O Pagador de Promessas

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Preconceito e intolerância religiosa em O
Pagador de Promessas*
para Juliana Ozaí da Silva
Encenada pela primeira vez em 1960, no Teatro Brasileiro de Letras e sob a direção de Flávio
Rangel, a peça O Pagador de Promessas[1] expressa a crítica à sociedade urbana e de
massas capitalista. Nas palavras de Dias Gomes:
“O HOMEM, no sistema capitalista, é um ser que luta contra uma engrenagem social que
promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua
liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente,
ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a estória de um homem que
não quis conceder – e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista.
Baseado no princípio da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo
os meios necessários ao exercício da dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória” (GOMES,
1972: 9)[2]
O enfoque principal do autor não é, portanto, a questão religiosa. Não obstante, as
personagens, diálogos e contexto sócio-político, também permitem a reflexão nesta
perspectiva. O próprio autor admite que “há também a intolerância, o sectarismo, o
dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato estão do nosso lado”
(id.). Sua preocupação não se restringe à intolerância religiosa, como podemos deduzir a partir
do confronto entre o Padre Olavo e Zé-do-Burro, mas abarca a intolerância universal.
Os preconceitos que produzem a intolerância se nutrem de diversos alimentos. A intolerância
tem várias faces e se faz presente em qualquer época e território onde pise o ser humano. A
história da humanidade é também a história da sua incapacidade de conviver com o outro, com
o diferente. Padre Olavo, ressalta Dias Gomes:
“Veste batina, podia vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro,
crente do interior da Bahia, podia ter nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o
sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito ético, sejam problemas locais,
fazem parte de uma realidade brasileira. O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical
– espero que isto seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma
organização social, na qual somente o povo das ruas se confraterniza e a seu lado se coloca,
inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo impacto emocional
de sua morte. A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de
uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição faz parte” (p. 10).
Porém, da mesma forma que a engrenagem mostra fissuras, representada pela reação de
solidariedade ao Zé-do-Burro, os indivíduos que representam a instituição eclesiástica, em
especial o Padre Olavo, também poderiam ter atitude mais flexível diante do pagador da
promessa. Em outras palavras, os indivíduos agem diante da estrutura (engrenagem) num
campo limitado de ação, é verdade, mas como possibilidades. Se o indivíduo faz a história
dentro de determinadas condições, estas podem ser transformadas por ele. O contrário é
imaginarmos uma espécie de determinismo sob o qual os indivíduos não têm escolha a não ser
se submeter.
Candomblé e sincretismo religioso
O candomblé mencionado no contexto da peça O Pagador de Promessas se constituiu na
Bahia no século XIX, “a partir das tradições de povos iorubás, ou nagôs, com influências de
costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados jejes, e residualmente, por grupos
africanos minoritários” (PRANDI, 2001: 43 e 1995/96).[3] O Candomblé se constitui inicialmente
como uma religião de resistência dos escravos e seus descendentes, numa sociedade de
domínio branco e católico. Era através do candomblé, como das demais religiões de origens
africanas, que os negros mantinham e renovavam seus vínculos com as tradições culturais da
África.[4] “O negro podia contar com um mundo negro, fonte de uma África simbólica, mantido
vivo pela vida religiosa dos terreiros, como meio de resistência ao mundo branco, que era o
mundo do trabalho, do sofrimento, da escravidão, da miséria” (PRANDI, 1995/96: 79).
Porém, os negros não podiam simplesmente fazer de conta que existia apenas o mundo
resguardado pela tradição e religião. Sua existência exigia se fazer presente também no
mundo dos brancos, interagindo com estes e sua religião. Esta é a fonte do sincretismo
religioso. Como esclarece PRANDI (id.: p.1995/96: 79-80)
“Bastide mostrou como a habilidade do negro, durante o período colonial, de viver em dois
diferentes mundos ao mesmo tempo era importante para evitar tensões e resolver conflitos
difíceis de suportar sob a condição escrava (Bastide, 1978). Logo, o mesmo negro que
reconstruiu a África nos candomblés reconheceu a necessidade de ser, sentir-se e se mostrar
brasileiro, como única possibilidade de sobrevivência, e percebeu que para ser brasileiro era
absolutamente imperativo ser católico, mesmo que se fosse também de orixá. O sincretismo se
funda neste jogo de construção de identidade. O candomblé nasce católico quando o negro
precisa ser também brasileiro”.
Este sincretismo está presente em O Pagador de Promessas, não apenas pela identificação
entre Iansã e Santa Bárbara, mas também na fala de outros personagens (como “Minha Tia” e
o grupo de capoeiristas) e nas manifestações populares de apoio ao Zé. A relação entre as
religiões afro-brasileiras e o catolicismo é rica, complexa e determinada historicamente. “A
sociedade é a esfinge”, afirma Prandi (Id.: 70). Isso significa que a compreensão da evolução
do candomblé e das religiões afro-brasileiras e a forma como se relacionam com o catolicismo
pressupõe o contexto histórico sócio-político.[5]
Não é possível aprofundar este tema no limite deste trabalho. Porém, é importante observar
que a peça em foco é encenada – e filmada – num contexto sócio-cultural favorável. Nos anos
1960, época da contracultura e da valorização do diferente e exótico, as raízes negras foram
revalorizadas pela intelectualidade e classe média urbana, através da música, do cinema e da
arte em geral. A cultura vinculada ao candomblé ganha legitimidade. Isto se explica pelo
processo de modernização da sociedade, inclusive da imigração nordestina para o sudeste, em
especial São Paulo. Prandi (1995/96: 74), analisa este processo e faz referência ao “pagador
de promessas”:
“São anos de produção de uma nova forma de cantar em que elementos da cultura do
candomblé vão se firmando com legitimidade entre as classes médias consumidoras do que se
produz de mais avançado no país. Da Bossa Nova à Tropicália, os baianos estão na ponta da
renovação da música popular brasileira. A música “Canto de Ossanha” de Vinícius e Baden,
ainda com Elis, mas já pela TV Record, é novo marco.Virão Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
Costa, Maria Bethânia, entre os mais importantes. Tudo leva à Bahia: o Cinema Novo, as artes
cênicas. Com O Pagador de Promessas, filme de Anselmo Duarte adaptado da peça de Dias
Gomes, o Brasil se reconhece e se faz reconhecer nas telas do mundo inteiro. Iansã, Santa
Bárbara da promessa, está no centro do enredo: o padre contra, o povo a favor”.[6]
O Pagador de Promessas
Recordemos, em resumo, a história da peça. A tempestade derruba uma árvore e Nicolau, o
burro, é atingido na cabeça por um dos galhos. Ele adoece e piora. Seu dono, desesperado,
faz uma promessa a Iansã (Santa Bárbara). Nicolau se recupera e Zé, carregando uma pesada
cruz de madeira por sete léguas, se dirige à cidade para pagar a promessa. Antes de o sol
raiar, lá está ele e Rosa, sua esposa, defronte a Igreja de Santa Bárbara. Ao amanhecer, o
padre Olavo se dirige até ele, ouve toda a história e lhe nega a permissão para adentrar na
igreja com a cruz, impedindo-o de cumprir a promessa plenamente.
No diálogo entre o Padre Olavo e Zé-do-burro fica explícito a intolerância do representante da
Igreja Católica em relação às crendices populares e à religião de origem africana. Ao narrar os
acontecimentos que motivaram a promessa, a certa altura Zé se refere às rezas do Prêto
Zeferino. O padre questiona e ele, num tom de desculpas, tenta se explicar:
ZÉ – Seu vigário me desculpe, mas eu tentei de tudo. Prêto Zeferino é rezador afamado na
minha zona: sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso êle cura com duas
rezas e três rabiscos no chão. Todo o mundo diz. E eu mesmo, uma vez estava com uma dor
de cabeça danada, que não havia meio de passar. Chamei Prêto Zeferino, êle disse que eu
estava com o Sol dentro da cabeça. Botou uma toalha molhada na minha testa, e derramou
uma garrafa dágua, rezou uma oração, o sol saiu e eu fiquei bom. (p. 43)
O Padre repreende-o:
PADRE – Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo.[7]
Zé – Do demo, não senhor.
PADRE – Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo homem é assim. Vive
atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o
inferno.
ZÉ – Para o inferno? Como pode ser, Padre, se a oração fala de Deus? (Recita.) “Deus fêz o
Sol, Deus fêz a luz, Deus fêz tôda a claridade do Universo grandioso. Com Sua Graça eu te
benzo, te curo. Vai-te Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os
santos podêres do Padre, do Filho e do Espírito Santo.” Depois rezou um Padre Nosso e a dor
de cabeça sumiu no mesmo instante.
SACRISTÃO – Incrível!
PADRE – Meu filho, êsse homem era um feiticeiro.
ZÉ – Como feiticeiro, se a reza é pra curar?
PADRE – Não é para curar, é para tentar. E você caiu na tentação.
ZÉ – Bem, eu só sei que fiquei bom. (pp. 43-44)
O Padre Olavo fala com a autoridade que a Igreja lhe confere. É enquanto tal que demoniza a
crença popular. Zé-do-burro, um homem simples, um homem do campo, expressa em sua
simplicidade a perplexidade diante das verdades que o padre pronuncia. Mas seus
argumentos, embora simples, são comprovados pelos fatos da vida. Ao padre só resta a
demonização e a afirmação de que o homem caiu em tentação.
Não obstante, Zé-do-burro parece não se abalar com o discurso condenatório da autoridade
eclesial. Continuando o relato, conta que as rezas não surtiram efeito para o burro Nicolau.[8]
Então, a comadre Miúda sugeriu que ele fosse ao “candomblé de Maria de Iansã”. O padre,
que até então procurava conter a sua indignação, exclama: “Candomblé?!” Zé responde:
ZÉ – Sim, é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça. (Com a consciência
de quem cometeu uma falha, mas não muito grave.) Eu sei que seu Vigário vai ralhar comigo.
Eu também nunca fui muito de freqüentar o terreiro de candomblé. Mas o pobre Nicolau estava
morrendo. Não custava tentar. Se não fizessem bem, mal não fazia. E eu fui. Contei pra Mãede-Santo o meu caso. Ela disse que era mesmo com Iansã, dona dos raios e das trovoadas.[9]
Iansã tinha ferido Nicolau, pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer dizer: uma promessa.
Mas tinha que ser uma promessa bem grande, porque Iansã, que tinha ferido Nicolau com um
raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. E eu me lembrei então que Iansã é Santa
Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha
roça até a Igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo.
PADRE – (Como se anotasse as palavras.) Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu
isso a...
ZÉ – A Santa Bárbara.
PADRE – A Iansã!
ZÉ – É a mesma coisa...
PADRE – (Grita.) Não é mesma coisa! (Controla-se.)[10] Mas continue... (pp. 44-45)
Zé-do-burro também prometeu, e cumpriu, dividir seu sítio com os lavradores mais pobres. Isto
será utilizado pelo esperto repórter e será um ingrediente a mais no emaranhado de
incompreensões de que será vítima. Porém, o seu maior desafio é convencer o padre a deixálo entrar na igreja com a cruz e, assim, pagar a promessa. Afinal, a graça foi alcançada e o
burro Nicolau foi curado. Para o Zé, foi um milagre. “Só eu e ele [o burro] sabíamos do milagre.
(Como que retificando.) Eu, êle e Santa Bárbara”, frisa Zé. (p.46)
Em sua simplicidade Zé-do-burro não atenta que seus argumentos irritam ainda mais o vigário.
Em sua maneira de conceber a religiosidade, não há qualquer contradição em acreditar em
Deus, Santa Bárbara e buscar o socorro da divindade do candomblé. Isto é inconcebível para o
vigário:
PADRE – (Procurando, inicialmente, controlar-se.) Em primeiro lugar, mesmo admitindo a
intervenção de Santa Bárbara, não se trataria de um milagre, mas apenas de uma graça. O
burro podia ter-se curado sem intervenção divina.
ZÉ – Como, Padre, se êle sarou de um dia pro outro...
PADRE – (Como se não o ouvisse). E além disso, Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder
uma graça, não iria fazê-lo num terreiro de candomblé!
ZÉ – É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara. Mas no
candomblé tem uma imagem de Iansã, que é Santa Bárbara...
PADRE – (Explodindo.) Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica. O senhor
foi a um ritual fetichista[11]. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu êsse
sacrifício!
ZÉ – Não, Padre, foi a Santa Bárbara. Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a
minha cruz. E é diante do altar que vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela
fêz por mim! (p. 46)
Zé-do-burro ainda acredita que o padre, apesar de ralhar e condenar a sua atitude, permitirá
que cumpra a promessa. Mas a resposta do vigário será clara, dura e definitiva:
ZÉ – (Em desespêro). Mas Padre, eu prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso cumprir a
minha promessa!
PADRE – Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer parte, menos num antro de feitiçaria.
ZÉ – Eu já expliquei...
PADRE – Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao Diabo!
ZÉ – Padre...
PADRE – Um ritual pagão, que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na
nave de uma igreja!
ZÉ – Mas Padre, a igreja...
PADRE – A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto do Diabo!
ZÉ – Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não pode impedir a minha
entrada. A igreja não é sua, é de Deus.
PADRE – Vai desrespeitar a minha autoridade?
ZÉ – Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara. (pp. 48-49).
O padre se retira e ordena ao sacristão que mantenha a porta principal da igreja fechada. Os
fiéis devem usar a porta da sacristia, pela qual não é possível entrar com a cruz trazida por Zédo-burro. Este fica no meio da praça, tenso, perplexo e revoltado.
O discurso do padre se fundamenta numa concepção de bem e mal que não corresponde à
tradição do candomblé. O dualismo bem/mal é estranho à divindade africana.[12] O candomblé
não faz distinção entre o bem e o mal, como o faz a tradição judaico-cristã.[13] O candomblé
opera num contexto ético diferenciado. Como esclarece Prandi (1995/96: 78):
"A diferença entre o bem e o mal depende basicamente da relação entre o seguidor e seu deus
pessoal, o orixá. Não há um sistema de moralidade referido ao bem-estar da coletividade
humana, pautando-se o que é certo ou errado na relação entre cada indivíduo e seu orixá
particular. A base moral está inscrita no cotidiano pelo catolicismo ou pelos valores não
religiosos da sociedade." [14]
Na medida em que a religião afro é submetida à ótica judaico-cristã torna-se difícil
compreender os seus ritos, simbolismos e divindades. A simplificação dual mal/bem na visão,
por exemplo, do Padre Olavo, induz à identificação da sua religião como a “do bem” e a outra é
identificada ao maligno. A demonização do outro, é claro, também rende dividendos
importantes no mercado dos bens simbólicos religiosos. E, para o sectário e intolerante, é fator
de reafirmação da convicção religiosa.
Essa demonização não se restringe ao discurso do Padre Olavo, mas também se manifesta
entre os fiéis. Na peça, podemos observar este fator através da personagem Beata. É
ilustrativo o diálogo que ela mantém com Minha Tia, personagem devota de Iansã:
MINHA TIA – (Oferece.) Caruru, Iaiá?
BEATA – (Pára junto a ela.) Quê?
MINHA TIA - Caruru de Iansã...
BEATA – (Como se ouvisse o nome do Diabo.) Iansã?! E que é que eu tenho com dona Iansã?
Sou católica apostólica romana, não acredito em bruxarias!
MINHA TIA – Adiscurpe, Iaiá, mas Iansã e Santa Bárbara não é a mesma coisa?
BEATA – Não é não senhora! Santa Bárbara é uma santa. E Iansã é... coisa do candoblé, que
Deus me perdôe! (Benze-se repetidas vêzes e sai.) (GOMES, 1972: 108-109).
Padre Olavo permanece intransigente, Zé também. A inflexibilidade do primeiro se vincula à
concepção sobre a proeminência da religião católica e a demonização da religião afrobrasileira. Ele está convicto de que defende os valores cristãos, a igreja católica e a divindade
que acredita. A convicção em si não é boa ou má, mas pode causar efeitos traumatizantes em
relação ao “outro”, isto é, àquele que não partilha de tal convicção com a mesma intensidade.
Zé também acredita em Deus, se declara católico e respeita a igreja. Mas não pode recuar,
pois seria descumprir a promessa – a qual, aliás, é para Santa Bárbara; ele se mostra mais
tolerante em relação ao candomblé, na medida em que reconhece a identificação entre esta e
Iansã. Zé não pode aceitar o discurso demonizador do padre e nem compreender a relutância
deste em negar seu direito de pagar a promessa feita. E, sobretudo, seus valores morais,
próprios do homem do campo naquele contexto sócio-histórico, não permitem-no aceitar outra
alternativa que o impeça de cumprir a palavra dada à santa. São dois mundos completamente
diferentes que não podem confluir para uma solução intermediária. Nesta perspectiva, e
considerando-se a sinceridade da convicção religiosa de ambos, o padre e o pagador de
promessas, é quase impossível sair do impasse. Diante da fé absoluta não há saída possível e,
no limite, todos têm razão.
Diante do impasse, torna-se necessário a interferência da autoridade superior. Entra em cena o
Monsenhor. Sua intervenção pretende demonstrar o quanto a igreja é tolerante. Diante do
público que acompanha a contenda entre o padre e o pagador de promessas, ele afirma que foi
designado pelo superior hierárquico para cuidar do caso e “dar uma prova de tolerância da
igreja para com aquêles que se desviam dos cânones sagrados...” (86). A tolerância é
delimitada por aquilo que o Monsenhor acredita ser o cânone, a verdade da igreja. O diálogo a
seguir explicita seus limites:
ZÉ – (Interrompe). Padre, eu sou católico. Não entendo muita coisa do que dizem, mas queria
que o senhor entendesse que eu sou católico. Pode ser que eu tenha errado, mas sou católico.
MONSENHOR – Pois bem. Vamos lhe dar uma oportunidade. Se é católico, renegue todos
os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio da Santa Madre Igreja.
ZÉ – (Sem entender). Como, Padre?
MONSENHOR – Abjure a promessa que fêz, reconheça que foi feita ao Demônio, atire fora
essa cruz e venha, sózinho, pedir perdão a Deus.
ZÉ – (Cai num terrível conflito de consciência). O senhor acha mesmo que eu devia fazer
isso?!
MONSENHOR – É a sua única maneira de salvar-se. A igreja católica concede a nós,
sacerdotes, o direito de trocar uma promessa por outra.
ROSA – (Incitando-o a ceder). Zé... talvez fôsse melhor...
ZÉ – (Angustiado). Mas Rosa... se eu faço isso, estou faltando à minha promessa. Seja
Iansã, seja Santa Bárbara, estou faltando...
MONSENHOR – Com a autoridade de que estou investido, eu liberto dessa promessa, já disse.
Venha fazer outra.
PADRE – Monsenhor está dando uma prova de tolerância cristã. Resta você escolher entre a
tolerância da igreja e a sua própria intransigência.
