1 A MARCA DE TRANSITIVIDADE EM NOMES NA LÍNGUA SHANENAWA PANO Lincoln Almir Amarante Ribeiro1, 2; Gláucia Vieira Cândido 1, 3 1 Pesquisador do Grupo de Investigação Científica de Línguas Indígenas, GICLI 2 Professor aposentado do Departamento de Física, UFMG 3 Curso de Letras, Unidade Universitária de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas, UEG RESUMO: O presente artigo visa a descrever a forma como a língua Shanenawa da Família Pano marca na estrutura superficial a distinção entre o nome em função de sujeito de verbo transitivo e intransitivo e na função de objeto direto na oração. A descrição é feita por meio da comparação do Shanenawa com outras línguas da mesma família e com o apoio de regras que tratam do assunto em uma teoria sobre a forma gramatical do Proto-Pano. PALAVRAS-CHAVE: Línguas indígenas; língua Shanenawa; morfossintaxe. Introdução Neste artigo, descreveremos a forma como o Shanenawa, língua pertencente à Família Pano 1 , marca na estrutura superficial a distinção entre o nome em função de sujeito e o de objeto direto na oração. A ênfase, tal como procedeu Loos (1973), será dada à relação do Shanenawa com outras línguas da mesma família e às regras que tratam do assunto em uma teoria sobre a forma gramatical do Proto-Pano. Material e Métodos As línguas naturais costumam marcar, na estrutura superficial, as diferentes funções que os sintagmas nominais exercem na estrutura profunda. Existem vários modos de marcar essas funções dentre as quais a ordem seqüencial das palavras na sentença; o uso de afixos preposicionais ou posposicionais, de conjuntos de desinências, de traços suprasegmentais ou mesmo uma combinação de todos esses modos. Vejamos como isso ocorre no Shanenawa. 1 O Shanenawa é falado por cerca de 400 pessoas que habitam quatro aldeias localizadas à margem do rio Envira no município de Feijó no Estado do Acre, Brasil. Para mais informações ver Cândido (2004). 2 Resultados e Discussão Uma característica comum às línguas Pano é a de os nomes em função de sujeito de verbo transitivo apresentar, na estrutura superficial, formas fonológicas, chamadas por Loos (op. cit) de “longas”, enquanto os nomes em função de objeto direto apresentam-se com as chamadas “formas curtas”. No Shanenawa, essa marca de sujeito de verbo transitivo é ora a nasalização da vogal final da forma curta, como vemos em (1), ora o uso da forma longa com a vogal final nasalizada, como em (2), a seguir: (1) Runu) takaRa nak-a cobra galinha morder-PAS2 ‘A cobra mordeu a galinha.’ (2) takaRané) §öki galinha milho pi-a comer-PAS ‘A galinha comeu o milho.’ Por outro lado, os nomes em função de sujeito de verbo intransitivo, como nos exemplos (3-4), abaixo, e também aqueles na função de objeto direto, como nos dados em (12), apresentam-se em sua forma curta na estrutura superficial, sendo portanto não marcados. (3) Runu n-a cobra morrer-PAS ‘A cobra morreu.’ (4) takaRa waka- meRa pake-a galinha rio-LOC cair-pas ‘A galinha caiu no rio.’ Convém ressaltar que em algumas línguas Pano, como um dos dialetos do Amahuaca e do Cashibo, o sujeito de verbo intransitivo também leva uma marca diferente do sujeito de verbos transitivos. Parece- nos que em qualquer situação, a forma longa é constituída da curta fundida com um alomorfe do marcador de sujeito. A descrição do Shanenawa feita aqui está de acordo com uma característica geral das línguas Pano: consoantes nasais em fim de sílaba também final não costumam ser plenamente realizadas na estrutura superficial, sendo sua existência restrita à nasalização de vogais ou 2 Abreviaturas e símbolos usados neste artigo: ABS ‘absolutivo’, DECL ‘declarativo’, ERG ‘ergativo’, LOC ‘locativo’, O ‘objeto’, PAS ‘passado’, Poss ‘possessivo’, Reflex ‘reflexivo’, R ‘regra’, s ‘singular’, S ‘sujeito’, T ‘transformação’, V ‘verbo’; 1 ‘primeira pessoa’, 3 ‘terceira pessoa’; φ ‘morfema zero’, * ‘proto-forma’. 