e voltava no domingo de Ramos, de tarde. Pegava o trem em Dr. Lund, ficava lá a semana toda. Então, nessas festas 92 de Fidalgo e Lapinha, festas doídas, sô. Tempo de frio, mês de Junho, a gente ia pra lá no sábado à pé. Quem ia à cavalo ficava com dó de nós e oferecia carona na garupa. Nós ia à Confins diariamente e papai vinha pra cá, à pé. Tinha uns tal de leilão e um frio que Nossa Senhora. Por todo lado eu ia com papai. Nessa época só tinham dois carros em Pedro Leopoldo. Os músicos iam com os instrumentos na mão”. Célia contou que, com a vinda do maestro João Evangelista ela ingressou no grupo: “quando descobriu que eu era filha do mestre Mário tratou logo de me chamar pra tocar na banda. Foi logo me dando a clarineta”. Apesar de não descrever especificamente a Corporação Musical Cachoeira Grande, o trabalho de COELHO, SILVA e MACHADO (2014) se adequa à realidade daquele período, quando engloba a presença feminina nas bandas em geral: “se deu primordialmente pela realização de aulas de música, em que as mulheres puderam ter contato com a teoria musical e assim entrar efetivamente na corporação. De fato, fotos de corporações musicais da cidade e da região mostram que recentemente há um número relevante de mulheres nas corporações. Fotos mais antigas mostram bandas e orquestras compostas inteiramente por homens”. (COELHO, SILVA e MACHADO, 2014:115) Segundo Célia, quando ingressou na Corporação Musical Cachoeira Grande, não passou por dificuldades, já que os músicos, maestro e diretoria não demonstraram nenhum tipo de resistência à sua participação, apesar de ser a única mulher. Talvez a musicista tenha sido bem recebida por ser filha de Mestre Mário, o maestro anterior. Além disso, ainda destaca que o Capitão João Evangelista, sempre a posicionava na fileira da ponta, em destaque, pois todos tinham curiosidade em vê-la tocando: “todo mundo parava pra me ver tocando. Acho que fui uma das primeiras mulheres de banda em Minas Gerais”. Após seu ingresso, as portas se abriram para as mulheres interessadas em tocar na banda, conforme ilustrado nos próximos registros analisados. Existem diversas fotos e documentos sobre a atuação feminina, inclusive a neta de Mestre Mário, Neuza Nascimento, foi uma das diretoras da banda. Quando ingressei no grupo, havia cerca de 5 mulheres, e eu era a mais nova, sendo a primeira maestrina que o grupo já teve nestes anos. Atualmente, a banda conta com a presença de mulheres, tanto na orquestra quanto na banda civil e no quadro de professores da escola de música: “O que se percebe é apenas um movimento tímido nessa direção como num exemplo paradigmático, a participação de meninas em bandas uniformizadas para as apresentações: mesmo não havendo distinção entre a vestimenta masculina e a feminina, elas se cobrem de adereços, apontando sua feminilidade por trás do uniforme. As novas gerações tornam-se assim 93 donas de sua própria história musical, uma vez que o acesso já foi conquistado e as restrições de outrora já não se fazem tão acirradas131”. As “significações imaginárias sociais que, em tese, as levam a ver as corporações musicais não apenas como instituições fechadas em si mesmas, perenes, acabadas, rígidas, sagradas, predominantemente masculinas, mas também como lugar de criação do novo, de questionamento das formas instituídas, de quebra de tradições, de rompimento de repetições132”, refletindo questões e valores in voga, inclusive nesta questão da participação das mulheres no grupo, associado ao início do empoderamento feminino em diversos âmbitos sociais da cidade. Na questão das vestimentas, podemos perceber que, Célia, destacada pelo círculo vermelho, estava com o uniforme da banda similar ao modelo que os homens usavam, com exceção da saia na altura dos joelhos. Este uniforme segue os padrões já utilizados pela banda em diversos momentos, mas diferencia do anterior pela volta do quepe (chapéu militar). Observamos também que o maestro já não usa o uniforme da banda, ou alguma variação dele. A partir daí, veremos que os maestros usam roupas pessoais, distanciando ainda mais a figura do maestro daquela uniformidade – ou anulação da individualidade - ocasionada pelo uso dos uniformes. Interessante observar que nesta mesma época, começa a ser utilizado o podium, um tablado de madeira onde o maestro ficava durante os ensaios, elevando seu “nível” com relação ao nível dos músicos e facilitando a visualização dos mesmos. A intenção com o seu uso, traria significações com respeito à figura do regente, do maestro e de toda questão disciplinar que exigia em suas performances e ensaios, como um elemento figurativo onde a hierarquia estaria subjetivada? Segundo os músicos, o maestro dizia que o podium era usado para melhorar a visibilidade – conforme utilizado no meio erudito - mas não sabemos ao certo quais as reais intenções ao empregar o uso de tal ferramenta sobretudo em um período tão carregado de simbolismos, como o militarismo, época em que o Sr. João assumiu. O regente posterior a este período - Júlio de Paula - aboliu o uso do podium afirmando que o maestro se encontra “no mesmo nível” dos músicos e que não queria usá-lo, apesar de sua pouca estatura133. Outra questão, já apresentada na sessão “3.2.1. Processo de catalogação”, pelo músico José Ulisses, pode ser observada no registro analisado: a relação entre a banda 131 (COELHO, SILVA e MACHADO, 2014:120) (COELHO, SILVA e MACHADO, 2014:109) 133 O podium ainda se encontra na sede sendo uma opção do maestro utilizá-lo ou não. 132 94 de Várzea da Palma (MG) e a Corporação Musical Cachoeira Grande. José Ulisses conta que o maestro fazia o intercâmbio entre os músicos das duas bandas, onde uma auxiliava a outra, garantindo um grupo grande e que tocasse o mesmo repertório. Para tal, o maestro, responsável por escolher os uniformes do grupo, fez a opção por uniformes iguais nas duas bandas. Além disto, podemos observar ao aproximarmos a fotografia que constam duas malas, hábito comum antigamente para carregar as pastas dos músicos, com suas partituras. A mala da direita, que aparece na foto cortada, possui as inscrições: “Banda de Música de Pedro Leopoldo, Cachoeira Grande”. A mala da esquerda pode ser claramente lida ao ampliarmos a fotografia: FIGURA 16 – Recorte da fotografia anterior. Mala de partituras da Banda Municipal De Várzea Da Palma. Fonte: Acervo da Corporação134. MARTINS (2012) conta em seu trabalho sobre a banda da Polícia Militar, que convidar músicos para ingressar na corporação era uma prática comum nos regimentos: talvez venham dai este habito do maestro. Recordo-me que, às vésperas das apresentações importantes, o maestro convidava músicos para reforçarem ou completarem os naipes. Tal prática, em tornar o repertório das duas bandas similar, bem como seus uniformes, foi o recurso utilizado para alavancar seu trabalho na Corporação, que por anos ficou sem a figura do regente, apesar de nunca ter interrompido suas atividades. O segundo maestro de origem militar foi Júlio de Paula Machado135, entre os anos de 2000 e 2003. A figura 17 traz a atuação da Corporação Musical Cachoeira 134 O ano constado na mala era o de fabricação da mesma, não o ano vigente. O que não auxilia na certeza de que tal foto se trata do período em questão. 95 Grande, em uma homenagem na Câmara Municipal de Pedro Leopoldo, datada de 26 de Junho de 2002. Geraldo Leão relembra um fato curioso ao ver a fotografia: “Essa foto foi na câmara, eu tava lá. Inclusive nessa época o presidente da câmara colocou uma placa escrita: “Pedro Leopoldo, fundador da cidade”, tem nada a ver! Mas nada a ver. Eu falei: Pelo amor de Deus gente, tira essa placa daí. E ela está aí nessa parede da foto. Pedro Leopoldo morreu em 1894 e a cidade emancipada em 1924. É aquela história: sopraram no ouvido dos vereadores e eles colocaram a placa”. FIGURA 17 - Corporação Musical Cachoeira Grande - Câmara Municipal. Fonte: Geraldo Leão. “Há aspectos da tradição no que chamamos de modernidade, como há aspectos da modernidade no que chamamos de tradicional136” e no registro em questão, algumas questões anteriormente tratadas foram trazidas aos períodos mais modernos da banda: a diferenciação entre o uniforme do maestro e dos músicos, o uso de vestimentas que remetem àquelas utilizadas nos grupos militares, instrumentação que se mantém dentro dos moldes mais comuns de banda civil atualmente, a atuação de cor em performances paradas, a presença feminina, dentre outros. Outra questão importante do registro em questão é a contrapartida existente entre a banda e o poder público, que cobre os gastos do grupo desde seu desligamento com a Fábrica. As contribuições da prefeitura são realizadas a partir de convênios, onde cabe à Corporação atender aos convites da prefeitura em shows, inaugurações, eventos, solenidades e homenagens, como as da foto em questão. Se por um lado, esta contrapartida pode ser subentendida como uma forma de domínio e subserviência, por 135 A presente pesquisa traz diferentes abordagens e níveis de aprofundamento sobre o período de atuação de cada maestro. A presente sessão trata apenas de assuntos analisados nos registros imagéticos. 136 (SANTOS, 2000:91) 96 outro, mantém a banda em destaque e atuante nos principais eventos sociais 137 , inclusive fornecendo infraestrutura necessária para realização de retretas e shows na cidade. Nem sempre esta relação foi harmônica. Existem dois momentos da história da Corporação, comprovados por documentos do acervo onde o Poder Público Municipal influenciou de forma mais direta a prática da banda. Em 1978 a Prefeitura enviou à banda um documento solicitando que a Corporação execute o Hino da cidade em todas as festividades oficiais. Ou seja, a inclusão do Hino no repertório já não seria mais uma escolha do maestro, mas uma designação da prefeitura. Maio de 1998, a banda publica um manifesto em um jornal local138, onde explicita a falta de apoio e reconhecimento com a banda e maestro, como um desabafo referente à situação da época, que repercutiu mais tarde, em outros impressos: “(...) Deveríamos dar mais valor ao patrimônio cultural que é a banda e seu maestro. Pois, se vem o Governador, chamam a banda. Se vem o Bispo, chamam a banda; se vem o Secretário, chamam a banda. Festa do Poste, chamam a banda. Exposição Agropecuária, chamam a banda, festas religiosas, chamam a banda, festas cívicas, chamam a banda...” Fato é que, mesmo anos depois, a banda, a orquestra e a escola de música ainda são mantidas pelo Poder Público Municipal, estando sujeitos ao ‘jogo de interesses’ que movimenta este tipo de apoio. O estudo imagético da prática musical da banda, além de fornecer indícios importantes sobre os diferentes contextos de atuação, elucida muito sobre a vida sociocultural de seus integrantes, os diferentes campos de atuação onde a música circulava, como era apropriada e os significados atribuídos a ela. A próxima foto (fig. 18) registra a primeira apresentação em formato de concerto da Corporação. Esta foto é possivelmente do ano de 2004, em dezembro, pois o concerto foi comemorativo ao aniversário da banda. Recordo-me que nesta ocasião, foi cobrada uma entrada de R$5,00 que auxiliou nas finanças do grupo. 137 No ano corrente, por exemplo, a Corporação foi o destaque dos festejos de aniversário da cidade, em Janeiro. A banda civil realizou uma alvorada no dia do aniversário e no domingo que antecedeu a data, foi realizado um pequeno encontro de bandas, com as três bandas da cidade e a orquestra realizou a apresentação de abertura. 138 Jornal “A Gazeta”. Maio, 1998. 97 FIGURA 18 - Corporação Musical Cachoeira Grande em apresentação no Sinticom139. Fonte: Geraldo Leão. Neste evento foi a primeira vez que as pessoas teriam que se deslocar a um local fechado para assistir a apresentação da banda, desta vez desvinculada de festas religiosas ou retretas comemorativas aos eventos locais: era uma comemoração do aniversário da banda e as pessoas iriam àquele local puramente para festejar mais um ano de vida do grupo. A formação de uma plateia própria para este tipo de concerto/apresentação, iniciada na foto em questão, foi uma ação continuada da banda e o resultado de tal processo pode ser visto nas apresentações atuais da Corporação Musical Cachoeira Grande: uma ocasião, mais de 1500 pessoas foram à praça assistir um show da orquestra (fig. 19). 139 O Sinticom - hoje Sinticomex - é um auditório pertencente a um Sindicato da cidade de Pedro Leopoldo. Possui infraestrutura para realização de concertos e eventos, contando com isolamento acústico, ar condicionado, camarins e etc. Não é utilizado com frequência, pois seu palco estreito impossibilita a prática de um grupo instrumental mais numeroso, além de não possuir muitos assentos para o público. 98 FIGURA 19 - Público no show da Orquestra Cachoeira Grande: Pop Sinfônica. Fonte Eddy Cruz. Para além da questão abordada acima, a divulgação da apresentação na fotografia analisada, não foi amplamente trabalhada, fato que corrobora para um baixo número de pessoas no público, apesar da foto não ilustrar todos os assentos do auditório. O que busco aqui não é fazer um juízo de valores comparando a questão do público na fotografia em questão e a que será analisada mais à frente. Espero ilustrar que a prática de formação de plateia para apresentações onde a banda seja o motivo principal do evento, desvinculada de ocasiões cívicas ou religiosas, foi uma tarefa iniciada no dia deste concerto e trazida até os anos atuais. Ainda ressalto que, outras questões além das sonoras, que envolvem toda produção de um evento do tipo, como infraestrutura, divulgação, local, dentre outros, influenciam diretamente na quantidade de pessoas que vão ou foram assistir as apresentações e concertos da banda desde então, uma vez que, “nós não recebemos em dinheiro, recebemos com aplausos140”. Cabe aqui explicitar que há diferença entre um espectador que participa da produção de sentido numa determinada manifestação cultural - como uma procissão, cortejo ou desfile cívico - onde as pessoas que assistem fazem parte de todo contexto; e um ouvinte quase passivo, quando o mesmo se desloca para assistir um concerto, tendo como objetivo central, a música: ambos fazem parte do contexto de produção musical, mas a forma de atuação dentro dele é diferente. Trago as informações a seguir para auxiliar na questão da formação da banda, bem como as influências que fizeram Adalberto modificar algo que vinha sendo feito por anos da mesma forma. Adalberto Barbosa da Silva - maestro da figura 18 - foi o primeiro regente que fazia curso superior de música, pois na época estava bacharelado 140 Frase dita com frequência pelos músicos mais antigos do grupo. 99 em saxofone erudito, na escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais. Tal vivência fez com que o mesmo trouxesse uma série de paradigmas que foram aos poucos inseridos na prática do grupo, que trazia consigo moldes estético/sonoros das bandas militares, pelas influências e concepções dos maestros anteriores. Segundo o próprio maestro, maiores influências vinham das bandas sinfônicas, tentando trazer noções de tal prática ao grupo que regia até então. FAGUNDES (2010) traz colocações em seu trabalho relatando o embate entre os moldes acadêmicos aplicados à banda civil – Betim (MG) – onde havia conflitos paradigmáticos e de valores com relação ao que é “tradicional e genuíno” das bandas. Em uma de suas colocações, ele explica que os músicos profissionais que atuavam como contratados na banda, defendiam rupturas com questões estéticas e funcionais sobre o papel que a corporação desempenhava até então, entrando em choque com o posicionamento dos músicos antigos e não-profissionais, que defendiam a manutenção dos moldes clássicos de tal formação: “Esse grupo declara que não é necessário tocar como as bandas civis tocam, com som rasgado, áspero e alto e, além disso, concordam que o repertório de banda civil está ultrapassado e não é mais condizente com as necessidades e gosto musical de uma sociedade contemporânea. São contra certas funções e serviços que a banda civil presta como tocar num velório e puxar procissão, alegando que estas atividades não são dever de músicos. Assumem a nova concepção de que a Banda de Betim deve fazer música em locais apropriados onde o público vai assistir e apreciar uma apresentação artística em que foram investidas muitas horas de ensaios, estudo e recursos financeiros. Para eles, sair marchando pelas ruas, tocando dobrado é coisa do passado e que não é mais da alçada de um músico profissional”. (FAGUNDES, 2010:158) Esta colocação traz reflexões bastante tensas dentro de um âmbito cultural tão arraigado, inclusive dentro da cidade de Pedro Leopoldo. Acredito que um meio termo seria o ideal, pois o tradicionalismo extremo pode fazer com que a banda realmente tenha uma linguagem não condizente a contemporaneidade social e com isto não agregue público paras apresentação e novos alunos, dificultando a vida ativa da banda pelos anos seguintes. Por outro lado, sua modernização excessiva ou a utilização exagerada de paradigmas apropriados de outros meios – como aqueles utilizados pela academia ou pela música erudita - desencadeia lacunas nas práticas e contextos performáticos que são tradicionais (como procissões, velórios, eventos cívicos), descaracterizando assim o grupo em questão, ou a forma como as funções sociais são desenvolvidas por anos, podendo “causar rejeição ou ambiguidade por parte de um público que estabeleceu laços afetivos e de memória em relação à estética da banda civil e que não deseja as mudanças que estão ocorrendo (...)141” e que compreendem tais 141 (FAGUNDES, 2010:132) 100 mudanças como uma ruptura de significados trazidos pelo grupo. Atuando na Corporação Musical Cachoeira Grande há mais de 18 anos - e me referindo apenas a ela - percebo que as mudanças mais extremistas que vivenciei, na maioria dos casos, são propostas por pessoas que não tem ligação ou memória afetiva com a banda. As considerações acima podem ser observadas através do registro imagético que vem sendo analisado, quando temos a apropriação de Adalberto – que, em entrevista, deixou claro que sua referência era a banda sinfônica - com questão da formação, aplicando-a no grupo, conforme modelo abaixo: FIGURA 20 - Formação da banda em apresentações: à esquerda, modelo anterior a 2003 e à direita, modelo posterior a esta data, implantado por Adalberto. Desde a aplicação de tal formação, embasada por conceitos e parâmetros acadêmicos trazidos pelo maestro, a banda se apropriou de tal formato e mesmo após a saída do maestro, sua formação em apresentações e concertos é realizada desta forma, com exceção de desfiles e eventos cívicos, onde prevalece a formação retangular pela necessidade da perfomance em movimento. Um conceito sonoro mais “refinado” também era uma das preocupações de Adalberto, para que a apresentação saísse dentro do esperado. Por ser em local fechado e adentrando na nova estética que o influenciava, as dinâmicas e articulações eram trabalhadas cuidadosamente. Interessante observar que, apesar dos padrões estéticos eruditos serem de grande importância desde esta época 142 , atualmente, existe uma grande divergência de opinião entre os músicos que atuam nos grupos da banda – orquestra e banda civil – do que seria uma banda de qualidade, onde a maioria deles entende que as relações interpessoais e as funções sociais são tão importantes quanto a qualidade musical. Para tal questão, entrevistei os músicos que de alguma forma lidam diretamente com as questões estéticas que o próprio Adalberto defendiam, quando estão na orquestra, e com aquelas inerentes à prática das bandas, quando atuam na banda 142 Os padrões estéticos foram trazidos ao longo dos anos, pois o maestro posterior a este período, também trabalha parâmetros sonoros eruditos dentro da prática da banda. 