ZÉ – (Pausa). O senhor me liberta... mas não foi ao senhor que fiz a promessa, foi a Santa
Bárbara. E quem me garante que como castigo, quando eu voltar pra minha roça não vou
encontrar meu burro morto. (86-87)
O Monsenhor, apesar de parecer tolerante, reproduz o discurso do Padre Olavo. Ele procura
persuadir o outro de que o único caminho possível é aceitar e se submeter. Zé vê-se diante do
dilema de renegar a promessa e, assim, em sua forma de ver a relação com a divindade,
colocar a vida do burro amado em risco.
A intermediação do Monsenhor se faz na perspectiva formal e dogmática manifestada pelo
padre Olavo. O Monsenhor também parte do princípio de que Zé cometeu uma heresia e a
igreja não pode ser condescendente. Sua proposta também se mostra inviável, pois se choca
com a concepção religiosa e de mundo do Zé-do-burro. A inflexibilidade de Zé-do-burro, na
análise de Anatol Rosenfeld, “decorre da defesa das convicções profundas, ligadas aos
padrões arcaicos do sertão”. Segundo Rosenfeld:
“A religiosidade arcaica e o ingênuo sincretismo de Zé, para quem Iansã e Santa Bárbara, o
terreiro e a Igreja, tendem a confundir-se, se chocam inevitavelmente com o formalismo
dogmático do padre que, ademais, não pode admitir a promoção do burro a ente digno de
promessas” (Id., p. XIV).
Rosenfeld mostra-se transigente em relação à Igreja, a qual teria atenuado a sua postura a
partir da intervenção do Monsenhor. Parece-nos que a tolerância deste apenas confirma a
intolerância já explicitada pelo Padre Olavo. Se para o analista “ambos têm razão; mas ambos
pecam pelo excesso”, ele concorda que Zé-do-burro
“não pode renunciar sem renunciar à sua dignidade e, portanto, à sua própria substância
humana que se afirma no cumprimento do imperativo, para êle absoluto, contra as resistências
dos outros e mesmo contra as resistências do impulso pessoal de auto-conservação, que
deveria impor-lhe o resguardo não só da própria vida, mas sobretudo da honra de marido iberoamericano, em face do desencaminhamento da mulher pela cidade” (Id.).
Zé-do-burro termina por angariar a simpatia. Ele representa os valores morais íntegros, ainda
que ingênuos, é o Davi contra Golias, ou seja, um indivíduo que, em sua simplicidade e sem
outros recursos senão o próprio argumento e a sua determinação em pagar a promessa,
enfrenta uma poderosa organização religiosa, “munida de todos os argumentos e de tôda a
lucidez racional”. Rosenfeld demonstra, então, que a atitude da igreja se revelou aquém do
necessário e do que se poderia esperar:
“Mesmo buscando a conciliação, mesmo provida pelo autor de razões convincentes, ela não
parece fazer jus às expectativas de sabedoria, caridade e tolerância em face do indivíduo
simples, puro e frágil, no seu desespêro solitário e na sua fé ingênua. As próprias
concessões acabam confirmando a intolerância que, na palavra de Sábato Magaldi, se
erige na peça “em símbolo da tirania de qualquer sistema organizado contra o indivíduo
desprotegido e só”[15] (p. XV).
Eis a esfinge decifrada. O contexto histórico e social, isto é, o processo de modernização e as
transformações pelas quais passava a sociedade na época corroboram para o sucesso da
peça e do filme.
Considerações conclusivas...
Se considerarmos a sua sociedade enquanto uma realidade contraditória e em movimento, é
possível rompermos com o determinismo de cunho político e economicista. Se a sociedade
modela o indivíduo e determina os limites da sua ação, este, por ser agente histórico e ativo,
também pode influir sobre os rumos da sociedade. Assim, a intolerância e o preconceito não
são fixos e naturais, mas algo que interage com os diferentes contextos sociais. Diferentes
épocas podem dificultar ou favorecer sua manifestação. E, mesmo em tempos sombrios,
sempre há indivíduos cujas posturas contribuem para o questionamento e superação da
intolerância, ainda que sejam minoritários e talvez não se façam ouvir.
A peça de Dias Gomes é uma contribuição fundamental para que possamos pensar as
relações entre as diversas religiões e a necessidade de desenvolvermos meios e
comportamentos que favoreçam a tolerância religiosa. Pois, mesmo hoje os novos cruzados
semeiam os ventos da intolerância. Os tempos são outros, mas o acirramento da competição
no mercado de salvação das almas termina por reproduzir as pequenas e grandes inquisições
que opõem o bem ao mal. A demonização da religião considerada como concorrente ainda é
um recurso muito utilizado.
Na sociedade em tempos de globalização parece acirrar-se a intolerância religiosa. No tempo
presente, apesar de toda a sua evolução social e tecnológica, persistem o preconceito e a
intolerância expressados na obra dos anos 1960. São renitentes e revitalizados não apenas por
setores da Igreja Católica, mas também por outros grupos religiosos vinculados ao
neopentecostalismo. Como ressalta Prandi:
“O neopentecostalismo leva ao pé da letra a idéia de que o diabo está entre nós, incitando seus
seguidores a divisá-lo nos transes rituais dos terreiros de candomblé e umbanda. Pastores da
Igreja Universal do Reino de Deus, em cerimônias fartamente vinculadas pela televisão,
submetem desertores da umbanda e do candomblé, em estado de transe, a rituais de
exorcismo, que têm por fim humilhar e escorraçar as entidades espirituais afro-brasileiras
incorporadas, que eles consideram manifestações do demônio” (PRANDI, 2004: 229).
Esses e outros contendores fazem o papel que a polícia cumpriu em relação aos cultos afros e
“fazem da perseguição às crenças afro-brasileiras um ato de fé, o que se pode testemunhar
tanto no recinto fechado dos templos como no ilimitado e público espaço da televisão e do
rádio” (id.). Antes, o braço do Estado fazia o papel de guardião das “boas” religiões, em
especial o catolicismo. Agora são, predominantemente, os novos cruzados, através de
poderosos meios de comunicação, que cumprem este papel. Expressa uma intolerância ainda
mais intensa, pois nasce e se alimenta na própria sociedade e se pretende cumprir a função
purificadora do bem contra o mal. Com efeito, a demonização do outro é um recurso importante
não apenas para ganhar adeptos, mas também para purgar culpas. Se a arte expressa a
realidade, ela permanece atual.
* Agradeço à Profª Drª Cleyde Rodrigues Amorim (DCS/UEM) pela leitura, revisão e sugestões.
[1] Dirigida por Anselmo Duarte, a versão cinematográfica da peça conquistou a Palma de Ouro do Festival
de Cannes de 1962, e vários prêmios nacionais e internacionais.
[2] O texto de O Pagador de Promessas que utilizamos é parte de: GOMES, Dias. Teatro de Dias Gomes. RJ:
Civilização Brasileira, 1972, pp. 01-117.
[3] “O candomblé da Bahia, sem dúvida o de mais esplendor de todo o Brasil, que ainda agora serve de
espelho a todos os outros cultos, tem uma designação com que não concordam seus adeptos, embora não
tenham uma palavra melhor para substituí-la. Uma das danças outrora correntes entre os escravos, nas
fazendas de café, era o candomblé. Este era o nome dado a certo tipo de atabaques”, afirma CARNEIRO
(1964: 127).
[4] “Eram religiões de preservação do patrimônio étnico dos descendentes dos antigos”, escreve PRANDI
(2004: 223). Isso se transformou com o passar do tempo, com estas religiões adquirindo um caráter
universal. Segundo Prandi, elas desprenderam-se “das amarras étnicas, raciais, geográficas e de classes
sociais. Não tardou e forma lançadas no mercado religioso, o que significa competir com outras religiões na
disputa por devotos, espaço e legitimidade” (id.).
[5] “Em resumo”, escreve Prandi, “ ao longo do processo de mudanças mais geral que orientou a
constituição das religiões dos deuses africanos no Brasil, o culto aos orixás primeiro misturou-se ao culto dos
santos católicos para ser brasileiro, forjando-se o sincretismo; depois apagou elementos negros para ser
universal e se inserir na sociedade geral, gestando-se a umbanda; finalmente, retomou suas origens negras
para transformar também o candomblé em religião para todos, iniciando um processo de africanização e de
dessincretização para alcançar sua autonomia em relação ao catolicismo. Nos tempos atuais, as mudanças
pelas quais passam essas religiões são devidas, entre outros motivos, à necessidade da religião se expandir
para enfrentar de modo competitivo as demais religiões. A maior parte dos seguidores das religiões afrobrasileiras nasceu católica e adotou a religião que professa hoje em idade adulta. Não é diferente para
evangélicos e membros de outros credos” (PRANDI, 2004: 224).
[6] Essa transformação também é interna, isto é, no âmbito do da cultura negra e sua relação com a
sociedade de consumo em geral. A identidade negra também passa por mutações. (Ver SANSONE, 2000).
[7] As citações mantêm a ortografia original e os grifos são nossos.
[8] È importante observar os laços de amizade entre Zé e o burro, a tal ponto que dão-lhe o apelido de “Zédo-burro”. “Nicolau não é um burro como os outros. É um burro com alma de gente”, diz Zé (p.44). O padre
fica indignado com esta fala.
[9] Cultuada no Candomblé e na Umbanda, Iansã é um Orixá feminino. Na África ela é Oyá, deusa do
Níger. Oyá, Oxún e Obá, que também dão nomes a rios da nação nagô, são esposas de Xangô. Iansã /Oyá é
a deusa dos ventos e da tempestade, foi uma princesa real na cidade de Irá, na Nigéria em 1450 a.C. No
sincretismo religioso, Iansã é associada a Santa Bárbara, a qual também é invocada pelos fiéis diante dos
perigos da tempestade.
[10] Os parênteses incluídos por Dias Gomes sugerem ao leitor o tom da fala, a reação dos personagens etc.
Não tive a oportunidade de assistir a peça, mas sim a versão cinematográfica. Então, os diálogos ganham
vida e é impossível permanecer impassível diante do que vemos e ouvimos. Isto sugere que o leitor e/ou
espectador dificilmente se manterão neutros.
[11] Observe-se a linguagem do padre.
[12] Hoje, por exemplo, o discurso dos grupos religiosos que combatem o candomblé e a umbanda, por
exemplo, afirma a malignidade do orixá Exu. Eles identificam o maligno com a religião afro em sua
totalidade. Se isto é usado para fins de disputa do mercado religioso, também é uma demonstração de
ignorância, o que favorece a intolerância e preconceito. Já no final dos anos 1950, CARNEIRO (1964, 133),
observava que Exu “tem sido equiparado ao diabo cristão por observadores apressados”. Ele “serve de
correio entre os homens e as divindades, como elemento indispensável de ligação entre uns e outras. Todos
os momento iniciais de qualquer cerimônia, individual ou coletiva, pública ou privada, lhe são dedicados para
que possa transmitir às divindades os desejos, bons ou maus, daqueles que a celebram”.
[13] Esta tradição tem dificuldade em reconhecer as características peculiares da cultura e religiões
africanas. A colonização impôs a integração e a exclusão dos diferentes, o outro. A intolerância não é restrita
á religiosidade, mas tem fundamentos econômicos e sociais e abrange a cultura, costumes e tradições.
ORTIZ (1978), também analisa o processo de demonização de Exu, “o anjo decaído”. (Ver ainda “Por que
Exu é o primeiro?, de Reginaldo Prandi).
[14] Ver também PRANDI (2004: 228): “Para o candomblé, que está mais perto do pensamento africano
que a umbanda, o bem e o mal não se separam, não são campos distintos”.
[15] A referência de Rosenfeld é: Sábato Magaldi, Panorama do Teatro Brasileiro, Difusão Européia do
Livro, São Paulo, 1962. Os grifos são nossos.
"O Pagador de Promessas"
de Anselmo Duarte
por Joaquim Cardia Ghirotti*
Interessante retrato da miscegenação religiosa brasileira, "O Pagador de Promessas" tem em
sua maior preocupação destacar a sincera ingenuidade e devoção do povo, em oposição a
burocratização imposta pelo próprio sistema católico em sua organização interior. "Zé do
burro", um homem simples do campo trata de cumprir sua promessa (ou tentar) após ter tido
Nicolau, seu burro, curado devido a promessa feita a Santa Bárbara. O que deveria ser um
simples ato de fé toma proporções gigantescas quando Zé é barrado pelo vigário local, que o
impede de entrar na igreja carregando a cruz que havia prometido.
Os interesses locais então se voltam para o pequeno caso, e cada segmento social da cidade
quer tomar partido da situação da forma que puder. Os jornalistas se interessam pelo caso
levantando a bandeira de partirem em defesa da "liberdade de expressão" que o vigário estaria
colocando em jogo, ou pelo menos pretendem parecer estar fazendo isso, mas na verdade,
como é colocado na primeira cena que se dá dentro da redação do jornal eles precisam de
notícias que façam dinheiro, e não de notícias de qualidade. O texto de Dias Gomes é, nesse
ponto, direto e até um tanto quanto maniqueísta, as intenções são desmascaradas demais, não
há sutileza nas palavras dos oportunistas, o que da a tudo uma leve obviedade. Nem os
clérigos, que exigem de Zé uma "retificação" de sua promessa vem com meias palavras em
seus discursos sobre como o evento pode alterar e afetar a estrutura interna (ao fazer uma
concessão e deixar Zé cumprir sua promessa) e a visão política externa que se tem da igreja:
eles sabem que se trata de um acontecimento com repercussão social e é apenas isso que
lhes interessa, não a genuina devoção de Zé e seu ato. Políticos se aproximam dele pedindo
apoio, mães de santo defendem-no como representante do candomblé, até mesmo o contador
de histórias oferece seus talentos como proseador para imortalizar a história, do seu ponto de
vista. Ele passa a ser visto como santo e mártir, e ao mesmo tempo é um infiel para igreja e um
criminoso arruaceiro para polícia. Cada instituição passa a legitimar sua presença, ou condenala, da forma que lhe cabe, Zé passa a ser um exemplo dos excluídos sociais e tem a ele
agregado o ideal de injustiça e liberdade desejado pelo povo, é associado a "revolução" social,
a "reforma agrária" e classificado como "comunista" sem ao menos ter idéia do que são estes
conceitos tão alienígenas ao seu universo. Temos que os grupos sociais passam a projetar
nele suas perspectivas e crenças, ele deixa de ser um indivíduo para tornar-se um ícone,
maleável de acordo com os interesses de quem se aproxima e defende suas teses usando Zé
como exemplo. Ele deixa de ser um homem com um propósito pessoal na situação em que se
colocou, pois passa a ser colocado pelo meio em que está. Martirizado, ele torna-se o novo
Cristo local, e através de sua morte é imortalizado como ícone, sem conseguir simplesmente
pagar a sua promessa.
Mas é isso que interessa a Dias Gomes e Anselmo Duarte: a devoção sincera e ingênua de um
povo que desconhece as raízes históricas e sociais de seus cultos, e transforma tudo em um
amálgama eficaz de crenças que se inter-relacionam em harmonia, a despeito de suas origens
históricas, sociais, geográficas e culturais divergentes. O povo tudo adapta, e o povo brasileiro
cria sua cultura a partir desses elementos heterogêneos. Não importa se no candomblé Santa
Bárbara chama-se Iansã, se a promessa foi feita em um terreiro e está sendo entregue em uma
igreja, se Zé carrega nas costas uma cruz no interior da Bahia enquanto Cristo o fez a 2000
anos atrás em Jerusalém. A sinceridade com que o povo cria o seu meio, a suas crenças e
como isso se reflete de forma concreta em seus atos é o que interessa a Gomes. A pureza
desses atos e da mentalidade simples desse povo entram em conflito direto com a complicada
hierarquização e politicagem da igreja católica organizada, que não faz sentido e tampouco
interessa a esse povo.
O filme conta com uma produção técnica excelente, apoiada pela fotografia de Chick Fowle
(alguns ângulos de câmera como a igreja de cabeça para baixo ao final e a visão de Zé
sentado a escadaria sendo filmado através das grades, preso a situação em que está, mostram
alguns toques especiais), edição concisa de Carlos Coimbra e excelente e segura direção de
Anselmo Duarte, um estreante, faz excepcional trabalho com os atores (destacam-se Leonardo
Vilar, passando toda a humildade e sinceridade de Zé e Glória Menezes como sua
companheira aflita, assim como Norma Bengell que passa grande credibilidade retratando uma
personagem instável e difícil) e consegue um gradual desenvolvimento da narrativa até o
clímax final, que se fecha de forma densa e sublime.
Jaquim Guirotti é cineasta, formado em Cinema pela FAAP.
O Pagador de Promessas - Dias
Gomes - resumo
Encenada pela primeira vez a 29 de julho de 1960, no Teatro Brasileiro de Comédia (São
Paulo), essa peça marca o início da segunda fase do teatro de Dias Gomes e sua consagração
como um dos mais destacados dramaturgos contemporâneos do Brasil. Considerada por Anatol
Rosenfeld como uma tragédia, no sentido clássico do termo, O Pagador de Promessas, segundo
o próprio Dias Gomes, “é a história de um homem que não quis conceder - e foi destruído”.
Trata-se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco, ser encenado. A peça
é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros
cada um. Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do
protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e
termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato
traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do
cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta
vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as
incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho.
Primeiro ato. Primeiro quadro.
A ação da peça tem início nas primeiras horas da manhã (4 e meia), numa praça, em frente a
uma igreja, em Salvador. O personagem denominado Zé do Burro carrega uma cruz e se aloja
na frente da igreja. A seu lado Rosa, sua mulher, apresentada como tendo "sangue quente" e
insatisfação sexual. Zé espera a igreja abrir para cumprir sua promessa, feita a Santa Bárbara.
Aparecem no lugar, algum tempo depois, Marli e Bonitão: ela prostituta; ele, gigolô. Há uma
clara relação de exploração e dependência entre eles. Encontrando Zé, Bonitão dirige-se a ele e
percebe ser alguém ingênuo. Rosa, por sua vez, conversando com o gigolô, queixa-se de Zé,
contando que ele, na sua promessa, dividiu suas terras com lavradores pobres. Percebendo a
ingenuidade, Bonitão propõe-se a providenciar um local para Rosa descansar. Zé não só aceita,
como incentiva. Saem os dois, Bonitão e Rosa, de cena.
Segundo quadro.
Aos poucos, começa o movimento ao redor da praça. Aparecem a Beata, o sacristão e o Padre
Olavo, titular da igreja. Zé explica a promessa: Nicolau foi ferido com a queda de uma árvore;
estando para morrer, Zé fez a promessa. O burro - Nicolau é um burro! - salva-se.
