5-quinta-aula-do-curso-de-semantica-formal

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Quinta aula do curso de semântica
Alessandro Boechat de Medeiros – [email protected]
Tipos semânticos e funções
1. Revendo alguns conceitos já discutidos no curso, mas acrescentando alguma
coisa nova...
Comecemos com a seguinte sentença:
(1) Mário está caminhando na praia.
Como sabemos se uma pessoa sabe o significado da sentença acima? Em primeiro
lugar, essa pessoa não precisa saber se a sentença é verdadeira ou falsa para saber seu
significado. Mesmo que ela conheça Mário, ela pode não saber o que ele está fazendo
no momento em que a frase é dita, e, portanto, ela não tem condições de dizer que a
sentença é verdadeira (ou que ela é falsa). Entretanto, saber seu significado pode ser
interpretado como conhecer as condições necessárias e suficientes para que a sentença
(1) seja verdadeira. Neste curso estamos adotando, ainda que talvez não tenha ficado
explícito até o momento, a seguinte definição de significado (tirada de FERREIRA,
Ms):
O significado de uma sentença (de (1), por exemplo) é equivalente às condições
necessárias e suficientes para que a sentença seja verdadeira.
Ou: O significado de uma sentença equivale às suas condições-de-verdade.
Assim, conhecer o significado de (1) é saber que, para que (1) seja verdadeira, é preciso
que a pessoa cujo nome é Mário esteja caminhando na praia no momento em que a frase
é dita (Mário deve ser conhecido pelo menos do ouvinte, e a praia de que se fala deve
ter sua referência conhecida também pelo ouvinte; além disso, a caminhada tem que
estar em andamento, ou não pode ter acabado, no momento em que a frase é dita).
Conhecer o significado de (1) seria, portanto, conhecer essas condições, que seriam
condições necessárias (pois nenhuma delas pode estar ausente) e suficientes (pois
seriam as que bastam para que eu compreenda a sentença).
Isso quer dizer que se sabemos se uma sentença é verdadeira ou falsa então sabemos
algo sobre o mundo. Ou seja (FERREIRA, Ms., p. 3):
‘S’ é verdadeira sse p
p
Logo, ‘S’ é verdadeira
Conhecimento semântico +
Conhecimento de mundo =
Conhecimento do valor-de-verdade.
‘S’ é verdadeira sse p
‘S’ é verdadeira
Logo, p
Conhecimento semântico +
Conhecimento do valor de verdade =
Conhecimento de mundo.
Até agora falamos da sentença como um todo e sua relação com o mundo. Mas,
intuitivamente, sabemos que a sentença é composta por partes, e que essas partes
contribuem para que se chegue ao significado da sentença (ou, por outras palavras,
contribuem para que saibamos quais são as condições de verdade da sentença). A opção
a esta afirmação seria dizer que nossa competência se resume a uma lista de sentenças
opacas das quais sabemos as condições de verdade, o que parece evidentemente falso,
tendo em vista que ouvimos sentenças novas o tempo todo e de imediato sabemos quais
são suas condições de verdade.
A semântica formal adota o seguinte princípio, chamado de princípio da
composicionalidade, inspirado em Frege, que já vimos antes:
O significado de uma expressão complexa (por exemplo, uma sentença) deriva de
maneira regular dos significados das expressões que a compõem e da maneira
como são combinadas sintaticamente.
Indo um pouco além, partindo de uma determinada visão de como é a sintaxe de uma
sentença, digamos que:
O significado de um constituinte sintático é derivado do significado de seus
constituintes imediatos (FERREIRA, Ms., p. 7).
A última definição de composicionalidade inclui um procedimento recursivo em que o
significado de uma expressão qualquer D é “calculado” a partir das expressões que a
compõem imediatamente (E1,..., Em), e estas, por seu turno, têm seus significados
calculados a partir dos significados das expressões que as compõem (a cada uma delas)
imediatamente. Por exemplo, em:
(2) João ama Maria
A sentença é decomposta em um SN, “João” e um SV, “ama Maria”. O SV, por sua vez,
é composto de um V, “ama”, e um SN, “Maria”. Assim, o significado do SV é
“calculado” a partir do significado do V “ama” e do significado do SN “Maria”, e o
significado da sentença (2) é calculado a partir do significado do SN “João” e do
significado do SV “ama Maria”, já calculado anteriormente.