101 civil. Apresento algumas respostas, agrupadas pela tabela abaixo, para melhor comparação e contextualização: MÚSICO SHIRLEY COSTA FABIANO MELO GUSTAVO AVELAR FORMAÇÃO Músico amador ATUAÇÃO Percursionista da Orquestra e da Banda Civil Músico amador Ex-músico da banda civil. Atuou no período do maestro João Evangelista. Músico amador Trompetista da Orquestra e da banda civil. Atua também na banda do distrito de Vera Cruz, em Pedro Leopoldo. ANDERSON LUIZ Músico amador Saxofonista da banda civil. MARLON LUAN Músico semiprofissional. Cursa bacharelado em clarineta (erudito). Clarinetista da Orquestra e da Banda Civil. RESPOSTA “Manter uma tradição e preservar a cultura de uma cidade ou região, a fim de manter vivo o espírito de uma corporação composta por músicos e amigos, que se preocupam em fazer o que gostam, tocar e musicalizar, levando aos outros a beleza da música que existe em cada participante”. “Um conjunto de pessoas, músicos ou não, reunidos trabalhando com o objetivo comum de desenvolver a arte e a cultura da música para a sociedade.(...)Formada por músicos que compreendem o valor da atuação em equipe, honram ao uniforme, tocam com o coração, são comprometidos, responsáveis, disciplinados e apaixonados pelo que fazem”. “Na minha opinião, para um banda ser boa é necessário ter variedades de instrumentos, um equilíbrio de naipes e que tenha dinâmicas em suas peças”. “Uma banda civil boa passa por um grande processo que envolve diretoria, maestro, músicos, parceiros e sociedade, afim de que todo esse trabalho funcione da melhor maneira, é o principal pilar para uma banda boa”. “São vários fatores que fazem de uma banda civil ser boa ou não. Começando por uma boa organização com uma diretoria completa, que entenda e conheça os problemas da banda, ter uma estrutura física legal, um bom lugar de ensaios, bons instrumentos e o mais importante: a vontade de cada VALORES DEFENDIDOS - Tradição; - Relação interpessoal; - Entretenimento; - Expressão pessoal. - Desenvolver a arte para a sociedade; - Relação interpessoal; - Amor; Comprometiment o; Responsabilidade; - Disciplina. - Musical. - Colaboração dos diversos setores que atuam na produção musical como um todo. - Estrutural; - Organizacional; - Motivação pessoal. 102 CLAUDIO. SERAFIM Músico profissional Ex-músico da banda civil e atualmente faz participações em concertos da Orquestra. músico de se fazer a banda ser boa”. “Uma banda de qualidade seria aquela formada a partir de uma escola de música bem estruturada, com professores atualizados”. - Formação de base qualificada. TABELA 4- Resposta dos músicos sobre a definição sobre aspectos que fazem uma banda ter "qualidade". Algumas assertivas dos músicos vão ao encontro à colocação de FAGUNDES (2010: 140 e 141), quando observa um embate de posicionamento ao questionar em dois âmbitos (amadores e profissionais) sobre o que tange a qualidade musical de uma banda: “No entanto, para os músicos mais velhos, os não profissionais, a qualidade musical pode estar relacionada com a sua vivência musical dentro do contexto da função social de uma banda civil e, assim, ele percebe que toca com “boa qualidade”, pois, para eles a banda tem uma função que está relacionada com o âmbito social em que vive, como tocar em igrejas e atividades cívicas. Não é a qualidade musical referenciada em princípios eruditos o maior parâmetro para esse grupo e sim, o cumprimento das funções sociais”. Mesclando meu posicionamento enquanto pesquisadora e maestrina, vi nas respostas um campo de investigação muito rico, pois quase todos entrevistados atuam sob minha regência na orquestra. Tal experiência etnográfica partilhada possibilitou que eu observasse como a corporação enquanto núcleo musical ainda traz consigo os valores de tradição, de entretenimento e realização pessoal, dentre outros aspectos citados, sobrepujando aquelas que tangem aspectos puramente musicais. E acredito que são estes valores que realmente contribuíram para que a banda se mantivesse ativa durante os 103 anos de vida. A penúltima foto (fig. 21) analisada se refere à formação atual da banda civil no desfile de Independência. A Corporação por anos faz a abertura do desfile, quando para e se volta para o palco onde se encontram as autoridades locais, para execução do Hino Nacional, momento em que o registro abaixo foi feito: 103 FIGURA 21 - Corporação Musical Cachoeira Grande executando O HINO NACIONAL, em abertura do Desfile Da Independência, em 2010. Fonte: Misael Elias. Analisando outros momentos da execução do Hino Nacional em desfiles da Independência, é possível ver que o local é exatamente o mesmo há muitos anos. Esta fotografia provavelmente foi realizada no ano de 2010, e o maestro é o atual, João Paulo Pereira143. No registro observamos a presença de uma criança tocando clarineta, ampliando ainda mais o perfil de faixa etária dos músicos. Trata-se de João Francisco, neto do bombardinista José Ulisses e sobrinho do tubista Jeferson José. Os três ainda atuam nos grupos. O uniforme foi a principal transformação deste período até os dias atuais: calça preta, sapato preto e blusa da banda. No caso da orquestra, blusa branca ou roupa toda preta. Em ambos, os resquícios militares neste sentido praticamente não existem mais, aproximando esta questão à da música erudita. No concerto de centenário da banda, inclusive, o “uniforme” foi terno para os homens e roupa preta para as mulheres. Com a influência militar de anos e a acadêmica dos moldes atuais, a banda precisou encontrar um meio termo que se adequasse às suas necessidades, à linguagem atual e aos valores 143 O maestro saiu do grupo em 2012 e retornou em 2014. 104 que os músicos e maestros acreditam, por isto creio que se chegou a um consenso com relação à vestimenta. Apesar disto, os corpos eretos e as pernas alinhadas, analisadas em tal contexto, sugerem que não houve o desligamento total de condutas arraigadas pelas tradições militares 144 . A questão corporal em todos os registros imagéticos aqui analisados deve ser considerada observando como diversos discursos na história “foram capazes de criar certas modalidades de subjetivação a ponto de produzir sujeitos com suas práticas e estratégias de regularização, normalização e controle, ou seja, de mecanismos de poder sobre os indivíduos145”, estabelecidos por culturas dominantes, microrrelações sociais ou pelo próprio Estado: [...] as relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, micro lutas de algum modo. Se é verdade que estas pequenas relações de poder são com frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder. (FOUCAULT, 2003 apud SILVA, 2008:4) Ou seja: em todas as fotos analisadas, o sujeito (músico) age dentro das suas possibilidades, não de suas vontades, submetidos ao controle das instituições sociais e políticas ou todas que influenciam os diversos setores da prática musical da banda. As questões organológicas ainda são as mesmas dos últimos períodos, onde há presença dos metais, madeiras e percussão, característicos das formações de banda civil. Conforme afirmado anteriormente, a formação para eventos cívicos e desfiles mantém o padrão retangular. Através da descrição e análise das fotos aqui trazidas foi possível perceber visualmente dimensões da vida local como um todo, para além de sua natureza informativa, mas também descritiva, cabendo a tal recurso, três possibilidades de tratamento: “Enquanto documento visual como registro produzido pelo observador; os documentos visuais como registro ou parte de observável, na sociedade observada; e a interação entre observador e observado. Sobre a fotografia, reconhece que é o campo que melhor tem demonstrado a dimensão histórica e social, multiplicando os enfoques: ideologia, mentalidades, variáveis políticas, instituição do observador, quadros do cotidiano, marginalização social”. (MENEZES, 2003 apud MARTINS, 2012:5) 144 Isto sem aprofundar nas questões cívicas da atuação atual nos desfiles da Independência. Este aspecto foi tratado na sessão: 2.2. Conhecendo os mestres da “Cachoeira Grande”: traçando um percurso histórico sob uma perspectiva êmica. 145 (SILVA, 2008:90) 105 Vimos como as questões extramusicais influenciam diretamente nas práticas e conceitos que a instituição carrega, concebendo a música enquanto “fato musical”, um processo desconstruído de aspectos puramente sonoros e inserido no espaço de representação social, com suas “variabilidades de elementos, como sons, conceitos, comportamentos146”, flexibilizando nosso conceito do que se denomina música. Fica aberta ainda a possibilidade de diferentes óticas analíticas e interpretativas sobre os recursos imagéticos aqui trazidos. 146 (CARDOSO, 2006:81) 106 CAPÍTULO 3 – QUESTÕES ESTÉTICO-SONORAS DA CORPORAÇÃO 3.1. BANDA E/OU FURIOSA: SINONIMIZAÇÃO DOS TERMOS Ao analisar trabalhos sobre bandas, observamos que é comum a associação do termo a unívocos como: corporação musical, banda civil, banda marcial, sociedade musical, associação musical, dentre outros. Seguindo tal linha de raciocínio, a Corporação Musical Cachoeira Grande, mesmo de forma afetiva, recebia, por vezes, o codinome “Furiosa”. Entre os integrantes dessa instituição, todavia, sempre houve clara distinção entre a banda e a “furiosa”. Isto porque, o apelido mantinha liame com festejos carnavalescos, onde apenas parte dos integrantes da banda eram contratados pelos clubes onde ocorreriam os eventos, cuja apresentação não guardava as premissas 147 mínimas para uma execução de ofício, como a afinação, a dinâmica e a articulação. A exemplo do termo definido por BENEDITO (2011) 148, a apresentação da “Furiosa” se caracterizava por “aquela (banda) que toca tudo forte”. Excertos das entrevistas realizadas ilustram a distinção entre a banda e a “Furiosa”, bem como a questão da dinâmica musical. José Ulisses conta que a expressão era utilizada como concepção do que não fazer durante a prática musical, com a utilização de frases durante os ensaios: “vamos fazer a dinâmica, gente, senão viramos furiosa. E nós somos uma banda!”. Claudiomarcus Serafim, que também integrava a banda neste período, ressalta a questão da concepção estético-sonora trazida pelo maestro na distinção dos dois termos e seu impacto nos músicos, observando - de forma êmica - que existia diferença quando se consideravam enquanto banda e não furiosa: “o olhar que os músicos têm a respeito de si mesmos, mudava quando falávamos que não éramos uma furiosa”. Unanime que “o conceito artístico do maestro também era outro”, como ressaltavam os entrevistados, aduzindo que psicologicamente se percebiam diferentes, conforme se encontravam Banda ou “Furiosa”. O descompasso entre a conotação pejorativa que o termo carregava para o grupo e sua frequente sinonimização em trabalhos da área 149 , despertou o interesse em investigar o tratamento do termo em pesquisas e confronta-lo com o sentido que é percebido na Corporação. 147 Tal premissa era delineada pelos conceitos estético-sonoros do maestro, sem associação com elementos da música erudita ou de outro contexto que não seja a banda civil. 148 (BENEDITO, 2011:84) 149 Por exemplo, em ALENCAR (2010), mais especificamente em seu trabalho intitulado “BANDAS OU “FURIOSAS”: TRADIÇÃO, MEMÓRIA E A FORMAÇÃO DO MÚSICO POPULAR EM GOIÂNIA”, infere que os termos são sinônimos, por não citar novamente o termo furiosa ao longo do artigo. 107 Marlon Luan, clarinetista da banda civil e da orquestra, possui uma opinião clara a respeito da diferença de paradigmas estético-sonoros entre banda e furiosa: “Banda é musical, trabalha todos os aspectos possíveis da música, como dinâmica e expressividade, por exemplo. Já a furiosa não se preocupa em nenhum tipo de acabamento musical, pra furiosa o que vale é a música ser executada mesmo que isso seja feito com a menor qualidade possível”. Interessante que o músico em questão não teve contato com o maestro que trabalhava conosco esta diferença entre os padrões estéticos, conforme relatado também pelo músico Claudiomarcus e ainda assim, sua acepção sobre a expressão vai ao encontro às proposições utilizadas, certamente transmitidas pela oralidade, tão característica nas bandas de música. O saxofonista e ex-músico, Fabiano Melo, foi o único a afirmar que “o termo é usado popularmente para se referir a uma banda de música. Sob esta perspectiva, não há diferença entre os dois”. Apesar disto, sua fala final ilustra um descontentamento com a utilização enquanto sinônimo, sem mencionar aspectos sonoros em si, mas propondo que há uma desvalorização da banda quando a mesma é chamada de furiosa: “Entretanto, não me agrada seu uso, uma vez que não condiz com o brilho e a grandeza de uma banda de música”. FERRAZ (2006) corrobora sobre tal conotação e cita ainda outras expressões que, somadas ao termo em questão, tratam – segundo o autor - da externalização de um preconceito com a música desenvolvida pelos grupos do gênero, o que consequentemente traz a desvalorização citada no discurso de Fabiano Melo: “A Banda de Música como meio educador, é de grande importância, no entanto, percebe-se o preconceito existente nos diversos níveis sociais e artísticos em relação ao trabalho desenvolvido por ela. Isto é externado através do tratamento pejorativo aos que dela participa, usando expressões como: “lá vai a furiosa”, “levar a vida na flauta”, “participam da bandinha”, (...)”. (FERRAZ, 2006:1) CHAGAS (2015) 150 traz uma questão interessante, justificando que o uso do termo faz parte de um “imaginário” construído em tornos das bandas, mediante o hábito de tocar com projeção para ser ouvido em ambientes abertos ou em determinadas situações, como apresentações em ruas ou praças, porém o autor não se refere a aspectos específicos do colorido sonoro ou do timbre utilizado. FAGUNDES (2010), em seu trabalho sobre o processo de transição de uma banda civil para banda sinfônica, traz algumas proposições fundamentadas em suas entrevistas e pesquisa de campo, mas que 150 (CHAGAS, 2015:114) 108 caminham em sentido contrário aos conceitos arraigados na prática musical do presente objeto de estudo, aborda a relação “espaço aberto x projeção sonora” de forma discutível – sob meu ponto de vista – pois explica que a sonoridade precisa ser forte, agressiva e penetrante para que a banda consiga passar sua “mensagem” durante a performance, ou que há um desinteresse no aperfeiçoamento técnico ou de dinâmica durante a execução: “Quem toca na rua quer ser ouvido e quem está na rua quer ouvir o que está sendo tocado. (...) Se estão na rua puxando uma procissão, a intenção é que todos os que estejam na procissão ouçam o chamado dos trompetes, a marcação da percussão e das tubas e os solos de outros instrumentos que compõem o grupo, não interessando se o som sairá cheio, redondo, com vibrato ou sem vibrato, mas, interessando ser ouvido e, de alguma forma, passar a mensagem. Esta é captada pelos ouvintes que a entendem, identificam e correspondem”. (FAGUNDES, 2010:68) E “no caso das bandas, a técnica instrumental não é um fator de extrema relevância, pois a forma de tocar na maioria das bandas está voltada para a execução de um repertório prático e usual, não buscando aprofundamento técnico no instrumento. (...) Não há uma preocupação com o desenvolvimento instrumental (pessoal) ou estético da banda civil e sim com o cumprimento das atividades (...) A dinâmica é relativa, pois como já foi exposto, a banda toca nas ruas, puxando pessoas pelas praças e chamando a atenção de quem está dentro de casa para que corram até à janela, para assisti-la passar. Por isso, o som “rasgado” dos metais, com um timbre bem penetrante, áspero e metálico. O bumbo marca o primeiro tempo com bastante força e volume, dando à marcha uma característica peculiar que muitas vezes somente as bandas fazem. O timbre das bandas é um som bem aberto e metálico. (...) Tudo tem muito volume e intensidade e isso caracteriza as bandas de modo peculiar. Tendo em vista todos esses elementos a música de banda tem sua característica sonora própria151”. No entanto, as definições acima, caminham mais próximas da assertiva de furiosa, ao considerarmos os paradigmas estético-sonoros dos músicos entrevistados na Corporação Musical Cachoeira Grande, quando a utilização do termo é usada enquanto ferramenta para “educação musical quando as bandas não tem a harmonia de que forte é forte, piano é piano e quando vão se apresentar sai naquela situação de que um tem que tocar mais forte que o outro. Daí vem o termo furiosa”, conta Anderson Luiz, saxofonista da banda civil. A questão abordada pelos entrevistados na presente pesquisa, não desconstrói a sonoridade característica das bandas, mas revela que existe um cuidado e importância aos aspectos152 que fazem da música durante a performance, seja ela em local aberto ou fechado e principalmente – o praticamente unânime – descontentamento com a utilização do termo enquanto sinônimo: 151 (FAGUNDES, 2010:69 e70) Articulação, dinâmica, técnica, afinação: busca pelo refinamento na prática, não apenas executar notas e ser ouvido. 152 109 “Acho o termo furiosa um pouco desagradável para os músicos que tocam em banda civil, levando em conta o esforço que cada membro tem para estar ali, se apresentando às vezes e até deixando de fazer outro tipo de compromisso para estar lá voluntariamente153”. Trago tal colocação, não como uma crítica ou questionamento aos resultados encontrados na pesquisa de FAGUNDES (2010), reiterando que seu trabalho foi fundamentado na análise e entrevista dos músicos de seu objeto de estudo, ou criticar outros autores que utilizam o termo enquanto sinônimo. Minha proposição é ilustrar como o complexo “banda154”, possui características sonoras – dentre outras coisas – únicas e identitárias, resultantes de uma combinação de elementos como contexto, história musical do grupo, músicos e ex-músicos, transmissão musical, valores e outras questões que influenciam/influenciaram o fazer musical de cada grupo ao longo dos anos, não sendo possível encontrar uma definição universal para banda ou generalizálas com “sinônimos” que muitas vezes não se enquadram na prática de alguns grupos e podem até causar desconforto em alguns deles. 