Ingenuamente, Zé revela ter usado as rezas de Preto Zeferino e feito a promessa num terreiro de
candomblé, a Iansã, equivalente afro de Santa Bárbara. O padre fica escandalizado. Estabelecese o conflito. O sincretismo Iansã - Santa Bárbara, natural para Zé do burro, é um grandioso
pecado para o padre. A situação agrava-se com a revelação da divisão de terras. Impasse. O
padre manda fechar a igreja e proíbe o cumprimento da promessa. Zé do burro fica atônico.
Segundo ato. Primeiro quadro.
Duas horas mais tarde, já a movimentação no lugar é intensa. O Galego, dono do bar, abriu seu
estabelecimento. Surgem Minha Tia, vendedora de acarajés, carurus e outras comidas típicas,
Dedé Cospe-Rima, poeta popular, ao estilo repentista e o Guarda. Zé do burro quer cumprir a
promessa. O Guarda tenta intervir. Rosa reaparece com "ar culpado". Chega o Repórter.
Seguindo a linha do oportunismo sensacionalista, o repórter quer tirar vantagens da história de
Zé do Burro. Quer torná-lo um mártir, para virar notícia. Enquanto isso descobre-se que Rosa
transou com Bonitão. Marli faz um pequeno escândalo, denunciando a história Rosa-Bonitão.
Segundo quadro.
Três da tarde, Dedé oferece poemas para Zé, a fim de derrotar o Padre. Aparecem, em
momentos subseqüentes, o capoeirista Mestre Coca e o policial, o Secreta, chamado por
Bonitão, ficando ambos, por enquanto, nas cercanias. Zé começa a perder a paciência e arma
uma gritaria. O padre reage. Chega o Monsenhor, autoridade da igreja, propondo a Zé uma
solução: ele, Monsenhor, na qualidade de representante da Igreja, pode liberar Zé da promessa,
dando-a por cumprida. Zé não aceita, dizendo que promessa foi feita à Santa e só ela poderia
liberá-lo. Segue o impasse. Zé explode novamente e avança com a cruz sobre a Igreja. O padre
fecha a porta. Zé, já desesperado, bate com a cruz na porta. O drama é total.
Terceiro ato.
Entardecer. Muita gente na praça e nos arredores da Igreja. Há uma roda de capoeira. O Galego,
oportunista, oferece comida grátis a Zé, pois a história está trazendo movimento ao seu bar. O
Secreta, no bar, avisa que a polícia prenderá Zé, ameaçando os capoeiristas, caso eles interfiram.
Marli volta. Ofende Rosa, ofende Zé. O protagonista parece mudar de atitude. Resolve ir
embora "à noite". Rosa quer ir embora já. Conta que Bonitão avisou a polícia. Retorna o
repórter, que tenta montar um verdadeiro circo em torno do Zé, com o objetivo de vender o
jornal. Chega Bonitão e convida Rosa para ir com ele. Zé pede a ela para ficar. Rosa hesita, a
princípio, mas, em seguida, vai com Bonitão. Mestre Coca avisa Zé sobre a chegada da polícia.
Zé está perplexo: "Santa Bárbara me abandonou". Da igreja saem o Sacristão, o Guarda, o Padre
e o Delegado. Tensão da cena acentua-se. Zé ainda tenta, ingênua e inutilmente, explicar alguma
coisa. Ao ser cercado, puxa uma faca. As autoridades reagem. Os capoeiristas também. Briga e
confusão. De repente, um tiro espalha gente para todos os lados. Zé é mortalmente ferido.
Mestre Coca olha para os companheiros, que entendem a mensagem. Os capoeiristas tomam o
corpo do Zé colocam-no sobre a cruz e, ignorando padre e polícia entram na igreja, carregando a
cruz.
A peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões socio-culturais da
vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim,
ganha força no drama a visão crítica quanto:
a) à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na
insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar
com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
c) à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter,
completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão
que a história pode ter;
d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue
compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a
imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros
códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o
gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico
aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra-se com fim
inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades
da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes
camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada
dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade
daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro.
DA PÓLIS GREGA ÀS LADEIRAS DO PELOURINHO
(ANÁLISE DO FILME O PAGADOR DE PROMESSAS E AS VIRTUDES DE ZÉ
DO BURRO)
PAIVA, Carla – UNEB – [email protected]
LOBO, Júlio César – UNEB/UFBA – [email protected]
GT: Educação e Comunicação / n. 16
Agência Financiadora: Sem Financiamento
As reflexões que se seguem pretendem trazer uma contribuição para o estudo da virtude
e sua relação com a educação, priorizando a análise dos signos da “nordestinidade”
presentes no filme O Pagador de Promessas (1962), dirigido pelo paulista Anselmo
Duarte1. O ponto de partida desta especulação é a veiculação da figura de Zé do Burro
(Leonardo Vilar), personagem principal do drama fílmico, como um “herói” do sertão
ou um “novo Cristo”. Questiona-se, aqui, se os valores apresentados por Zé do Burro
caracterizam-no como um homem virtuoso e por quê.
O filme de Anselmo Duarte poderia ser objeto de estudo por sua continuidade,
equilíbrio de composição, uniformidade técnica, trilha sonora, encadeamento e
desenvolvimento das ações ou jogo de câmaras. No entanto, torna-se relevante no
momento indagar inicialmente duas coisas: a) no Pagador de Promessas, uma
adaptação do texto de Dias Gomes para o teatro, há uma proximidade com o gênero
trágico da Antiguidade Clássica? e b) que tipo de identidade social nordestina é
construído pela caracterização do seu protagonista ?
O filme O Pagador de Promessas, caracterizado por muitos críticos como um embate
entre a fé ingênua do povo e a fé institucionalizada da igreja como instituição contrária
ao homem2, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes como melhor
longametragem.
Além disto, a sua temática (sincretismo religioso e oposição entre o mundo
urbano e rural) continua atualizada, merecendo uma nova leitura, uma nova
significação. A película guarda os mesmos diálogos da peça, mantendo uma estrutura
narrativa que privilegia a representação do homem nordestino a partir de uma ótica
1 Anselmo
Duarte nasceu em 1920 e dirigiu o seu primeiro filme, em 1957, Absolutamente Certo.
filme O Pagador de Promessas por abordar estas questões era considerado um filme de esquerda e
em alguns países católicos, como Espanha e Itália, a Igreja Católica tentou evitar sua exibição (MERTEN,
2004).
2O
2
relativizada, com alicerce em signos estereotipados de nordestinidade com destaque
para o conceito de virtude.
Para Comte-Sponville (1999), a “virtude pode ser melhor aprendida mais pelo exemplo
do que pelos livros”, portanto a representação de personagens virtuosos no cinema
brasileiro colabora para a construção da lógica da identificação e da semelhança (p. 1).
Paradoxa e simultaneamente, a morte de Zé do Burro se apresenta como o fim
inevitável para o choque cultural violento, que se opera no filme, entre o interior
nordestino e o centro urbano, demonstrando o fosso que separa o Brasil urbano do
Brasil rural. A “crucificação” e entrada de Zé do Burro na igreja estabelecem o caos,
virando a “Igreja de cabeça para baixo”, como foi explicitado nas últimas imagens
fílmicas (NASCIMENTO, 1981, p. 47), mas isso também sucinta três questões no
mínimo: a) Zé do Burro é apenas um nordestino “teimoso”? b) Zé do Burro é um
“virtuoso”? e c) o que se aprende com a sua “birra” e sua morte?
Com o fenecer de Zé do Burro, pode-se aprender que valores como a coragem de Zé
(um tipo de virtude presente nesta personagem) em enfrentar a “superioridade social” da
Igreja e seu poder instituído - em cenas, por exemplo, como aquela em que o
protagonista bate sua enorme cruz contra a porta da igreja de Santa Bárbara perpetuam-se na história da humanidade. Por se tratar de habilidades e aptidões que se
convertem em força educativa dentro do todo social, as virtudes ora são difundidas pelo
ensino em diversas disciplinas do currículo escolar como Educação Moral e Cívica ou
Filosofia, ora são disseminadas por intermédio das pessoas que a representam
socialmente, como Zé do Burro.
O filme O Pagador de Promessas começa numa cadeia de planos montados para
caracterizar o terreiro de Iansã e uma ação em particular, nas primeiras horas da manhã:
a promessa de Zé do Burro3 diante da imagem da Iansã - Santa Bárbara. Em seguida,
mostra-se a saída de Zé do Burro - assim denominado por andar sempre acompanhado
por um burro – do interior baiano para uma igreja em Salvador, na companhia de sua
esposa Rosa (Glória Menezes). Zé carrega uma cruz, a fim de pagar uma promessa feita
a Santa Bárbara, e avança por diversos tipos de vegetação em direção a Salvador,
3O
ator Leonardo Vilar se mudou para Salvador antes do início das filmagens e teve que emagrecer,
segundo instruções de seu diretor, 12 quilos para atingir o aspecto de nordestino pobre (MERTEN, 2004).
3
passando por intempéries climáticas, como sol e chuva, calor e frio, ao som de uma
música tocada no berimbau a qual conota a idéia de luta e afirmação em prol de cumprir
sua missão.
Durante sua passagem pelas cidades interioranas a caminho do centro urbano, Zé do
Burro é reverenciado com respeito pelas pessoas (sertanejos nordestinos, mulheres e
crianças), que o saúdam até sua chegada em Salvador, na escadaria da igreja de Santa
Bárbara, quando os curiosos riem e depois investigam o porquê de sua jornada religiosa.
Indagado pelos motivos que o levaram ao flagelo (carregar uma cruz semelhante à de
Jesus Cristo de sua propriedade à capital), Zé do Burro explica que sua promessa se
deve à cura de seu animal, o burro Nicolau, que fora ferido com a queda de uma árvore
após um raio e corria risco de vida, só obtendo o restabelecimento da saúde após um
compromisso assumido com Santa Bárbara, através de uma imagem em um terreiro de
candomblé de sua cidade.
Pequeno proprietário rural, exemplo de fé e convicção íntima, Zé do Burro é impedido
de cumprir a finalidade de sua peregrinação – levar a cruz até o altar de Santa Bárbara pela intransigência política e religiosa caracterizada na figura do Padre Olavo (Dionísio
Azevedo), que considera a sua promessa como uma blasfêmia, uma ofensa a Deus, uma
vez que a Santa havia sido “confundida” com um orixá. Inicia-se assim o drama de Zé
do Burro.
Zé do burro na pólis grega
Desde as primeiras imagens, o filme O Pagador de Promessas encadeia ações, que
claramente nos remetem à Grécia e suas tragédias. Como se sabe, a tragédia é um
gênero que apresenta um choque entre forças opostas (mundo mítico versus racional).
Tendo como personagem central o herói, “uma espécie de semi-deus”, que, submetido a
intempéries, passava por um processo de “metamorfose do negativo ao positivo” ou por
uma “queda resplandecente em grandeza física e espiritual” (KOTHE, 1987, p. 12; 25),
as tragédias eram imitações de ação de caráter elevado, constituída por diversas partes,
entre as quais o coro, um acontecimento aterrorizante e o herói trágico.
O herói clássico é evidenciado como um indivíduo de uma “classe alta, um híbrido”,
cujas peculiaridades oscilavam entre ser forte ou fraco, bom ou mau, mas, sobretudo,
4
por sua “condição de superioridade diante dos outros homens” por saber se engrandecer
através das condições que o destino lhe oferecia (KOTHE, op. cit, p. 25 - 29).
Considerando o sofrimento por qual passa Zé do Burro, por seu final apocalíptico e em
especial pela caracterização de seu personagem, nitidamente marcado pela ingenuidade
e pela obstinação em cumprir sua promessa, podemos compará-lo, em linhas gerais, às
figuras trágicas na dramática aristotélica.
Segundo Lígia Costa (1988), o herói trágico “quer guiar-se por seu próprio caráter, [...]
goza de reputação e fortuna, mas pode cair na desdita, por incorrer em erro (hamartia),
quando impulsionado pela desmedida (hybris)” [p.9-10]. Em outras palavras, na
tragédia, a personagem principal pode ser denominada como herói se o
desenvolvimento de suas ações implicar no enfrentamento entre razão e destino, o
mítico e o racional, o destino (moira) e a necessidade (anaké). Kothe (1987) chama a
atenção ainda para o fato do herói trágico ser aquele que “descobre a mão-de-ferro do
poder, do destino, da história: [...] que o seu agir foi errado; [...] que não devia ter feito
tudo o que fez; [...] que é o mais fraco na correlação de forças, embora aparente ser o
mais forte, ou ainda que tenha acreditado ser o mais forte” (p. 26).
Nas imagens de O Pagador de Promessas, ao marcar a oposição entre o “mundo
mercantil da cidade e a consciência ingênua” do nordestino da área rural, Zé do Burro
assume a postura de herói trágico e a condição de elemento transcendente, capaz de
revelar todos os passos do “jogo social” (XAVIER, 1983, p. 50). Simultaneamente, ele
adquire o corpus do nordestino simplório e honesto, cuja atenção apenas está voltada
para o cumprimento de uma dívida de fé, descobrindo essa força do destino tão
característica do gênero trágico grego (KOTHE, 1987, P. 13). Uma cena ilustra este
destaque é o momento do olhar atento de Zé do Burro à Santa no andor e sua demorada
contemplação da imagem, cuja ascensão pela escadaria (que cria um espaço dramático,
forte, fechado e claustrofóbico diante das situações) ele acompanha hipnotizado.
Reiterando o envolvimento pessoal de Zé do Burro e seu compromisso com a fé, a
câmara mostra seu movimento totalmente alheio a multiplicidades de olhares e
acontecimentos.
No Pagador de Promessas, portanto, centra-se o discurso fílmico na figura de um
mártir, que desenvolve sua existência numa dimensão funesta, características trágicas,
que não são apenas gregas, mas apresentam, através de ocorrências de dor, fome,
5
miséria e morte, aspectos que discutem condições de vida, educação, política e
economia, aproximando a narrativa fílmica de traços típicos da tragédia grega clássica.
Considerando os estudos de Hall (1998) sobre a construção das identidades nacionais,
pode-se afirmar que a categorização da identidade social nordestina, paulatinamente, vai
sendo construída pelo discurso cinematográfico, que opera como um “sistema de
representação cultural”, promovendo nas pessoas o “sentimento de participação (ou
não)” da idéia de ser nordestino por se sentir simbolizado por esta cultura regional
(compondo uma comunidade simbólica) [p. 47-48].
Desse modo, é preciso conceber a identidade como uma construção que ocorre “dentro e
não fora do discurso”, um mecanismo que emerge “no interior do jogo de modalidades
específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da
exclusão do que o signo de uma unidade idêntica [...], uma mesmidade que tudo inclui”
(HALL, 2000, p. 109), o que caracteriza bem, no caso em estudo, a concepção do
Nordeste brasileiro representada pelo cinema nacional. Contudo, vale destacar que, o
“conceito de identidade” está intimamente articulado ao “conceito de identificação”,
principalmente quando esta última é entendida, através da “abordagem discursiva”,
como uma “construção”, um “processo” oriundo do “reconhecimento de alguma origem
comum”, ou de especificidades que são “partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou
ainda a partir de um mesmo ideal” (p. 106).
No Pagador de Promessas, através dos diálogos com os diversos personagens e Zé do
Burro, o público compartilha utopias, como “ser nordestino é ser antes de tudo um
forte” A identificação é trabalhada, paulatinamente, articulando o ideal do protagonista
– Zé deve cumprir a promessa que fez à Santa – com os interesses de justiça e liberdade
desejados pelo povo, como reforma agrária, sem ao menos a platéia e o protagonista
terem idéia do que são estes conceitos saturados nas imagens fílmicas. Martirizado, Zé
do Burro torna-se um Cristo local, tido como um comunista e um revolucionário, por
ser
a favor da reforma agrária, quando apenas tinha dividido sua propriedade com pequenos
camponeses como parte de sua promessa. Uma questão que sucinta discussão. Zé não
poderia apenas ser conceituado como um nordestino preguiçoso que não querendo
trabalhar doa suas terras? Por que essa parte de sua promessa é valorizada pelos outros
atores sociais como o jornalista e capoeiristas? Apesar da peça e o filme serem omissos
quanto ao aprofundamento sobre a questão da reforma agrária, deve-se lembrar que nos
6
anos de 1960 surgem os primeiros movimentos de luta pela terra, alguns liderados por
eclesiásticos, desde os anos 1950.
Aparentemente alheio a estas questões, Zé do Burro começa a ser “vítima de seu próprio
destino”, socialmente determinado por seu grau de instrução, nível econômico e posição
sócio-política distinta da visão imposta pela Igreja e imprensa. Isto é acentuado
visualmente por alguns ângulos de câmara mostrando Zé sentado na escadaria sendo
filmado através das grades, “preso à situação” em que está por se “obrigar a cumprir
uma missão” (GHIROTTI, 2004, p. 1). Neste contexto, propõe-se uma aproximação
entre alguns aspectos do Pagador de Promessas e a tragédia, espécie de gênero
dramático. Especificamente, quando se analisam os aspectos gerais da tragédia,
enquanto estrutura dramática e representação de um conflito irreconciliável dos limites
impostos ao homem que o leva a transgredir o que é justo e reto.
Aristóteles ensina que as mais belas tragédias têm trama com ações complexas, porque
ela é a “imitação de uma ação séria, completa e de certa extensão, através de texto, que
se torna agradável pelo uso de diferentes recursos em cada uma de suas partes, e que
pelas ações e não pela narração desperta piedade e temor e realiza a catarse de tais
emoções” (GRÉCIA ANTIGA, 2004, p. 1 e 2). O desenvolvimento da tragédia vai do
início até o acontecimento que produz a reviravolta ou peripécia4 para a felicidade ou
infelicidade da personagem principal, enquanto o desenlace começa no início desses
acontecimentos e termina no final da tragédia.
O desenvolvimento da “tragédia” de Zé do Burro inicia-se com a cena do terreiro de
Iansã e termina quando o Padre Olavo se recusa a deixá-lo entrar na Igreja de Santa
Bárbara fechando suas portas. Começa o desenlace, que termina com a morte de Zé e o
acesso do povo à igreja. Nesta narrativa, que apresenta traços do trágico, o princípio de
que a intervenção divina deve ser utilizada apenas em relação a fatos que ocorreram
antes, fora ou após a peça, foi seguido escrupulosamente em cenas como a de Zé do
Burro acompanhando a “imagem de Santa Bárbara no andor” (quando a palavra cede o
lugar para a imagem), em ângulos de câmara como a Igreja de cabeça para baixo ao
4 As
mudanças políticas e comportamentais de uma sociedade poderiam representar , na tragédia grega, a
peripécia descrita por Aristóteles como a mutação dos sucessos no adverso, um acontecimento
imprevisível que altera o rumo normal dos acontecimentos, da ação dramática, ao contrário do que a
situação até então poderia fazer esperar.