Temos então um esboço de uma teoria semântica, que terá um léxico, uma lista com os
significados das expressões atômicas (digamos, as palavras) de uma língua, e um
conjunto de regras de composição, que definem explicitamente o significado de um
constituinte a partir do significado de seus constituintes imediatos.
2. Extensões
A extensão de uma sentença é seu valor de verdade. Seguindo a caracterização de Frege,
a extensão seria a referência da sentença. Nem sempre, contudo, referência e extensão
são noções fáceis de igualar. Por exemplo, a extensão de um nome comum, como
“gato”, é um conjunto de entidades com determinadas propriedades. Mas seria isso sua
referência? Usaremos então a expressão “extensão” no lugar de referência. Assim, a
extensão de uma sentença será um valor-de-verdade; a extensão de um nome comum,
como “gato”, será um conjunto de entidades; a extensão de um verbo intransitivo, como
“dormiu”, é também um conjunto de entidades; etc.
Vamos aplicar novamente o princípio da composicionalidade e reformulá-lo para incluir
as extensões:
A extensão de um constituinte sintático é derivada da extensão de seus
constituintes imediatos.
Já vimos um pouco disso na nossa aula sobre teoria dos conjuntos. Suponha que, por
exemplo, o verbo “fuma” defina um conjunto de entidades. Ou seja, [[fuma]] = {x: x
fuma}. A frase “João fuma” terá sua extensão “calculada” a partir da extensão de
“João” e da extensão de “fuma”. Aqui, temos que, para que a sentença seja verdadeira
(tenha a extensão “verdadeiro” ou 1), a extensão de “João” deve pertencer à extensão de
“fuma”. Ou seja, a sentença “João fuma” é verdadeira sse João  {x: x fuma}.
De um modo geral, constituintes sintáticos podem ter suas extensões expressas por
conjuntos resultantes de relações entre conjuntos, de maneira recursiva.
Equivalentemente, podemos usar funções para tratar do cálculo das extensões.
3. Funções
Funções são relações que associam membros de um conjunto a membros de um
conjunto. O primeiro conjunto é chamado de domínio; o segundo conjunto é chamado
de imagem. Uma função é uma relação em que não pode haver mais de um membro do
conjunto imagem ligado a um único membro do conjunto domínio.
Um predicado como “fuma” define uma função (e não somente um conjunto) se
pensarmos que tal predicado associa membros de um conjunto de entidades do mundo a
membros do conjunto dos valores de verdade. Uma vez que sentenças declarativas
como “João fuma” só podem ser verdadeiras ou falsas, o contradomínio da função
definida pelo predicado “fuma” tem somente dois membros: verdadeiro e falso (ou 0 e
1).
Digamos que os membros do conjunto domínio da função definida pelo predicado
“fuma” são de um tipo semântico, o tipo das entidades, o qual representaremos por e (de
entity), e que os membros do contradomínio da mesma função são do tipo semântico
dos valores-de-verdade, o qual representaremos por t (de truth-value). Assim, a função
definida pelo predicado “fuma” relaciona (forma pares de) coisas do tipo das entidades
com coisas do tipo dos valores-de-verdade.
Partindo dos tipos semânticos e e t, podemos definir recursivamente todos os tipos da
nossa semântica através das seguintes cláusulas:
(i)
(ii)
(iii)
e e t são tipos semânticos;
se  e  são tipos semânticos, então <, > é um tipo semântico;
nada mais é um tipo semântico.