3.2. ORGANIZAÇÃO ARQUIVÍSTICA E ANÁLISE DE RESULTADOS A organização arquivística foi uma ferramenta indispensável para compreender as questões ligadas ao repertório de cada período na Corporação, associadas aos locais de apresentação e perfil dos maestros, uma vez que são eles quem determinam a escolha das músicas dentro do grupo em questão. Além das partituras, uma boa análise de outros documentos existentes, fornecem detalhes do cenário e da atuação em cada período, auxiliando na construção do percurso histórico-musical da Corporação Musical Cachoeira Grande. CASTAGNA (2008) propõe que o conhecimento dos documentos é o ponto de partida para a construção da história, sendo tomados enquanto verdade objetiva pela visão positivista, e fundamental “quando se pretende conhecer o cotidiano da atividade musical, das relações profissionais entre músicos, empregadores e empresários, as funções das obras musicais e outros aspectos que cada vez são mais explorados em investigações musicológicas155”, ou seja: essenciais para a construção do percurso histórico-musical da Corporação, um dos objetivos da presente pesquisa. 153 Anderson Luiz, saxofonista da banda civil. Tratado em outra sessão do presente trabalho. 155 (CASTAGNA, 2008:23) 154 110 Apresento primeiramente, como se deu a catalogação e organização do acervo da corporação; além de algumas definições e metodologias importantes, utilizadas na condução do processo. Em seguida, uma análise dos resultados do acervo, associados a documentos e entrevistas concedidas por pessoas ligadas às questões de repertório em cada época. Tal análise está dividida cronologicamente, separando os períodos de atuação dos regentes, conforme metodologia utilizada em toda pesquisa, para uma maior visualização de fatores que circundam a performance da banda. 3.2.1. PROCESSO DE CATALOGAÇÃO No caso específico da Corporação, além de atender aos propósitos já mencionados, a catalogação seria uma contrapartida para a banda, a fim de auxiliar o trabalho do maestro, para utilização nos ensaios, ampliação do conhecimento inerente a todo repertório, assim como também aos músicos. Demais disso, todo o acervo estaria disponível para consulta de qualquer interessado além de resgatar canções compostas por ex-músicos e ex-maestros da banda. Markus Arthur, tubista, ex-arquivista da banda e o mais presente na equipe formada para catalogação metodológica da presente pesquisa, conta que “foram feitas várias tentativas de organizar o acervo todo. Já começamos várias vezes, mas nunca conseguimos concluir”. 111 FIGURA 22 - Dois armários da banda, antes do início do processo de organização e catalogação do acervo156. Para ampliar as visões acerca dos elementos encontrados durante o processo de catalogação e organização do acervo da banda, apresento uma definição de “documentos”, bastante citada dentro dos trabalhos de arquivologia musical: “Documento é qualquer elemento gráfico, iconográfico, plástico ou fônico pelo qual o homem se expressa. É o livro, o artigo [...], a tela, a escultura, [...] o filme, o disco, a fita magnética [...], enfim, tudo o que seja produzido por razões funcionais, jurídicas, científicas, técnicas, culturais ou artísticas pela atividade humana (BELLOTTO, 1991:14). Tal definição dialoga com as aplicações realizadas durante o processo de organização do acervo, onde havia a preocupação de não deixar o conceito circunscrito apenas à área de documentação, entendendo que “o documento vincula-se a materiais físicos que de alguma forma são registrados (...) guardados e conservados em arquivos, que, por sua vez, consistem em um local onde se armazenam conjuntos de documentos com a finalidade de tornar acessível o uso das informações contidas nos mesmos”. (TANUS, RENAU e ARAÚJO, 2012:161) COTTA (2006) descreve o ciclo vital dos documentos 157 , que engloba sua criação ao seu desaparecimento, relacionando os mesmos a uma dada atividade, organismo e função da qual é produzida. O autor explica que durante a primeira fase, a corrente, a atividade ligada ao documento ainda está em andamento e ele se encontra em pleno uso funcional, fornecendo elementos para compreensão das relações entre documento e contexto. Na fase intermediária, o documento encontra-se em desuso, preservado apenas em função de prazos legais ou para ser consultado 158 . Quando a atividade funcional é concluída, e os mesmos possuem valor informativo ou comprobatório159, são recolhidos para um local de conservação. Tal ciclo vital descrito por COTTA (2006) se relaciona com valores dos documentos, não com o material em si. Na descrição dos processos de organização e catalogação, as etapas do ciclo vital poderão ser percebidas no âmbito da presente pesquisa. Durante o período que antecedeu o início efetivo do processo de catalogação, comumente encontrávamos manuscritos fora dos armários de arquivo e a atitude ao vêlos em mal estado era avisarmos à diretoria que os guardaria em casa, para que 156 Fonte: arquivo pessoal. COTTA (2006), pg 20, 21, 22 e 23. 158 Um manuscrito original que possui cópia em uso, por exemplo. 159 Terceira fase: permanente. 157 112 mantivessem em bom estado por mais tempo. Ao iniciar as leituras acerca dos processos de catalogação e arquivologia, em especial o trabalho de COTTA (2006), percebi como esta atitude prejudicava a organicidade do acervo e poderia ser incorporada a uma prática amplamente criticada pelo autor: colecionismo 160 . Segundo o mesmo, deve ainda ser vivamente repudiada, na medida em que implica na fragmentação dos arquivos, contribui para sua destruição e traz prejuízos em termos de informação. (COTTA, 2006:25) Outra questão além da perda da organicidade do acervo é aquela referente ao acesso à informação – onde apenas o detentor da partitura a teria disponível para consulta - e o princípio de proveniência – referindo-se à identidade do documento, e sua relação com seu produtor. Considerando então que a funcionalidade do acervo de partituras está ligada à sua utilização pelos maestros e músicos durante os ensaios, não faz sentido conservar um manuscrito, mesmo que bem preservado, em outro local que não seja dentro da banda. Durante o processo efetivo de descrição, muitas músicas antigas 161 foram encontradas e tratadas da mesma forma, fazendo com que todos os interessados tenham acesso às mesmas e principalmente que despertem a consciência com relação ao manuseio cuidadoso e a manutenção ao acervo organizado. Tal postura se estendeu também ao processo de organização de documentos, atas, recortes de jornais, livros de presença, mantendo “a ordem original em que os documentos foram acumulados, [o que] garante a preservação de relações orgânicas entre os próprios documentos que o constituem, assim como informações relativas ao contexto em que foram acumulados”. (COTTA, 2006:24) O processo de compilação, organização e catalogação das partituras e documentos do acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande foi iniciado em Agosto de 2015, e estendeu-se até Janeiro de 2016, sendo realizado semanalmente, às terças e quintas-feiras. Ao organizarmos uma pasta, era feita a conferência acerca das condições em que a mesma se encontrava e o que havia escrito em cada folha, para que não haja partituras perdidas. Em visita ao Acervo Curt Lange na UFMG, conheci alguns dos materiais 160 Reunião intencional, consciente e factícia de documentos selecionados a partir de origens diversas, com o fim explícito de reuni-los, sem observância do princípio de respeito aos fundos. (COTTA, 2006:24) 161 A partitura mais antiga é datada de 1891, bem anterior à emancipação do município e até mesmo da existência da Corporação. 113 ideais para conservação: embalagens de papel neutro, caixas para armazenamento na horizontal, luvas para manuseio, ar condicionado para estabilizar a temperatura, dentre outros. A compra de materiais específicos de conservação de manuscritos era necessária, uma vez que havia músicas do século XIX, período em que a cidade e a banda ainda não existiam. Apesar de não aplicarmos as técnicas de conservação do Acervo, devido ao preço dos produtos, compramos 150 pastas próprias de arquivo, para trocar aquelas que fossem manuscritas e que estivessem em mal estado, além de etiquetas e plásticos para auxiliar na conservação. FIGURA 23 - Durante o processo de catalogação do acervo. Jan/2016 O recrutamento de músicos em período de férias escolares foi realizado, para os fins de catalogação, organização das fotos e de outros documentos: livros de presença, atas, prestações de contas e a criação de um cadastro digital dos troféus e medalhas da banda. Visando à construção de um acervo iconográfico digital - conforme citado anteriormente 162 - as fotografias da sede da banda foram digitalizadas, bem como aquelas recolhidas de músicos, dos entrevistados e do memorialista Geraldo Leão. Retomando a questão da organização e descrição das partituras, seguimos a um cadastro das peças e tabelamento – que serão detalhados à frente - para atendimento aos fins de disponibilização e pesquisa a maestros, músicos, diretoria e arquivistas durante os ensaios, além de uma versão digital ter sido entregue à diretoria. 162 Sessão “2.4. Retratos de um século: elementos iconográficos na construção da memória”. 114 Cruzando registros encontrados com as entrevistas, a última catalogação realizada com sucesso é datada de 1976. Um fato importante e curioso desta época, narrado por José Ulisses, bombardinista, já músico da banda neste período é que “com a vinda do Capitão pra Cachoeira Grande, ele trouxe todo repertório da banda de Várzea da Palma, onde ele também trabalhava. O que ele fez? Colocou todas as músicas novas, deixando as que a banda já tocava. Assim ele não tinha trabalho nenhum e o povo que via a gente tocar falava que ele tinha reformulado tudo, que era outra banda. Muito esperto ele, jogada de marketing. Se você olhar no arquivo vai ver aquele tanto de música de lá”. Nesta ocasião, o catálogo das músicas foi escrito num caderno, onde constava o campo com o nome da música e o gênero, organizados em ordem alfabética. Inúmeros estudos na área de catalogação evitam a heterogeneidade estrutural das informações de um catálogo e apresentam regras específicas para representação, definição de informações mínimas na identificação de partituras e construção de um catálogo musical, “como as Rules for Cataloguing Music Manuscripts (GOLLNER, 1975) e as normas do RISM (Répertoire International des Sources Musicales, 1996)”. (BRANDÃO; COSTA; VASCONCELOS, 2015:13) COTTA (2006:32) explica que “as normas do RISM são voltadas para uma descrição detalhada das fontes musicais manuscritas”, onde os elementos mínimos recomendados são: a) Nome do autor b) Título uniforme e forma musical c) Título próprio d) Manuscrito ou impresso e) Designação do tipo de documento f) Incipt musical g) Nome da biblioteca ou arquivo/cidade e país / assinatura. A metodologia da pesquisa utilizada levou em consideração as normas preexistentes, mas considerando necessidades e particularidades próprias do acervo da banda, fazendo com que o catálogo fosse facilmente compreendido por todos os músicos e maestros, em todas as faixas etárias, de forma simples e objetiva, sem que sejam omitidas informações importantes a respeito das peças. Com base nestas considerações, optei pela catalogação com os seguintes campos, nesta ordem: 115 Nome da Compositor Arranjador/Copista música Ano da partitura Gênero Formação TABELA 5- Campos da planilha de catalogação de parttituras, no acervo da CMCG. Sobre os campos acima, cabe esclarecer alguns critérios e opções utilizados: a) Nome da música: partituras que continham músicas diferentes no verso eram cadastradas duas vezes, com a descrição correta de ambos. Exemplo: “Amigos para sempre”, quando só houvesse esta música escrita nas partes, e “Amigos para sempre (Verso de Capitão Caçula)”, para partes que contenham duas músicas. Assim, quando faltar algum instrumento específico que esteja cadastrado em “Capitão Caçula” o maestro poderá conferir também o verso de “Amigos para sempre”. b) Compositor, arranjador e copista: o cadastro foi realizado conforme assinatura na partitura, respeitando a opção de quem escreveu. Mário Pereira da Luz aparece assinando como: “Mestre Mário”, “Mário da Luz” ou “Mário Pereira da Luz” e cada caso foi cadastrado a forma assinada pelo mesmo. c) Ano da partitura: a tentativa aqui foi mapear a prática musical da banda em determinados períodos, por isso optou-se por cadastrar o ano da partitura e não o ano correto da canção. A música Ave Maria (Gounod/Bach) teve o texto da Ave Maria acrescido à uma melodia do Prelúdio de Bach em 1859. No cadastro ela está datada de 1999, período que o maestro Júlio de Paula a trouxe para o repertório da banda. Tal informação retrata que a peça não foi tocada antes deste período dentro do grupo163. d) Gênero: campo cadastrado respeitando a descrição da editora ou do compositor. Esta referência nos apresenta caracteres que caíram em desuso ou que eram característicos de um determinado período, sem generalizações ou tentando transformá-los em conceitos de gêneros atuais, como “marcha patriótica” e “música jovem”. e) Formação: Campo importante para auxiliar o trabalho dos maestros e ilustrar as diferentes atuações da banda ao longo de sua história, uma vez que foram encontrados arranjos em diversas formações, como banda e coro, banda e violinos, banda sinfônica e orquestra164. Digno de registro o fato de não constar em razoável número de partituras – 380 de 948 ao todo – o nome do autor da obra ou as datas – em 193 músicas. Este assunto 163 164 Além de outros fatores tratados abaixo em “análise de resultados”. Análises acerca dos campos da tabela serão desenvolvidas mais especificamente em “análise de resultados”. 116 merece pesquisa futura concernente a relação da banda com seus compositores, bem como as particularidades das obras que foram compostas especificamente para este grupo. Os documentos foram separados e organizados em um armário de plástico165, mas não foi realizada uma catalogação, apenas uma limpeza e setorização. Além da organização, para fins de pesquisa, a leitura e análise dos documentos são necessárias, pois “em seu nascedouro são apenas coisas e objetos, pois, para serem vistos como documentos, precisam ser problematizados e questionados”. (TANUS, RENAU e ARAÚJO, 2012:168) Apenas assim tais fontes auxiliariam na construção da história do grupo, preenchendo lacunas e assumindo a função de mantenedoras dos anos de vida da banda. Das atas de reuniões inferimos as questões de funcionamento da banda e deliberações que cabiam a cada efetivo, como sócios, músicos, maestros e diretoria, em seus respectivos períodos. Os livros de presença ilustravam as principais apresentações, a regularidade dos músicos, a data precisa do acontecimento de alguns eventos e as dinâmicas de atuação da banda. Prestações de contas antigas, ofícios - convidando a banda para apresentações - cartas de agradecimentos, cartões de pessoas da comunidade fazendo votos à banda, certificados de participações em encontros de bandas, cartas de maestros antigos pedindo auxílio financeiro a autoridades, DVDs de apresentações da banda, dentre outros, tudo consubstanciando considerável acervo reorganizado para pesquisa. No caso da Corporação em questão, existem duas lacunas no processo de arquivamento documental166: a inexistência de documentos na sede da Corporação com data anterior ao ano de 1947 e o descuido dos anos mais contemporâneos em preservar a história do grupo, no sentido de não arquivarem muitos documentos, esquecendo-se de que a história da banda se estende até a contemporaneidade 167. Esta despreocupação com a manutenção constante de elementos da história contemporânea no grupo pode ser facilmente percebida ao analisarmos o catálogo de partituras e percebermos uma queda brusca no arquivamento do acervo da banda, durante os últimos dez anos. Outra questão a ser considerada é que a produção de documentos encontrados na banda, produzidos de forma consciente ou inconsciente, não foi feita de forma 165 Pois na sede há bastante cupins, que estavam estragando os mesmos. Com exceção de partituras e elementos iconográficos. 167 Por exemplo: não há no arquivo o programa de apresentação de estreia da orquestra ou preservação de ofícios de convites endereçados à banda civil. 166 117 descuidada: “(...) o homem com a sua subjetividade que seleciona os objetos para salvaguardá-los para as futuras gerações (...)”. (TANUS, RENAU e ARAÚJO, 2012:169) Seleção de recortes de revistas e jornais organizados pelo maestro João Evangelista ilustram o tema, reforçando a colocação dos autores quando afirmam que os homens e suas subjetividades selecionam os documentos que querem perpetuar, fato que ocorre também nos processos de entrevistas, quando os entrevistados enfocam fatores de sua preferência (pós-memória). Esta forma de seleção não invalida ou ameaça a credibilidade da pesquisa, mas auxilia na construção da memória coletiva em deliberação com a memória individual. Para melhor compreensão do tratamento dado aos documentos encontrados na sede da banda, desenvolvi a tabela abaixo, contrapondo as definições de COTTA (2006) sobre os quatro processos básicos para pesquisa, fundamentais para auxiliar no tratamento adequado aos documentos encontrados, em todas as fases de seu ciclo vital, bem como as aplicações feitas nos documentos da Corporação Musical Cachoeira Grande: PROCESSO Gestão documental Avaliação Transferência 168 169 DEFINIÇÃO168 APLICAÇÃO - CMCG169 Conjunto de procedimentos para o tratamento de documentos ainda na fase corrente, desde sua origem, sob normas específicas para sua produção, classificação, circulação e posterior arquivamento ou descarte. A gestão de documentos atuais acontece diariamente com o arquivamento dos mesmos e de algumas partituras. Com relação aos documentos antigos, foram revisadas as formas de arquivamento e conservação dos mesmos. Importante em todas as fases vitais é através dela que se define a destinação dos documentos, pelo seu valor arquivístico. Não foi retirado ou descartado nenhum documento da sede, uma vez que deve ser feita por uma comissão e durante o processo não havia uma equipe ou presença maciça das pessoas diretamente envolvidas durante a organização e catalogação do acervo. Retira do local os documentos que já não tem uso corrente, acomodando-os em um arquivo intermediário, disponíveis para O local de armazenamento das partituras não foi alterado, apenas reorganizado, catalogado e limpo. Os documentos estavam COTTA (2006:27) Sigla de “Corporação Musical Cachoeira Grande” 118 Recolhimento consulta. espalhados na sede, em suas salas e espaço de ensaio. Os mesmos foram reunidos, separados por itens (prestação de contas, atas, livros de presença, fichas de inscrição, dentre outros) e transferidos para mesma sala que se encontram as partituras. Guardar documentos que já não têm uso corrente mas reveste-se de valor de informação em um arquivo permanente. Todas as partituras do acervo da corporação, inclusive arranjos incompletos, para diferentes formações ou em desuso foram arquivadas no mesmo local, disponibilizadas em ordem alfabética, sem distinção de valores primários ou secundários 170 . Os documentos foram fotografados, organizados em um arquivo de computador, disponibilizados em pendrive para a Corporação, via diretoria. As versões físicas foram apenas separadas em prateleiras, nomeadas e reorganizadas em armário específico para este item, na mesma sala onde estão as partituras. TABELA 6 - Aplicação dos processos técnicos da arquivologia musical segundo COTTA (2006) no acervo da CMCG Após a descrição dos procedimentos adotados na organização de todo material da corporação, passo para análise e reflexão de resultados do processo de catalogação das partituras. 