introduzoe - Ciem-UCR

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Incorporação: abordagens e evoluções teóricas de um olhar inovador sobre o corpo pensante e
o corpo construído
Chiara Gentile, Brasil
Centro de Desenvolvimento Sustentável - Universidade de Brasília
Resumo
A noção o de “incorporação” representa um marco fundamental para a antropologia médica. Seu
legado principal consiste na transição do objeto de estudo (corpo e doença) do plano das
representações para o plano da vivência. Esse avanço, hoje, é confirmado por tentativas de
superação da abordagem fragmentada e objetivante para com o corpo e o paciente, típica da
biomedicina ocidental. Tal superação é encarnada pela medicina holística, os estudos sobre
processos de somatização, a evolução da medicina psicossomática e da neuropsicoimunologia. O
ensaio percorre os fundamentos do itinerário epistemológico e filosófico através de abordagens e
autores chaves, entre os quais Margaret Lock, Nancy Scheper Huges, Thomas Csordas, Maurice
Merleau-Ponty, Pierre Bourdieu, Tim Ingold.
Palavras-chave: antropologia médica, incorporação, fenomenologia, corpo, doença.
Introdução
Elaborada com o objetivo de enfatizar um olhar inovador e influente sobre a relação entre
corpo e mente, a presente pesquisa foi realizada como um itinerário através dos nós temáticos
fundamentais do pensamento antropológico-médico dos últimos 50 anos. Procedemos dividindo o
âmbito de pesquisa em duas fases, cuja demarcação cronológica e epistemológica é a introdução do
conceito de “incorporação”, estudado com base no trabalho de Margaret Lock e Nancy Scheper
Huges e do artigo Embodiment as a Paradigm for Anthropology de Thomas Csordas.
A reflexão aponta para os motivos da importância e o significado da mudança que o conceito
de “incorporação” representa para a antropologia médica anterior e sucessiva. A reflexão se estende
para campos não estritamente médico-antropológicos.
No texto é proposta uma análise em chave fenomenológica do aporte de autores da
antropologia médica crítica e militante, a partir de correspondências entre as ideias de MerleauPonty, Csordas, Ingold e, principalmente, de Bourdieu e tendências mais recentes.
Por um lado, há a ênfase na natureza culturalmente construída da experiência humana 
portanto, a ênfase nas derivações biológicas vindas de fatores socioculturais, econômicos, políticos,
a qual é proposta por autores como Paul Farmer e Didier Fassin. Esses destacam os mecanismos
que, silenciosamente e desde fora (miséria, discriminação, exploração etc.) agem produzindo corpos
que sofrem: limitações e privações são incorporadas à existência individual sob forma de
sofrimento quase “conatural” e padecidas sob forma de “violência estrutural”.
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Por outro lado, encontramos leituras do sofrimento corpóreo e da doença que sublinham a ideia
de “corpo pensante” e a faculdade estruturante do corpo de criar, resistir e expressar dissenso, como
no caso da obra de Margaret Lock, Nancy Scheper-Huges, Andras Zempléni, Jean e John Comaroff.
Um novo paradigma
Em 1987, o primeiro número da revista “Society for Medical Anthropology” hospeda um artigo
destinado a marcar profundamente o debate das ciências humanas sobre a concepção do corpo.
Trata-se de The mindful body: a prolegomenon to future work in medical anthropology de Margaret
Lock e Nancy Scheper Huges.
É possível compreender o peso da mudança de paradigma introduzida por este artigo a partir da
síntese das linhas teóricas representadas pelas escolas de antropologia médica da época e das
temáticas que as duas autoras pretendiam problematizar, a partir de perspectivas críticas novas.
Na década de 1970, alguns estudiosos, reunidos em volta do psiquiatra e antropólogo
estadunidense Arthur Kleinman, dão vida a assim chamada “escola de Harvard”: a biomedicina é
considerada e indagada como sendo uma etnomedicina: a etnomedicina ocidental, culturalmente
caracterizada pela abordagem científica à dimensão biofísica da doença e do corpo. Segundo
Kleinman e seus colaboradores, as categorias biomédicas pertencem a um sistema cultural
específico e concorrem para construir uma interpretação absolutamente peculiar da saúde e da
doença. Interpretação que, às vezes, entra em conflito com interpretações alternativas, não oficiais
ou pertencentes a sistemas culturais não estritamente biomédicos.
A proposta principal da escola de Harvard é distinguir entre doença como disease, enfermidade,
e doença como illness, isso é, experiência de mal-estar.
Na linguagem do modelo da escola de Harvard, disease denota uma falha no funcionamento ou na adaptação
de processos biológicos e/ou psicológicos. Illness, por outro lado, indica a experiência, a vivência de patologia
(ou “patologia percebida”) e a resposta à patologia elaborada dentro da dimensão social. A experiência de
doença (illness) é a forma em que o doente, sua família e a rede social percebem, definem, explicam, avaliam a
doença (disease) e reagem a ela. Nem a patologia nem a experiência da doença são “coisas”, entidades
objetivas, afirma Kleinman. Estas representam modalidades diferentes de explicar a doença. São, portanto,
construções sociais diferentes da realidade (KLEINMAN, 2006, p.15, trad. nossa).
