O processo de estigmatização do adolescente

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O processo de estigmatização do adolescente infrator através das
representações sociais elaboradas por agentes policiais
Rodrigo Bueno Gusso
Delegado da Polícia Civil no Estado de Santa Catarina. Doutorando em Sociologia (UFPR). Mestre em Ciências Jurídicas (UNIVALI). Especialista
em Segurança Pública (PUC-RS). Especialista em Direito (EMAP-PR). Professor titular da Academia da Polícia Civil - Sc. Professor de cursos de
graduação, pós-graduação e formação de policiais civis, militares, guardas municipais e agentes penitenciários.
SUMÁRIO:; 1 – A "moderna" adolescência: (poucos) ritos e (vários) mitos. 2- As (novo-velhas) teorias sociais sobre o controle da
violência juvenil. 3- A criação do estigma social através do processo de etiquetamento criminal juvenil. 4 – Os primeiros passos..., o primeiro
castigo e a primeira prisão. 5 – Conclusão.
RESUMO: O presente trabalho tem por objeto ilustrar o fenômeno social da criação de estigmas formulados por meio das
representações policiais em relação à violência cometida por adolescentes infratores e como essas representações sociais sobre "adolescência" e
"violência" contribuem e interagem na construção social da delinquência juvenil. Além de tentar possibilitar a construção de um olhar diferenciado
para a problemática da violência na adolescência, mediante a análise da esfera dos atores sociais (policiais), diretamente vinculados com a
seletividade e repressão dos adolescentes envolvidos em atos infracionais.
PALAVRAS-CHAVE: ADOLESCÊNCIA – VIOLÊNCIA – REPRESENTAÇÃO SOCIAL – ESTIGMA.
ABSTRACT: This study aims at illustrating the social phenomenon of the creation of stigmas formulated through police
representations regarding the issue of violence committed by young offenders, and how these social representations of "adolescence" and
"violence" contribute and interact with the social construction of juvenile delinquency. In addition to that, this study encourages a different view of
the problem of violence in adolescence, through the analysis of the group of social agents (police officers), closely connected to the selectiveness
and repression of teenagers involved in infractional acts.
KEYWORDS: ADOLESCENCE – VIOLENCE –SOCIAL REPRESENTATIONS– STIGMA.
1 – A "moderna" adolescência: (poucos) ritos e (vários) mitos.
O tema da delinquência juvenil consolida-se cada vez mais como um campo das reflexões da sociologia. Vivemos em uma época
em que as avalanches diárias de notícias vinculadas na mídia revelam (erroneamente ou não) a construção de um novo e temido ator social: o
"adolescente infrator". Tal conceito normatizado provém dos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), e é sobre essa
imagem de "desregrado", "instável", "violento", "colérico", "revoltado", "problemático ou passional", que refletimos sobre a adolescência; que
vivenciamos a transformação dessa etapa da vida humana em um (pseudo) perigo "potencial" para a própria vida humana.
Através desta normatização penal percebemos que a adolescência converteu-se por si só em uma ameaça social, como se a
própria essência da juventude, com os seus anseios e debates, antes representados como a época dourada de "mudar o mundo", é hoje tomada
por atitudes violentas contra a falaciosa "ordem social". Da juventude de sonho para o pesadelo da vida diária do adolescente "mal-humorado",
"perdido", "chato" e, principalmente, "perigoso".
Desse fato, acompanhamos um fenômeno social peculiar com o advento do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) em 1990.
Nele, a juventude ganhou um amplo e moderno sistema jurídico-legal de apoio e de amparo, dispondo sobre direitos e garantias que visam - pelo
menos segundo o discurso oficial: - "O bem maior de uma nação: seu futuro". Hoje, passados mais de 18 anos (ou a passagem à maturidade do
ECA), esse sistema amplo de proteção à infância e à adolescência enfrenta uma espécie de dilema: quando o futuro infelizmente passou a
representar uma espécie de temor social generalizado. Daí uma situação social dramática, pois se por um lado, experimentamos mais de uma
década de conquista na realização de direitos humanos para a juventude; por outro lado, vivenciamos uma nova situação social em que os direitos
da juventude são confundidos com privilégios seguidos pela conversão da juventude em um fator criminológico. Em suma, as duas versões
sempre ouvidas: primeiramente, nos corredores de delegacias de polícia; em seguida, ratificadas através dos processos judiciais juvenis; e claro,
todos esses procedimentos sem um eventual prejuízo de uma condenação social, instigada principalmente pela mídia.