7
final do filme e em falas do protagonista, como em “Santa Bárbara me abandonou”.
Observa-se igualmente, no colorido da expressividade das imagens fílmicas, que a cruz,
outro “princípio da intervenção divina”, passou a ser “símbolo de um fardo muito
pesado, do qual é necessário livrar-se”. Em contrapartida, “abandoná-la é ainda
elevarse,
galgar os degraus da imensa escadaria”, ascender a uma condição superior, “cumprir
uma determinação divina” (NASCIMENTO, 1981, p. 47-48).
Além do princípio da intervenção divina, outras características da tragédia grega
presentes no filme são os limites entre o justo e o injusto; o bem e o mal; a vida e a
morte; essência e aparência; mitos e sentimentos religiosos, bem como o espírito
apolíneo e dionisíaco5 existentes na caracterização da protagonista e da sua relação com
a cruz. É no subir e descer implacável da escadaria da igreja que a história de Zé do
Burro ganha a dimensão trágica do inevitável. Zé já não sobe mais sozinho com a
chegada dos capoeiristas e baianas, ele é acompanhado do povo, representando o coro
trágico (a coletividade dos cidadãos) e esta imagem justifica-se pelo “homem, simples
mortal, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se, vale
dizer, um herói, um varão que ultrapassou ‘a medida de cada um’” (BRANDÃO apud
SILVA, 2004, p. 3).
A figura do herói trágico que não se conforma com o seu destino, portanto, sai do
território grego, desamarra-se das denominações de “elevado” e “superior” e
incorporase
em Zé do Burro, acrescentando mais um princípio da tragédia aristotélica à película
de Anselmo Duarte. Ou seja, o “herói trágico é derrotado diante da força do destino,
mas o que o humaniza, o que dá a ele uma ‘paixão-terrestre”, é exatamente sua luta
contra isso” (FEIJÓ, 1984, p. 61). Contudo, no filme, a “força do destino” é
representada pelas forças sociais que Zé denuncia e enfrenta, como a Igreja e a
imprensa, em detrimento à vontade dos Deuses, como acontecia nas narrativas gregas,
5 Apolo,
soberano da luz, era o Deus cujo raio fazia aparecer e desaparecer as flores, queimava ou
aquecia a Terra, considerado como o pai do entusiasmo, da música e da poesia. Dionísio era o filho da
união de Zeus com Sêmele, personificação da Terra em todo o esplendor primaveril da sua magnificência.
A experiência apolínea é cúmplice da produção da vida, esta experimentada esteticamente é o mundo
superior, enquanto a experiência dionisíaca ultrapassa o mundo do sofrimento pelo mergulho à unidade
do próprio universo, uma experiência mística, levando ao inconsciente. O apolíneo e o dionisíaco têm
entre eles um movimento incessante, o devir. Eles através desse movimento atuam juntos para produzir o
mundo, porém não são frutos de uma produção da consciência. Portanto, temos a unidade do apolíneo
com o dionisíaco, juntos formando o devir, a vida (MACHADO, 2005).
8
uma vez que, na modernidade, a vontade divina foi substituída pela razão, com o
advento do iluminismo, da narrativa cristã e do marxismo.
No universo simbólico do cinema, Zé do Burro é esta personagem forte, que luta contra
a força do seu próprio destino, enfrentado o esmagamento social e descobre a sua
fraqueza, seu erro. Homem bom, de comportamento constante e verossímil, suas
qualidades são apresentadas durante todo o filme. Um exemplo disso é quando ele
descobre a traição de sua mulher Rosa com Bonitão (Geraldo Del Rey), através do
acesso de fúria da prostituta Marli (Norma Bengell). Em vez de reagir violentamente
contra a sua mulher, ele prefere se concentrar no desejo de cumprir sua promessa. Zé do
Burro, apesar de ser um homem simples, se mantém firme em sua posição e, por vezes,
insinua em algumas falas como são fracos aqueles que acreditam em suas convicções,
mas não as defendem.
Zé age sem receios e não teme as palavras, sua algoz. A imprensa só fez
sensacionalismo das falas de Zé, mas este realmente declarou aquilo que estava escrito
nos jornais, ainda que de forma inocente. A polícia sentiu necessidade de prender Zé,
depois de tê-lo ouvido falar que sentiu vontade de jogar uma bomba na igreja em sinal
de revolta e cólera. Picollo (2004) alerta sobre o uso das palavras na tragédia, quando
afirma: “a ironia trágica poderá consistir em mostrar como, no decurso do drama, o
herói cai na armadilha da própria palavra, uma palavra que se volta contra ele,
trazendolhe
a experiência amarga de um sentido, que lhe obstinava em não reconhecer” (p. 3).
Como bem demonstrado no diálogo entre Zé do Burro e o jornalista, transcrito abaixo:
“JORNALISTA
- ... O Senhor é a favor da reforma agrária?
ZÉ
- Reforma agrária? O que isso? (Zé do Burro)
JORNALISTA
- É o que o senhor acaba de fazer com o seu sítio!
ZÉ
- E não tô arrependido, moço!
JORNALISTA
- A favor da reforma agrária. E se o governo desapropriasse as terras não cultivadas e
repartisse entre os camponeses?
ZÉ
- Era muito bem feito. Cada um deve trabalhar no que é seu!
JORNALISTA
9
- É contra a exploração do homem pelo homem. O Senhor pertence a algum partido
político?
ZÉ
- Já quiseram me fazer vereador por lá.
JORNALISTA
- Mas dessa vez, seu...
ZÉ
- Zé do Burro, seu criado.
JORNALISTA
- Seu Zé do Burro, o Senhor vai ser eleito com burro e tudo. Imagine a sua volta a
cidade, carro aberto, banda de música, foguetes...
ZÉ
- O Senhor ta maluco? Não vai ter nada disso, não!
JORNALISTA
- Vai, vai porque meu jornal vai promover. Mas não conceda entrevista a mais ninguém.
È claro que o Senhor vai ter uma compensação.
ZÉ
- Moço, o Senhor não me entendeu. Mas ninguém ainda me entendeu!”
Do mesmo modo que o diálogo entre Zé do Burro e o jornalista foi responsável pelo
sensacionalismo da imprensa, foram as palavras de Zé do Burro que fizeram com que o
Padre Olavo e a igreja se fechassem contra a sua promessa:
“ZÉ
- Padre não quis imitar Jesus!
PADRE OLAVO
- Não é verdade! Eu gravei bem suas palavras. Você disse que pretendia carregar uma
cruz tão pesada como a de cristo.”
Zé não deveria ter dito que havia feito a jura em um terreiro de candomblé por sugestão
do Padre Severino, um rezador. Contra as falas de Zé, Padre Olavo defere ao candomblé
e ao Padre Severino o status de feitiçaria. Apesar de não aparecer na trama, deve-se
questionar porque o autor Dias Gomes e o cineasta Anselmo Duarte não exploraram a
dualidade existente entre um eclesiástico ortodoxo como Padre Olavo, que por
intransigência motiva a realização do drama de Zé do Burro, e outro ligado ao
sincretismo religioso como Padre Severino, citado nas falas do protagonista.
O Pagador de Promessas e a Arete nordestina
10
A representação de Zé do Burro como um mártir (o povo, em vez de massacrá-lo,
parece multiplicar a força de Zé do Burro) nos remete a Euclides da Cunha e sua
descrição do homem sertanejo: um miscigenado de aparência frágil e essência forte que
não se tornou repositório da cultura ibero-medieval, constituindo-se como uma reserva
biológica, a pedra viva da nacionalidade brasileira6.
É desgracioso, desengonçado, torto. [...] É o homem
permanentemente fatigado. [...], na tendência constante à
imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. [...] Basta o
aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear
das energias adormidas. O homem transfigura-se. [...],
estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e
a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada
pelo olhar desassombrado e forte. (1995, p. 81)
Assim, a personagem de Zé do Burro é caracterizada: um forte, nordestino que,
inocentemente, é envolvido em um combate sem tréguas, cuja exigência requer
imperiosamente todas as suas forças. Zé do Burro, em prol de cumprir sua promessa,
espera pacientemente as adversidades passarem e decide não mais comer, nem beber
nada. Ele se resigna a esperar o momento certo para entrar na igreja. Tenta, inutilmente,
sozinho, avançar com sua cruz lançando-a sem sucesso contra a porta da igreja. Apesar
de sua fraqueza e aparência frágil, Zé se apresenta como um homem forte, quando tem
sua honra questionada pela prostituta Marli ou é ameaçado pela polícia.
Sobre o fato da identidade regional nordestina, expressa pelo cinema nacional, ser
associada à literatura brasileira e suas caracterizações do homem do Nordeste, Tolentino
(2001) alerta que a apropriação do estereótipo “nordestino” surge, nas telas, desde os
anos 1930, repetindo a relação ambígua de admiração e repulsa que se encontra na
literatura, uma idéia de Brasil impressa desde Euclides da Cunha. Uma apropriação da
“temática rural” como sinônimo de “brasilidade”, uma tentativa de “retomar” um Brasil
“perdido” com os “avanços”, principalmente na região sul e sudeste, das “leituras
modernistas”. (p. 21; 58; 66).
6 Uma
caracterização que, segundo o Professor Doutor Aurélio Lacerda, em entrevista realizada no dia 26/12/2006,
sugere a fixidez e a repetição de uma representação positiva do homem sertanejo.
11
Concordando com Tolentino, percebe-se que a metáfora do nordestino, comparado ao
sertanejo euclidiano, é respaldada pela descrição da personalidade de Zé do Burro feita
pelos capoeiristas e representantes do candomblé. Estes, aglutinados nas escadarias da
igreja, vêem em Zé do Burro como traços específicos: a “simplicidade”, a “resignação
para cumprir seus objetivos” e a “relação positiva com a natureza”, representada pelo
apego ao seu animal, por este motivo, eles resolvem apoiá-lo (GUILLEN, 2002, p. 109110). Estas características exaltam o sertanejo euclidiano, o ”homem primitivo,
audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas
superstições mais absurdas. [...] uma mestiçagem de crenças” (CUNHA, 1995, p. 96).
A disposição de Zé do Burro para o cumprimento de sua promessa à Santa Bárbara
aproxima-se do conceito da Arete grega, virtude na acepção não-atenuada pelo uso
puramente moral e como “expressão do mais alto ideal cavalheiresco unido a uma
conduta cortês, própria e distinta dos heróis e guerreiros” (MADELEINE, 2005, p. 1).
Arete, originalmente, segundo Jaeger (2001), designava um “valor objetivo”, uma
“força que lhe era própria” e que constituía a sua perfeição. Todavia, de acordo com a
modalidade de pensamento dos tempos primitivos, designa a “força e a destreza dos
guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, dos heróis” (p. 29). Nota-se este acerto
subliminar entre a direção de Anselmo Duarte e a Antiguidade Clássica no rumo de
imagens autênticas, que se iniciam com a morte de Zé do Burro, prossegue com o povo
entrando na igreja, levando a cruz (filmado sem corte por um ângulo baixo que percorre
todas as suas extremidades) sobre a qual havia sido colocado o protagonista, até a
imagem final de Rosa (esposa de Zé) subindo a escadaria, e a Igreja sendo vista de
cabeça para baixo.
Considerando a virtude como “uma capacidade, uma aptidão ou habilidade, passível de
ser cultivada no homem”, deve-se indagar se Zé do Burro, realmente, pode ser
considerado como um virtuoso, uma vez que, no desenlace de sua estória, o público, aos
poucos, envolve-se numa catarse de sentimentos (BRUGGER, 1953, p. 405).O
espectador se revolta com a sua “teimosia” em continuar querendo pagar sua promessa,
o que se configura como um erro de nosso “herói”, mas também se emociona com sua
simplicidade, exemplo de bondade e paciência. Nesta análise, como já explicitado,
defende-se a proposição que se força a leitura do homem nordestino como um virtuoso,
isto é, a narrativa fílmica estudada, seguindo uma tendência do cinema brasileiro da
12
época, constrói, em jogos de imagens e diálogos, o “mito” do nordestino como um
virtuoso. No entendimento defendido neste estudo, sutilmente, isso acaba induzindo o
espectador a repetir (no caso do morador da região Nordeste) ou identificar
comportamentos e condutas essenciais que todo o nordestino deve possuir.
Segundo Dufays (1994), o estereótipo além de “construir um sentido para o leitor” ou
espectador, apresenta alguns critérios para a sua identificação. Normalmente, o
estereótipo se refere a um “conjunto anônimo de textos”, sob o domínio de um discurso
que apresenta três diferentes registros: o “lingüístico e estilístico” (no caso do
nordestino brasileiro respaldado por Euclides da Cunha e sua descrição sobre os
sertões); o “comportamental” (que indica modos de pensar e gestualidade) e o
“tipológico” ou a representação coletiva. Desta forma, o estereótipo se cristaliza na
sociedade, via ações recíprocas humanas e consoante com o “repertório de
representações”, tornando-se uma identidade social em sua “vertente positiva” e
preconceito na “vertente negativa” (apud AMÂNCIO, 2000, p. 137-138).
A estereotipia, segundo Nara M. Antunes (2002) em seu estudo sobre a identidade
nordestina através da literatura, ainda evidencia que “toda representação social é
construída de um processo de seleção e esquematização, de modo, que, neste sentido, é
um reducionismo” (p.127). Assim, o estereótipo nordestino positivo deve ser criticado,
porque, provavelmente apresenta componentes sociais, políticos e econômicos que
colaboram para a manutenção de uma única visão sobre o homem sertanejo nordestino
ou porque “a realidade não pode ser tomada em si mesma para ser conhecida, devendo
necessariamente passar pelas idéias, referências culturais, representações sociais”
(Idem, p. 126).
Desse modo, a composição da personagem de Zé do Burro e sua representação
estereotipada, além de não ser o “sertanejo real, mas aquele amalgamado no imaginário
nacional desde Euclides da Cunha” (TOLENTINO, 2001, p. 68), colabora para a
construção da imagem do nordestino, cuja ignorância e rusticidade só são atenuadas
pelo vínculo entre virtude e obediência, virtude e dever, em face de normas e valores
universais de supremacia da razão sobre a emoção, acúmulo de capitais e modernidade
(CHAUÍ, 1992, p. 350). Esse fato que assinala uma preocupação do cinema brasileiro,
como meio de comunicação social e veículo de educação, em corroborar para a
13
composição de um imaginário de nacionalidade, em que “o tradicionalismo abre mão de
elementos que resultem funcionais à sua própria sobrevivência e muda-se em sua forma,
mantendo-se remodelado” (TOLENTINO, op. cit, p. 62).
Em outras palavras, com a chegada de Zé do Burro a Salvador, sugere-se uma
urbanidade e civilidade (composta por elementos simples do imaginário popular como a
compra de colchões de molas para um melhor conforto na hora de dormir), através do
“desfile” de personagens, que dialogam nas escadarias da igreja, incentivando o desejo
de Zé em cumprir sua promessa ou o contrário. Bons exemplos são a Minha Tia, ekédi7,
a qual sugere o cumprimento da promessa em um terreiro; o grupo de capoeiristas
preocupados em salvaguardar a personagem principal; o policial, que recomenda a Zé o
retorno à sua cidade e o abandono da “causa”; o jornalista, que troca a exclusividade da
matéria por produtos oferecidos por anunciantes; o cordelista interessado em criar o
“ABC do novo Cristo”, entre outros. Em todos esses casos, nota-se um
“acomodamento” entre o novo e o velho, entre “tradição nordestina” (fincada em cultos
afro-indígenas) e a “racionalidade”, promovida pela modernização e o “capitalismo”.
Paradoxalmente, as falas das diversas personagens que dialogam com Zé do Burro
produzem uma matriz estereotipada do homem nordestino como uma pessoa virtuosa,
mas também um indivíduo que se apresenta como o “núcleo” de nossa raça em estado
original. Uma construção imagética que pode ser interpretada como positiva por
apresentar uma unidade cultura e artística, contudo merece ser objeto de avaliação pelas
implicações políticas e ideológicas que possibilita como a submissão intelectual ou
fragilidade física e espiritual. A representação do nordestino através do cinema também
é evidenciada por Tolentino como “o sumo da brasilidade, mas, também, a parte menos
evoluída dessa mesma raça mestiça, conformada pela miscigenação de índio, português
e negro, à qual sobraria força física e faltaria a força moral e psíquica”
(TOLENTINO,2001, p. 66). Como explicita Euclides da Cunha na seguinte passagem
de seu livro
A demonstração é positiva. Há um notável traço de
originalidade na gênese da população sertaneja. O fator étnico
preeminente transmitindo-lhes as tendências civilizadoras não
7 Na
hierarquia do candomblé, a ekédi é uma figura de ligação entre o terreiro e a comunidade mais
ampla. A ekédi fica abaixo da filha-de-santo que, por sua vez, fica abaixo da mãe-de-santo (CARNEIRO,
1982, p. 263; 272).
14
lhes impôs a civilização. [...] O sertanejo tomado em larga
escala, [...], reflete, na índole e nos costumes, das outras raças
formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase
social incipiente. È um retrógrado; não é degenerado... as
vicissitudes históricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua
formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de
empréstimo, preparam-no para a conquistar um dia (1995, p.
68; 79).
Disperso pelas imagens fílmicas de O Pagador de Promessas, o processo de
estereotipação do nordestino produz uma “matriz” (provavelmente advinda da ficção
literária e do conjunto anônimo de textos) e generaliza traços através da
“simplificação”, em que as “nuances” de uma diferenciação são como que “apagadas
para facilitar o consumo rápido de um pré-conceito”: o nordestino é por natureza um
virtuoso (AMÂNCIO, 2000, p. 135-136). Estas considerações suscitam três indagações:
a) qual a Arete nordestina? b) como o sertanejo nordestino pode ser virtuoso, se a Arete
não é inata, mas cultivada no homem a partir do esforço para se portar bem? c) se o
nordestino é um homem virtuoso, quais devem ser as virtudes nordestinas e por que?
Inicialmente, é necessário compreender que a virtude é uma “força que age ou pode
agir”. Em seguida, deve-se prever que as virtudes (conforme discutido no primeiro
capítulo) são “independentes do uso que delas se faz”, são disposições adquiridas de
“fazer o bem” (COMTE-SPONVILLE, 2005, p. 1). Destarte, quando se incomodou com
o estado de saúde do burro Nicolau e se esforçou para a sua cura; ao dividir suas terras;
ao perdoar sua esposa Rosa, etc, pode-se considerar que Zé do Burro e sua “boa
vontade” inspiram este “poder” ou “valor”, denominado virtude.