Assim, combinando a primeira cláusula com a segunda, temos que <e,t> é um tipo
semântico. Ora, se <e,t> é um tipo semântico, então coisas como <<e,t>,<e,t>>,
<<e,t>,t>, <<e,t>,e>, <e,e>, <t,t>, <t,e>, ou ainda <<<e,t>,<e,t>>,t>,
<<<e,t>,<e,t>>,<e,t>> são tipos semânticos, segundo as cláusulas acima. Observe-se
que a função definida pelo predicado “fuma” no parágrafo anterior, que relaciona
entidades a valores de verdade, é do tipo <e,t>. Podemos expressar a denotação da
função definida pelo predicado fuma como [[fuma]]:= x: x  De. x fuma (onde De é o
conjunto domínio da função, conjunto das entidades do universo considerado). A
expressão representa a função que relaciona todo x do conjunto das entidades com 1 (ou
verdadeiro) se x fuma, e com 0 (ou falso) se as coisas forem de outro modo.  é como
um dos operadores da lógica de predicados, como um  ou um .
Do mesmo modo, nomes como “homem”, “gato” e “cadeira” são vistos como
predicados que definem funções que associam entidades a valores de verdade (são,
portanto, do mesmo tipo semântico associado aos verbos intransitivos: <e,t>). Assim, a
denotação do predicado homem pode ser escrita como [[homem]]:= x: x  De. x é
homem (podemos omitir da expressão a menção ao domínio, de modo que [[homem]]
fica escrito como x. x é homem).
Portanto, a denotação de nomes comuns é de tipo semântico <e,t>, bem como a
denotação de verbos intransitivos. Já a denotação de nomes próprios é de tipo semântico
e. Começaremos com esses três tipos a nossa discussão.
Seguindo pressupostos da gramática gerativa chomskyana, o que serve de input para a
componente semântica é um conjunto de árvores de estruturas de constituintes. Heim e
Kratzer (1998) propõem três princípios gerais para a interpretação de estruturas
sintáticas:
(1) Nós terminais: se  é um nó terminal, [[]] é especificada no léxico.
(2) Nós não-terminais: se  é um nó não-terminal, e  é seu filho, então [[]] = [[]].
(3) Aplicação funcional: se  é um nó ramificante, {,} é o conjunto de filhos de
, e [[]] é uma função cujo domínio contém [[]], então [[]] = [[]]([[]]).
Assim, suponhamos a seguinte estrutura sintática:
S
3
NP
VP
|
|
N
V
|
|
João
fuma
Na componente semântica, aplicam-se os princípios enumerados acima. Como N é filho
único de NP, então, por (2) acima, [[João]] = [[N]] = [[NP]] (isso quer dizer que o tipo
semântico de NP será o mesmo associado ao nome “João”: e). Raciocínio semelhante
vale para o VP: [[fuma]] = [[V]] = [[VP]] (aqui, o tipo preservado é <e,t>). Como a
denotação do nome “João” é do tipo das entidades e, portanto, pertence ao domínio da
função definida por “fuma”, posso, segundo (2) acima, fazer aplicação funcional,
conforme o esquema abaixo:
t
[[S]] = [x: x  De. x fuma](João) = 1 se João fuma
3
[[NP]]
|
[[N]]
|
[[João]]
e
[[VP]] = x: x  De. x fuma
|
[[V]] = x: x  De. x fuma
|
[[fuma]] = x: x  De. x fuma
<e,t>
Observe-se que, como o referente do nome “João” é um membro do conjunto das
entidades De, ele pode saturar a variável insaturada da função expressa pelo predicado
“fuma”. A denotação de S, [[S]], será um valor de verdade: 1 (verdadeiro, se João fuma)
ou 0 (falso, se João não fuma).
Pergunta: de acordo com a nossa tipologia semântica, poderíamos combinar diretamente
coisas como “homem” e “fuma”, de modo que tenhamos a expressão
[[fuma]]([[homem]]), onde [[fuma]] define uma função cuja variável insaturada vai ser
saturada pela função definida por [[homem]]?