A adolescência, da forma como hoje é tratada, converteu-se em uma imagem social violenta e às vezes criminosa. Imagens de
jovens autores de atos infracionais amotinados em casas de apoio representam a soma dos medos da sociedade contemporânea. Afinal, o jovem
por vezes é representado como alguém naturalmente irresponsável, por isso mata aula; naturalmente instável, por isso segue modismos;
naturalmente dado a rompantes, por isso agride professores e pais; naturalmente violento, por isso comete crimes; naturalmente instintivo, por isso
descontrolado sexualmente (daí o número crescente de gravidez na adolescência). Uma juventude injustamente estigmatizada por essa
abominável representação social, ou seja, um juventude que não tem amigos, mas um bando, uma gangue, uma turba; que não tem expressão
artística, mas picha muros; que não tem estilo, mas se vestem como delinquentes. Enfim, uma juventude odiosamente convertida em uma imagem
social negativa, problemática e propositadamente criminosa.
Diversos são os fatores conectados com a produção social dessa representação da juventude. Nessa linha, destacamos a
importância das reflexões sociológicas sobre o tema. A produção dos estereótipos sociais, a criação de estigmas, tudo isto está vinculado à fatores
econômicos, sociais, culturais, biológicos, psíquicos ou desejantes. Fatores produzidos por decisões de poder e de saber.
Diversos são também os atores sociais envolvidos na produção e reprodução desses estereótipos sociais. Mídia, família, amigos,
escola e até políticas públicas de governo são fatores que constroem certa imagem sobre a juventude. Mas não só, diante das demandas sociais
crescentes para uma resposta à criminalização da juventude, destacamos o papel social dos agentes policiais na construção da representação da
juventude criminosa, na imputabilidade de seus conceitos, por vezes seguidos em outras esferas sociais.
Em uma sociedade marcada pelo consumo e liquidez nas relações humanas, como apontado por Bauman,
[01]
as promessas de
satisfação de desejos de bens de consumo podem ser mais convidativas àquelas pessoas mais abertas a instância do "novo", da "insegurança".
Consumir ganha uma conotação necessária para a própria construção da representação do adolescente. Nessa linha, o tênis da moda diz mais
sobre a pessoa que seu nome ou sua família. Consumir é tão necessário para a construção da sua identidade social, que até a utilização de meios
ilegítimos torna-se perdoável ou aceito. Visando o imediatismo da satisfação de seu prazer, infringem-se as regras de um sistema de valores préestabelecidos. A aspiração imediata ao bem-estar, seguido de outras determinantes como o anseio à posse, propriedade, status, prestígio,
segurança e reconhecimento, quando não alcançados, desencadeiam um retraimento no sofrimento e frustração, possibilitando atos de
delinquência, algumas vezes acompanhada de agressividade.
2- As (novo-velhas) teorias sociais sobre o controle da violência juvenil.
Em sociologia compreende-se que nenhum comportamento humano é gratuito, ou seja, que toda atitude é fruto da busca da
satisfação de uma necessidade. A própria dinâmica da vida é uma manifestação disso.
[02]
Nessa linha, há um silogismo entre o ser e as
circunstâncias mundanas buscadas para proporcionar a satisfação do indivíduo. Uma interação entre o social e o indivíduo, definida por Bernard
Lahire: tanto maior quanto à pluralidade heterogênea dos agentes nas sociedades com forte diferenciação social. [03] Na maioria das vezes,
precedida ou pré-disposta antes mesmo do seu nascimento.