Em Zé do Burro, nota-se a presença da Arete heróica, mas também da humildade, da
simplicidade e da coragem. A humildade ensina que não se deve ter orgulho de ser
virtuoso, caracterizando-se como “uma consciência extrema dos limites de qualquer
virtude. Ela torna as virtudes discretas, como que despercebidas de si mesmas [...] não é
a depreciação de si, [...] mas, ao contrário, conhecimento, ou reconhecimento, de tudo o
que não somos” (COMTE-SPONVILLE, 1999, p. 41). Assim, quando afirma que não
deseja ser um novo Cristo ou recusa a ajuda do jornalista, Zé está apenas admitindo os
seus limites, sendo humilde e reconhecendo quais as suas virtudes que devem ser
preservadas. Já a simplicidade do protagonista reside no “desprendimento de tudo e de
15
si mesmo, no desprendimento, desprezo de provar, de prevalecer, de parecer [...].
Transparência do olhar, pureza de coração, sinceridade do discurso” (Idem, p. 45), uma
vez que suas falas, mal interpretadas pela diversidade de realidade (campo versus
cidade), produzem seu final trágico.
Apesar desses “predicados” (humildade e simplicidade) existentes no “nordestino
rústico” e reprováveis para o “olhar civilizado”, como expõe Tolentino (2001) na sua
caracterização sobre o sertanejo nordestino que é retratado pelo cinema, sobressai na
película O Pagador de Promessas a coragem de Zé do Burro, mesmo quando este é
distinguido como um homem “vaidoso, caprichoso, personalista, instintivo e portador
de uma tosca religiosidade, atributos que acabariam depondo contra a sua coragem e
bravura” (p. 76). Desta maneira, considerando que a coragem é uma virtude que
“culmina no sacrifício de si” (COMTE-SPONVILLE, 1999, p. 13), Zé do Burro é
colocado em prova por diversos personagens, em várias oportunidades, a saber: por
Rosa, durante o tempo todo; pelo Padre que tenta fazê-lo reconhecer sua blasfêmia; pela
Minha Tia, quando se colocar à disposição dele para levá-lo a um novo terreiro; pelo
Monsenhor que admite ter a autoridade para isentá-lo da promessa; pelos capoeiristas,
pelo delegado e pela prostituta Marli, que o chama de corno e o incita a linchar Rosa
pela traição com Bonitão. Em todas essas “provas”, Zé, apesar de ter a oportunidade de
fazer (mais) uma escolha, permanece com sua “idéia fixa” de cumprir a promessa,
escolhendo errado, segundo a lógica do mundo em que ele luta para pagar a promessa.
Esta é uma das características fortes da personagem trágica, como já observado.
Considerações Finais
A virtude como signo de nordestinidade, de saber, de modernidade e de educação
estaria no Pagador de Promessas traduzida na defesa de valores caros à civilização,
mas, sobretudo, a Zé do Burro, cunhado em atos simples deste protagonista que “vence
todas as coisas, inclusive a força” em prol do cumprimento de seu objetivo. Entretanto,
a Arete heróica só se aperfeiçoa com a “morte física do herói”, que deixa de “residir no
homem mortal, perpetuando-se”, mesmo depois do falecimento, na sua “fama”, ou seja,
na “imagem de sua Arete” (JAEGER, 2001, p. 32).
16
Destaca-se também, nesta escrita fílmica, que encontramos uma luta simbólica que
reproduz, no campo das posições sociais, uma definição de mundo intimamente
relacionada às divergências sócio-culturais da sociedade, cuja raiz centra-se no sistema
econômico e político disseminado durante o “processo de exploração colonial
européia”, que, por sua vez, teve os seus “princípios civilizadores influenciados pela
cultura grego-latina” (JAEGER, op. cit, p. 24-25). Uma raiz capitalista que define a
cidade como um “pólo de atração deslumbrante”, contudo “um antro de perversidade
que arruína a sólida moral familiar, que decompõe, dissolve a ética tradicional, que
mantém coesa a sociedade” (BERNARDET, 1980, p. 139).
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Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 133-151, jul./dez. 2003. Editora UFPR 133
A COSMOVISÃO CARNAVALESCA EM O
PAGADOR DE PROMESSAS
Andrey Pereira de Oliveira*
O vocabulário da praça pública é um Jano de duplo rosto.
Mikhail Bakhtin, Problemas da Poética de Dostoiévski
Introdução
A
insistência de Zé-do-Burro em entrar numa igreja de Salvador com uma
cruz enorme para pagar uma promessa em benefício de seu burro de
estimação é um das cenas mais conhecidas da dramaturgia brasileira.
As várias montagens para os palcos, bem como as adaptações para as telas de
cinema e televisão fizeram de O pagador de promessas (1960) a obra-mestra
consagradora de Dias Gomes.1
Dividida em três atos – sendo os dois primeiros subdivididos em dois
quadros cada um –, O pagador de promessas estrutura-se de forma simples,
apresentando unidade de ação, tempo e espaço e pouco explorando a psicologia
das personagens. Seu enredo pode ser resumido da seguinte maneira: Zé-doBurro e sua mulher Rosa vivem em uma pequena propriedade a sete léguas de
* Programa de pós-graduação em Letras - UFPb.
1 Neste ensaio, levaremos em conta apenas o texto literário, eximindo-nos de
quaisquer comentários acerca da representação, seja teatral, televisiva ou cinematográfica.
Isto porque seguimos a opinião de Aristóteles, segundo a qual: “O espetáculo, embora fascinante,
é o menos artístico e mais alheio à poética; dum lado, o efeito da tragédia subsiste ainda sem
representação nem atores; doutro, na encenação, tem mais importância a arte do contraregra
do que a dos poetas”. ARISTÓTELES. Arte Poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO;
LONGINO. A poética Clássica. Tradução direta do grego e do latim de: Jaime Bruna. 7. ed.
São Paulo: Cultrix, 1997. p. 26. Introdução de Roberto de Oliveira Brandão.
OLIVEIRA, A. P. de. A cosmovisão carnavalesca...
134 Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 133-151, jul./dez. 2003. Editora UFPR
Salvador. Um dia, Zé-do-Burro vai a um terreiro de candomblé a fim de fazer uma
promessa a Iansan (Santa Bárbara) para que esta salvasse Nicolau, seu burro de
estimação que havia sido atingido por um raio. Com o restabelecimento do
animal, Zé-do-Burro põe-se a cumprir a promessa, primeiramente dividindo suas
terras com os lavradores mais pobres do que ele, e depois caminhando rumo a
Salvador, até onde deveria levar uma imensa cruz de madeira para colocá-la no
altar da Igreja de Santa Bárbara. Esta segunda parte de sua promessa, no entanto,
é impossibilitada pela resistência do padre Olavo que, ao saber o local onde ZédoBurro havia feito a promessa, não permite que ele entre na igreja com sua
cruz. Após muitas discussões, Zé-do-Burro, ao tentar entrar à força na igreja, é
morto. Por fim, é posto em cima da cruz e conduzido para dentro da igreja por
alguns simpatizantes de sua causa.
Como podemos perceber neste breve resumo, o núcleo conflitivo da
peça de Dias Gomes é o embate entre valores oficiais e valores mundanos:
havendo de um lado a oficialidade do padre Olavo e de outro, o sincretismo de
Zé-do-Burro. Este núcleo conflitivo que se expande por toda a obra já nos
autoriza a uma abordagem da peça que ressalte sua cosmovisão carnavalesca
como proposta por Mikhail Bakhtin.
A cosmovisão carnavalesca
Para formular sua teoria da carnavalização literária, Mikhail Bakhtin parte
da observação do carnaval enquanto festividade e considera literatura
carnavalizada aquela “que, direta ou indiretamente, através de diversos elos
mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore
carnavalesco (antigo ou medieval)”.2 Quando transposta para a literatura, a
cosmovisão carnavalesca – ou seja, as imagens, a ambivalência e o riso do
carnaval – transforma-se segundo as finalidades artístico-literárias particulares
de cada obra, conservando, no entanto, as seguintes categorias: a) o livre contato
familiar entre os homens, b) a excentricidade, c) as mésalliances carnavalescas
e d) a profanação.3
2 BAKHTIN, M. Problemas da poétia de Dostoiévski. Tradução direta do russo,
notas e prefácio de: Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 107.
3 BAKHTIN, Problemas da poética..., op. cit. p. 123.
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O livre contato familiar reflete a quebra das barreiras hierárquicas que,
desconsiderando a estratificação social, permite a livre gesticulação e o franco
discurso carnavalizados coibidos nas relações de vida normal. Desta liberdade
resulta a excentricidade através da qual os aspectos ocultos da natureza humana
são revelados. As mésalliances carnavalescas referem-se a uma distensão do
contato familiar entre os homens, o que corrompe a distância e aproxima os
elementos antes isolados, como o sagrado e o profano, o elevado e o baixo, o
grande e o insignificante, o sábio e o tolo, entre outros pares. Quanto à profanação,
esta é estabelecida pelas carnavalizações sacrílegas, como as paródias dos textos
sagrados e sentenças bíblicas.
O espaço carnavali zado
Uma primeira possibilidade de se abordar a cosmovisão carnavalesca de
O pagador de promessas é analisar o espaço em que se desenvolve o conflito.
Tanto o espaço cênico quanto os espaços apenas evocados pelas personagens
estão carregados de valores simbólicos em cuja fusão reside um alto grau de
carnavalização.
A observação da disposição do cenário indicado na rubrica que abre a
peça4 é já suficiente para que se perceba o sincretismo que funda a obra. Formando
“uma paisagem tipicamente baiana, da Bahia velha e colonial, que ainda resiste
hoje à avalancha urbanística moderna”, há uma “pequena praça” cortada por
duas ruas, uma de cada lado, e em cujas esquinas estão, à direita, uma “igreja
relativamente modesta, com uma escadaria de quatro ou cinco degraus” e, à
esquerda, “uma vendola, onde também se vende café, refresco e cachaça”, e um
sobrado. O que mais claramente se ressalta neste quadro é a coexistência de
dois códigos: o sagrado e o profano. A igreja de um lado, representando a
oficialidade (defendida, no decorrer dos fatos, pela força policial), e a vendola
do outro, como o símbolo do mundano, salientado principalmente pela alusão à
cachaça. Não é gratuita a disposição espacial da igreja e da vendola, uma vez
4 GOMES, D. O pagador de promessas. 35. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p.
13. De agora em diante, ao nos referirmos a esta obra, utilizaremos apenas suas iniciais e as
páginas das citações.
OLIVEIRA, A. P. de. A cosmovisão carnavalesca...
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que tradicionalmente o “lado direito” iconiza o mundo da ordem oficial, enquanto
o “lado esquerdo” iconiza a ameaça da desordem mundana. 5
Esta separação dicotômica da direita e da esquerda já é em si conflitiva e
pode ser vista como o germe da ação dramática que se irá desenvolver ao longo
da peça. Se, em estado físico, a igreja e a vendola estão isoladas uma da outra
pela praça, é esta mesma praça que as une, possibilitando o livre trânsito entre
os códigos do sagrado e do profano, e sendo a arena de embate entre os dois
mundos. Desta forma, a pequena praça é um universo sincrético que tudo abarca,
não permitindo que a dicotomia física inicial se concretize numa perspectiva
maniqueísta. Aliás, ainda na mesma rubrica, depois de descrito o cenário, não é
fortuita a menção ao “som dos atabaques dum candomblé distante, no toque de
Iansan”. O som forte e festivo dos atabaques de Iansan, propagando-se em
meio fluido, vem corromper a solidez física e estanque do espaço, sincretizando
tudo e a tudo impregnando com sua liber(tinagem)dade.
Não podemos nos furtar aqui de retomar algumas observações de Mikhail
Bakhtin acerca da praça pública. Segundo ele, a praça pública, juntamente com
suas ruas contíguas, são “o principal palco das ações carnavalescas”, sendo o
espaço ideal da carnavalização, uma vez que “o carnaval é por sua própria idéia
público e universal, pois todos devem participar do contato familiar”.6 Estas
observações referem-se ao carnaval enquanto festividade, mas podem ser
ampliadas e extrapoladas para a leitura de espaços ficcionais que permitam e
estimulem a interação plena entre as personagens. Coincidentemente, no entanto,
no caso de O pagador de promessas, o espaço onde se desenvolve a intriga é
mesmo uma praça pública, ponto de convergência acessível a integrantes de
todos os extratos da sociedade: sejam padres, policiais, repórteres, pagadores
de promessas, jogadores de capoeira, prostitutas ou vendedoras de acarajés.
A pluritonalidade discursiva
Um espaço sincrético como o construído em O pagador de promessas
não poderia deixar de ser acompanhado pela pluritonalidade dos discursos, ou
seja, pela pluralidade e a mistura dos mais variados estilos e gêneros, o que é
5 Subsiste neste mesmo arranjo a questão política do socialismo que permeia
algumas discussões da peça, mas que não será abordada aqui por fugir aos propósitos deste
ensaio.
6 BAKHTIN, op. cit., p. 128.
OLIVEIRA, A. P. de. A cosmovisão carnavalesca...
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uma peculiaridade fundamental da literatura carnavalizada.7 Coexistem no mesmo
espaço público o verso e a prosa, o sério e o cômico, o português, o espanhol e
o “portunhol”, os discursos católicos e as mandingas, os cantos de capoeira, a
poesia popular (os abcs), a entrevista e o texto jornalístico, os anúncios de feira,
entre outras vozes que, interpenetrando-se, corrompem a pureza dos estilos.
Seguem abaixo alguns exemplos:
Mandinga de Zeferino para curar a dor de cabeça de Zé-do-Burro:
Deus fez o Sol. Deus fez toda a claridade do Universo grandioso.
Com sua Graça eu te benzo, te curo. Vai-te Sol, da cabeça desta
criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os santos poderes do
Padre do Filho e do Espírito Santo. (p. 34)
Trecho do “ABC DA MULATA”, de Dedé-Cospe-Rima:
Ai, meu Senhor do Bonfim,
dai-me muita inspiração,
dai-me rima e muita métrica
pra fazer a descrição
das penas de Esmeralda
na rua da Perdição. (p. 61)
Texto jornalístico:
Sete léguas carregando uma cruz, pela reforma agrária e contra a
exploração do homem pelo homem. (...) Para o vigário da paróquia
de Santa Bárbara, é Satanás disfarçado. Quem será final Zé-doBurro? Um místico ou um agitador? O povo o olha com admiração
e respeito, pelos caminhos por onde passa com sua cruz, mas o
7 BAKHTIN, Problemas da poética..., op. cit. p., 108.
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vigário expulsa-o do templo. No entanto, Zé-do-Burro está
disposto a lutar até o fim! (p. 65)
Fala em “portunhol” do galego:
Bem feito nada. Se deixam el hombre entrar, prejudicam
nuestro negócio (p. 71)
Canto de capoeira: Mestre do Coro
Minino, quem foi teu mestre?
quem te ensinô a jogá?
– Só discip’o que aprendo
meu mestre foi Mangangá,
na roda que ele esteve,
outro mestre lá não há
Camarado. (p. 77)
Pregão de Minha Tia:
Óia, o ca-ru-ru!
..............................................................................
É o caruru de Santa Bárbara, minha gente! (p. 78).
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O vocabulário da praça pública
“O vocabulário da praça pública é um Jano de duplo rosto”. 8 É esta a
imagem que Bakhtin emprega para se referir ao sistema de vocábulos que
acompanham e sustentam as ambivalências da cosmovisão carnavalesca. São
termos do mundo não-oficial que contaminam os ambientes e as situações com
a lógica ambígua da coroação e destronamento e que são compostos por
obscenidades sexuais e escatológicas, grosserias e imprecações, palavras de
duplo sentido, cômico de baixo calão etc.
Sem nenhuma pretenção de sermos exaustivos, citamos algumas
ocorrências do vocabulário da praça pública que permeia a peça: Zé-do-Burro
enxuga o suor da testa (p. 14); Rosa tem bolhas d’água no pé (p. 14); Bonitão
chama Marli de vaca (p. 18); Marli chama Matilde de vagabunda (p. 18); Rosa
tem um palmo de coxa a mostra (p. 21); segundo Rosa: “A gente quando é franga
(...) tem merda na cabeça” (p. 24); a beata chega à igreja “pondo as tripas pela boca”
(p. 30); Nicolau não mexia com o rabo para espantar as moscas (p. 35); Bonitão
chama Zé-do-Burro de idiota (p. 56); Marli chama Rosa de vaca (p. 59); Marli chama
Zé-do-Burro de beato pamonha, carola duma figa e corno manso (p. 85).
Mais interessante do que pinçar elementos isolados é percebê-los em
seu contexto. Uma passagem da peça destaca-se em especial pela alta
concentração e pela funcionalidade das imagens do “baixo” material e corporal.
Trata-se do diálogo entre Zé-do-Burro e o Padre Olavo que consta do segundo
quadro do primeiro ato. É importante lembrar que neste momento da peça, ainda
não havia sido revelado que Nicolau, o amigo inseparável de Zé, em benefício de
quem ele fizera a promessa, era um burro. Eis a seqüência:
Zé – Só um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele
chegou em casa, escorrendo sangue de meter
medo! Eu e minha mulher tratamos dele, mas o
sangue não havia meio de estancar.
Padre – Uma hemorragia.
Zé – Só estancou quando eu fui no curral. Peguei bosta
de vaca e taquei em cima do ferimento.
8 BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. Tradução de: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília:
UnB, 1987. p. 142.
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Padre – (Enojado) Mas meu filho, isso é um atraso! Uma
porcaria!
Zé – Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou
que tirasse aquela porcaria de cima da ferida, que
senão Nicolau ia morrer.
Padre – Sem dúvida.
Zé – Eu tirei. Ele limpou a ferida e o sangue voltou
que parecia uma cachoeira. E que de que o doutor
fazia o sangue parar? Ensopava algodão e mais
algodão e nada. Era uma sangueira que não acaba
mais. Lá pelas tantas, o homenzinho virou pra
mim e gritou: corre, homem de Deus, vai buscar
mais bosta de vaca, senão ele morre!
Padre – E... o sangue estancou?
Zé – Na hora. Pois é um santo remédio. Seu vigário
sabia? Não sendo de vaca, de cavalo castrado
também serve. Mas há quem prefira teia de
aranha.
Padre – Adiante, adiante. Não estou interessado nessa
medicina. (p. 33)
É fundamental aqui a ambivalência das fezes – da “bosta de vaca” –,
portadora de uma semântica dupla que une à idéia de excremento as de
fecundidade e de saúde e que as permite ser tanto “atraso” e “porcaria”, quanto
um “santo remédio”, confirmando a seguinte observação de Mikhail Bakhtin
acerca da ambivalência do “baixo” material e corporal à época de Rabelais:
As imagens dos excrementos e da urina são ambivalentes como
todas as imagens do “baixo” material e do corporal: elas
simultaneamente rebaixam e dão a morte por um lado, e por outro
dão à luz e renovam; são ao mesmo tempo bentas e humilhantes,
a morte e o nascimento, o parto e a agonia estão indissoluvelmente
entrelaçadas. Ao mesmo tempo, essas imagens estão
estreitamente ligadas ao riso. A morte e o nascimento nas imagens
da urina e dos excrementos são apresentados sob o seu aspecto
jocundo e cômico.9
9 BACKTIN, A cultura popular..., op. cit., p. 130.
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Percebe-se também nesta cena, de modo claro, o destronamento da
medicina científica (oficial) em prol da coroação da crendice popular. Esta lógica
de inversão de valores, típica do mundo às avessas do espírito carnavalesco, é
a mesma que faz Zé-do-Burro pagar numa igreja católica uma promessa feita num
terreiro de macumba em benefício de um burro de estimação.