3 semivogais que as precedem. Assim, a nasalização das vogais é na verdade um resquício da marca de ergatividade {-n} supostamente presente no Proto-Pano, embora, em algumas línguas da família, como por exemplo o Chácobo, a nasalização tenha sido substituída por um acento principal na última sílaba ou, em outros casos, como no das línguas Matsés e Matis, a consoante nasal tenha se perdido completamente sendo mantida, porém, na estrutura superficial. Quanto à ordem das palavras na sentença, parece haver uma certa flexibilidade na estrutura superficial, sendo a língua preferencialmente de ordem SOV, mas com algumas ocorrências de OSV e SVO, como nos seguintes exemplos: (5) §öki milho takaRané) pi-a galinha comer-PAS-DECL ‘A galinha comeu o milho.’ (6) faköhã pi-a nami menino comer-pas carne ‘O menino comeu carne.’ Nos casos de sentenças com verbo transitivo, mesmo havendo a troca de posição na ordem dos constituintes, o nome em função de sujeito mantém a forma marcada. Nesse sentido, presume-se que a mudança de posição do sujeito ou do objeto em relação ao verbo tem como finalidade a ênfase ou a topicalização. Em termos comparativos, vimos que na maioria das línguas Pano a seqüência normal é aquela apresentada pelo Shanenawa, ou seja, com o verbo se posicionando em último lugar na sentença. Todavia, em cond ições de ênfase, também se permite a permutação da posição do sujeito. Somente no Chácobo essa disposição parece ser menos flexível. Na língua, o deslocamento do sujeito para a posição pós- verbal é obrigatório se o verbo apresenta aspecto não completo e, nesse caso, embora o verbo possa ser transitivo, o sujeito tem forma curta. Dentre as regras morfofonológicas detectadas na língua Shanenawa, podemos citar as seguintes: a) quando o nome é constituído por duas sílabas, ou seja, tem a estrutura CVCV, a forma absolutiva é obtida pela desnasalização da vogal final, como nos dados: (7) FORMA LONGA FORMA CURTA Runu) Runu juRã juRa b) Quando o nome é um trissílabo (forma longa) do tipo CVCVCV, há a perda da última sílaba e, em conseqüência, a vogal que assume a posição final da palavra passa a ser 4 nasalizada, mas isso somente se a consoante que a precede for também uma nasal, como vemos nos dados: (8) FORMA LONGA amanö) tötöpã FORMA CURTA amã tötö Uma exceção a essa regra fonológica ocorre no caso de nos substanbtivos trissílabos a terceira consoante for a fricativa glotal /h/: (9) FORMA LONGA FORMA CURTA faköha) awö)hã faköhu awö)hu c) Quando na forma longa o nome é um polissilábico do tipo CVCVCVCV, este perde tanto a vogal como a consoante final, exceto se esta não for uma fricativa alveolar /s/, pósalveolar /S/, retroflexa /§/ ou glotal /h/, pois, nesses casos, o polissílabo segue a regra anterior, como vemos nos exemplos: (10) FORMA LONGA takaRanö) §anö)jhã jawiSini) FORMA CURTA takaRa §anö)jhu jawiSi Conforme já dissemos, nas línguas Pano a marca de ergatividade é a nasal {-n}. Uma explicação diacrônica para essa constatação pelo menos para a língua Shanenawa pode ser dada com base no seguinte exemplo: no Proto-Pano, a forma trissilábica é *CVCVCV; no Shanenawa, através de uma evolução diacrônica, essa forma passa à CVCVCV1, em que V1 pode ser diferente de V. Quando o nome trissilábico está em função de sujeito de verbo transitivo, recebe a marca de transitividade {-n} realizando-se então como: CVCVCV1 -n na estrutura profunda. Aplicando-se as transformações obtidas por meio das regras morfofonológicas mencionadas anteriormente, o nome passa a ter na estrutura superficial a forma CVCVCv) em que a última vogal é nasalizada. 