Os verbos transitivos poderiam ser pensados como denotando funções que associam
pares a valores-de-verdade. Assim, um predicado como “ama” associaria um par como
<Maria, João> ao valor de verdade 1 se fosse verdade que Maria ama João. Entretanto,
se assim fosse, teríamos que redefinir aplicação funcional, pois essa operação trabalha
com uma configuração sintática em que há dois nós tais que a denotação do que está
num dos nós é uma função e a denotação do que está no outro é algo que está no
domínio de tal função. A não ser que tenhamos um único nó sintático com os dois
argumentos do verbo (o que é absurdo para a teoria sintática em que nossa semântica se
baseia), para manter a aplicação funcional como foi definida temos que imaginar que
um verbo transitivo define uma função composta, não uma função que associa um par a
um valor de verdade.
A função composta dos verbos transitivos será tal que, quando o nó que traz o verbo se
combinar com seu complemento, produzirá uma função como a dos verbos
intransitivos. Ou seja, se uma função como a dos verbos intransitivos é do tipo <e,t>,
então a função composta do verbo intransitivo deve ser de tal modo que associe uma
entidade a uma função do tipo <e,t>, ou seja, a função associada aos verbos transitivos
será do tipo <e,<e,t>>. Observe-se o esquema a seguir, onde representamos o cálculo de
“Maria ama João”:
[[S]] = [y:yDe.y ama João](Maria) = 1 se Maria ama João
3
[[NP]]
[[VP]] = [x:xDe.[y:yDe.y ama x]](João) = y:yDe.y ama João
|
tp
[[N]]
[[V]]
[[NP]]
[[Maria]] [[ama]]
|
[x:xDe.[y:yDe.y ama x]] [[N]]
[[João]]
Observação: podemos escrever [[ama]] como x.y.y ama x
Em termos de tipos semânticos, temos a seguinte situação:
[[S]] t
3
[[NP]]
[[VP]] <e,t>
|
tp
[[N]]
[[V]]
[[NP]]
[[Maria]] [[ama]]
|
e <e,<e,t>>
[[N]]
[[João]]
e
Exercícios para resolver em sala
(1) Defina em forma de conjunto a relação entre entidades denotada pelos itens a seguir
(os verbos estão no infinitivo somente por uma exigência morfológica do português);
reescreva o significado do item abaixo em termos de uma função que relaciona os tipos
básicos da nossa semântica. Observe o exemplo abaixo:
(a) ║preferir║= o conjunto de pares <x, y> tal que x prefere y na situação relevante. A
função x: x  De. y: y  De.y prefere x na situação relevante.
(b) ║jantar║=
(c) ║dormir║=
(d) ║escrever║=
(e) ║ignorar║=
(f) ║comer║=
(g) ||amigo|| =
(h) ||verde|| =
(i) ||doido|| =
(j) ||vizinho|| =
(k) ||orelha|| =
(2) Faça o cálculo semântico das sentenças abaixo. Ignore os determinantes nos
sintagmas nominais e o tempo e o aspecto verbais:
(a) Maria cantou o hino nacional.
(b) João perdeu as chaves.
(c) Maria apresentou João para Fernanda.
(d) O boi evitou a ponte.
(e) Platão escreveu “O Timeu”.
(3) Que expressões linguísticas são traduzidas pelas funções abaixo?
(a) λy: y  De.λx : x  De. x ama y
(b) λx: x  De.x ama-maria
(c) λx: x  De.x é-mortal
(d) [λx: x  De.[λy : y  De. y bebe x]](café)
(e) λx: x  De.x bebe-café
(f) [λx: x  De.x bebe-café](Pedro)
(g) λx: x  x De.x é-burro
(h) [λy: y  De.[λx: x  De.[z: z  De. z apresentou x para y]](Alessandro)
(Juliana)(Ricardo)
(i) [λy: y  De.[λx: x  De.x detesta y]](quiabo) (Ana)
(4) Na sentença João é inteligente, como podemos escrever, em notação lambda, a
definição semântica de [[é]]? Em João não é inteligente, como deve ser a definição
semântica de [[não]]?
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