Daí uma possibilidade poderosa para a reflexão da adolescência. A adolescência, de forma geral, pode ser concebida mediante
uma necessidade imediata e urgente de satisfação de desejos, o que possibilitaria (ou facilitaria) a prática de delitos objetivando essa busca por
satisfação. Na tentativa de compreender a figura da adolescência, algumas teorias procuram esclarecer e delimitar o fenômeno da violência social
proporcionada pelo adolescente. Principalmente naqueles crimes (atos infracionais) considerados como graves, violentos, em que há a expressão
máxima da exacerbação dos conflitos interpessoais. [04]
Há teorias que partem da delimitação em dois níveis, o individual e o sociológico, com algumas subdivisões. Há ainda quem
defenda a miscigenação de inúmeras circunstâncias multifatoriais, que serviriam não só para a delinquência juvenil, mas também para qualquer
tipo de delinquência, independente de que forma ela se dá.
Dois fatores teóricos merecem destaque: o modelo biológico, em que o adolescente autor de ato infracional é percebido por meio
dos fatores endógenos do sujeito; e o modelo sociológico, em que o foco para a reflexão do adolescente infrator leva em consideração às
circunstâncias ambientais, ressaltando o elemento situacional da conduta, onde as relações humanas seriam analisadas em consideração ao
contexto em que se entretecem. [05]
Nessa linha, os fatores sociais são um aspecto fundamental para a criação da identidade do indivíduo e da sua conduta. Uma
conduta que não poderia ser refletida à distância das esferas de controle social e individual que circundam o indivíduo.
Segundo Reckless, tais esferas de controle podem ser pensadas a partir de sua teoria de contenção, isto é, por meio dos
mecanismos externos de controle produzidos pela sociedade, objetivando impedir o indivíduo a praticar uma conduta desviada.
Concomitantemente aos mecanismos externos (família, amigos, religião, escola, esporte, etc), a teoria de contenção também atuaria mediante
mecanismos internos (consciência, moral, ética, valores sociais, etc), proporcionando a criação e manutenção da pressão social e individual para
evitar a influência de fatores criminógenos sobre o indivíduo. Dessa forma, uma conduta criminal seria realizada quando tais mecanismos internos
e/ou externos de contenção falham, não evitando o impacto das forças criminógenas.
[06]
Nesse aspecto, as circunstâncias sociais proporcionadas pela sociedade e pelo Estado aparecem envolvidas de dois modos:
servem não só como instrumentos de contenção à conduta delitiva, mas também como aparelho de inclusão e manutenção social. Nada além do
quê a inserção do indivíduo nos limites socialmente pré-estabelecidos de acordo com o ideário do contrato social de Rousseau, em que a família,
como primeiro modelo de sociedade política, por exemplo, seria também a primeira forma de convívio (e limitação) social.
Nesse sentido, a abordagem teórica sobre a delinquência juvenil pode conquistar um novo patamar. Sobre a criminalidade na
adolescência, deve-se levar em consideração uma multiplicidade de fatores que envolvem desde a formação de mecanismos de contenção
promovidos pelos vínculos afeto, amor, respeito do adolescente para com seus familiares, etc, além do conjunto de circunstâncias que envolvem a
intimidade social desse jovem, como a questão educacional, esportiva, religiosa, entre outras várias.
É esse conjunto de circunstâncias que, de certa medida, impedem aquilo que Durkheim conceituou comoanomia, ou seja, a
ausência de coesão social, que direciona o indivíduo não só para sua própria destruição, como também para a delinquência. Em outras palavras, a
possibilidade da desintegração social mediante a ineficácia dos controles sociais.
Desse modo, a criminalidade na adolescência pode e deve ser pensada por meio dos mecanismos internos e externos de
contenção. Isso não significa que toda contenção seja ruim ou boa. Para além do mero maniqueísmo, é necessário compreender as
representações construídas por esses jovens diante dos dilemas de sua vida, das expectativas e cobranças de sua vida social, familiar, laboral e
cultural.