3 3 A respeito da constatação de que nas línguas Pano a marca de ergatividade é {-n}, vale mencionar o caso do Kaxarari que, diferentemente da maioria das línguas da família, marca o sujeito de verbo transitivo na estrutura superficial com o morfema {-l}. Contudo, ao nosso ver, essa diferença morfológica se restringe à estrutura superficial da língua, porque na estrutura profunda deve ocorrer mesmo a nasal também alveolar /n/ que, após a 5 As formas para os nomes em função de objeto direto, de sujeito de verbo intransitivo e também as formas de citação seguem as mesmas regras morfofonológicas. Assim, teríamos no Proto-Pano, por exemplo, a palavra *kamano que em Shanenawa tem como forma longa kamané e kamaný-n quando em função de sujeito de verbo transitivo na estrutura profunda. Contudo, usando-se as regras morfofonológicas, teremos: kamanéâ na forma ergativa e kamã na forma absolutiva. A propósito, comumente nas línguas Pano, e o Shanenawa não é exceção, a marca de ergatividade {-n} é homófona das marcas de posse, de locativo e de instrumental na estrutura superficial. Entretanto, as formas básicas (estrutura profunda) dos nomes nessas condições são diferentes de acordo com a função sintática exercida na sentença. No Shanenawa, vemos essa diferença no possessivo, pois quando o nome possuidor está na função de predicativo do sujeito, como em (11), é marcado pelo sufixo {-na}, mas, se funciona como adjunto restritivo do sujeito, têm a forma curta com a vogal final nasalizada, como em (12), a seguir: (11) pé§é §a|akapa éwé casa bonita épa-na 1s(Poss) pai-Poss ‘A casa bonita é de meu pai.’ éwé (12) pé§é casa(Possuído) 1s(Poss) épã §a|akapa pai (Poss) bonita ‘A casa do meu pai é bonita.’ Em grande parte das línguas Pano, na estrutura superficial o reflexivo é o resultado de uma regra transformacional que suprime um sintagma nominal na função de objeto direto sob condições de identidade referencial com o sujeito e coloca um marcador sufixal do reflexivo no verbo. Contudo, na língua Shanenawa a marca de reflexividade no verbo não existe e o nome em função de objeto é mantido com o acréscimo do sufixo {-fö}, como no exemplo: (13) anihu a-fi velho könö-a 3-Reflex pintar-Pas ‘O velho se pintou.’ De acordo com Loos (1973), as regras transformacionais para a realização de sentenças com reflexivos nos idiomas estudados por esse pesquisador são: T1 - marcar o aplicação de alguma regra morfofonológica da língua acaba sendo transformada na estrutura de superfície na lateral como nas demais línguas. 6 reflexivo; - T2 permutar o sujeito para posição pós-verbal; T3 - marcar o sujeito transitivo; T4 - permutar o sujeito por ênfase; T5 - aplicar as regras fonológicas do Proto-Pano. De acordo com nossa análise, as regras de transformação ordenadas que explicam a estrutura superficial para o Shanenawa são: R1 - permutar o sujeito para a posição pós-verbal (opcional); R2 - marcar o sujeito de verbo transitivo; R3 - permutar o sujeito para a posição final por ênfase; R4 - aplicar as regra morfofonológicas específicas expostas acima. Conclusões Neste artigo, foi descrita a forma como a língua Shanenawa da Família Pano marca na estrutura superficial a distinção entre o nome em função de sujeito de verbo transitivo e intransitivo e na função de objeto direto na oração. A descrição teve por base a comparação do Shanenawa com outras línguas da mesma família e a aplicação de regras que tratam do assunto em uma teoria sobre a forma gramatical do Proto-Pano. Os resultados mostraram que as regras transformacionais para a transitividade são as mesmas do Proto-Pano com exceção da reflexividade que é marcada no Shanenawa no objeto do referente e nas regras morfofonológicas que são muito semelhantes àquelas da língua Sharanahua, como mostrado em Loos (1973), que coloca o Shanenawa no grupo do Sharanawa como previsto por meios puramente lexicais (Amarante Ribeiro, 2005). Referências Bibliográficas AMARANTE RIBEIRO, Lincoln Almir. 2005. Classificação Interna das Línguas da Família Pano. Disponível em: paginas. http://paginas.terra.com.br/educacao/linguaspano. CÂNDIDO, Glá ucia Vieira. 2004. Descrição Morfossintática da Língua Shanenawa -Pano. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP. LOOS, Eugene E. 1973. La Senal de Transitividad del Substantivo em los Idiomas Pano. In: LOOS, Eugene E (ed.). Estudios Pano I. Série Lingüística Peruana 10. Yarinacocha: ILV. p. 133-184.