170 Documentos de valor primário são aqueles que ainda mantêm sua funcionalidade. Secundários são utilizados enquanto informação ou consulta. 119 FIGURA 24 - Resultado final: Organização de documentos. 3.2.2. REFLEXÃO DO RESULTADO : CATALOGAÇÃO DE PARTITURAS O objetivo da catalogação na presente pesquisa – além de organizar o arquivo da banda - era mapear o repertório executado em cada época, separando-o pelos períodos de atuação de cada maestro, auxiliando na compreensão da prática musical, da demanda, das composições próprias para banda, das práticas de arquivamento das músicas, dentre outros. “É preciso que se tenha atenção no tratamento técnico dado aos manuscritos musicais, não os olhando somente como peças musicais, mas como documentos musicais. (...) Esse olhar pode enriquecer o entendimento e contexto da peça, levando em conta as informações particulares e específicas do universo musical sobre o autor, o copista, o proprietário da peça, datação e aspectos morfológicos musicais”. (BRANDÃO; COSTA; VASCONCELOS, 2015:12) Tal processo permitiria ainda a análise quantitativa do número de peças do acervo, mapeia aquelas inéditas, compostas por ex-maestros, ex-músicos ou pessoas ligadas à banda, os gêneros mais significativos dentro da prática de cada período, principais copistas e arranjadores e o reconhecimento do acervo enquanto fonte importante de conhecimento, dando margem a novas pesquisas musicológicas, históricas e culturais. Ao todo foram catalogadas 948 obras musicais especificações: 171 Nem todas possuíam arranjo completo. 171 , com as seguintes 120 936 para banda; 5 para banda e coro; 3 para banda sinfônica; 3 para orquestra; 1 para banda e violinos. As partes de “banda e coro” e “banda e violinos” datam dos anos de 1910 a 1925, período em que a Corporação participava das missas da vila – todas cantadas em latim – e realizava apresentações com instrumentistas de cordas, provavelmente componentes da orquestra do ex-maestro Zeca Machado172. Aquelas escritas para banda sinfônica são da década de 2.000, quando a formação acadêmica dos maestros refletia diretamente na escolha do repertório e nas concepções sonoras empregadas pelos mesmos, sendo adaptadas para banda, suprindo os instrumentos inexistentes como: fagote, oboé e trompa. Assim o maestro estudava a grade antes de trazê-la, pois precisava saber se o arranjo funcionaria. As três músicas para orquestra 173 chamam atenção para o já citado descuido acerca da compreensão de que o percurso histórico do grupo se estende até os dias de hoje, refletido pelo hábito de não arquivar músicas executadas em apresentações da Orquestra Cachoeira Grande. O grupo existente desde o ano de 2013 sob minha direção musical já realizou seis concertos, todos inéditos, o que somariam cerca de 100 obras. A cada concerto, os músicos ficam com as partes e eu com a grade, sem que haja uma cópia arquivada e disponibilizada no acervo. O processo de catalogação neste caso, foi útil para visualizarmos que, nos últimos dez anos, foram arquivados apenas 19 peças no acervo, apontando para lacuna que tal descuido fará na história do grupo em longo prazo. Acredito que as facilidades trazidas pelos programas de edição de partituras somado ao fácil acesso às mesmas através de xerox ou impressora, além de arranjos disponíveis gratuitamente online, interferem em tal negligência com relação às partes, divergindo dos períodos anteriores, quando as músicas eram transpostas e manuscritas pelos copistas. 172 Para mais detalhes sobre esta orquestra foram relatados em “2.2. Conhecendo os mestres da Cachoeira Grande: traçando um percurso histórico sob uma perspectiva êmica”. 173 Todas posteriores à criação da Orquestra Cachoeira Grande, em 2013. 121 Pelo fato da orquestra ser formada pelos instrumentos da banda civil acrescidos de cordas, sua formação não-convencional sujeita as performances à necessidade da escrita de arranjos específicos, uma vez que possui souzafones, saxofones, trombones em Bb, bombardino em Bb174 e carece de oboés e fagotes. Para além da questão acima, o arranjo dentro da Corporação Musical Cachoeira Grande é utilizado como fortalecimento da relação da sociedade com a banda/orquestra, que, quando se prepara para uma apresentação, associa o repertório ao gosto da plateia, permitindo “uma adequação à preferência musical dos músicos e do público, garantindo à banda um repertório que dialogue com o perfil de sua atuação e desperte a atenção daqueles com quem mantém maior proximidade”. (CHAGAS, 2015: 67) O ex-maestro João Evangelista de Paula, conta que utilizava os temas populares como estratégia, uma vez que “sempre tocava duas músicas bem famosas e uma desconhecida no meio. Assim, quando a pessoa pensava em ir embora, ouvia uma música que conhecia e voltava pra ouvir, não arredando175 o pé da apresentação até a banda parar de tocar”. Diante da fala dos entrevistados foi possível identificar a música veiculada pela mídia como uma das principais responsáveis pelas mudanças nos paradigmas que delineiam a escolha de repertório nos dias atuais. Reinaldo, saxofonista da banda civil e da orquestra, relata que: “As músicas comerciais influenciam bastante, geralmente são as que mais animam as apresentações, pelo menos por grande parte do público. Por serem novas, fazerem sucesso no momento, uma renovação no repertório chama muita atenção dos ouvintes, tanto na orquestra quanto na banda civil. Mas jamais podemos deixar as antigas de qualidade esquecidas”. Dentre os músicos da orquestra - que não mantém seu repertório associado a uma tradição orquestral erudita, portanto desvinculada dos paradigmas que a definição carrega consigo – a maioria acredita que o repertório popular é sem duvida a melhor ferramenta para atrair público e alunos para a escola de música. Com relação à banda civil, ainda há uma reflexão interna acerca do equilíbrio entre a manutenção das tradições e a renovação do repertório: “se o grupo tem outro estilo, as músicas de mídia não vão interferir na escolha do repertório, não vai ser tão importante assim176”. A fala de alguns músicos acerca da utilização da música contemporânea no repertório dos grupos atenta para o cuidado seletivo com o que a mídia oferece e o que 174 Não usuais na formação orquestral. Expressão que significa “tirar, mudar de lugar”. 176 Marlon Luan, clarinetista da orquestra e da banda civil. 175 122 pode ser realmente aproveitado dentro da prática do grupo. Um deles relata que a mídia de massa não tem preocupação com a qualidade do que ela difunde, tendo apenas o interesse em fazer um público cada vez mais ignorante. José Ulisses vai mais a fundo, quando relata sobre as influências dos acontecimentos em geral e do desuso de certas músicas ao longo dos anos, em substituição pelos equipamentos eletrônicos e músicas atuais: “As coisas que acontecem no mundo, muda e influencia nas nossas músicas. Vamos supor: na ditadura militar tinha muita influência militar, além do nosso maestro ser militar, tinha muita influencia, né? E músicas que depois nunca mais tocou, perdeu o sentido. A igreja, a força da igreja católica na época, e... então, era muito grande. Tinham os hinos, as procissões; preparava-se para aquilo. E foi mudando, é... a gente tem uma impressão por exemplo, que, celular só atrapalha, né? Eu vejo as pessoas ouvindo música e estudando pelo próprio celular, então não é só ruim. É da época... É da época. Eu vejo que eles discutem, participam sugerindo músicas novas, muito mais do que eu, que não to ligado nesse modernismo”. Apesar da constante reflexão acerca da música de mídia, sua veiculação por grupos atuais e os processos tecnológicos envolvidos na prática, é percebido que não há um consenso por parte dos músicos, maestros, diretoria e público. As performances atuais têm sido uma tentativa de popularização da banda civil e da orquestra - e por consequência uma maior adesão de alunos à escola de música mantida pela Corporação - porém contrastantes com as tentativas de conservação de repertório característico e manutenção das tradições. A relação entre músicas populares e tradicionais nas performances da Corporação Musical Cachoeira Grande poderá ser visualizada e melhor explicitada em análise quantitativa dos resultados encontrados na catalogação do acervo, se tratando também de “boa porta de entrada para compreender melhor a história e as atividades desenvolvidas177”. Foram listados todos os gêneros encontrados nas partituras do acervo e, para melhor análise de tal amostragem, desenvolvi o gráfico 2, delineando os cinco gêneros mais presentes na prática do grupo, desde sua fundação aos dias de hoje: 177 (CHAGAS, 2015:62) 123 GRÁFICO 2 - Cinco principais gêneros do acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande178 As principais questões que circundam a prática da banda, explicitadas na presente pesquisa179, podem ser correlacionadas aos gêneros encontrados ao longo de sua história, conforme sistema abaixo: a) Dobrados: gênero característico do repertório da banda civil, facilmente associado à “tradição”; b) Erudito: gênero representado na banda pelos concertos de instrumentos, fantasias, aberturas de óperas, nos mais diversos períodos; c) Marcha: ligação direta com o patriotismo e às questões militares dos maestros que estiveram à frente do grupo; d) MPB: repertório popular, presente em todos os períodos da Corporação, ilustrando que a preocupação com a conexão “público/banda” não é uma preocupação apenas da contemporaneidade; e) Música Religiosa: constante atuação da banda nos eventos da igreja católica. Na Corporação Musical Cachoeira Grande, a presença do dobrado 180 enquanto gênero de maior expressividade, tanto no acervo quanto nas práticas atuais, pode ser associada à sua aplicabilidade em diversos eventos. Apesar disto, apenas os dobrados novos ou inéditos são ensaiados no dia-a-dia do grupo, que possui cerca de 20 memorizados há anos, para execução em momentos onde não seja possível utilizar e consultar as partituras. Em tal prática, podem ser observadas diferenças quanto o aprendizado se dá através da oralidade (muitos são aprendidos através da memória auditiva dos novatos que têm os veteranos como referência) e o estudo sistemático da 178 Os números acima de cada coluna indicam a quantidade de peças por gênero. As questões aqui trazidas são discutidas mais afundo em diferentes momentos da pesquisa. A ideia é uma passagem rápida pelas associações que podem ser feitas após a leitura de todo trabalho. 180 Para mais detalhes sobre a estrutura e a importância do gênero dentro da prática na Corporação Musical Cachoeira Grande, ir à seção “4.1. “AVISA!”: os dobrados da banda civil e a manutenção da tradição”. 179 124 partitura durante os ensaios. Durante o andamento da pesquisa, um episódio onde esta diferença entre o que era tocado e o que realmente estava escrito se fez presente, foi em uma alvorada, em Janeiro deste ano. Em todos os anos anteriores, a Corporação tocava nas alvoradas, caminhando pelas ruas do centro; mas neste ano, a prefeitura disponibilizou um caminhão e fomos181 tocando sentados em cima dele, nas cadeiras. O grupo levou as estantes com as partituras, uma vez que seria possível consultar as partes, até mesmo dos dobrados que tocávamos de cor há anos. De acordo com a fala dos músicos naquele momento havia vários dobrados que tocávamos completamente diferente do que estava escrito: tocávamos solos de outros naipes quando estava escrito um contracanto que não era executado por ninguém182, por exemplo. Reinaldo César conta que: “tomei um susto! Vi que fazia tanta coisa errada e que o sax tinha muitos solos que estavam faltando. Nunca tinha ensaiado com a partitura desses dobrados mais famosos”. Tal ocorrido aponta para o fato que, apesar da tentativa dos últimos maestros da banda, de reformulações paradigmáticas na prática e no ensino musical dentro da Corporação, existem elementos enraizados há anos na maneira “como a banda toca”, tendo a transmissão de saberes e a oralidade destes grupos como temas recorrentes em inúmeros trabalhos sobre as corporações musicais. As partituras mais antigas encontradas no acervo foram “Amor” e “Voz da Pátria”, escritas uma no verso da outra, datadas de1891, ambas 4 anos antes da inauguração da Fábrica de Tecidos que deu origem à cidade de Pedro Leopoldo e 21 anos antes da criação da Corporação Musical Cachoeira Grande183. Em nenhuma das peças consta o compositor, há apenas uma sigla - provavelmente do copista, arranjador ou compositor - com as iniciais “S. M.”, além da descrição dos gêneros: dois dobrados. Ainda sobre as peculiaridades do acervo em questão, quase184 10% das músicas foram compostas por músicos e ex-maestros da banda, em homenagem a presidentes, prefeitos, autoridades locais, amigos pessoais, à cidade de Pedro Leopoldo, Minas Gerais, associações da época, dentre outros. Na presente pesquisa, tais peças foram mapeadas e utilizadas quantitativamente, traçando os anos das primeiras composições e 181 Apesar de reger a Orquestra, eu ainda participo em alguns eventos da banda civil, quando solicitada pelo maestro. 182 Inclusive me incluo nestes. 183 Sugerindo que as peças provavelmente vieram de um acervo pessoal dos primeiros maestros ou músicos da banda. Devido à ausência de informações essenciais que possibilitem um aprofundamento acerca da origem de ambas, não é possível afirmar a procedência dos manuscritos. 184 91 das 948 músicas são inéditas. 125 os principais compositores existentes na corporação. Mário Pereira da Luz 185 foi significativamente o maior compositor da banda, com um total de 32 peças assinadas por ele – aquelas onde o mesmo assinava embaixo do manuscrito, mas não descrevia se eram de sua composição, não foram incluídas nesta contagem – entre os anos de 1911 e 1958, a maioria endereçada a amigos e familiares 186 . Tarcísio Drumonnd, exbombardinista, multi-instrumentista e contramestre do maestro João Evangelista de Paula, foi o segundo maior compositor, com 16 peças ao todo, dentre elas, uma em homenagem ao próprio maestro. O ineditismo e originalidade de tais canções do acervo da Corporação Musical Cachoeira Grande despertaram o interesse para uma futura pesquisa, onde exista a reflexão crítica e a compreensão da composição e da produção musical enquanto produto do indivíduo, capaz de refletir tradições, identidades, correntes estéticas e políticas, através do estudo das informações das estruturas sonoras associadas aos seres humanos que a produzem, buscando a compreensão a respeito das práticas culturais que mediaram essa criação musical e da dimensão música/sociedade187. “[...] a música “pode ser vista como expressão de projetos e lutas culturais contraditórias de uma determinada época” e assim, considerá-la como “historicamente produzida pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constrói”. (COSTA, 2010 apud BRANDÃO 2015:24) Ao focarmos nossa análise nos gêneros musicais de cada período, sobretudo considerando as divisões pelos anos que os maestros estiveram frente ao grupo, conseguimos visualizar as mudanças no repertório ao longo dos anos, a adesão de determinados gêneros, bem como as questões de arquivamento das partituras, já tratadas nesta seção. 185 Ex-maestro. Para maiores detalhes ver “2.2. Conhecendo os mestres da Cachoeira Grande: traçando um percurso histórico sob uma perspectiva êmica”. 186 Na seção 2.2., há uma passagem onde uma das filhas de Mestre Mário conta que o maestro compôs uma marcha fúnebre para ser tocada em seu velório. Hoje em dia, a música é utilizada nas procissões da Semana Santa. 187 Ver SEEGER, Anthony. “Por que os índios Suya cantam para suas irmãs?”