Avia crucis de Zé-do-Burro
O espaço carnavalizado, a pluritonalidade discursiva e o vocabulário da
praça pública, como os vimos discutindo, são elementos que contribuem para a
eficácia estrutural do enredo e para a cosmovisão carnavalizada do todo da
obra. Esta totalidade carnavalizada, como não poderia ser diferente, é permeada
de paródias, uma vez que “a paródia é um elemento inseparável da ‘sátira menipéia’
e de todos os gêneros carnavalizados”, funcionando como um “sistema de
espelhos deformantes: espelhos que alongam, reduzem e distorcem em diferentes
sentidos e em diferentes graus”.10 Em O pagador de promessas, o grande
movimento parodístico consiste no pagamento da promessa de Zé-do-Burro:
Zé – E eu me lembrei então que Iansan é Santa Bárbara
e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava
uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja
dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada
como a de Cristo. (p. 36)
Com esta promessa, Zé-do-Burro assume um papel semelhante ao de
Jesus Cristo. No entanto, com uma diferença apontada pelo Padre Olavo:
10 BAKHTIN, Problemas da poétia..., op. cit., p. 127.
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Padre – Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar
a humanidade? Não, para salvar um burro! (p.
37)
Resulta disto a seguinte analogia: Zé-do-Burro está para Jesus Cristo
assim como o burro Nicolau está para a humanidade.11 A trajetória do pagador
de promessas o filia a uma linhagem hagiográfica também pelo fato de ser vítima,
assim como o Cristo e outras personagens beatificadas, de tentações que o
colocam à prova por sedução e martírio. Durante todo seu percurso foi tentado
a descansar no hotel, sair do jejum, abandonar sua missão para ir tomar satisfação
com o Bonitão, trocar de promessa, além de outras tentações atribuídas por ele
a própria santa que estaria querendo testar a dimensão de sua fé.
Essa analogia é reforçada no desfecho da obra, quando Zé-do-Burro,
depois de morto, é colocado “sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos,
como um crucificado” (p. 95). Visto por este prisma, O pagador de promessas
pode ser considerado como uma espécie de parodia sacra, uma profanação e
dessacralização da via crucis. O próprio padre Olavo, num momento em que crê
que Zé-do-Burro está desencaminhado pelo demônio afirma:
Padre – Estive o dia todo estudando esse caso. Consultei
livros, textos sagrados. Naquele burro está a
explicação de tudo. É Satanás! Só mesmo Satanás
podia levar alguém a ridicularizar o sacrifício de
Jesus. (p. 69 - Sem grifos no original)
Ao rebaixamento da via crucis junta-se a profanação de Santa Bárbara,
identificada com “Iansan, a Santa Bárbara nagô” (p. 29), como vem estampado
11 É interessante observar que o lugar de destaque concedido ao burro em O pagador
de promessas é algo recorrente nas manifestações carnavalescas ou carnavalizadas. Bakhtin
afirma que “O asno é um dos símbolos mais antigos e mais vivos do ‘baixo’ material e
corporal, comportando ao mesmo tempo um valor degradante (morte) e regenerador”
(BAKHTIN, 1987, p. 67) e cita várias ocorrências, como os mimos de asnos da Antigüidade,
a “festa do asno” da Idade Média, além de suas aparições, entre outras, no Asno de ouro, de
Apuleio e nas lendas de São Francisco.
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na rubrica que inicia o segundo quadro do primeiro ato. É importante perceber
que, neste caso, a profanação da santa só ocorre aos olhos das autoridades
eclesiásticas e daqueles que adotam a oficialidade católica como valor absoluto
e superior. Zé-do-Burro, ao contrário, não tem a consciência da profanação, pois
ele, em virtude de sua mentalidade sincrética (e carnavalesca!), não vê a santa
como uma entidade católica distanciada em sua sublimidade e a encontra em um
terreiro de candomblé, transfigurada em Iansan, sem que isto seja para a figura
católica nenhum desmérito. Ele apenas segue a “verdade popular não-oficial”
também expressa por Minha Tia: “Adiscurpe, Iaiá, mas Iansan e Santa Bárbara
não é a mesma coisa?” (p. 90). Em nenhum momento, Zé-do-Burro se dá conta da
“irregularidade” de sua atitude e por isso mesmo não entende o impedimento
colocado pelo padre:
Zé – Padre, eu sou católico. Não entendo muita coisa
do que dizem, mas queria que o senhor entendesse
que eu sou católico. Pode ser que eu tenha errado,
mas sou católico. (p. 71)
Na mesma lógica carnavalesca dá-se a abolição de todas as hierarquias
oficiais. Se a vida comum não-carnavalizada cobra respeito à rígida hierarquia
eclesiástica que ordena, segundo uma ordem progressiva de poder, a beata, o
sacristão, o padre, o Monsenhor e o Arcebispo, a cosmovisão carnavalesca a
despreza, fazendo com que Zé-do-Burro desconsidere todos os intermediários
terrenos e só admita um contato familiar direto com a própria santa. É o que fica
patente quando o Monsenhor, a pedido do Arcebispo, liberta o pagador de
promessas de sua dívida antiga, dando-lhe a possibilidade de trocá-la por outra:
Zé – O senhor me liberta... mas não foi ao senhor que
eufiz a promessa, foi a Santa Bárbara. E quem
garante que como castigo, quando eu voltar pra
minha roça não vou encontrar meu burro morto.
(p. 72)
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Esta deconsideração da hierarquia é tão intensa que, diante da
possibilidade levantada de Santa Bárbara tê-lo abandonado, Zé segue obstinado
o pagamento de sua dívida, mesmo significando isto uma desobediência à própria
santa a quem fizera a promessa:
Zé – Balança a cabeça, sentindo-se perdido e
abandonado) Santa Bárbara me abandonou! Por
quê, eu não sei... não sei!
...........................................................................
Rosa – Se ela abandonou você, abandone também a
promessa. Quem sabe se não é ela mesma que
não quer que você cumpra o prometido?
Zé – Não... mesmo que ela me abandone.. eu preciso
ir até o fim... ainda que já não seja por ela... que
seja só pra ficar em paz comigo mesmo (p. 91).
Não é mais a ela que o pagador deve, não é por ela que ele persiste. ZédoBurro, em sua lógica particular, é capaz de prescindir até mesmo da própria
santa e acertar as contas apenas consigo mesmo e com a sua promessa, numa
economia de raciocínio absurda na esfera hierárquica do catolicismo.
Rebaixamentos da promessa
Além da forte carnavalização presente na promessa de Zé-do-Burro, este
voto religioso sofre durante todo o texto vários processos de rebaixamento. Um
deles é o que aproxima o compromisso espiritual ao compromisso financeiro,
rebaixando-o, segundo a lógica do realismo grotesco, do plano religioso e abstrato
para o plano mundano e material. Este processo fica patente na seguinte passagem
extraída do primeiro quadro do primeiro ato:
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Zé – Não, nesse negócio de milagres, é preciso ser
honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o
crédito. De outra vez o santo olha, consulta lá os
seus assentamentos e diz: – Ah, você é o Zé-doBurro, aquele que me passou a perna! E agora
vem me fazer nova promessa. Pois vá fazer
promessa pro diabo que o carregue, seu caloteiro
duma figa! E tem mais: santo é como gringo,
passou calote num, todos os outros ficam
sabendo.
Rosa – Será que você ainda pretende fazer outra
promessa depois desta? Já não chega?...
Zé – Sei não... a gente nunca sabe se vai precisar. Por
isso, é bom ter sempre as contas em dia (p. 1415).
Em seu raciocínio, Zé-do-Burro toma a expressão “pagar promessa” e a
desenvolve lendo o “código das finanças” – ou “do negócio”, como traz o texto
– de forma literal, subordinando e rebaixando a abstração e a sublimidade da
“ética espiritual” ao materialismo e à malandragem da “ética capitalista”. Esta
última sendo expressa num vocabulário típico de todo seu universo: o
embrulhamento dos credores, as perdas de crédito, as consultas a assentamentos,
as passagens de perna, os calotes... Ainda sobre este episódio, é importante
ressaltar, dentro do processo de rebaixamento da promessa, o destronamento
dos santos, que são caracterizados com alguns vis atributos humanos, como o
sentimento de vingança e a utilização de uma linguagem chula (“Ah, você é o
Zé-do-Burro, aquele que me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa.
Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue, seu caloteiro duma figa!”).
Aqui fica claro o rompimento das barreiras hierárquicas e a quebra das regras e
tabus. O poder carnavalesco do contato familiar que, ao colocar em diálogo
(mesmo que hipotético) as personagens mundanas e os santos, transferem a
estes últimos os vícios daqueles.
Outras amostras das inconseqüências a que se deixa levar Zé-do-Burro
em sua leitura carnavalesca da promessa como dívida são respectivamente o
argumento que ele apresenta a sua mulher para que ela, mesmo não tendo feito
uma promessa, fique ao lado dele em seu sacrifício e a fala em que reafirma ao
padre sua convicção na importância de saldar a dívida com a santa:
OLIVEIRA, A. P. de. A cosmovisão carnavalesca...
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Zé – Paciência, Rosa. Seu sacrifício fica valendo.
Rosa – Pra quem? Pra Santa Bárbara? Eu não fiz
promessa nenhuma.
Zé – Oxente! Melhor ainda. Amanhã, quando você
fizer, a santa já está lhe devendo! (p. 26)
...........................................................................
Zé – (...) Promessa é promessa. É como um negócio.
Se a gente oferece um preço, recebe a mercadoria,
tem que pagar. Eu sei que tem muito caloteiro
por aí. Mas comigo, não. É toma lá, dá cá. (...) (p.
32-33)
Diferente processo de rebaixamento da promessa evidencia-se na
passagem em que o Bonitão dela se utiliza com fins ilícitos:
Bonitão – Não falei por mal. Eu também sou meio devoto.
Até uma vez fiz uma promessa pra Santo
Antônio...
Zé – Casamento?
Bonitão – Não, ela era casada.
Zé – E conseguiu a graça?
Bonitão – Consegui. O marido passou uma semana
viajando...
Zé – E o senhor pagou a promessa?
Bonitão – Não, pra não comprometer o santo.
Zé – Nunca se deve deixar de pagar uma promessa.
Mesmo quando é dessas de comprometer o santo.
Garanto que da próxima vez Santo Antônio vai
se fingir de surdo. E tem razão.
Bonitão – O senhor compreende, Santo Antônio ia ficar
mal se soubesse que foi ele quem fez o trouxa
viajar (p. 20)
Enquanto, na tradição católica, Santo Antônio é conhecido como o santo
casamenteiro, na lógica do mundo às avessas da carnavalização, representada
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aqui no discurso de um cafetão típico, este santo passa a fazer o papel de
“descasamenteiro”, auxiliando o Bonitão em sua empreitada traiçoeira. Não se
pode deixar de perceber o sentido duplo da “graça” alcançada pela personagem:
dádiva para si e galhofa em relação ao “trouxa” viajante. E com a mesma verve
carnavalesca que tudo erotiza, Bonitão vale-se do trocadilho de duplo sentido
(recurso de carnavalização bastante eficaz) e faz da cruz, um dos símbolos
máximos do cristianismo, mais um alvo de profanação:
Zé – Rosa, você vigia a cruz, eu vou dar a volta... não
demoro. (Sai)
Bonitão – Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta da
sua cruz. (Depois que Zé-do-Burro sai) das duas.
Rosa – Só que uma ele carrega nas costas e a outra... se
quiser que vá atrás dele. (Levanta-se)
Bonitão – E você não é mulher para andar atrás de qualquer
homem... ao contrário, é uma cruz que qualquer
um carrega com prazer... (p. 22)
Se, como mostramos, Zé-do-Burro trata a promessa como uma dívida
financeira, só o faz de forma abstrata, utilizando-se da lógica dos negócios como
meio para facilitar o entendimento de sua condição de devedor. No entanto, não
é o que se percebe nas ações de muitos das outras personagens que se
aproveitam da promessa do pagador para eles próprios terem benefícios
financeiros, como é caso do Galego, Dedé Cospe-Rima e Coca, que fazem uma
aposta para ver se o pagador iria ou não conseguir entrar na igreja. Mais
importante, porém, são os casos particulares do Galego e do repórter: o Galego,
ao mesmo tempo em que torce para que o padre não deixe Zé-do-Burro entrar na
igreja, torce também para que o pagador não desista de sua promessa, uma vez
que a permanência deste na praça com sua enorme cruz desperta a atenção do
povo, atraindo, por conseguinte, uma maior freguesia para sua vendola. Já o
repórter tenta adiar a entrada de Zé-do-Burro para que possa armar a cobertura
jornalística do fato excêntrico, conseguindo um furo de reportagem e um maior
retorno financeiro dos patrocinadores. O repórter chega a perder o controle
diante de Rosa quando esta estimula o marido a voltarem para casa imediatamente:
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148 Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 133-151, jul./dez. 2003. Editora UFPR
Repórter – Hoje?! Mas não dá tempo!... Não está
preparado... O que é que a senhora pensa? Que é
assim tão simples organizar uma promoção de
venda? É muito fácil pegar uma cruz, jogar nas
costas e andar sete léguas. Mas um jornal é uma
coisa muito complexa. Mobilizar todos os
departamentos para dar cobertura... e depois,
eu já lhe disse, amanhã é domingo, não tem jornal!
(p. 87)
Ambivalências de Zé-do-Burro
Desde o início da trama, Zé-do-Burro desperta a curiosidade das pessoas
que circulam pela praça e muitas são as opiniões a seu respeito. O Bonitão o
considera um idiota; Marli, um beato pamonha, carola de uma figa e corno manso;
Minha Tia, um homem bom; Rosa, um homem bom até demais. Mais importante
do que estas opiniões pessoais são aquelas que refletem a perspectiva do povo
e da igreja. Segundo palavras de Rosa:
Rosa – Não brinque. Pelo caminho tinha uma porção de
gente querendo que ele fizesse milagre. E não
duvide. Ele é capaz de acabar fazendo. Se não
fosse a hora, garanto que tinha uma romaria aqui,
atrás dele (p. 24)
Em confronto com esta posição popular, temos a da igreja, expressa aqui
pelo sacristão e pelo padre:
Sacristão – O senhor não ouviu ele [o padre Olavo] dizer? É
Satanás! Satanás sob um dos seus múltiplos
disfarces! (p. 59)
.............................................................................
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Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 133-151, jul./dez. 2003. Editora UFPR 149
Padre – Sim, talvez tenha feito [a promessa], por
inspiração de Satanás! Há quem diga que não
estamos mais em época de acreditar em bruxas.
No entanto, elas ainda existem! Mudaram talvez
o aspecto, como Satanás mudou de métodos. É
mais difícil combatê-las agora, porque são
inúmeros os seus disfarces. Mas o objetivo de
todos continua a ser um só: a destruição da Santa
Madre Igreja! (p. 93)
Seja visto como uma espécie de santo, seja visto como o diabo, a única
constante em Zé-do-Burro é o signo ambivalente fruto da cosmovisão
carnavalizada da obra. E é esta cosmovisão que subsiste até no momento de sua
morte: o pagador de promessas foi “carnavalizadamente” crucificado como Jesus
Cristo e como Este, no dia de sua crucificação, teve os céus tempestuosos. No
entato, no caso de Zé-do-Burro, até os trovões possuem um duplo sentido: se
por um lado fazem uma alusão à tempestade da cena bíblica, reforçando a simetria
entre Cristo e Zé-do-Burro, por outro apontam para a esfera pagã da peça, sendo
a própria representação dos poderes de “Iansan, a Santa Bárbara nagô”. Sua
última “palavra” irônica a afirmar vitória pela entrada na igreja católica do seu
pagador de promessas, o que significa a superação do universo oficial pelo
universo carnavalesco: sincrético e mundano.
Acreditamos ter demonstrado em nossa leitura que o fundamento
carnavalesco de O pagador de promessas é absolutamente certo: a peça é
organizada como um ato carnavalesco complexo, provido de todos os seus
acessórios exteriores. Desde o espaço cênico, da mistura de gêneros e estilos,
da utilização de um vocabulário que busca a violação das regras normais da
linguagem e das convenções sociais ditas oficiais até as intrigas do enredo, a
peça de Dias Gomes apresenta elementos que a faz passível de ser agrupada
dentro da literatura de lógica carnavalesca que corrompe tudo o que a coibe da
expressão livre de idéias e ações expontâneas e que tem como uma das
conseqüências um mundo às avessas, como fica explícito nesta fala pasma de
Zé-do-Burro:
Zé – Não sei, Rosa, não sei... Há duas horas que tento
compreender... mas estou tonto, tonto como se
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150 Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 133-151, jul./dez. 2003. Editora UFPR
tivesse levado um coice no meio da testa. Já não
entendo nada... parece que me viraram pelo
avesso e estou vendo as coisas ao contrário do
que elas são. O céu no lugar do inferno... o
demônio no lugar dos santos (p. 48).
RESUMO
Este artigo constitui-se de uma leitura do texto dramático O pagador de promessas,
de Dias Gomes, a partir de considerações teóricas de Mikhail Bakhtin acerca da
carnavalização. Objetivamos demonstrar que a peça é organizada como um ato carnavalesco
complexo, provido inclusive de todos os seus acessórios exteriores. Desde o espaço
cênico, da mistura de gêneros e estilos, da utilização de um vocabulário que busca a
violação das regras normais da linguagem e das convenções sociais ditas oficiais até as
intrigas do enredo, a peça de Dias Gomes apresenta elementos que a faz passível de ser
agrupada dentro da literatura de lógica carnavalesca.
Palavras-chave: O pagador de promessas, Carnavalização, Texto dramático.
RÉSUMÉ
Cet article est constitué d’ume lecture du texte dramatique O pagador de
promessas, de Dias Gomes, à partir des considerations théoriques de Mikhail Bakthin
sur la carnavalisation. On a l’intention de démontrer que la pièce est organisée comme un
acte carnavalesque complexe, munie par tous les accessoires extérieurs. Partant de l’espace
scénique, du mélange des genres e des styles, de l’utilisation d’un vocabulaire qui viole
des règles normales du language et des conventions sociales dites officielles, jusqu’aux
intriques de l’histoire, le texte de Dias Gomes présente des éléments qui la fait devenir
possible d’être groupée dans la littérature de logique carnavalesque.