A tentação ao consumo, ao melhor meio de satisfação desse bem-estar, atinge a todos os seres humanos, mas pode ser dramática
para o adolescente, principalmente para aquele adolescente excluído da classe dominante. Segundo Pierre Bourdieu, a posição pátria em relação
aos anseios do adolescente, principalmente quando afirma que não tem nada a propor para o presente e, ainda menos para o futuro, é difícil para
controlar as aspirações ao consumo suscitadas nos filhos pela frequência da escola, pelas solicitações de um universo social obcecado por bens
de consumo a que não tem acesso e, ao mesmo tempo, estão presentes por toda a parte: na rua, com os carros de luxo, no supermercado ou, no
próprio âmago da vida doméstica através da televisão e dos catálogos publicitários que são depositados, todos os dias, nas caixas de correio. [07]
Desta forma, uma estrutura anômica aparece fortemente vinculada à estrutura social competitiva em que o conflito de normas,
metas ou princípios, o limite entre o certo e o errado, podem colidir com o "estar na moda", o frequentar "a boate da vez" ou estar na "onda". Daí a
conduta infracional poder ser percebida como uma tentativa de burlar as barreiras que se interpõem à mobilização ascendente de muitos
indivíduos que, ante ela, elegem como solução a utilização de meios ilegítimos, por vezes criminosos no intuito de conquistar o prestígio social e
exteriorizá-lo. Principalmente amparado por uma convivência social que não predispõe de meios concretos para conseguir as metas propostas por
uma sociedade democrática que, paradoxalmente, promete igualdade de oportunidades. [08]
É dentro desse contexto circunstanciado pelo acesso ao consumo que constatamos o campo, mais que propício, à desenvoltura do
fenômeno da criminalidade juvenil. Um fenômeno que deixa às margens o jovem pertencente às minorias - ou oficialmente falando, pertencente
aos "grupos vulneráveis" [09], - porque não está integrado na sociedade de consumo e produção.
3- A criação do estigma social através do processo de etiquetamento
criminal juvenil.
A doutrina social-normativa moderna propõe várias possibilidades teóricas de reflexão quanto aos processos de seletividade e de
criminalização das minorias sociais. Entre eles, podemos destacar o labeling approach ou "teoria do etiquetamento". Sob o labeling, é possível
compreender os processos de criação e reprodução dos estigmas, pela própria exclusão social da sua existência concreta. Nesse caso, por
obviedade, o termo estigma é usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, como bem demonstrado por Erving Goffman, para
quem: "A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados comuns e naturais para os membros de
cada uma dessas categorias". [10] Nessa perspectiva, os criminosos são aqueles sujeitos selecionados socialmente por formas de controle social e,
principalmente, de controle penal, para após sofrerem uma rotulação, serem margeados – ou marginalizados - em seus espaços sociais.
A teoria do etiquetamento ganha força quando pensada mediante aos processos de criminalização das sociais classes minoritárias
e, no tema em questão, a criminalização da juventude. É uma possibilidade teórica atenta as demandas da sociedade e do Estado, especialmente
por meio da análise da política criminal que pode contribuir para o diagnóstico das formas de produção e reprodução dos instrumentos de
construção da realidade social. Assim observa Bourdieu, quando retrata a imposição na realidade e nos cérebros, de todos os princípios
fundamentais de classificação – sexo, idade, competência, etc, - mediante a imposição de categorias sociais, como ativos e inativos.[11]
O fenômeno da criminalidade é concebido como meio de etiquetar, estigmatizar, rotular populações selecionadas, seja pelo
processo econômico, seja pelo processo social. Nessa linha, a adolescência, especialmente o jovem pobre, aparece como um segmento certo
para a rotulação criminal em resposta a uma crise de insegurança social generalizada. Segregar é a resposta produzida socialmente e abrigada
pelo fenômeno jurídico para o jovem já excluído, dotando-o então de uma identidade delinquencial. Surge então, a pessoa assinalada
como diferente, tese do positivismo-naturalismo, centralizada no autor e não no próprio ato. [12] A determinação punitiva do ser e não dofazer.