. In: VELHO, G. (org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1977, pp. 39-63 126 GRÁFICO 3 - Principais gêneros musicais entre os anos de 1891 a 1942. O gráfico 3, ilustra a presença dos quatro principais gêneros nas partituras que datam os anos precedentes à formação da banda (1891 a 1911), bem como a atuação de seu primeiro maestro (1911 a 1920), “Seu Candu” e o segundo, “Zeca Machado” (1920 a 1942). Há uma representatividade clara dos dobrados enquanto principal gênero da performance, além das músicas populares, elucidando que sempre estiveram presentes no repertório da banda, mesmo que não seja de forma tão significativa quanto nos dias atuais. As porções menores, em diferentes cores, mostram também uma maior diversidade de gêneros em geral, entre os anos de 1921 a 1942. Não cabe aqui julgar ou analisar a quantidade exata de peças entre os gráficos, uma vez que não estão divididos igualmente pelo número de anos, mas pela gestão de cada regente. Diversos trabalhos vão de encontro aos resultados mais antigos encontrados no acervo da corporação. COSTA (2011) conta que, em função da tradição vinda desde os tempos remotos, as bandas atuavam como celeiro de inúmeros gêneros, como a polca, mazurca, quadrilha e o maxixe188. Destaco a primeira aparição de um arranjo para “banda e coro”, de um “Credo” em latim, datado de 1910. Em 1937, uma partitura de Ave Maria, arranjada para banda, voz solo (ainda em latim) e violinos, marca a primeira aparição de instrumentos de cordas, provavelmente sob influência do maestro e também violinista, Zeca Machado. Outros instrumentos, hoje em desuso na banda, aparecem também dentro de repertório desta época: helicon, trompa e oboé. Assim como nos dias de hoje, a escrita 188 (COSTA, 2011:242) 127 deles nas partes apenas “infere” que tenham sido partes do grupo, sobretudo no caso da trompa e do oboé, uma vez que os arranjos podem ter sido adaptados para os instrumentos em questão e na sede da banda não há fotos ou resquícios de que eles realmente tenham feito parte da organologia da banda. A mudança de nome do saxhorne também foi observada durante as partes: inicialmente era chamado de genis, seguido por centro e por fim, chamado de sax horn. Instrumento em desuso em muitas bandas, o sax horn também não faz parte da formação da Corporação Musical Cachoeira Grande, pois “sua projeção em ambientes abertos era péssima. O maestro sempre dava ele pra quem estava aprendendo, por que ninguém ouvia eles tocando, então não tinha problema se errassem”, conta José Ulisses. O relato do músico sobre o desuso do sax horn, converge com o trabalho de COSTA (2011), quando conta que a instrumentação das bandas se desenvolveu por sua capacidade de projeção em ambientes abertos, incluindo trompetes, trombones, tubas, flautas, clarinetes, saxofones e percussão, especialmente caixas, bumbos e pratos. O fato de tocar com muito volume está relacionado com a necessidade de ser ouvida, pois a maioria de suas apresentações é ao ar livre e se locomovendo. (COSTA, 2011:256) CHAGAS (2015) complementa que foi pela dinâmica das performances das bandas – nas ruas em deslocamento – que alguns instrumentos deixaram de ser utilizados e outros foram idealizados ou modificados. (CHAGAS, 2015:24) O início da vida musical dos grupos compostos por sopros e percussão, foi associado à sua utilização em guerras ou batalhas, por isso acredita-se que a projeção sonora é um fator que grande relevância para os instrumentos “sobreviverem” ao longo dos anos dentro deste tipo de prática, conforme apontado nos trabalhos de CARVALHO (2006) e COSTA (2011): “parece que a música estava ligada às ações militares desde tempos muito remotos, não apenas como meio de comunicação no campo de batalha, como também como elemento psicológico, animando as tropas e atemorizando os inimigos”. (CARVALHO, 2006:1) E “Desse modo, sua instrumentação se desenvolveu por sua capacidade de projeção em ambientes abertos, incluindo trompetes, trombones, tubas, flautas, clarinetes, saxofones e percussão, especialmente caixas, bumbos e pratos. O fato de tocar com muito volume está relacionado com a necessidade de ser ouvida, pois a maioria de suas apresentações é ao ar livre e se locomovendo”. (COSTA, 2011:256) O desinteresse por parte de novos alunos também contribui para que outros instrumentos caissem em desuso ao longo dos anos. CHAGAS (2015) relata em seu trabalho, que a requinta e o souzafone - além do sax horn - já caíram em desuso na 128 banda de Raposos (MG), seu objeto de estudo. Até a regência do Capitão João Evangelista, era o maestro quem escolhia o que o aluno tocaria, garantindo que todos os naipes estivessem completos189. Nos tempos mais atuais, esta prática não se consolida, fazendo com que a bateria, saxofone, clarineta e trompete sejam os instrumentos preferidos daqueles que ingressam na banda civil. Ainda sobre o período do gráfico 2, cabe aqui elucidar acerca das possíveis influências que uma questão de âmbito nacional exercia na prática musical da banda: o Estado Novo, uma vez que trabalhava as políticas culturais enquanto “força disciplinadora, coordenadora e organizadora das forças sociais (...)190”. Após o processo de catalogação, observamos a marcha como segundo gênero mais significativo dentro do repertório da banda, perdendo apenas para os dobrados, fato exclusivo apenas a este período e ao período compreendido entre 1963 a 1976191, um ano antes do golpe de 64. Dentre as peças do período anterior (1891 – 1920) apenas seis inferiam homenagens a militares, à pátria ou ao exército, e no período em questão este número aumentou para 18, em títulos como: “A defesa do Brasil”, “Almirante”, “A Batalha”, “Capitão Oreste”, “Emblema Nacional”, “Navais em marcha”, “Voluntários da Pátria”, dentre outros. Houve ainda um grande incentivo aos desfiles cívicos, como forma de estimular o sentimento patriótico nas escolas e agremiações civis: Novos estudos sobre o período mostram que, na esfera da propaganda política e da política cultural, são identificáveis traços de concepções totalitárias na construção de imaginários sociais, traços que, associados a concepções e condutas autoritárias, oriundas de um passado mais distante, serviram de referência para a elaboração de novas formas de controle social nos anos 30 [...]. (CAPELATO, 2007:213) As práticas culturais permitidas e incentivadas no período em questão – Vargas e veiculadas pela Revista Cultura Política, entre os anos de 1941 a 1945, eram elementos que se integravam às questões políticas e “deveriam ter um conteúdo socialmente útil e um sentido de orientação para o bem comum coerente com a diretriz geral do Estado e com a vida nacional, (...) cumprindo a sua missão de testemunhar o social(...). Para exprimir os valores nacionais, deveria se inspirar em nossos temas e motivos mais típicos192”. A função do artista - incluo aqui a banda, os compositores e o 189 Durante a análise documental, foram encontradas diversas fichas de inscrição deste período. Dentre elas, havia a concordância do aluno em tocar o instrumento designado pelo maestro. 190 (VELLOSO apud CAPELATO, 2007:202) 191 Vide gráfico 4. 192 (CAPELATO, 2007:210) 129 maestro - era definida como “socializadora” e difusora das práticas e sentidos delineados pelo Estado vigente. Pelo fato dos ex-músicos e maestros já terem falecido, as informações acima foram inferidas mediante análise dos documentos e das partes do acervo, pois toda operação que envolve tal prática, é “de natureza retórica193”, não tendo a pretensão de se tornar verdade absoluta sobre as verdadeiras intenções daqueles que faziam música na Corporação Musical Cachoeira Grande. Os dois períodos posteriores compreendem os anos de 1943 a 1962, onde Mário Pereira da Luz esteve regendo a banda, e o difícil período de 1963 a 1976, onde os músicos se revezavam e várias tentativas de substituição foram feitas. GRÁFICO 4 - Principais gêneros musicais entre os anos de 1943 a 1976. No primeiro período do gráfico 4, temos o aumento significativo do número de dobrados, muito como contribuição/composição de Mário Pereira da Luz, então maestro. Reitero que o mesmo foi o maior compositor da banda e que existem muitas partes em que não há o nome do compositor, mas a assinatura do Mestre enquanto copista. Tais músicas não foram acrescidas à soma daquelas em que ele assina, mesmo sabendo que algumas podem ser de sua autoria. A representação do aumento gradativo do número de gêneros 194 em comparação aos primeiros anos de existência da banda pode ser percebida através da inserção de arranjos populares variados, adaptados e escritos para o grupo, percebendo que tocar algo que dialogasse com público já era uma prática adotada. Valsas e tangos são 193 194 Sobre a análise de documentos históricos. (MENESES, 1998:95) A grande diversidade de gêneros terá seu ápice com o Capitão João Evangelista. Vide gráfico 5. 130 gêneros que acompanharam toda história da prática da banda, sendo vistos em todos os períodos, até os dias atuais, quando já fizeram parte do repertório da orquestra195: “vale ressaltar que alguns gêneros que foram citados (...) foram amplamente difundidos num período em que a prática cultural do arranjo ou composição de temas populares dizia respeito aos primórdios e história das gravações e do rádio (...).” (CHAGAS, 2015:71) Ao observar todas as análises, reitero que as datas dizem respeito à data de aquisição das partituras, delineando as preferências dos maestros e as demandas de cada período; não significando que as peças caiam em desuso e deixaram de ser tocadas nos períodos posteriores. Apesar da grande variedade, os dobrados ainda somam cerca de 65% do repertório adquirido, num total de 143 músicas, no período que a banda esteve sob comando do Mestre Mário. Os anos de 1963 e 1976 representam um período de grande dificuldade do grupo196, quando, em virtude da morte do maestro anterior, os músicos se revezavam na organização do grupo, escolha do repertório, ensaios e todos os aspectos que circundam a prática da banda: “eram os músicos quem definiam todas as questões, garantindo a sobrevivência e a continuidade das atividades musicais, seguindo gostos pessoais ou necessidades em determinados eventos”, conta José Ulisses. Apesar das dificuldades, novas músicas, dos mais variados gêneros, foram incorporadas ao repertório da Corporação, que continuou atendendo às demandas do período. Pela primeira vez, o número de dobrados quase se igualou a outro gênero, no caso, a Marcha. Entretanto, o simbolismo e as significações de ambos, carregam o caráter militar nas apresentações preservando a identidade social e cultural da banda até então. Na história da banda, inclusive no período em questão, há ocasiões em que a demanda determina o repertório, apesar da crescente variedade em termos de gêneros musicais nas bandas. No caso da Corporação, as procissões sempre são acompanhadas ao som dos dobrados e às vezes, de hinos católicos; a procissão de Semana Santa com marchas fúnebres197; desfiles cívicos e inaugurações sob o som dos dobrados. Além de 195 As músicas “Por uma cabeza”, de Carlos Gardel e “Fascinação”, de Dick Manning são exemplos de peças dos respectivos gêneros, que já foram apresentadas em concertos da orquestra . 196 Para maiores detalhes ver “2.2. Conhecendo os mestres da Cachoeira Grande: traçando um percurso histórico sob uma perspectiva êmica”. 197 Não existem peças específicas para tais eventos, mas sim gêneros específicos. Desde que ingressei na banda, algumas marchas fúnebres de Mestre Mário fazem parte constante da procissão de Semana Santa. 131 convergir com o citado anteriormente, a afirmação de REILY (2008), onde diz que “as procissões são acompanhadas geralmente por dobrados, que são suficientemente ‘leves’ para dar à procissão um ethos festivo e estimular os passos dos fiéis sem ‘carnavalizar’ o evento, tirando-lhe o caráter devocional198”, vai ao encontro de trabalhos sobre bandas da região: “Portanto, as características das práticas sociais das quais a banda participa permite a exploração de diversos gêneros musicais, sendo que algumas práticas não admitem grandes alterações, tais como as procissões de semana santa com as marchas fúnebres, enquanto outras permitem a inclusão de músicas ao repertório de temas provenientes de outras fontes e experiências musicais, como as tocadas no rádio, nas novelas, em filmes, entre outras”. (CHAGAS, 2015:66) E FAGUNDES (2010), em seu trabalho sobre a banda de Betim (MG): “A música produzida por esses grupos, que são as bandas civis, faz que se estabeleça uma forte relação entre a música, os eventos e a participação das pessoas, de modo a facilitar o envolvimento dos sujeitos tanto pelo aspecto religioso, quanto pela função de sociabilidade que se expressa na vida cotidiana e que é fortalecida nesses eventos”. (FAGUNDES, 2010:77) Para facilitar o trabalho cotidiano, as marchas fúnebres e hinos religiosos não foram catalogados separadamente, uma vez que são utilizadas poucas vezes ao ano. As mesmas foram organizadas e alocadas em pastas e envelopes específicos. Com a vinda do capitão João Evangelista à corporação, no final do ano 1976, o cargo de maestro finalmente foi preenchido. Era ele mesmo quem delineava ou não sobre o repertório: “os músicos não tinham nem coragem de sugerir nada. Se alguém desse palpite, poderia saber que levaria bronca na frente de todos. Não tinha essas coisas de hoje em dia não, quando o pessoal sugere músicas para apresentações ou os dobrados que querem tocar nos desfiles”, conta José Ulisses. Acredito que, em virtude dos anos que ele esteve à frente da banda, à sua relação próxima com a banda de Várzea da Palma – onde mantinha um trabalho paralelo à Corporação em questão – e ao episódio já citado na presente pesquisa, quando o maestro trocou todo o repertório após seu ingresso, podemos observar no gráfico o aumento significativo de aquisições entre os anos de 1977 a 1999. Foram ao todo 303 peças novas, de 87 gêneros199 diferentes, conforme o gráfico 5: 198 (REILY, 2008:27) Os gêneros foram catalogados conforme descritos na partitura, sem agrupamentos ou generalizações. Ex: “tango” e “tango brasileiro”, “ritmo marcial” e “marcha”, não foram agrupados ou considerados um gênero só. Acredito que existam questões que justifiquem a escolha dos nomes dos gêneros e não cabe ao pesquisador agrupar seguindo os critérios atuais. 199 132 GRÁFICO 5 - Principais gêneros musicais entre os anos de 1977 a 2003. O aumento representativo de gêneros também se deu pela preocupação, já citada acima, em manter um repertório que agrade o público, e, segundo o maestro,“o repertório era o termômetro, medido pelos aplausos do público nas apresentações”. Esta relação banda x público x repertório tem sido uma constante em muitos trabalhos sobre bandas e as tentativas atuais de inovação da tradição performática. Nos dias atuais, apesar da tentativa em manter a tradicionalidade no repertório da banda civil, percebo a popularização das músicas em apresentações como grande fator na admiração social com relação aos grupos, orquestra e banda civil: “O público atua de certa forma como elemento seletivo [...]. E um repertório, já conhecido de modo geral, tem maior poder de agrado, o que acaba moldando os critérios de seleção, já que o que é veiculado pelos meios de comunicação é mais ouvido, justificando com isso as execuções em função do que o público já ouve, ficando os gêneros característicos das Bandas mais distantes e esquecidos”. (SANTIAGO, 1992: 192-193) Neste período, os músicos tinham cerca de 50 músicas, dentre dobrados e populares, organizadas numa pasta individual e ensaiadas para apresentações cotidianas. A dinâmica de escolha das músicas e condução das novas funcionava de forma um pouco diferente dos dias atuais, quando há a inclusão de novas músicas a cada apresentação. O processo atual garante uma maior rotatividade das músicas tocadas pela banda, mas perde, de certa forma, a oralidade tão característica das apresentações de memória, pois não há tempo para memorização das músicas ou repetição das mesmas diversas vezes200: “se for ver os dobrados que a gente sabe de cor são os mesmos desde quando eu entrei na banda”, conta Reinaldo César. 200 Ressalto que, nas procissões, alvoradas, desfiles e evento cívicos em geral, a banda toca as peças que sabe de cor, retomando toda a questão, principalmente pelo fato dos dobrados mais tocados não serem ensaiados no cotidiano. 133 Nos anos de 2000 a 2003, com a vinda do maestro Júlio de Paula, as performances de instrumento solo foram as mais tocadas e ensaiadas: “Diva”, “Concerto para clarineta”, “Royal Cinema” e “Canarinho” foram as três mais representativas. “Em relação ao repertório das bandas de música, este, [o repertório] pode configurar, sobretudo, pela formação do regente e dos músicos, cujas escolhas musicais são resultado das experiências vivenciadas ao longo de suas trajetórias formativas”. (ALMEIDA e MATOS, 2010: 1319) Estive presente em todo este período, acompanhando a rotina de ensaios e apresentações do grupo, uma vez que era saxofonista e contramestre. Adalberto Barbosa, ex-músico e ex-maestro, conta que as peças solo “eram uma forma de incentivo e valorização dos músicos, uma vez que ele escolhia as pessoas que estavam nas estantes, acompanhando o estudo e desenvolvimento técnico delas, desafiadas pelas músicas que Sr. Júlio trazia”. O maestro também dava atenção especial às composições inéditas, colocando vários dobrados do ex-maestro “Mário Pereira da Luz” entre as músicas ensaiadas com frequência e executadas em apresentações, além de hinos religiosos e marchas para procissões. O gráfico mostra as peças trazidas pelo maestro, mas não a utilização que ele fazia do acervo, mostrando uma falha em considerarmos apenas a análise quantitativa enquanto absoluta. Por isto a necessidade da consulta a livros, atas, entrevistas, como forma de delinear o repertório e as escolhas acerca deste âmbito de forma mais coesa. Duas questões principais são percebidas com o gráfico 5, dos anos mais contemporâneos da banda: ausência dos dobrados enquanto principal gênero dentre as novas aquisições da banda e o descuido com a manutenção/arquivamento das partituras enquanto objeto histórico. 5 GRÁFICO 6 - Principais gêneros musicais entre os anos de 2004 a 2015. 134 Apesar de delinear apenas as aquisições e não a prática em si, observamos que nos últimos anos, nenhum dobrado foi adquirido ou arquivado no acervo da banda. Para além das questões aqui trazidas, sobre popularidade do repertório, a prática atual de renovação das músicas, a utilização de dobrados antigos nos eventos cívicos, há ainda uma recessão nas composições dentro da Corporação. A prática e a manutenção do gênero enquanto principal na tradição das bandas não fica tão comprometida com a queda brusca de novas aquisições, pelo fato de inúmeras composições inéditas do acervo provavelmente não terem sido tocadas. Ressalto aqui que não contem na banda livros de presença ou documentos que explicitem quais músicas eram tocadas nos períodos anteriores ao ano de 1949. Tais informações são apenas inferidas por análise de catálogo e entrevistas com pessoas ligadas à banda naquela época. A partir de 2003, encontramos partituras no acervo geradas por programas de edição, como Sibelius, Encore ou Finale. Reafirmo que, a facilidade trazida por tais programas, com relação à obtenção de outra cópia, sem a necessidade da figura de um copista ou de horas de dedicação, contribui para a desvalorização da manutenção adequada durante e após os ensaios e apresentações. Este fator pode ser ainda potencializado pela falta de reflexão acerca da construção diária da história da banda, despertada em mim pela presente pesquisa. Como será possível que se realize um trabalho de pesquisa arquivística ou análise do acervo, daqui a alguns anos, se o grupo não se preocupa em arquivar as partituras que hoje fazem parte da performance tanto da banda quanto da orquestra? Ou ainda sobre o acesso à informação e à disponibilização das músicas tocadas no momento para formações futuras? Esta lacuna pode ser observada de forma contrastante no último gráfico, quando, nos últimos 12 anos, houve um pequeno arquivamento de partituras e arranjos novos, dentro do acervo da orquestra e o não tratamento das partituras enquanto documentos históricos: Basta lembrar que a simples durabilidade do artefato, que em princípio costuma ultrapassar a vida de seus produtores e usuários originais, já o torna apto a expressar o passado de forma profunda e sensorialmente convincente. (DE MENEZES 1998:90) Tais reflexões são resultado de todo processo de catalogação e análise documental dos papeis e partituras encontrados na sede da Corporação Musical Cachoeira Grande. Uma maior compreensão acerca da forma como o repertório é utilizado - seja enquanto ferramenta de popularização do grupo, aumento do número de alunos ou valorização de composições inéditas, por exemplo – faz-se necessária e complementar ao processo de catalogação: 135 “Por vezes a visão que se tem sobre um acervo é de sua importância material e documental como algo estático, definido, acabado. São contabilizadas as peças, analisadas suas condições físicas, criando-se valores apenas qualitativos e quantitativos do conjunto”. (BRANDÃO; COSTA; VASCONCELOS, 2015:15) A associação do material com as experiências compartilhadas nas entrevistas e referências documentais contribuiu para observar como se dão as negociações presentes ao longo dos anos e como as relações sociais que foram responsáveis pela formação do acervo, colaborando inclusive com meu trabalho enquanto regente. 