Mots-clés: O pagador de promessas, Carnavalisation, Texte dramatique.
OLIVEIRA, A. P. de. A cosmovisão carnavalesca...
Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 133-151, jul./dez. 2003. Editora UFPR 151
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Arte Poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética
clássica. Tradução direta do grego e do latim de: Jaime Bruna. 7. ed. São Paulo: Cultrix,
1997. Introdução de Roberto de Oliveira Brandão.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Tradução de: Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 1987.
_____. Estética da criação verbal. Tradução de: Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. [c/ autor: Tradução feita a partir do francês: ver
nome do tradutor e colocar em que língua está no original – russo?]
_____. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de: Paulo
Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
_____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de: Aurora
Fornoni Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: Hucitec; Ed. Unesp, 1998.
GOMES, D. O pagador de promessas. 35. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. (Coleção
Prestígio).
Análise comparativa entre a peça O Pagador de Promessas
e sua adaptação cinematográfica
20/12/2007
Roberta Vanessa Crispim Pinheiro*
Nascido como uma espécie de registro da vida cotidiana, o cinema aos poucos
descobriu que também podia ser usado para contar historias, embora - diferente da
literatura - estas devam ser pensadas como serão vistas na tela. Para isso é preciso
elaborar o roteiro (história escrita na língua do cinema com todos os seus termos
técnicos). Claro que as técnicas do cinema não surgiram de repente. Foram anos de
experimentos que se aperfeiçoavam de diretor para diretor.
Desde cedo, os cineastas encontraram na literatura uma vastidão de temas que
constituem verdadeira fonte de inspiração para seus trabalhos. Além disso, as obras
literárias também atendem a possível carência de roteiros e roteiristas. Mas enquanto
não houver o entendimento de que estas duas artes (cinema e literatura) são
linguagens
diferentes, as adaptações de romances e peças para o cinema serão sempre vistas
como
um ato de ousadia, visto que é inescapável a cobrança para que os filmes sejam fieis ou
o mais parecidos possível com o livro, principalmente por parte dos leitores da obra
adaptada.
A peça O Pagador de Promessas, do dramaturgo Dias Gomes, foi adaptada para
o cinema por Anselmo Duarte, em 1961. Neste artigo, pretendemos analisar o resultado
das escolhas do cineasta ao adaptar este drama à linguagem cinematográfica. Para tal,
serão aplicados os conceitos de ação e de trágico no decorrer da análise comparativa
entre as cenas do drama e do filme.
Dias Gomes (Alfredo de Freitas D. G.), romancista, contista e teatrólogo, nasceu
em Salvador, BA, em 19 de outubro de 1922. Faleceu em São Paulo no dia 18 de maio
de 1999. Eleito em 11 de abril de 1991 para a Cadeira n. 21 da Academia Brasileira de
Letras (na sucessão de Adonias Filho), foi recebido em 16 de julho de 1991, pelo
acadêmico Jorge Amado.
Interessando-se pela literatura e por representações teatrais desde a infância, Dias
Gomes escreveu sua primeira peça com apenas 15 anos de idade, intitulada A comédia
dos moralistas, que ganhou o 1º lugar no Concurso do Serviço Nacional de Teatro em
1939. Estreou no teatro profissional em 1942, com a comédia Pé-de-cabra, encenada
no Rio de Janeiro e depois em São Paulo por Procópio Ferreira, que com ele excursionou
por todo o país.
Mas a notoriedade de Dias Gomes como autor foi obtida com a peça O Pagador de
Promessas (1959) que, ao ser adaptada para o cinema por Anselmo Duarte, obteve
grande sucesso e conquistou vários prêmios internacionais. O Pagador de Promessas
é
uma das peças brasileiras recordistas em traduções e encenações no exterior, sendo
encenada várias vezes nos Estados Unidos por diferentes diretores norte-americanos.
Os textos do dramaturgo procuram espelhar as angústias da atualidade sem
explorar dogmas. Questionando problemas sem a pretensão de apresentar soluções, os
evidenciam para chamar a atenção do público sobre determinadas questões sociais,
sem
a intenção de propagar "mensagens", utilizando-se constantemente da comicidade
quando mostra o trágico.
A história de O Pagador de Promessa é extremamente simples, narrando o
calvário vivido por um simplório chamado Zé, que tenta pagar promessa feita a Iansã
pela cura de seu burro, o qual ele considera como um amigo. Para a revolta de sua
esposa Rosa, Zé também promete dividir suas terras com os lavradores mais pobres e
depositar uma pesada cruz de madeira no altar de uma igreja de Santa Bárbara. O que
Zé e Rosa não imaginavam, era que só encontrariam tal igreja a sessenta léguas de
casa
e que o padre não permitiria sua entrada por não considerar que Iansã e Santa Bárbara
eram a mesma mediadora do milagre feito ao burro. Zé-do-Burro não desiste, pois é
movido pela fé, honestidade e obstinação, embora isso o leve à morte.
O paulista Anselmo Duarte iniciou sua carreira no cinema, no Rio de Janeiro, após
ler um anúncio de Orson Welles selecionando pessoas para participar do filme It's All
True, em 1942. Anselmo trabalhou como ator, produtor, roteirista, editor e diretor em
diversas produções nas décadas de 50 a 80.
A partir da peça de Dias Gomes, Anselmo Duarte traçou uma narrativa coerente,
tratando de temas como sincretismo religioso e manipulação ideológica. Era um filme
polêmico, mas sem os recursos técnicos de vanguarda valorizados na época. Leonardo
Villar e Glória Menezes (atores que representaram os protagonistas da peça),
emocionaram com a história de Zé do Burro, que morre para pagar uma promessa.
O filme O Pagador de Promessas foi exibido na Casa Branca, em 17 de
dezembro de 1962 e entusiasticamente aplaudido pelo presidente Kennedy, diplomatas
e
jornalistas. Foi o primeiro filme brasileiro a concorrer ao Oscar, sendo indicado a
categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Embora não tenha recebido a “estatueta”, o
filme
foi premiado em vários festivais, destacando-se a Palma de Ouro por Melhor
Longametragem
no Festival de Cannes, França. E após o recebimento do prêmio em Cannes, o
diretor e a equipe do filme que viajou para o festival foram recebidos com um desfile
público em carro aberto ao desembarcar no Brasil.
Daí seguiu-se vários prêmios nacionais e internacionais, como: Prêmio Governador
do Estado de São Paulo, SP, em 1962 por Melhor Filme, Produtor (Oswaldo Massaini),
Diretor, Ator (Leonardo Villar) e Argumento (Dias Gomes); Melhor Filme, Diretor, Ator
(Leonardo Villar) e Atriz (Glória Menezes), Troféu Cinelândia, Rio de Janeiro, em 1962;
Prêmio Darius Milhau e Melhor Música (Golden Gate), em 1962; Melhor Filme no Festival
Internacional de São Francisco, EUA, 1963; entre outros.
Claro que o sucesso do filme não se deve apenas ao brilhantismo do diretor, mas
do próprio autor da peça, que participou da produção do filme escrevendo todos os
diálogos.
Literatura e cinema: a arte milenar como base da arte secular
Arte milenar, a literatura adotou um caminho próprio que só previa adaptações
para o teatro e cuja estética não é a estética da imagem. A literatura é uma arte
autônoma e sua criação é pessoal. Costumamos pensar a literatura apenas como ficção,
onde tudo é possível. De fato o é, mas a literatura é um objeto social simbólico. De
acordo com Marisa Lajolo, podemos dizer que a literatura é uma forma de expressar a
visão de mundo de quem escreve, exercendo assim um papel transformador.
“É desse cruzamento do mundo simbolizado pela palavra em estado de literatura
com a realidade diária dos homens que a literatura assume seu extremo poder
transformador. Os mundos fantásticos criados pelo texto não caem do céu, nem têm
gênese na inspiração das musas. O mundo representado na literatura, simbólica ou
realistamente, nasce da experiência que o escritor tem de uma realidade histórica e
social muito bem delimitada. O universo que autor e leitor compartilham, a partir da
criação do primeiro e da recriação do segundo, é um universo que corresponde a uma
síntese – intuitiva ou racional, simbólica ou realista – do aqui e agora que se vive.”
(LAJOLO, 1986, pág.65)
Enquanto a literatura é independente, o cinema exige a colaboração de vários
profissionais e baseia-se em outras artes como a pintura e a música para enriquecer a
história contada.
O cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, durante uma apresentação no
Grand Café do boulevard des Capucines, em Paris, onde o público viu, pela primeira
vez,
filmes como La Sortie des ouvriers de l'usine Lumière (A saída dos operários da
fábrica Lumière) e L'Arrivée d'un train en gare (Chegada de um trem à estação), que
na verdade, não passavam de breves testemunhos da vida cotidiana. Esta façanha foi
feita pelos irmãos franceses, Louis e Auguste Lumière, que criaram o cinematógrafo,
invento equipado com um mecanismo de arrasto para a película e com o qual era
possível projetar imagens ampliadas numa tela.
Estes filmes dos irmãos Lumière tinham um caráter muito mais de documentário,
visto que não contavam uma historia, apenas registravam cenas da vida cotidiana, em
um curto espaço de tempo (um minuto).
E mesmo dando um enorme passo para o surgimento de uma nova linguagem,
Louis e Auguste Lumière não davam credibilidade ao cinematógrafo, que para eles não
passava de “uma invenção sem futuro”. Porém, houve quem discordasse como o
francês
George Mélies (1861-1938), que comprou um cinematógrafo. Mélies era mágico e
diretor
de teatro e introduziu à invenção dos irmãos Lumière, um elemento por eles ignorado:
a
magia. E por aí se inicia a busca do cinema pela fantasia, deixando de ser apenas uma
forma de registro da vida real.
Libertando-se da idéia de documentário, o cinema passa a incorporar outros
recursos para atrair o público, até chegar à literatura. E este ponta-pé inicial foi dado
pelo próprio Mélies, que teria sido o primeiro fundador de uma produtora, a Star Film.
Em 1902, Mélies produziu o filme Viagem à Lua, obra considerada a primeira ficção
cientifica do cinema, com duração de 13 minutos, inspirada nos romances de Júlio
Verne.
Levando em consideração o dilema vivido por diversos diretores em ser fieis a obra
adaptada, ou apostar na autoria, ou seja, personalizar recriando o livro a partir de suas
idéias, mostra que levar um romance as telas não é tarefa fácil. Essa dificuldade se dá a
comparação entre película e livro. Depois de roteirizado e filmado o texto literário fica
bem diferente do que vemos no livro. E isso pode ser justificado até mesmo pelas
próprias limitações da linguagem cinematográfica. Por exemplo: nos romances, a
descrição de uma paisagem é muito longa, enquanto no cinema a mesma paisagem é
facilmente descrita, uma vez que cinema é basicamente imagem. Por outro lado, é
muito
mais fácil mergulharmos no consciente, ou quem sabe inconsciente, de uma
personagem
através da literatura do que no cinema, já que este embora possa usar de seus planos e
ângulos, pode não ser entendido pelo telespectador.
No Brasil, a partir da década de 60, a literatura foi fundamental para o cinema
nacional. Grandes obras de nossa literatura foram transpostas para a linguagem
cinematográfica como por exemplo: Vidas Secas (Graciliano Ramos/Nelson Pereira dos
Santos), em 1963; Menino de Engenho (José Lins do Rego/Walter Lima Jr.) em 1965;
A Hora e a Vez de Augusto Matraga (Guimarães Rosa/Roberto Santos), em 1966 e
Macunaíma (Mário de Andrade/Joaquim Pedro de Andrade), em 1969.
A adaptação cinematográfica do drama
Segundo Martin Esslin, “o drama mecanicamente reproduzido dos veículos de
comunicação (o cinema, a televisão, o rádio), muito embora possa diferir
consideravelmente em virtude de suas técnicas, também é fundamentalmente drama”,
palavra grega que significa ação, a qual através de mimésis representa o
comportamento
humano, fazendo com que a platéia reflita sobre determinadas situações.
Embora o drama transposto para o cinema não permita o feedback entre a platéia
e os atores – fator este que influencia na atuação do elenco - , o cinema pode dar maior
destaque a determinadas ações através de sua linguagem e montagem. O drama no
cinema tem muito mais realismo em suas ambientações, uma vez que estas são
limitadas pelo espaço físico do teatro.
Esslin nos chama a atenção para uma diferença marcante entre o drama teatral e
drama cinematográfico: o uso do microfone e da câmera, que seriam a extensão dos
ouvidos e olhos do diretor, o que lhe permite controlar o ponto de vista da platéia.
Enquanto no teatro o quadro é o mesmo para todos e cada um olha para o que quer, no
cinema o diretor chama a atenção de toda a platéia para um único ponto, através de
planos (gerais, médios ou closes), cortes de um lugar para outro e movimentos de
câmera. Ou seja, o público vê apenas o que o diretor deseja mostrar e da forma como
quer mostrar.
Semelhanças e distanciamentos: o filme de Anselmo Duarte
Um agricultor ingênuo chamado Zé do Burro, que recorre a um terreiro de Iansã,
como última alternativa para salvar a vida de seu burro de estimação que sofreu um
acidente, e cujo ferimento, médicos nem rezas conseguem curar. Considerando que
Iansã é Santa Bárbara, Zé promete a “santa”, que se esta curar seu burro, dividirá suas
terras com os lavradores mais pobres que ele, e carregará uma cruz tão pesada quanto
a
de Cristo, até a Igreja de Santa Bárbara e depositará a cruz no altar mor.
Tendo o pedido atendido, Zé reparte suas terras e carrega sua cruz por sete léguas
ao lado de sua esposa Rosa, até a Igreja citada. Porém, ao contar ao Padre Olavo o
motivo da promessa e como esta foi feita, Zé é proibido pelo sacerdote de entrar na
igreja e assim realizar o seu objetivo.
O pagador se depara ainda com vários personagens inescrupulosos que se
aproveitam de sua ingenuidade, tentando destruí-lo. A imprensa tenta vendê-lo como
um
novo Messias, enquanto tudo o que Zé do Burro quer é acertar as contas com a Santa.
Sua morte evidencia a tragicidade da peça, dando um encerramento, cruel, triste e
extremamente belo.
Tanto no texto original quanto em sua adaptação, o sofrimento de Zé-do-Burro
suscita grande empatia no público, favorecendo o pathos. O filme provoca uma reação
de
compaixão ainda maior, visto que as outras personagens tem suas má intenções em
relação a Zé, ainda mais acentuadas.
Inclusão de eventos
Em seu texto, Dias Gomes apresentou Zé-do-Burro e Rosa logo no início do
primeiro quadro, chegando à igreja. Anselmo Duarte optou por mostrar ao espectador,
o
motivo de todo o sofrimento de Zé, ou seja, a promessa feita a Iansã. Pensando assim,
o
diretor decide iniciar o filme com Zé fazendo sua promessa no candomblé de Maria de
Iansã.
Em seguida, Anselmo mostra o pagador e sua esposa deixando sua roça. Há uma
casa pegando fogo, o que nos leva a imaginar que Zé ao dividir as terras, incendiou a
própria casa. Enquanto são exibidos os créditos iniciais do filme, vemos toda a
peregrinação de Zé com a cruz nas costas, sendo, em um determinado momento,
seguido por algumas pessoas em romaria – fato só comentado por Rosa durante
conversa com Bonitão, ainda no primeiro quadro.
Originalmente, Zé e Rosa descem a ladeira sem que haja nenhuma referência a
algum movimento na rua, ou seja, segundo a peça, não há ninguém na rua fora eles
dois. Porém no filme, ao descerem a ladeira, um grupo de pessoas que parecem ter
passado a noite em farras, zombam do protagonista, rindo e chamando-o de palhaço.
Nesse momento, já vemos Bonitão olhando para Rosa, que o encara como se este fosse
mais um a rir de seu marido.
A saída de Rosa e Bonitão para o hotel é feita debaixo de chuva. Enquanto
procuram se abrigar da chuva, Rosa conta como conheceu o marido e fala como que
num desabafo, mas Bonitão não está interessado, prova disso, é que ela tenta beija-la,
mas Rosa se desvencilha e fingi que não notar as intenções de seu acompanhante.
Chegando ao hotel, Bonitão não só a leva ao quarto, mas entra e fecha a porta.
Anselmo inclui o repórter chegando a redação do jornal onde trabalha e recebe a
notícia sobre a peregrinação de Zé como pauta, e cujo dialogo mostra que a sua função
é
fazer sensacionalismo.
Já no segundo quadro do primeiro ato, depois da apresentação dos personagens
Dedé, Minha tia e Galego, o diretor acrescenta pequena cena de Padre Olavo
perguntando ao sacristão, após a missa, se o pagador da promessa ainda está lá fora,
tentando justificar sua atitude de proibi-lo de entrar na igreja. Em seguida vemos
mulheres vestidas de baianas lavando a escadaria da igreja, cena que não faz parte da
peça, mas que serve de passagem para a cena de Zé com o guarda, visto que o
primeiro
sai de onde está e vai para a rua, onde encontra o guarda.
No primeiro quadro do segundo ato, Rosa sai do hotel, que ao iniciar sua
caminhada de volta a igreja, parece perdida pelas ruas da cidade. Ela começa a correr.
A
trilha passa a idéia de tensão. Logo após, vemos o guarda dentro da sacristia
conversando com o padre sobre a situação de Zé. O padre parece preocupado, sem
saber o que fazer.
Dias Gomes não fala na chegada da procissão a Igreja, mas Anselmo mostra Santa
Bárbara carregada por fieis em procissão, subindo a escadaria da igreja. Zé fica tão
distraído olhando para a santa que mal percebe Rosa saindo para a venda encontrar
com
Bonitão. Zé segue a procissão com sua cruz, caminhando ao lado do andor, sem tirar os
olhos de Santa Bárbara. Esta é sempre mostrada em contra-plongée e Zé em plongée,
nos dando a idéia da pequenez do homem em relação ao sagrado. O que nos chama a
atenção é o momento em que ao chegar na porta da igreja, a santa volta-se para ZédoBurro, que não pode mais segui-la. Esta entra na igreja de costas para o altar,
passando
ao lado do padre que não percebe o “fenômeno”. Ainda na mesma seqüência, Zé e
Padre
Olavo se entreolham, e o primeiro observa o padre obrigando as baianas a se afastarem
para o lado e dar passagem aos seus fieis. Marli também acompanha a procissão, mas
esta se coloca ao lado de Zé, olha-o, como se igualando ao agricultor na exclusão,
depois
olha para o padre, abaixa a cabeça e sai. O padre manda fechar a porta atrás do último
fiel, enquanto Zé é cercado pelas baianas.
Na venda de Galego, Bonitão compra um jornal e liga para o secreta, pedindo que
este o encontre logo. No filme há um garoto vendendo o jornal que fala sobre Zé.