Se pensarmos no processo social da estigmatização, poderíamos pensar que, no momento em que somos apresentados a uma
pessoa, independente de suas características individuais e sociais, em um primeiro aspecto vislumbramos prever as suas categorias e seus
atributos. Ou seja, a primeira percepção de sua "identidade social" para em seguida transformarmos nossas pré-concepções em desejos e
expectativas normativas. Daí provém a satisfação de nossas exigências, para que este indivíduo preencha e satisfaça nossas expectativas
previamente representadas. Nesse ideário, Goffman [13], exemplifica alguns desses atributos "desejáveis", como a "honestidade" e a "ocupação",
características mais que exigíveis no comportamento social de um adolescente. Por outro lado, há a dicotomia existente naquilo que o mesmo
autor demonstra como o paradoxo da "identidade social virtual" e da "identidade social real". Ou seja, a primeira pode ser sucintamente explicada
como o indivíduo a ser encarado como uma imputação feita por um retrospecto em potencial, desejável (dever ser). A segunda, baseado na
categoria e os atributos que o indivíduo, na realidade possui (realmente é). Esclarece o autor:
Enquanto o estranho está a nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se
encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa
completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída.
Tal característica é um estigma, especialmente quando seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um
defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real.
Observe-se que há outros tipos de discrepância entre a identidade social real e a virtual como, por exemplo, a que nos leva a reclassificar um
indivíduo antes situado numa categoria socialmente prevista, colocando-o numa categoria diferente mas igualmente prevista e que nos faz alterar
positivamente a nossa avaliação. Observe-se, também, que nem todos os atributos indesejáveis estão em questão, mas somente os que são
incongruentes com o estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo. [14]
Em relação a este processo de estigmatização, Goffman esclarece que o próprio estigma possui três tipos nitidamente diferentes,
são eles: (1) as deformidades físicas, ou seja, as abominações corporais; (2) as culpas de caráter individual, e (3) as tribais de raça, nação e
religião. [15]
Em relação às deformidades físicas, não vislumbramos maiores dificuldades quanto a sua conceituação, ou seja: "as características
físicas, "visíveis" dos indivíduos, desencadeiam o estigma representado". Quanto às culpas de caráter individual, Goffman esclarece que são
aquelas "percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir
de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo
[16]
, desemprego, tentativas de suicídio e
comportamento político radical." Já os estigmas tribais de raça, nação e religião, são aqueles "transmitidos através de linhagem e contaminam por
igual todos os membros de uma família". Em todos os três casos, o estigmatizado possui uma característica diferente daquela que havíamos
previstos, ou seja, dos atributos que temos como "desejáveis". Em contrapartida, Goffman explica que, para aqueles indivíduos que respondem
com sucesso as nossas expectativas, ou seja, não se afastam negativamente desses "desejos representativos", são então chamados de
"normais".
No caso em questão poderíamos levantar alguns questionamentos, como a possibilidade de tipificarmos a adolescência criminosa –
e consequentemente o adolescente infrator – como um estigma a ser produzido socialmente, nesse caso, na própria definição de Goffman, de
sujeitos "anormais". Ainda, caso positivo a primeira resposta, e considerando a tipologia do estigma (1- deformações físicas; 2 – culpas de caráter
individual; 3 – tribais de raça, nação e religião), qual dessas espécies poderia(m) emoldurar este adolescente visto como um sujeito criminoso.