136 CAPÍTULO 4 - “PRA VER A BANDA PASSAR”: MANUTENÇÃO CIVIL E O PROCESSO DE REINVENÇÃO DA PRÁTICA MUSICAL NA DA BANDA CORPORAÇÃO MUSICAL CACHOEIRA GRANDE “Importante é observar os processos de transformação, refletindo sobre as questões musicais e funcionais que envolvem o grupo, ou seja, buscando compreender o que a música representa no contexto social e temporal no qual as bandas desenvolvem suas práticas, uma vez que os padrões sociais estão intimamente relacionados à prática e produção musical das bandas e de tantos outros grupos musicais”. (CHAGAS, 2015: 23) O número relativo à existência das Corporações em Minas Gerais é significativo - como se pode inferir do gráfico 1 - e sempre relevante a representação sociocultural nas cidades a que estão vinculadas. Destarte da importância e representação, considerável número destas instituições, muitas enfrentam completo abandono, financeiro especialmente, o que compromete a continuidade e qualidade dos trabalhos: falta de incentivo das autoridades políticas e consequente desestímulo dos músicos, concorrência com outras formas de entretenimento e consumo cultural. Diversos autores preconizam que a convergência de tais aspectos corroboram para a consequente perda de espaço social das bandas, principalmente em relação às corporações que optam por manter sua performance mais aproximada aos moldes antigos e conservadores, como a rigidez de repertório, a restrição a apresentações típicas, como a marcha empreendida nas performances em movimento, dentre outros. Questionados a respeito, os músicos da Banda Civil e da Orquestra Cachoeira Grande são unanimes em afirmar que - nas palavras de um dos músicos -“diversos amigos das bandas da redondeza têm ido tocar nas bandas vizinhas, pois algumas possuem apenas 8 (oito) músicos, por que algumas bandas tão muito antiquadas”, Keula Carolina, se referindo a algumas bandas próximas à Pedro Leopoldo. SARTORI (2012) apresenta uma visão pessimista, de quanto as questões que circundam este fato, se associadas ao tempo de vida das corporações que optam por manter a prática musical dentro dos moldes descritos acima, podem ser vitais para sobrevivência dos grupos. Segundo o autor, “o modelo de banda de música no conceito tradicional vai desaparecendo do mundo real, encontrando espaço e se firmando cada vez mais como elemento da memória social”. e 137 “A tendência que se observa seguindo o curso natural dos fenômenos apontados e que promovem as transformações sociais nos hábitos e costumes de uma sociedade, e consequentemente em sua memória, é a de que em gerações futuras este modelo de banda de música não mais fará parte da construção da memória do indivíduo, seja como músico ou apreciador, constando apenas em livros, estudos e gravações, o que certamente proporcionará novas discussões acerca de sua autenticidade e trará à tona questões do tipo: seria performático, parafolclórico ou tradicional?” SARTORI (2012:5) Uma das opções para modernizar a linguagem das bandas é revisar o repertório que vem sendo utilizado, sem deixar de lado os dobrados, mas inserindo músicas que dialoguem com as questões e vivências contemporâneas dos instrumentistas, sobretudo em grupo que contam com a presença maciça de jovens. CHAGAS (2015) compartilha e traz a transformação do repertório da banda de Raposos (MG) como uma ferramenta para tal problemática, alternativa esta, também utilizada pelos três últimos maestros da Corporação Musical Cachoeira Grande, com a inserção de tema de filmes e músicas populares: “Nesta banda as transformações do repertório se concentraram no acréscimo de músicas em virtude de um resultado esperado, seja ele o de despertar o interesse do público; conseguir alunos; ou até mesmo se moldar conforme as propostas dos maestros que estiveram à frente do grupo”. (CHAGAS, 2015:81) FAGUNDES (2010) traz o depoimento do maestro da banda de Betim, enfatizando sobre a necessidade da transformação da prática musical, aliada à modernização do repertório, a fim de estender os anos de vida musical ativa das mesmas, dissociadas ainda de tais moldes: “Segundo Joanir, uma banda também tem o papel de formação de novos músicos, que é extremamente importante para manutenção cultural e musical de uma cidade. Mas, para isso, deve estar atenta às modificações que a sociedade vem passando. Para ele as bandas têm ficado “paradas no tempo” não acompanhando as dinâmicas da sociedade que, de certa forma, modificam a cultura local e regional. Assim, as músicas muito tradicionais e as formas tradicionais das bandas atuarem não atraem mais os jovens, contribuindo para que os músicos de mais idade, ao se aposentarem aposentem também a banda, pela incapacidade de formar uma geração que dê continuidade às atividades musicais desta”. FAGUNDES (2010:126) É válido refletir sobre a atual posição social das bandas de música em seus âmbitos sociais e sobre os processos de reinvenção201 encontrados, em busca de novas propostas e experiências que garantam a continuidade das atividades e despertem o interesse da sociedade contemporânea. 201 A utilização do termo reinvenção,é utilizado quando há tentativa de transformar a prática musical em torno dos elementos que a circundam: repertório, formato de apresentações, o paradigma sonoro, uniformes, dentre outros. 138 Os fatores acima competem diariamente com as experiências e manifestações culturais, influenciando, sobretudo, o cotidiano dos mais jovens, que são aqueles responsáveis por perpetuar e manter ativa a Corporação Musical Cachoeira Grande. No grupo em questão, a necessidade da reinvenção da linguagem até então utilizada se deu quando a faixa etária dos músicos começou a mudar: os instrumentistas mais antigos começavam a se afastar por motivos de saúde 202 fazendo com que a quantidade de jovens sobrepusesse à dos mais experientes. O repertório que a banda tocava, composto em sua maioria por boleros, tangos e dobrados, não agradava tanto os mais jovens, mesmo alguns compreendendo que todo aquele aparato fazia parte da identidade do grupo, bem como o fato de tocar, a maioria das vezes, em procissões e desfiles cívicos, em detrimento de apresentações populares ou em diferentes contextos. Essa incompatibilidade dos jovens com o repertório patrocinava evasões e, como forma de solução foi planejada, a criação de um novo grupo - sem a descaracterização integral da banda de origem - com repertório e forma de atuação diferente. Foi criada a Orquestra Cachoeira Grande203, com instrumentos de cordas adicionados aos sopros e à percussão da banda civil, para desenvolver uma prática musical diferente daquela que a banda desempenhava, onde seria possível trabalhar repertórios diversos, amplos e modernos, pelo fato da formação não trazer consigo memória afetiva, tradicionalidades ou padrões estético-sonoros aos quais deveria se enquandrar. Por outro lado, era uma tentativa arriscada, pois poderia trazer um resultado divergente ao esperado, caso toda atenção se voltasse para a orquestra, desencadeando de vez no declínio das atividades da banda ou na ruptura total com valores e paradigmas antigos. A percepção da necessidade de transformar a estrutura do grupo para proporcionar uma nova experiência musical, vai ao encontro da análise de TRIGUEIRO (2004), quando afirma que: “estamos vivendo uma nova referência de mundo, um mundo globalizado onde o volume e a velocidade da informação circulam instantaneamente em várias partes da Terra, acelerando os processos culturais e dando novos sentidos às identidades culturais. Identidades essas que estão em permanente movimento de negociação e articulação nos ilimitados fluxos de inter-relações das sociedades, que com as suas artimanhas simulam e modelam as suas novas experiências culturais”. TRIGUEIRO (2004:59) 202 Atualmente apenas 3 músicos possuem mais de 50 anos. Por outro lado, 40 músicos dentre aqueles que integram a orquestra e a banda, possuem menos de 30 anos. 203 Outras questões sobre o funcionamento e a criação da Orquestra serão tratadas a seguir. 139 A análise e interpretação dos aspectos abordados nos capítulos anteriores foram necessárias para compreendermos como as manifestações culturais são diretamente influenciadas pelas relações sociais de sua contemporaneidade. A leitura e frequente referência aos trabalhos sobre outras bandas mineiras, sobretudo que circundam Belo Horizonte 204 , como os de CHAGAS (2015) e FAGUNDES (2010), levam-me à compreensão de que os problemas aqui vivenciados com relação às dificuldades para manutenção da tradição são os mesmos das outras corporações da região. Tendo tais questionamentos em mente, vamos analisar primeiramente como é a tentativa de manter a significação da banda civil, através de símbolos e elementos que despertam uma identidade coletiva e afetiva nos cidadãos que experimentaram os primeiros anos da corporação. Em seguida, como o processo de reinvenção tem se desenvolvido no âmbito de sua produção musical sonora e qual o impacto dessas transformações em suas funções e relações sociais. Levar tal discussão para âmbito acadêmico abre uma gama de possibilidades de debates em diversas áreas do conhecimento científico, oferecendo novas perspectivas que auxiliem na discussão sobre a manutenção da tradição - através da banda civil – e sua reinvenção – orquestra. Espera-se ainda obter subsídios para melhor compreensão das transformações que vêm ocorrendo atualmente, dos aspectos que circundam a prática musical associando-a à sociedade e aos músicos que nela estão envolvidos, solidificando cada vez mais a vida musical da Corporação Musical Cachoeira Grandes. 4.1. “AVISA!”: OS DOBRADOS DA BANDA CIVIL E A MANUTENÇÃO DA TRADIÇÃO “AVISA!” Assim se inicia o principal gênero das corporações musicais – os dobrados205. Quando em desfiles ou eventos cívicos, os maestros geralmente não regem ou conduzem a entrada dos dobrados: a marcação da cadência dos passos e andamento da música é dada pela percussão, que após ouvir o comando dado, faz uma pequena cadência, funcionando como um batere de regência para que todos os músicos entrem 204 205 Como a Corporação em questão. Gênero de música de banda reminiscente às marchas militares. CHAGAS (2015) se refere aos dobrados como: “O Rei da banda”, elemento de tradicionalidade mais representativo da prática musical da(s) banda(s). (CHAGAS, 2015:92). Os dobrados são as versões “abrasileiradas” de tais marchas, carregam consigo toda ressignificação que novos contextos e assimilação a gêneros já existentes conferem a ele. 140 juntos. Este sinal segue um padrão nas bandas, inclusive na corporação em questão. Poderia dizer que, desde a vinda do Sr. João Evangelista, em 1976, a Corporação Musical Cachoeira Grande utiliza o mesmo sinal de Aviso. Segue abaixo, sua transcrição, a mesma rítmica utilizada em muitas bandas da região206: FIGURA 25 - Transcrição da cadência que antecede o início dos dobrados, feita pela percussão. PEREIRA (2008) cita a utilização do material sonoro das marchas militares da Idade Média, na Europa, utilizado em forma de código e memorizado pelas bandas militares, para que não houvesse erro ou descumprimento do comando durante uma batalha ou guerra: “Para facilitar a movimentação de uma cada vez maior massa de homens de forma sistemática e ordeira, passou a manter-se uma cadência através de um toque de tambor. O toque da trombeta e a cadência dos tambores deveriam ser claros, sem ambiguidades, por isso muitas forças armadas criaram padrões musicais específicos que se tornaram convenções para as suas forças, como meio de comunicação”. (PEREIRA, 2008:23) A característica a que a autora se refere, quando associada à questão acima, poderia sugerir que esta forma de ictus inicial possa ser uma herança das questões extramusicais, intrínsecas nos dobrados e nas marchas militares. O sinal de Aviso atualmente é utilizado na situação já colocada acima, mas será que desde sua origem foi assim? Outro significado ou símbolo desta utilização, quando em contexto específico, poderia ser atribuído a ele, uma vez que as bandas civis não atuam em batalhas, fazendo com que tal significação se perca ao longo dos anos? Ao indagar o Capitão João Evangelista - o maestro vivo e mais antigo da Corporação - sobre a possível origem desta prática, ele conta: _“O sinal de Aviso serve só para marcar o tempo do dobrado e os passos para os músicos marcharem”, conta o maestro, explicando que também era uma prática adotada no batalhão no qual que trabalhou durante anos. 206 Atualmente é a forma mais utilizada pelas bandas da região pelo fato de ser empregado este mesmo toque em todos os Encontros de Bandas que já frequentei, desde meu ingresso na Corporação, em 1997. Nestes encontros, todas as bandas tocam juntas alguns dobrados, sem nunca terem ensaiado, ou seja, o símbolo não foi tratado entre os músicos previamente. 141 Traçando um trocadilho com a forma geral do dobrado, onde o sinal de Aviso antecede o início efetivo da música, entraremos agora em detalhes mais específicos do gênero musical, correlacionado-os aos dobrados do acervo da Corporação e sua forma de utilização. Tendo em mente a importância do dobrado dentro do repertório e da prática musical do grupo in voga, esta sessão pretende apresentar características, simbolismos e reflexões, que fazem dele uma ferramenta forte para estabelecer o elo entre o presente e o passado musical da Corporação Musical Cachoeira Grande, mantendo a tradicionalidade e memória afetiva através da manutenção da banda civil. Apresento duas hipóteses principais acerca da justificativa para o nome “Dobrado”: ROCHA (2007), COSTA (2011) e CHAGAS (2015) acreditam que dobrado se refere à velocidade de marcha das tropas, remetendo às músicas militares europeias: “pasodoble ou marcha redobrada para os espanhóis; pas-redoublé para os franceses ou passo doppio para os italianos. Pasodoble é uma referência ao passo acelerado da infantaria”. (COSTA, 2011:258) Segundo o GROVE (1994), o que os distingue “é o fato de que no dobrado há dobramento de instrumentos, ou desdobramentos das partes instrumentais, o que justificaria o nome” (SOARES, 2013 apud GROVE, 1994:271) Sobre este último aspecto - tessitura - CHAGAS (2015) destaca a existência de três extratos melódicos: melodia principal, contraponto e acompanhamento. “É comum que a melodia passeie pelo nipe dos instrumentos das famílias das madeiras (flauta, clarinete, saxofones) e metais (trompete, trombone, bombardino). O contraponto é a marca registrada do gênero e pelo qual muitos músicos mostram as suas habilidades musicais, o instrumento predominante nesta função é o bombardino. Já o acompanhamento, ou “marcação”, é realizado prioritariamente por tuba e sax horn, acrescido dos instrumentos do nipe de percussão, sendo possível observar também alguns trechos em que outros instrumentos assumem esta função”. CHAGAS (2015:96) Dentre os dobrados existentes no repertório da banda, os mais atuais geralmente trabalham tal tessitura com linguagens menos formais nesta questão, sem tanta fidelidade aos três extratos. Apesar disto, não fogem do aspecto da forma que lhe é 142 peculiar e sua maioria está escrita sob os compassos 2/4 ou 6/8. Ainda sobre a questão das fórmulas de compasso utilizadas, ainda seria possível encontrar, com menos frequência, dobrados que utilizam a fórmula 2/2. CHAGAS (2015:95) Sua forma geralmente é fixa, inclusive aqueles compostos por membros da banda, seguem a sequência: INTRODUÇÃO – Tema A – Tema B – Tema A – Ponte – TRIO Levando em consideração a maioria dos dobrados do acervo, temos as características gerais dentro de cada sessão acima: SESSÃO PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS INTRODUÇÃO A anacruse é bastante utilizada. Nestes casos, o Aviso é ainda mais importante para que o grupo entre junto, quando a banda toca em movimento. Sua dinâmica é forte, ou com símbolos de crescendo e decrescendo. TEMA A Ainda na tonalidade da introdução. Alguns apresentam o tema em piano, como forma de contraste com a introdução, outros, deixam o tutti que ocorre na sessão inicial, direcionando o trecho para execução em determinados naipes. TEMA B Contrasta com A. Os dobrados utilizam marcações e caráter diferentes do primeiro tema e algumas vezes remetem à introdução. Não há modulação. PONTE Pequena ponte, com preparação harmônica para modulação que ocorre nos trios. Neste trecho os naipes geralmente dialogam, fazendo células rítmicas de pergunta e resposta. Sua dinâmica é forte. 143 TRIO Coda final. Modula para a subdominante ou dominante, composta por duas grandes frases, iniciando piano com crescendo ou chegando à um forte súbito, para o grand finale. Após o trio, alguns dobrados indicam a repetição dos temas A e B, marcando o fim no meio do dobrado. CHAGAS (2015:95) também cita esta forma de finalização do dobrado em seu trabalho. Na Corporação Musical Cachoeira Grande, este tipo de ferramenta composicional acontece com pouca frequência. TABELA 7- Aspectos gerais sobre a forma dos dobrados FAGUNDES (2010:69) conta que o campo harmônico dos dobrados “ficam na tonalidade maior, modulando apenas na parte C onde a tonalidade modula para o tom da subdominante”. Na banda em questão, dobrados em tons menores, modulando para maiores ao final, são bastante frequentes, como por exemplo: 182 (Cento e oitenta e dois) e Presidente Luiz Alves (composição do Mestre Mário Pereira da Luz). No que tange o andamento dos dobrados, não há marcação rígida – metrônomo – para garantir a execução dentro de uma determinada velocidade, que segundo ROCHA (2007) geralmente se encontra “por volta dos 112 passos por minuto” (ROCHA, 2007: 10). Principalmente os músicos de percussão, aprenderam seguindo a tradição oral, pegando de ouvido as partes que os músicos mais antigos faziam, pois não há partes de percussão nos dobrados. Com isto, creio que o andamento do dobrado seja um somatório desta prática de anos, associado ao aprendizado informal das células rítmicas – citei a percussão pelo fato de serem responsáveis pela cadência inicial quando há o sinal de Aviso207. Desde o início das atividades musicais da Corporação Musical Cachoeira Grande, os dobrados estiveram presentes no repertório da banda208 e em diversos momentos da vida sociocultural de Pedro Leopoldo. ISSA FILHO (2014) relata em seus livros sobre 207 Quando o dobrado é executado lento demais, os músicos costumam dizer que o dobrado estava caindo, pois dependendo de quão lento, a banda pode chegar a parar de tocar. 