Enquanto isso, Padre Olavo se encontra ao lado do sino da igreja, caminhando de um
lado para outro lendo a Bíblia. Ao ouvir o garoto gritando o titulo da manchete do
jornal,
o padre espia o movimento na rua do alto da igreja. Benzendo-se, ele ajoelha-se reza o
Pai Nosso, oração que serve de passagem para a cena seguinte: a reunião de
sacerdotes
que discutem a situação de Zé-do-Burro. Nesta cena, fica claro que a preocupação dos
sacerdotes não é Zé e sua promessa, mas a opinião pública, ou seja, a posição da igreja
de modo a não ganhar a antipatia do povo.
Após a cena da chegada do monsenhor, vemos que Padre Olavo e Monsenhor
Otaviano conversam no pátio da igreja, sobre que atitude tomar, pensando
especificamente no aspecto político.
Na peça só sabemos de um único repórter. No filme, há repórteres de todos os
meios de comunicação (como rádio e tv também). Depois que Zé tenta entrar na igreja,
a imprensa o cerca, deixando Rosa nervosa. Na mesma seqüência, aparece uma mulher
com um bebê nos braços, pedindo que Zé salve a criança tocando-lhe a testa. O
pagador
quase atende o pedido da mulher mas se contem e começa a chorar. Muitos doentes e
deficientes vem até Zé-do-Burro que se levanta, ergue sua cruz e sai da porta da igreja,
mas estes o seguem cantando hinos que se confundem com o som dos berimbaus dos
capoeiristas que já começam a se apresentar.
No terceiro ato, o padre está novamente ao lado do sino, e ao ouvir o som da rua,
espia a multidão. Ele está preocupado e nervoso ele começa a bater os sinos que mal
são
ouvidos por conta dos berimbaus.
Ainda no terceiro ato, na cena em que Rosa e Bonitão sobem a ladeira, Rosa ao ver
a policia chegar, pede que Bonitão impeça a prisão de Zé. Ao perceber que não será
atendida, ela o esbofeteia e sai correndo em direção a igreja. Marli assiste a cena e
começa a rir. Bonitão também se diverte com a situação e sai de braço dado a Marli.
Enquanto isso, o repórter tenta entrar na sacristia mais uma vez, mas a polícia não
deixa. O fotográfo comenta que sabia que iam desgraçar a vida de Zé, mas o repórter
não se importa, pois segundo ele, manchete é manchete.
Inclusão de ambientes
Os três atos da peça O Pagador de Promessas, de acordo com o texto original
de Dias Gomes, desenvolve-se em uma pequena praça, onde desembocam duas ruas.
Uma à direita e outra à esquerda e de frente para a platéia, há uma ladeira. Na esquina
da rua da direita há a fachada da pequena igreja de Santa Bárbara. Numa das esquinas
da ladeira há um ponto comercial (uma vendola) e na outra esquina, há um sobrado. A
versão de Anselmo Duarte rompe com esta unidade de lugar, acrescentando: o
candomblé, logo na abertura do filme; a roça de Zé (mesmo que vista bem ao fundo); a
estrada e povoados que o pagador percorre durante sua peregrinação; a portaria e o
quarto do hotel onde Rosa dorme; o interior da igreja; a sacristia; a torre da igreja
onde
ficam os sinos; a sala onde os sacerdotes se reúnem para discutir o drama de Zé; o
pátio
da igreja onde Padre Olavo e Monsenhor Otaviano conversam.
Exclusão de falas
Anselmo exclui todo o diálogo em que Bonitão nota a presença de Marli na
escadaria da igreja, após ele ter tomado-lhe todo o dinheiro apurado naquela noite. Ele
preferiu mostrar apenas o inicio do dialogo deles antes de encontrar Rosa e Zé nos
degraus da igreja. A exclusão das falas de Bonitão se oferecendo para tomar conta da
cruz caso Zé decida ir para o hotel com Rosa, torna as intenções de Bonitão em seduzir
Rosa mais evidentes.
A conversa do repórter e Rosa onde ela conta sobre a polícia ter sido acionada,
diminui no filme a sede de sensacionalismo do repórter.
As falas da beata também são quase todas excluídas, deixando que toda e
qualquer reprovação por parte da igreja seja apenas demonstrada pelo padre. No
entanto uma de suas falas é aproveitada e divida para três atrizes.
Exclusão de fatos
Bonitão não volta do hotel como diz na peça. Assim, Anselmo também exclui o
dialogo ente Bonitão e o sacristão.
Modificação da leitura dramática do texto
Quando Zé-do-Burro diz que tem de levar a cruz para dentro da igreja, Rosa não o
olha com raiva ao dizer que terá de dormir no “hotel do padre” para que o marido não
se
suje com a santa, como no texto original. No filme, ela olha para o chão, se mostrando
obediente, embora inconformada com a situação.
Ao chegar à escadaria avistando Zé e Rosa, Bonitão manda Marli ir embora. Mesmo
tentando continuar ao lado dele, Marli obedece a ordem de Bonitão e se vai, nos
fazendo
entender que no filme, as mulheres são bem mais submissas. Na peça, Bonitão se
intriga
com a cruz, sendo esta o motivo de sua aproximação a Zé. Anselmo prefere que o
gigolô
se aproxime e se apóie na cruz para observar Rosa melhor, uma vez que ele já a tinha
visto descendo a ladeira no momento de sua chegada a cidade. Enquanto Zé e Bonitão
conversam, Rosa abre os olhos e espia quem é o interlocutor de seu marido, depois
volta
a dormir sem dar importância à presença de Bonitão. Originalmente, no texto de Dias
Gomes, Rosa acorda por sentir que está sendo observada, já na adaptação ela desperta
porque Bonitão se aproxima e puxa sua saia para cobrir-lhe a perna que está à mostra.
No texto para o teatro, Zé não percebe o ar culposo de Rosa, nem mesmo quando
ela diz: “Mais do que já aconteceu?”. Ele entende essa frase referindo-se apenas à
peregrinação e o conflito com o padre. No filme, ele compreende de imediato o que ela
quer dizer, mas não diz uma única palavra.
Diferente da peça, Rosa não se mostra empolgada com a presença da imprensa,
não dá importância nem enxerga na figura do repórter a “ajuda” que ele oferece.
Quanto
a conversa de Bonitão e Rosa na venda, Anselmo acrescentou dois detalhes: primeiro, a
chegada do repórter, que lança um olhar e sorriso significativo para o fotografo após ver
o casal conversando; segundo, Marli também chega à venda e escuta a conversa dos
dois, o que a leva a ter uma crise de ciúmes. O escândalo de Marli chama a atenção dos
que passam na rua, e Zé vem ao auxilio de Rosa. De cabeça baixa, assim como a
esposa, ele escuta as palavras de Marli que é arrastada por Bonitão e depois olha para
Rosa. Na peça, é neste momento que Zé passa a desconfiar da traição da esposa, mas
no filme, essa cena nos parece que ele já não tem mais dúvida alguma.
Mestre Coca, de acordo com o texto de Dias Gomes, só toma partido de Zé, ao
chegar à venda do Galego, embora já tenha ouvido o boato de que havia um homem
querendo entrar na igreja com uma cruz e não podia. No filme, ele toma conhecimento
do drama de Zé-do-Burro através do jornal e chama os capoeiristas para ir ajudar o
pagador.
Originalmente, Rosa ao tentar justificar sua traição, ela também culpa Zé por este
ter insistido que ela fosse com Bonitão. Na adaptação ela culpa apenas a santa. Quando
Zé se revolta frente o Secreta e Bonitão, na peça, ele grita pelo padre que não está na
praça. No cinema, o padre está entre a multidão que ouve as falas dos três personagens
citados. Zé não percebe que o padre está passando, a não ser quando este chega ao
alto
da escadaria, então o pagador grita pelo padre e sobe alguns degraus para pedir que
este o ouça.
Quando o Monsenhor pergunta a Zé se renega ou não a promessa, Minha Tia e
Mestre Coca clamam por Iansã. No filme a carga dramática desta cena é maior, visto
que
todos se calam, o silêncio geral provoca tensão. O olhar de Zé para Rosa como que
buscando a resposta que deveria dar nos causa ansiedade e piedade, visto que ele não
encontra nos olhos da esposa o apoio que procura. Só depois de dizer que não pode
renegar é que Minha Tia e os capoeiristas chamam por Iansã.
Na peça, Bonitão tenta levar Rosa embora após a morte de Zé. No filme esta cena
não existe, pois Bonitão vai embora com Marli antes da confusão na escadaria. No texto
original, Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo que avança para a igreja, deixando
Minha
Tia sozinha na praça. Anselmo prefere não mostrar estes personagens isoladamente,
com exceção de Rosa, que fica sozinha na escadaria entrando sozinha na igreja após
toda a multidão já ter entrado.
Modificação de falas
Anselmo Duarte esclarece melhor o drama de Zé, quando no primeiro encontro do
pagador com o padre, este explica que Iansã e Santa Bárbara não é a mesma coisa
dizendo que esse sincretismo vem desde o tempo em que os escravos não podendo
adorar seus deuses nagôs, fingiam cultuar santos católicos.
Conclusão
As escolhas do cineasta Anselmo Duarte na leitura que se fez sobre os personagens
do drama de Dias Gomes não invalidam o que foi definido pelo autor. A essência dos
personagens na adaptação feita por Anselmo de O Pagador de Promessas foi
modificada, intensificando as características de alguns personagens.
Podemos dizer que o Zé-do-Burro do cinema é mais desconfiado que na peça, mas
provoca o mesmo nível de empatia independente de ser o drama teatral ou
cinematográfico. Rosa não é tão questionadora, nem tão insatisfeita sexualmente como
diz na peça. No filme, ela nos parece mais submissa e arrependida. Já Bonitão é na
adaptação ainda mais atrevido. O Repórter mais aproveitador e sensacionalista,
enquanto o padre mais inseguro, fraco, temeroso com que decisões deve tomar.
A adaptação desta obra não sofreu grandes modificações a ponto de fugir do texto
original. Embora o diretor tenha acrescentado alguns eventos, estes só enriqueceram o
drama. Se bem que parte destes acréscimos está no texto original, mas através da fala
dos personagens. Não sentimos falta das falas que foram cortadas no filme, mesmo
porque, embora a direção e o roteiro sejam de Anselmo Duarte, o dialoguista da
adaptação foi o próprio Dias Gomes.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Ebook
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1995.
CHION, Michel. O roteiro de cinema. São Paulo, Martins, 1989.
ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro, Zahar, 1986.
GOMES, Dias. O pagador de promessas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986.
LUNA, Sandra. Arqueologia da ação trágica: o legado grego. João Pessoa: Idéia,
2005.
* Roberta Vanessa Crispim Pinheiro é graduada em Radialismo e aluna especial do
Mestrado de Letras da UFPB. Este ensaio foi escrito para a disciplina Dramaturgia e
Cinema, ministrada pela professora Sandra Luna.
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Alfredo de Freitas Dias Gomes
(Salvador BA 1922 - São Paulo SP 1999). Autor. Sua obra tem uma abordagem
humanista de esquerda, com temática voltada para o homem brasileiro e sua luta com a
engrenagem social. Entre elas, O Pagador de Promessas, um clássico da moderna
dramaturgia brasileira.
Muda-se para o Rio de Janeiro e escreve, aos 15 anos, a sua primeira peça, A Comédia
dos Moralistas, premiada pelo Serviço Nacional de Teatro - SNT, em 1939. Pé de Cabra é
encenada em 1942, pela companhia Procópio Ferreira, com êxito de público e crítica. Seguem-se as
montagens de João Cambão, 1942; Amanhã Será Outro Dia, 1943; Doutor Ninguém, 1943; Zeca Diabo,
1943; quase todas produzidas pelo conjunto de Procópio. A partir de 1944 passa a concentrar suas
atividades no rádio. Escreve e dirige programas, exerce cargos de chefia artística em
várias emissoras e produz radioteatro, inclusive com adaptações de alguns textos de sua
autoria originalmente escritos para palco. Volta ao teatro em 1954 com Os Cinco
Fugitivos do Juízo Final, produzida por Jaime Costa, com direção de Bibi Ferreira.
Sua consagração vem em 1960 com a montagem de O Pagador de Promessas pelo
Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, dirigida por Flávio Rangel e seguida, em 1962,
por uma montagem carioca, do Teatro Nacional de Comédia - TNC, com direção de
José Renato. A peça conta a história de Zé do Burro, um dos mais puros heróis trágicos
da dramaturgia brasileira, que paga com a vida pela obstinação em depositar na igreja
da capital a pesada cruz que trouxe de sua longínqua aldeia, em pagamento de uma
promessa feita para que Iansã curasse o seu burro doente. Em torno de Zé do Burro
giram as personagens que são a síntese de um Brasil ao mesmo tempo medieval e
moderno, intolerante, impiedoso nos seus desequilíbrios sociais e educacionais, e onde
o indivíduo não tem chance de resistir às artimanhas do esquema explorador. Para a
popularidade de O Pagador de Promessas contribui a sua versão cinematográfica
dirigida por Anselmo Duarte, vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes de
1962, e uma adaptação para a televisão que, produzida 28 anos depois da criação da
obra, comprova a sua vitalidade.
O mesmo universo nordestino é cenário para A Revolução dos Beatos, criada em 1962
pelo TBC, com direção de Flávio Rangel, pela qual recebe o Prêmio Governador do Estado de
São Paulo de melhor texto. A ação se baseia num episódio histórico de 1920: a trajetória do
Padre Cícero e a manipulação do seu carisma místico pelos interesses políticos do
deputado Floro Bartolomeu. O autor faz uma abordagem crítica desse episódio com
personagens do fabulário popular. O Boi Santo, do Bumba-meu-Boi, desempenha um
papel de destaque. Também em 1962 estréia no Rio de Janeiro, dirigida por Ivan de
Albuquerque para o Teatro do Rio, A Invasão. Nesta peça, o autor transpõe a ação para
o cenário urbano, relatando a invasão de um prédio em construção por um grupo de
favelados. A comédia Odorico, o Bem-Amado, escrita em 1962, mas só montada em
1969 pelo Teatro de Amadores de Pernambuco - TAP, com direção de Alfredo de
Oliveira, se passa no interior da Bahia, onde o prefeito concentra todos os esforços na
demagógica inauguração de um novo cemitério, esbarrando na falta de um cadáver que
possa inaugurá-lo. Anos depois, a personagem ganha enorme popularidade, quando o
autor transplanta a idéia central da peça para a bem-sucedida telenovela O Bem-Amado,
valorizada pela composição de Paulo Gracindo no papel-título.
Na véspera da estréia da montagem original de O Berço do Herói, em 1965, o texto é
interditado pela Censura, dando início à longa etapa de repressão de que o teatro
brasileiro é vítima até o fim da década de 1970. A peça desmistifica a figura de um falso
herói, um ex-integrante da Força Expedicionária Brasileira - FEB. A tentativa de
transformar seu enredo numa telenovela esbarra nos mesmos problemas com a Censura.
Posteriormente, o autor utiliza algumas idéias desse enredo como subsídios para a
novela Roque Santeiro.
Para escapar da Censura e ao mesmo tempo permanecer fiel aos seus propósitos, Dias
Gomes recorre na obra subseqüente a uma parábola vagamente histórica: a jovem
Branca Dias, protagonista de O Santo Inquérito, vítima da Inquisição no século XVIII,
merece um lugar de destaque na galeria dos heróis puros e libertários criada pelo autor.
O impasse entre o teatro predominantemente político de Dias Gomes e os obstáculos
que se opõem à sua produção no Brasil da ditadura gera uma fase menos fértil do autor,
na qual se destaca Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória, em co-autoria com Ferreira
Gullar, montado em 1968, com direção de José Renato. O espetáculo conta a vida de
Getúlio Vargas em forma de enredo de escola de samba e reproduz, no microcosmo da
escola, as lutas pelo poder abordadas no enredo. Uma nova versão do mesmo texto, com
o título de Vargas, atendendo às exigências de uma superprodução musical e
enriquecida por músicas de Edu Lobo e Chico Buarque, estréia no Rio de Janeiro, em
1983, com direção de Flávio Rangel, texto também premiado.
A partir de 1969, o autor se afasta do teatro e se dedica, durante alguns anos, à televisão.
Torna-se o mais importante dos autores de novelas, levando para o novo veículo a
observação da realidade brasileira e a mistura de fantasia e realismo que caracterizam a
sua obra teatral Entre as novelas mais bem-sucedidas encontram-se: Bandeira 2, 1971;
O Bem Amado, 1973; Saramandaia, 1976; Roque Santeiro, 1985.
A volta de Dias Gomes à dramaturgia teatral se dá em 1977, com As Primícias,
"alegoria político-sexual" que vai à cena em 1979. No mesmo ano é lançado no Rio de
Janeiro o seu primeiro musical de grande montagem, O Rei de Ramos, uma fábula cuja
ação transcorre no mundo do jogo do bicho. Musicada por Francis Hime com letras de
Chico Buarque, a peça é, como tantas outras de Dias Gomes, dirigida por Flávio
Rangel. E em 1980 chega à cena Campeões do Mundo, texto no qual ele procede a um
acerto de contas com a experiência histórica do regime autoritário, mostrando ao
público as diferentes motivações dos jovens que optaram pela luta armada para se opor
ao regime e brechtianamente estimulando o espectador a tirar suas próprias conclusões.
Em 1989, estréia um novo texto do dramaturgo, Meu Reino por um Cavalo.
O crítico e ensaísta Yan Michalski, ao analisar a obra de Dias Gomes, considera que ele
"(...) conta com um excepcional dom de observação das peculiaridades do caráter
nacional, quer se trate do sertanejo perdido num interior quase medieval, do favelado
exposto às agruras da selva do asfalto, ou do jovem intelectual que seqüestra um
embaixador nos tempos da luta armada. Por outro lado, apesar de o teatro ser rico em
personagens de forte carisma pessoal, ele evita consistentemente dar destaque prioritário
a problemas individuais: seus verdadeiros protagonistas são sempre, com maior ou
menor nitidez, corpos coletivos, cujos comportamentos se regem muito mais por
condicionamentos de caráter social, cultural e político do que por motivações de
realismo psicológico. Apesar da objetividade da crítica social que é a mola mestra do
seu trabalho, ele não renega, mas pelo contrário explora generosamente, elementos de
fantasia, misticismo e tradição lúdica popular; da mesma forma como não hesita em
misturar toques de autêntica tragédia com um humor corrosivo que é uma presença
constante nas suas peças".1
Notas
1.
MICHALSKI, Yan. Dias Gomes. In: _________. PEQUENA Enciclopédia do Teatro Brasileiro Contemporâneo. Material inédito,
elaborado em projeto para o CNPq. Rio de Janeiro, 1989.
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