Cria-se desse modo, o questionamento sobre a conscientização de que, talvez a justificativa plausível da necessária exclusão social
(e econômica) desse sujeito estigmatizado, embora não explicitamente retratado com fidelidade nas três espécies da tipologia do estigma, deva
ser reconhecida e realizada ( legitimada) pela própria exclusão criminal. Ou seja, o sistema punitivo seria usado como mecanismo de controle
social e exclusão daqueles conceituados como estigmatizados ou anormais. Observa-se o racionalismo do caso em questão, em que segundo
Goffman, a própria estigmatização seria eivada de "interações angustiadas", em que "o estigmatizado percebe cada fonte potencial de mal-estar
na interação, que sabe que nós também a percebemos e, inclusive, que não ignoramos que ele a perceba". São as chamadas "situações sociais
mistas":
Uma vez que tanto o estigmatizado quanto nós, os normais, nos introduzimos nas situações sociais mistas, é compreensível que
nem todas as coisas caminhem suavemente. Provavelmente tentaremos proceder como se, de fato, esse indivíduo correspondesse inteiramente a
um dos tipos de pessoas que nos são naturalmente acessíveis em tal situação, quer isso signifique tratá-lo como se ele fosse alguém melhor do
que achamos que seja, ou alguém pior do que achamos que ele provavelmente é. Se nenhuma dessas condutas for possível, tentaremos, então,
agir como se ele fosse uma "não pessoa" e não existisse para nós. [17]
4 – Os primeiros passos..., o primeiro castigo e a primeira prisão.
Formar-se ia então, o primeiro contato entre o jovem e o sistema penal, com o difícil atributo proveniente de uma dupla
estigmatização: é adolescente, e assim, é delinquente. Ainda mais estigmatizado quando sua incidência criminosa é dotada de gravidade, não só
de caráter econômico/patrimonial, mas especialmente quando há a ameaça à vida de outros ou à vida social. A criação e solidificação desse
estigma persegue o adolescente durante a sua vida. Ainda que as circunstâncias da conduta delitiva sejam favoráveis e por vezes exculpáveis,
mesmo assim o estereótipo de sujeito criminoso lhe será taxativo.
Daí uma análise dos mecanismos jurídicos e da postura dos operadores da justiça criminal sobre o adolescente, bem como a
própria estrutura estatal (e social) já predisposta no atendimento destes casos, nos possibilita a visualizar a complexidade social dos processos de
atribuição de estigmas sobre a juventude. A necessidade de, como proposto por William James, "olhar além das primeiras coisas, dos princípios,
das "categorias", das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas coisas, frutos, conseqüências, fatos" [18], além do racionalismo e do
discurso social (e oficial) vigente. Mas sim, voltando-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e poder. Aquilo que para Willian
James significa "o reinado do temperamento empírico e o descrédito sem rebouços do temperamento racionalista". [19]
Os mecanismos policiais, judiciais e assistenciais, estão situados no limite e na pragmaticidade da proteção e da criminalização
desses jovens. Operam nos limites da rotulação, e na tentativa de preservar/proteger seus direitos e garantias, acabam por vezes viabilizando a
impunibilidade de um jovem infrator. Em contrapartida, na tentativa da ressocializar ou educar o jovem, acabam por proporcionar o desrespeito à
sua existência e à sua condição, destacando-o como uma vítima hiposuficiente. Autores e vítimas sociais se confundem no interior de delegacias
"especializadas" no atendimento de crianças e adolescentes; de varas criminais "específicas" quanto à competência do julgamento destes
adolescentes; na própria normatividade penal juvenil, que sobre a bandeira do protecionismo, acaba mais uma vez, estereotipando os seus
autores.
O sistema jurídico, principalmente o sistema penal destinado aos adolescentes, é mais repressivo, mais perigosista, objetivista e
retrógrado do que a legislação do adulto. À criança delega-se a proteção quando tida por desamparada, ou a institucionalização quando tida por
perigosa. Ela é objeto de compaixão ou repressão. Nunca, sujeito de Direito. [20]
E onde se origina a primeira representação deste adolescente? Onde se origina o primeiro processo de estigmatização desse
sujeito? Talvez no primeiro ato de sua conduta delitiva? No primeiro contato concreto com o sistema policial-jurídico punitivo? Ou quem sabe,
somente após a sua sujeição a uma medida sócio-educacional?