208 A partitura mais antiga do acervo (encontrada até o presente momento, quando o processo de catalogação ainda se encontra em andamento) é um dobrado chamado: Voz da Pátria (1891). Partitura manuscrita. 144 histórias e memórias da cidade, várias passagens da corporação onde o dobrado é citado como elemento da performance. Na citação mais antiga, constam memórias desde seu primeiro maestro, Seu Candu: “E a banda passando, tocando bonitos e alegres dobrados e saudosas músicas de serestas... tudo luzes, sonhos, claridades... E a presença viça deste vale quando ele ainda tinha poucos moradores... E o povo todo correndo pra ver a banda passar, regida por Seu Candu, tocando alegres dobrados”. ISSA FILHO (2014:11) Apesar de toda sua relevância e de ser “o gênero preferido e mais profundamente identificado com o som das bandas [...] vinculado às festas cívicas e patrióticas, sendo a sua presença marcante no repertório das bandas 209 ”, inclusive da Corporação em questão, a modernização do repertório das bandas, algumas vezes revela um descuido com relação à manutenção deste gênero e de todas as memórias e significados afetivos que os dobrados trazem consigo. Em entrevista, o maestro João Evangelista de Paula, relata um episódio ocorrido no encontro de bandas em Belo Horizonte no ano de 2010. Segundo ele, todas as bandas estavam tocando música popular e os ouvintes mais velhos circulavam a praça da Liberdade, procurando alguma banda que tocasse dobrado. Um senhor que assistia, foi até o maestro pedindo que o mesmo parasse a programação que havia sido feita e regesse um dobrado: “Maestro, oito bandas e não vi nenhum dobrado. O Senhor toca um dobrado para mim?”. Neste período o ex-maestro não estava mais à frente da Corporação, mas naquela situação era homenageado pelo grupo. A partir de então, o descontentamento do público que acompanhou a banda desde os anos iniciais, durante as apresentações da banda, começou a ser uma tangente nas perspectivas musicais do grupo. Por outro lado, as transformações sociais começavam a delinear a necessidade de inovar, para atender também ao público e aos músicos mais jovens. SARTORI (2012) pontua sobre o impacto das relações sociais nas manifestações culturais, por ele tratado com a utilização do termo folclore, mas que poderia ser transportado para a realidade das bandas civis, sobretudo da Corporação em questão: “O folclore seria assim parte de um processo cultural homogêneo, resultado de uma tradição única e totalizante, sem tensões internas nem contradições decorrentes do seu confronto com outras experiências culturais. Equivaleria a desvinculá-lo de uma tradição situada no tempo e no espaço, esquecendo que, como qualquer fenômeno social, não pode deixar de entrar em permanente confronto com outras práticas culturais, no seu processo de atualização e de ampliação do fundo arcaico que dá vida e perenidade ao universo simbólico da sua memória. 209 (COSTA, 2011: 258). 145 Esquecendo que, por mais localizada que esteja uma comunidade, nela se repercutem sempre os ecos de outras culturas e de outras experiências de vida”. (SARTORI, 2012: 34) Tais forças divergentes, entre a necessidade da manutenção da tradição performática e a reinvenção da banda para angariar novos adeptos e motivar os músicos, que, naquele período, eram, em sua grande maioria, jovens, fizeram com que a diretoria e os músicos deliberassem a respeito da criação de um novo grupo dentro da Corporação Musical Cachoeira Grande. Na sessão seguinte, explicarei como os sentidos foram negociados e cada passo necessário para a criação do novo grupo. Cabe aqui dizer que a principal ferramenta para manutenção da banda civil, além de manter sua agenda de atividades normalmente, tem sido a preservação e aprendizado de novos dobrados. Segundo Markus Arthur, tubista da orquestra e da banda civil, o dobrado é o “principal gênero que caracteriza a banda de música”. Um exemplo claro de sua importância dentro do grupo, mesmo em outros períodos da história do grupo, pode ser observado no gráfico 2 210 , onde ilustra os cinco principais gêneros das músicas do acervo da banda. Ainda sobre a relação entre os dobrados, a prática musical associada a eles e a manutenção das características da banda civil, ainda temos a memória afetiva da sociedade local e o significado inerente que a prática carrega consigo, quando as pessoas que acompanham a banda reconhecem os dobrados como uma das formas principais de preservação da tradição performática. É unânime na fala dos entrevistados, sejam eles músicos ou não, que o dobrado é a principal associação ligada ao termo “banda”. FAGUNDES (2010) ilustra tal questão em seu trabalho, quando o maestro da banda de Betim – banda que ao fim do processo de reinvenção se transformou em banda sinfônica – conta sobre a nova prática musical e a resistência do público em aceitar as mudanças implantadas: “Segundo o maestro, os únicos desfiles que a banda ainda participa são o de 7 de setembro, o Encontro de Bandas ou quando a prefeitura solicita, mas quando tem que marchar até o local, faz o máximo para evitar. Propõe apresentações paradas para que o público ouvinte possa apreciar a música e observar as performances dos músicos da banda, pois esta é a nova visão que o maestro pretende estabelecer, já que se a Banda tem a pretensão de se tornar sinfônica deverá passar por alterações na forma de suas apresentações, pois, as bandas sinfônicas têm o caráter de banda de concerto, isso pode trazer modificações e conflitos em relação à função social da Banda de Betim. Isso ocorre também em relação ao significado musical delineado sendo possível ter uma identificação musical positiva, quando tem a ver com os valores sociais do público em questão ou uma resposta negativa quando os valores sociais não são pertencentes ao público. Essas transformações nos significados inerentes e delineados podem causar rejeição ou ambigüidade 210 Vide capítulo 3. 146 por parte de um público que estabeleceu laços afetivos e de memória em relação à estética da banda civil e que não deseja as mudanças que estão ocorrendo com a Banda de Betim”. FAGUNDES (2010:131) A existência dos dois grupos dentro da Corporação Musical Cachoeira Grande tem sido uma tentativa de atender ao poder público, músicos – todos voluntários, por consequência devem estar sempre motivados a frequentar as atividades da banda e da orquestra - e aos espectadores, mantendo a identificação musical e afetiva com o grupo, mas criando novas possibilidades sonoras e performáticas. Encerro minhas colocações na presente sessão, expondo que ainda é cedo para afirmar que a tentativa de manutenção de alguns significados intrínsecos na performance da banda civil é de fato eficaz ou que a conservação dos dobrados dentro do repertório será suficiente para criar um elo de identificação da música – memória – afeto ao longo dos anos. 4.2. OS SONS DA ORQUESTRA : NOVAS EXPERIÊNCIAS MUSICAIS “(...) A banda de música, como grupo musical, demonstra ser bastante versátil e não comporta somente uma denominação, mas deve ser vista como um grupo que pode estar na interseção de pretensas definições que limitam, separam, podendo estar localizada numa zona de fronteira, não porque é inferior a alguma definição, mas por ser essa sua característica e identidade.” (MARTINS, 2013:6) A Orquestra Cachoeira Grande, conforme narrado acima, é uma busca por novas linguagens e formas de atuação que diversifiquem aquelas que vêm sendo desenvolvidas ao longo dos anos pela banda civil: uma tentativa de reinventar a performance, atendendo a novos interesses, sem descaracterizar o grupo já existente. O processo de reinvenção das manifestações culturais tem sido uma constante nas pesquisas acadêmicas no que tange as opções de ressignificação, reinvenção, bem como as possíveis consequências ou descaracterizações de gênero. A ideia inicial, conforme já descrito, partiu de uma demanda dos próprios músicos. Na ocasião, era maestrina da banda civil, e durante uma reunião com a diretoria, fui convidada a fundar este novo grupo, pela facilidade em conseguir músicos de cordas, uma vez que lecionava percepção musical em um teatro de Belo Horizonte e a cidade não possuía cursos de cordas de orquestra. Confesso que, naquela época, tínhamos consciência da importância da manutenção de traços e vínculos fortes com a 147 banda civil e de todas as consequências que um possível desenvolvimento acelerado da orquestra poderia trazer à banda civil: tínhamos que ser cautelosos em manter as atividades da banda normalmente, pois um descuido de nossa parte podia enterrar a banda, conta Markus Arthur. Por outro lado, a criação de um novo grupo era considerada a alternativa mais prudente por todos que estavam envolvidos com as atividades da banda, uma vez que não alteraria as atividades que a banda já vinha desenvolvendo, além de ser uma aposta para aumentar o interesse de novos músicos. “Como nenhuma cultura é estática, é louvável considerar que as bandas vêm passando por constantes transformações, incluindo transformações no âmbito da transmissão do saber, talvez numa busca por modelos que sejam mais atrativos diante da sociedade e que possam despertar cada vez mais o interesse das pessoas”. (CHAGAS e LUCAS, 2014:5). Para facilitar a compreensão de todo contexto, voltaremos ao concerto do centenário da Corporação211, em 2012, realizado pela banda – que ainda era civil – na Igreja Matriz. Tal evento 212 foi dividido em duas partes: a primeira composta pelo repertório característico deste grupo, contando com a participação de ex-músicos e exmaestros para celebrarem tal data, além de dobrados compostos para a banda. “Foi uma noite linda, fiquei muito emocionado com as homenagens”, conta o maestro João Evangelista, que ouviu o dobrado que leva seu nome e recebeu uma menção honrosa pelos trabalhos prestados frente ao grupo. A segunda parte do concerto contou com a inovação do repertório, preparado especialmente para este dia. Conterrâneos da banda e ex-membros foram convidados para um solo nesta parte: o cantor Petrônio Duarte, o saxofonista Ivan Egídio, o trompetista Claudiomarcus Serafim 213 e o Coral Luiz Gonzaga. Os músicos trajavam roupa de gala e ao invés do uniforme, foi colocada ao lado da banda uma faixa com a logo do grupo. Após este evento, a banda continuava a atender festas santas, encontros de bandas, festa de congado, missas e ainda planejava seu segundo concerto - o “Brasileiríssimo” – uma vez que a apresentação anterior havia sido bastante prestigiada. Em maio de 2013, vários vocalistas de grupos locais foram convidados para cantar com a banda músicas da MPB, escolhida pelos próprios cantores e arranjadas exclusivamente 211 Acredito que este evento aumentou o interesse sobre as possibilidades de reinvenção para uma nova prática musical. Outros eventos em formato de concerto, mas com menores proporções, já haviam acontecido sob a regência de Adalberto Barbosa. 212 Matéria sobre o Concerto disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ctkvW_Qk5YE acessado em 17 de novembro de 2015) 213 Todos professores da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais e os dois últimos, ex-membros da Corporação Musical Cachoeira Grande. 148 para tal concerto. Nesta ocasião, 1.500 pessoas, segundo a prefeitura, foram para a praça assistir ao concerto e vários interessados em ingressar a banda procuraram a diretoria para saber como as aulas de música funcionavam. A agenda de apresentações da Corporação começou a ficar exaustiva, tanto para os músicos quanto para mim - que dirigia o grupo em todas as apresentações e compromissos - surgindo assim uma divergência de interesses, pois o grupo queria manter apresentações tradicionais, mas também estavam animados com a nova vertente que atraia público e novos alunos: “o Brasileiríssimo foi demais, nunca tinha visto tanta gente ir pra praça ver a banda tocar”, conta José Ulisses. Com base nas questões já colocadas, em 2013, decidimos separar a banda civil do grupo que executava o repertório popular e fazia concertos - a Orquestra Cachoeira Grande. Foi acordado entre mim, os músicos e os diretores que cada grupo teria um maestro, um repertório e atenderia às demandas e festividades diferentes, mantendo o cuidado diário para que o grupo centenário não fosse abandonado mas desenvolvendo outras formas musicais. Sobre todas algumas destas questões, Misael Elias, diretor social da Corporação nesta época, reflete: “O dobrado é sem dúvida o gênero predominante ao longo dos anos. As composições dos músicos são neste gênero. Acredito que este modelo musical sempre será fará referência às bandas civis, mas ao longo dos anos o grupo demandava algo mais “moderno”, principalmente os músicos jovens, ficando ainda mais óbvia necessidade de colocar em prática o sonho de ter uma orquestra. Acredito que as transformações sociais impactam em tudo que está relacionado ao ser humano e sua vivência em grupos. Como um cenário musical tão diversificado há uma tendência a sempre buscarmos o novo. Contudo o antigo deve ser preservado. Portanto acredito que a orquestra veio atender este anseio pelo novo, pois representa criar e moldar padrões duros e minimamente organizados. Prova do que eu digo foi sua rápida adesão pelos músicos jovens e ao mesmo tempo a veloz paixão pelo qual o público sente por este grupo. Entretanto reafirmo a importância da banda civil e o desafio que temos em preservar sua história e suas características”. A orquestra iniciou seus ensaios em agosto e 2013, sempre voltados para apresentações específicas, produzidas a convite da Prefeitura, de outras instituições ou propostas pela própria corporação, quase sempre com um repertório inédito. Sua estreia aconteceu em dezembro de 2013, na igreja de São Judas Tadeu, com a tema “Trilha Sonora de Filmes” e contou com cerca de 900 pessoas, de acordo com os jornais locais. Durante o concerto, foi anunciada a abertura de vagas para Escola de Música da Corporação, para o ano de 2014, que no dia seguinte recebeu mais de 100 inscrições. Por acompanhar o processo da escola de música da corporação por anos, sabíamos que cerca de 10% dos alunos concluiriam o processo e chegariam a tocar nos grupos. Hoje, 149 a orquestra e banda possuem apenas cinco dos músicos que se inscreveram ou procuraram a Corporação naquele momento, posterior à estreia. Em maio de 2014, o grupo vocal “Tenores in Concert”, formado pelo naipe de tenores do Coro Lírico do Palácio das Artes, em BH214, convidou a orquestra para um concerto em homenagem ao dia das mães, executando grandes clássicos e árias, voltadas para o repertório característico deste tipo de voz. Interessante observar como os mais jovens estavam, a princípio, resistentes a esse repertório e associando-o ao repertório que era feito antigamente pela banda civil, por ser composto de boleros ou músicas lentas: o repertório sempre foi algo que pesa na motivação dos músicos. O concerto direcionou as atenções locais para a Corporação fazendo com que o poder público aumentasse os convites para o grupo, além do auxílio financeiro que já era dado. Vale frisar aqui, que a Cachoeira Grande – orquestra, banda e escola de música não possui apoio de empresas privadas, sendo mantida pelos subsídios da prefeitura. Em agosto deste mesmo ano, o evento “Pop Sinfônica” contou novamente com a participação de cantores convidados, e apresentou os principais sucessos do rock e do pop internacional, estreitando as relações com um público jovem. Por outro lado, o público mais antigo, não agradou totalmente deste show: uma senhora que sempre nos acompanha, Dona Glorinha, foi ao concerto na praça, pois nunca havia perdido uma apresentação da orquestra e sempre acompanhava a banda civil nas procissões e retretas. Ao final, ela me procurou atrás do palco e disse: “desta vez vocês só escolheram coisas barulhentas e em inglês. Não entendi nada da letra das músicas. Mas acho que sou minoria, tava todo mundo atrás de mim cantando junto como se fosse um show de banda mesmo215”. Narro este episódio para ilustrar que, por mais que a reinvenção traga frutos, existem aqueles que não concordam com um processo brusco ou que a nova formação não lhes remeta a nenhum dos significados e laços afetivos que a banda civil traz consigo. SARTORI (2012) explica que é comum que as bandas de música, vão aos poucos se transformando, “sempre acompanhando e se adequando às mudanças sofridas pela sociedade, principalmente nos grandes centros urbanos com alta densidade populacional. Isso provoca alterações no modo 214 Matérias sobre o evento disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=wQn3KcJpzmw e https://www.youtube.com/watch?v=srDgcKzA7-4 (Acessados dia 17 de novembro de 2014). 215 Uma situação no mínimo engraçada, após este concerto. Quando marcamos o concerto seguinte, ela ligou na casa dos meus pais para saber se o repertório seria “barulhento” de novo. 150 de atuação das bandas e no tipo de música que apresentam, o que demonstra a sua disposição para incorporar novos hábitos e costumes, em resposta às expectativas do seu público. Desta forma, a banda segue ocupando diferentes espaços para suas performances transcendendo os limites de praças e coretos, buscando se aproximar do público”. SARTORI (2012:2) O concerto seguinte, um ano após sua estreia (em 2014), foi novamente com a temática de “Tema de filmes”, desta vez com a participação de uma companhia de ballet da cidade, no Lago dos Cisnes (Tchaikovsky), trilha do filme Cisne Negro e de bailarinos de forró na trilha do filme nacional “O Auto da Compadecida 216 ”. Esta liberdade de formato dos concertos é uma tentativa de formar novos públicos e agregar significados à orquestra, que vem construindo diariamente significados e valores afetivos naqueles que a acompanha. Outros concertos foram realizados, mantendo os valores que foram estabelecidos por aqueles que estiveram junto a Orquestra durante sua formação. Sobre as questões de funcionamento dos grupos, os ensaios se realizam em dias distintos e a agenda anual é preparada de forma que nenhum grupo seja prejudicado, uma vez que os instrumentistas de sopro e percussão são os mesmos da banda civil e poderiam ficar novamente sobrecarregados com tantas atividades: Local de ensaio BANDA CIVIL Sede da Corporação ORQUESTRA Sede da Corporação Dia de ensaio Sábado – 14:00 Sexta – 17:00 Duração do ensaio 2 horas 3 horas Maestro João Paulo Pereira Ana Carolina Malaquias Repertório Dobrados, valsas, tema de Erudito, música popular. filmes, música popular Apresentações sempre temáticas. Do arquivo da Corporação Arranjos Do músico Marcelo Minal e da maestrina Locais de apresentação Procissão, retretas, desfiles. Concertos e shows TABELA 8- Sobre o funcionamento da banda civil e da orquestra 216 Além de pianista, outros cantores e instrumentistas solistas. 151 Os dois grupos possuem diferenças estéticas e contextuais, uma vez que atuam em diferentes realidades sonoras e socioculturais, delimitados pelos regentes que estão à frente de cada organização. Aprofundando na relação “banda civil x orquestra”, inicialmente, a principal preocupação era a aceitação do público e da sociedade local. Atualmente, a predileção de alguns músicos pela orquestra - por causa de seu repertório - tem sido uma discussão recorrente entre membros da diretoria e os próprios componentes, conforme apontado por Kéula Carolina: “Depois que a orquestra foi criada, quase ninguém gosta tanto do repertório da banda civil, pois o novo grupo exige de nós muito mais e é bem mais difícil. Isso nos faz querer ir a todos os ensaios, pois não podemos perder o que será passado”. Markus Arthur, tubista dos dois grupos conta que “alguns músicos depois da criação da orquestra tiveram uma conduta que, a meu ver, um tanto quanto errada pois disseram que não voltariam para a banda mais pois como já estão em um nível mais “elevado” não iam mais voltar”. Rayssa Rodrigues, trompetista dos dois grupos, diz que “o povo às vezes têm preguiça de ir aos ensaios da banda”. Mais uma vez, Misael Elias, que participou ativamente e deliberou nas reuniões sobre o processo de reinvenção da banda como diretor social, e se encontra presente no quadro de diretores até o momento, delibera: “Percebi mudanças muito positivas à medida que o grupo foi crescendo, mas percebo também que existe muito interesse das pessoas com relação a orquestra e pouco em relação à banda civil. Até mesmo entre os músicos há uma tensão entre os grupos, visto que a banda civil contém os músicos mais velhos e a orquestra os mais jovens. Lidar com isso é um grande desafio”. Tais colocações levantam um questionamento: não seria melhor ter elaborado uma “reinvenção da tradição” através de uma visão êmica, através da transformação do repertório que lhe é característico, mas apresentando novas facetas e mais dificuldade para prender a atenção dos músicos, principalmente dos jovens que são grande maioria na Corporação em questão? Ou tal mudança seria insuficiente para atender todas às perspectivas dos músicos e do público, para que não nos tornássemos um grupo antiquado ou defasado? Esta maior identificação dos jovens com a Orquestra, poderia ser justificado pelo repertório da mesma, quando ocorre assimilação de gêneros e linguagens já vivenciadas por eles dentro de sua realidade. SARTORI (2012) acrescenta que os jovens “passam a 152 compartilhar com os mais antigos, provocando lentas, porém inexoráveis, transformações no formato que se considerava tradicional, promovendo uma constante retradicionalizacão da banda de música”. (SARTORI, 2012:4) MERGULHÃO (2005) defende que as transformações e processos de reinvenção dentro das tradições, necessitam de uma coerência com o passado para que a mesma se estabeleça ao longo dos anos. Segundo a autora, é preciso estabelecer uma relação, um elo com o passado histórico, para que os indivíduos desta sociedade sejam capazes de se identificar com essa construção, para que ela se sustente, dê sentido ao grupo, pertença a ele. (...) Assim como a memória só é capaz de se firmar onde haja suporte, de maneira a se perpetuar, ela precisa, além do quadro histórico consolidado, de elementos que façam com que esta sociedade mantenha constante construção da memória num espaço delimitado. (MERGULHÃO, 2005:32) No cotidiano da corporação, percebemos que todas as conquistas atuais em termos de patrocínio e reconhecimento da sociedade advêm do atendimento às demandas que são trazidas à Corporação - um exemplo interessante é o fato de que esta mesma Corporação fez um concerto de rock, com o grupo da Orquestra, duas semanas antes do desfile de 7 de Setembro, realizado pela banda civil. Temos também como fator relevante, a sobrevivência e adaptação do grupo aos mais diversos cenários culturais e sociais que a cidade já viveu: “acho que a maior característica deste tempo é a formação de um novo grupo – a orquestra, e a amplitude de visibilidade que ela deu ao grupo. Nunca vi um momento em que tantas pessoas se interessassem em ser músico como o que estamos vivendo agora”. (Misael Elias) 153 FIGURA 26 - Algumas reportagens da imprensa local sobre os eventos da banda civil e da orquestra da corporação. (2013 2014) As decisões tomadas naquele momento foram uma aposta, e ainda é cedo para avaliar a eficácia das mesmas, pois a existência da orquestra, desde o ano de 2013, corresponde a uma pequena parcela dentro de toda história que a Corporação traz consigo durante mais de um século. A resposta com relação a efetividade das escolhas e ferramentas utilizadas em todo processo de reinvenção só acontecerá nos próximos anos, caso os dois grupos se mantenham ativos e representativos dentro do cenário cultural da cidade de Pedro Leopoldo. Apesar das problemáticas aqui expostas e da incerteza já reafirmada sobre a garantia de que tal reinvenção foi realizada de forma correta, observamos que a Corporação Musical Cachoeira Grande vem cada vez mais gerando alunos e público cativo, e tem sido cada vez maior o interesse da sociedade nos assuntos relativos ao cenário musical desenvolvido pelo grupo. Considerando “as bandas, tais como as conhecemos hoje, como o resultado de longos processos de transformação, que são contínuos e evidentes217”, somos levados a esperar que seja benéfica para os músicos e 217 (CHAGAS, 2015:23) 154 para a sociedade que tal reinvenção tenha sido feita, respeitando os limites e principalmente valores da Orquestra e da Banda Civil. 155 CONSIDERAÇÕES FINAIS O itinerário de nossa pesquisa propõe reflexão sobre aspectos que tangenciam a prática musical e o percurso histórico da Corporação Musical Cachoeira Grande, de onde observamos as influências que geriram as escolhas em todos os momentos do grupo, nos mais diferentes efetivos – uniformes, repertório, instrumentação, formação, performance em movimento, valores, dentre outros -, além das negociações existentes em torno do fazer musical. Dado que mantinha especial interesse sobre os aspectos sócio-histórico-culturais da Corporação Musical Cachoeira Grande, tomei deles o tema da presente pesquisa. Mas a complexidade da documentação coligida, a dimensão do acervo fotográfico, a literatura informal e o rico relato dos entrevistados, me conduziram a um escopo mais amplificado, que desaguava na própria construção do percurso histórico-musical do grupo. Assim, nos debruçamos sobre a organização de todo acervo da banda e - como suporte e fundamentação - na leitura de obras temáticas. Assim se apresentou também a imprescindibilidade do estudo das partituras, como ferramenta temporal a responder e delinear percursos, períodos, influências, trabalhos inéditos, arranjos, transcrições e aspectos organológicos. Os registros imagéticos vinham sendo organizados e recolhidos com o objetivo de ampliar o acervo da banda. Até o momento da qualificação, as imagens seriam introduzidas na pesquisa a título de ilustração dos contextos ou personagens citados a cada sessão, com submissão a breve e superficial análise, no entanto, o estudo aprofundado das fotografias se apresentou como excelente conteúdo para aprofundamento e enriquecimento do trabalho, facilitando o delineamento das posturas corporais, utilização organológicas, relação musical com o contexto. A análise das fotos funcionou como recorte de situações específicas e épocas, possibilitando ainda o detalhamento factual vislumbrado, algumas vezes olvidados pela tradição oral. A sessão de análise feita na presente pesquisa demonstra o enriquecimento desta prática ao preservar informações valiosas que subsidiaram o escopo da pesquisa, além de termos ampliado o acervo, chegando a cerca de 200 fotografias digitalizadas, fruto da pesquisa de campo e da contribuição de diversas pessoas, conforme narrado anteriormente. A reflexão e discussão acerca dos termos e conceitos que delineiam a prática representam fonte de grande conhecimento, podendo ser compreendidos e comparados através da leitura de trabalhos sobre bandas. Outras questões ainda podem ser refletidas 156 com mais profundidade neste âmbito: o fazer musical dos grupos com a mesma formação, seus problemas e soluções, contribuições, aprendizado musical, paradigmas estético-sonoros, dentre outros. Apesar disso, conforme dito anteriormente e considerando a gama de possibilidades investigativas, trabalhos acadêmicos nesta área ainda são pouco numerosos: o contato com os trabalhos mais recentes sobre bandas, principalmente os apresentados em encontros e congressos, mostra o quanto a disciplina ainda é pouco explorada nas abordagens com este tipo de grupo. (CHAGAS, 2015:119) FAGUNDES (2010) atribui este fato à associação da banda civil especificidades comunitárias, ocupando um espaço socialmente e musicalmente intermediário, não sendo reconhecida “por parte dos estudiosos da música como uma área de interesse, fator que colabora para que este pouco seja visto enquanto um campo de estudos a partir de suas peculiaridades218”. BINDER (2006), LUCAS (2008), CHAGAS (2015) e REILY (2008) relataram em seus trabalhos sobre tal carência em estudos sobre bandas, convergindo para o fato de que as pesquisas nesta área auxiliariam na preservação da memória das corporações musicais. O caso da Cachoeira Grande comprova tal posicionamento, uma vez que não havia pesquisa ou documento que traçasse o percurso histórico do grupo. Embora compreendendo que nem todas as lacunas foram preenchidas com a presente pesquisa, acredito que a ampliação do acervo, a organização da partitura e o estudo realizado sejam realmente ferramentas para auxiliar na preservação da história da banda. As reflexões propostas por textos das áreas de Etnomusicologia, Musicologia, Antropologia, dentre outros, aqui utilizados, deram suporte para a construção de escolhas metodológicas, alertando-nos para o aprofundamento de uma narrativa que desnaturalize o fato musical como um dado universal e o compreenda dentro de um contexto político, social e ético. O diálogo e reflexão dos trabalhos entre tais disciplinas, especialmente os de Etnomusicologia, questionaram ainda minha condição de pesquisadora e integrante do grupo, demarcando limites de atuação e ampliando a consciência sobre a responsabilidade com o grupo pesquisado e as pessoas que dele fazem parte. 218 (FAGUNDES, 2010:16) 157 A proposição inicial de direcionar o trabalho para a construção do percurso histórico-musical da banda foi mantida, porém outros elementos ganharam importância dentro do discurso e ilustram forças que movem escolhas e entabulações a patrocinarem a manutenção das atividades da instituição até os dias atuais. Infere-se das entrevistas que a banda conta com importante representação, que extrapola o fazer musical: como as relações pessoais, a atuação no cenário cultural local e principalmente as questões pessoais de motivação, voluntariado e autoestima aparecem como delineadores de todo contexto que a banda atua. Tais elementos podem ser percebidos, por exemplo, na sessão que discutiu a definição de banda, deixando clara que a capacidade socializadora da banda sobrepõe às questões musicais. Outra questão divergente com relação ao discurso acadêmico x discurso dos músicos foi a respeito da utilização do termo furiosa enquanto sinônimo de banda. Dar voz aos músicos na pesquisa possibilita que aspectos como esse sejam identificados na prática do objeto de pesquisa, reforçando as particularidades que as bandas possuem entre si. Este conjunto de características identitárias e inerentes a cada grupo fazem com que a banda possa ser compreendida como “complexo banda”: uma soma de valores agregados e específicos ao fazer musical de cada grupo, tangenciando questões comportamentais, musicais e contextuais. As negociações e o domínio das instituições como o poder público, Igreja ou Estado, sobre as artes e os indivíduos que nela atuam, não deixaram de existir, são apenas mais discretos, velados, ou atuam em forma de signos dentro da prática, conforme vimos. Observados desde as relações primevas ao nascer da instituição, prolongando-se e imiscuindo-se nas relações que se seguiram, como facilmente se dessume mesmo das análises imagéticas trazidas, e mesmo no processo histórico atrelado ao poder de atuação dos regentes, de forma direta, como o desfile de Sesquicentenário da Independência, ou velada, como o uso do podium poderia sugerir. Os depoimentos coligidos reforçaram como os músicos veem o maestro, suas funções, que novamente, divergem daquelas estritamente musicais, quando o uso da palavra motivação foi quase unânime entre os entrevistados. Com a direção da prática musical, e sujeito às contingencias mencionadas, os maestros definiam “a manu militari” escolha de repertório, uniforme, disciplina, locais de atuação, valores trazidos pelo grupo e motivação: o sujeito transforma o meio, aos moldes do princípio que dita que o sujeito transforma o meio. 158 Destarte de todas as forças mencionadas, felizmente a tradição ainda é um valor que pesava e pesa nas decisões da instituição, reafirmadas através da atuação em eventos característicos por décadas: procissões, desfiles cívicos, v.g.. Estes eventos ainda ocupam o calendário do grupo e possui grande representatividade em todo contexto histórico da banda: em muitos períodos, as principais atuações do grupo foram em contextos como estes. Agregado a esta questão, o dobrado continua sendo o gênero mais representativo da banda e sua manutenção dentro do repertório foi uma das ferramentas encontradas para manter a questão da tradicionalidade na banda civil. Por outro lado, conforme relatado no Capítulo 4, a procura por inovação e novas linguagens musicais tem sido uma constante nas pesquisas sobre o tema, uma vez que as tradicionais bandas têm concorrido diretamente com diferentes formas de entretenimento, tecnologia, música de mídia e outros fatores que atraem a atenção dos jovens músicos, especialmente na banda em questão, conforme já foi dito. Várias formas de “modernização” dos grupos como forma atrativa têm sido discutidas em âmbito acadêmico: mudança de repertório, transformação em outros formatos (orquestra, banda sinfônica), novos contextos para apresentações, dentre outros. A criação da orquestra em busca de novas experiências dialoga com as soluções encontradas para manutenção das atividades nas bandas contemporâneas, extrapolando a constatação que havia feito observando as bandas próximas à cidade de Pedro Leopoldo. O diferencial é que há a preocupação com a manutenção da tradicionalidade da banda civil e os dois grupos atuam em direções opostas, mas buscando ser complementares. Analisando outras opções, vejo que há prós e contras em todas elas e não há como deliberar sobre uma forma efetiva de dialogar com a linguagem moderna buscada pelos jovens, mas sem descaracterizar os tradicionais grupos, pois precisamos considerar as particularidades que as bandas mantém entre si. Desde o início, a contrapartida da pesquisa para o grupo, foi uma das preocupações, principalmente pela abertura e receptividade dos músicos. Acredito que o processo de catalogação e organização do acervo tenha sido uma das principais contribuições no âmbito da funcionalidade do grupo, uma vez que, segundo os registros, a última catalogação do arquivo de partituras tinha sido realizada em 1976. Atualmente é possível consultar, a qualquer momento, documentos, prestações de contas, atas, livros de presença e partituras. As noções que os membros detêm sobre a história do grupo, bem como sua importância ao longo da história da cidade, foi outra contribuição 159 da pesquisa, relembrados por entrevistas e fotografias, agora disponíveis no acervo digital da banda, contando com contribuições de moradores locais, ex-músicos e pessoas ligadas ao grupo. Por fim, espero ter contribuído para a consciência individual de cada músico ampliando as noções de responsabilidade com a história que vem sendo construída diariamente. Em âmbito acadêmico, espero que a pesquisa ilustre a riqueza que a Corporação Musical Cachoeira Grande ainda tem para oferecer, nas mais diversas temáticas de pesquisa. Que as proposições aqui trazidas possam suscitar e contribuir para o entendimento acerca das práticas desenvolvidas pelas bandas, mesmo com as particularidades inerentes a cada grupo. Conforme visto em diferentes momentos do trabalho, a condição de maestrina/pesquisadora agregou valores ao processo de pesquisa, porém lançou desafios importantes. Todo processo que vem sendo desenvolvido nestes últimos dois anos, corroborou para que meu respeito pela corporação e sua história aumentasse, colocandome ainda mais próxima do grupo, como parte integrante da história nestes 18 anos de atuação. Finalizo trazendo um dos maiores aprendizados obtidos na pesquisa, quando, ao deparar-me com as lacunas que - mesmo após toda dedicação empenhada para desenvolver a presente pesquisa - não conseguiria preencher, ouvi calmamente o Sr. Geraldo Leão, após uma série de perguntas e fotos, sorrir e me dizer: “Em todas as histórias que conhecemos existem buracos, minha filha. Com a banda também é assim... Nem sempre você vai conseguir respostas pra todas as perguntas. E quando conseguir clarear um pouquinho as coisas, outras perguntas aparecerão. É um trabalho interminável, sei disso pelos anos no meu memorial...” Tal depoimento - carregado de sabedoria e conhecimento - foi um dos maiores legados que o presente trabalho deixará na minha vida, nos futuros estudos e pesquisas que pretendo realizar. 160 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Bandas ou “furiosas”: tradição, memória e a formação do músico popular em Goiânia - GO. In: MÚSICA EM CONTEXTO, Brasília, (4.). p. 43-56. 2010. ALMEIDA, Adjovanes Thadeu Silva de. Brasil e Portugal no sesquicentenário da independência brasileira (1972). In: IDENTIDADES - XIII ENCONTRO DE HISTÓRIA ANPUH-RIO, (8.).Rio de Janeiro. p. 1-7. 2008. ALMEIDA, José Robson Maia de. Tocando no repertório curricular: bandas de música e formação musical no Ceará. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, (17.). Anais... São Paulo: Universidade Estadual Paulista. p.1-4. 2008. ____________________________; MATOS, Elvis de Azevedo. 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