Por todo o conjunto de circunstâncias que incidem sobre o adolescente autor de ato infracional, independente dos procedimentos
judiciais ulteriores, a primeira rotulação originada da representação da figura contemplativa do infrator criminoso para o Direito é feita justamente
na fase policial. Ou seja, a representação é primariamente estabelecida no primeiro contato deste adolescente com a instituição policial.
Especialmente, quando esse jovem na fase inicial (policial) é apontado como suspeito da prática de uma conduta delitiva, independente do
resultado no posterior processo judicial acusatório. A própria sujeição a investigação policial, por si, já determina a criação deste estereótipo
delinquente. [21]
Em relação a estas representações sociais, destaca Pierre Bourdieu:
A vontade, plenamente louvável, de ir ver as coisas pessoalmente de perto, leva, por vezes, a procurar os princípios explicativos das realidades
observadas exatamente no lugar onde eles não se encontram (pelo menos, na sua totalidade), isto é, no próprio local da observação: assim, é certo que a
verdade do que acontece nos "subúrbios difíceis" não reside nesses lugares, habitualmente esquecidos, que surgem, de tempos a tempos, no primeiro plano
da atualidade. O verdadeiro objeto da análise, que deve ser construído contra as aparências e contra todos os que se contentam em ratificá-las, é a construção
social (ou, mais precisamente, política) da realidade deixada à intuição e das representações – principalmente, jornalísticas, burocráticas e políticas – de tal
realidade que contribuem para produzir efeitos bem reais, antes de tudo, no universo político o qual elas estruturam a discussão, e até no universo científico.
[22]
São inicialmente os agentes policiais os responsáveis pela aplicação da lei, ou seja: os agentes do Estado legitimados pela
sociedade que foram previamente convocados a combater e reprimir tal criminalidade. Assim, vivenciamos no cotidiano das delegacias de polícia e
dos agentes ali envolvidos, certas representações de adolescentes que vão se construindo e desconstruindo diante da dramaticidade do fato
típico, do ato infracional cometido por esses jovens. No despertar das sirenes, nas gaiolas dos camburões, entre algemas e gritos, que esses
agentes se tornam os primeiros a ouvirem as narrativas dos crimes praticados. São eles os primeiros a visualizar e a dimensionar a violência
juvenil. São eles quem detém o poder de nomear o ato infracional e dar andamento ao processo de criminalização desse ato aos juízos
competentes e ao juízo irascível da sociedade. Daí provém o primeiro carimbo, o primeiro etiquetamento, ou seja, a primeira criação de um
conceito juvenil previamente estigmatizado que no decorrer das relações interpessoais futuras será predominante em todo e qualquer espaço
social vivenciado por este adolescente.
Nas delegacias de polícia que o drama da juventude é nomeado, taxado, selecionado e endereçado a um destino na maioria das
vezes desprezível: o aprisionamento.
São esses agentes policiais que detêm o papel social de nomear a delinquência. Daí a necessidade quanto ao estudo e
compreensão da formação e reprodução social da violência juvenil entre aqueles agentes sociais responsáveis por ver e ouvir os corpos dos
adolescentes diariamente em seu local de trabalho, bem como, muitas vezes, nos bairros onde vivem. Principalmente, a possibilidade de uma
compreensão que se contrapõe a um oceano de discursos oficiais unânimes que a prima facie traduzem toda e qualquer adolescência como
sendo uma problemática social em nível de solução estatal através da política criminal existente. Como se todo jovem intitulado como membro de
"grupos vulneráveis" fosse automaticamente um jovem delinquente.
5. Conclusão.
Todo processo (oficial ou não) de conceituação relacionado ao entendimento da criminalidade juvenil deve necessariamente ser
formulado através de um estudo transdiciplinar sobre o tema, afastando por completo o absolutismo da conceituação eminentemente jurídica.
Desta forma, o direito penal por si só, não fornece todos os elementos sócio-normativos para a análise do fenômeno da criminalidade juvenil. Há
então a necessidade de considerar o fenômeno social da estigmatização do adolescente infrator também pelo olhar de outras ciências correlatas.
O primeiro processo da criação do estigma é proposto nos procedimentos policiais, pois é por meio deles que o Estado atua diretamente na
abordagem e encaminhamento dos adolescentes suspeitos de cometerem atos infracionais. Assim, o etiquetamento social-penal do adolescente
infrator inicia-se, na maioria das vezes, através do imaginário do policial e sua representação social ao agente criminoso, uma vez que a
construção social obtida por meio da atuação institucional é, pelo menos em um primeiro momento, fruto da percepção dos operadores desta
instituição policial. Por conseguinte, da percepção daqueles que atuam em todo processo punitivo, desde o primeiro contato (polícia) até o último
(sociedade, através do processo da condenação social, perdão e quem sabe, da ressocialização).
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em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022004000200009&lng=es&nrm=iso&tlng=es. Acesso em 02/09/08.
4.
A conceituação do termo violência (conflito) interpessoal é emprestado do Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde. Brasília:
OMS/Opas/UNDP/Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Ano 2.002.
5.
TRINDADE, Jorge. Delinqüência Juvenil. Compêndio Transdisciplinar. 3ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado.2002, p. 71.
6.
7.
RECKLESS, W. The sociology of crime and delinquency: containment theory, p. 402 e ss.
BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 221.
8.
TRINDADE, Jorge. Delinqüência Juvenil. Compêndio Transdisciplinar. 3ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado.2002, p. 77.
9.
O conceito de "grupos vulneráveis" é um conceito oficial utilizado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP, subordinada ao
Ministério de Justiça
10.
GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª Ed. Rio de Janeiro:LTC, 2008, p. 13.
11.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalinas. Trad. Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2001 p. 212.
12.
TRINDADE, Jorge. Delinqüência Juvenil. Compêndio Transdisciplinar. 3ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado.200, p. 80.
13.
GOFFMAN, p. 12.
14.
Idem. p. 13.
15.
Idem. p. 14
16.
As principais organizações mundiais de saúde, incluindo muitas de psicologia, não mais consideram a homossexualidade uma
doença, distúrbio ou perversão. Desde 1973, a homossexualidade deixou de ser classificada como tal pela Associação Americana de
Psiquiatria. Em 1975 a Associação Americana de Psicologia adotou o mesmo procedimento, deixando de considerar a homossexualidade uma
doença. No Brasil, em 1985, o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a homossexualidade um desvio sexual e, em1999,
estabeleceu regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que "a homossexualidade não
constitui doença, nem distúrbio e nem perversão" e que ospsicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou
cura da homossexualidade. No dia 17 de Maio de 1990, a Assembleia-geral da Organização Mundial de Saúde (sigla OMS) retirou a
17.
homossexualidade da sua lista de doenças mentais, a Classificação Internacional de Doenças(sigla CID). Por fim, em 1991, a Anistia
Internacional passou a considerar a discriminação contra homossexuais uma violação aos direitos humanos. Fonte: Correio Braziliense. Há 20
anos, a OMS tirou a homossexualidade da relação de doenças mentais: Uma conquista celebrada por organizações sociais de todo o planeta.
Página visitada em 7 de dezembro de 2010.
GOFFMAN. p. 27
18.
JAMES, Willian. Pragmatismo e outros textos. São Paulo: Abril Cultural. 1979. p. 21.
19.
Idem, p. 22.
20.
AMARAL E SILVA, A. F. do. Direito do menor: uma posição crítica. In: Brito. L.M.T. de. Psicologia e Instituições de Direito: a prática em
questão. Rio de Janeiro: Conselho Regional de Psicologia, p. 72.
21.
Como exemplo, podemos citar o fato ocorrido no Município de Palhoça-SC no ano de 2008, onde um jovem de 17 anos, acusado de tentativa
de homicídio, ainda em fase de investigação policial, permaneceu acorrentado por cinco dias nas grades da porta de uma cela da Delegacia de
Polícia do Município. Notícia disponível em:http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/03/19/ult23u1542.jhtm
BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 215.
22.
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