Segundo esses autores, disease e illness representam modelos explicativos diferentes, que
sistemas culturais diferentes dão para o mesmo evento, a doença. Esta constitui o campo simbólico
dentro do qual vários dispositivos interpretativos operam, com base em códigos hermenêuticos
próprios. A tarefa da antropologia, portanto, é mediar e, de alguma forma, conciliar as perspectivas
divergentes que emergem do embate terapêutico e geram incongruências interpretativas e
etiológicas, conflitos comunicativos e episódios de non-compliance.
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A escola de Harvard, paralelamente ao mérito inegável de dedicar atenção à dimensão de
vivência da doença e de relativizar a biomedicina enquanto etnossistema específico, é objeto de
duas as críticas principais:
a) proporciona mais um instrumento (o conceito de illness) para recompreender a definição dos
pacientes no modelo racional da clínica oficial e negociar com eles alianças terapêuticas;
b) transcura o papel decisivo revestido por forças sociais mais amplas para a definição e a
experiência da doença.
Naquela mesma época, tais críticas estimularam abordagens alternativas às de Kleinman e
colegas.
Michael Taussig e Allan Young foram os que enfatizaram decididamente a necessidade de se
incluir todas aquelas relações de forças  relações sociais, econômicas, políticas  consideradas à
base do saber e das práticas médicas e biomédicas.
Antropólogo e médico, o primeiro dos dois propõe uma antropologia que visa indagar os
processos de produção social das categorias médicas ocidentais: Taussig identifica, à origem do
discurso biomédico, certa ação reificante sobre as relações humanas, os saberes e a experiência
vivida. A biomedicina participa ativamente na construção de uma realidade social funcional à
perpetuação das relações de poder vigentes. Faz isso ao objetivar, tornando naturais, modalidades e
conteúdos que, por si, não são naturais. E não são tais porque fruto do que Taussig chama de
“construção clinica da realidade”.
O discurso científico, portanto, além de ser conotado do ponto de vista histórico e sociocultural,
é um meio de controle social que, analogamente aos aparelhos ideológicos de estado de tipo
althusseriano, naturaliza as definições de saúde e doença, esvaziando-as de qualquer implicação
política. A ciência ocidental reduz saúde e doença a mero fato natural, sobre o qual apenas a
biomedicina tem autoridade. Ao antropólogo, então, cabe a tarefa de desmistificar a realidade
construída pela ciência biomédica, pondo em luz a matriz ideológica de relações de poder
usualmente tidas como obvias, revelando as modalidades segundo as quais as forças sociais
plasmam e permeiam dinâmicas e categorias que acabam por aparecerem as únicas possíveis,
naturais e reais.
Do lado de Taussig e a confronto com ele, há a reflexão de Allan Young. Embora ele negue a
possibilidade de a antropologia ser livre de qualquer implicação ideológica e de poder reivindicar
um acesso privilegiado a fatos e saberes desmistificados  todo saber, afirma Young, inclusive o
antropológico, é socialmente determinado  o autor engloba o conceito de “construção clínica da
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realidade” dentro do termo sickness. Junto com disease e illness, este passa a integrar uma
tripartição que se torna clássica.
Nesse sentido, mais do que o estudo da construção cultural da experiência pessoal de sofrimento
Allan Young propõe como objeto para a antropologia médica a análise da sickness. Esta é definida
como o processo de produção do saber médico e das patologias: com efeito, são os processos
sociais que determinam o que constitui um “problema médico”, assim como são eles que
determinam o que conta como “saber médico”. A proposta é passar da visão centrada no indivíduo
para uma perspectiva capaz de contextualizar socialmente seu objeto de estudo, sem limitar-se à
analise do encontro entre médico e paciente.
Uma vez sintetizado esse quadro, cabe sublinear que, embora ambos os blocos interpretativos
(escola de Harvard e antropologia da sickness) nascessem para criticar a abordagem biomédica
ocidental, eles ainda não alcançavam a discussão radical do evento “doença”.
A desestruturação da enfermidade em suas componentes de vivência pessoal e relações sociais,
além da disfunção corpórea, enfatizara a presença do “vivido” subjetivo do paciente, o qual, como
frequentemente acontece, pode não coincidir com os esquemas explicativos do médico (da
“instância curadora” oficial). Uma atenção nova, dedicada às relações de poder e de controle social
incorporadas, àquelas relações que as palavras e a praxe clínica tornam invisíveis, abrira para uma
consciência inusitada para com a suposta neutralidade da ciência médica.
Mas, se por um lado tais reflexões permitiram desconstruir os elementos narrativo e
sociopolítico do binômio saúde/doença, por outro lado, o mesmo não tinha acontecido no que diz
respeito à raiz corpórea desse binômio: enquanto o dispositivo biomédico fora compreendido como
sistema cultural e instrumento de controle social, o corpo permanecia limitado dentro da definição,
bastante pacífica, de entidade física biologicamente determinada  uma definição garantida ao
corpo por sua própria condição de materialidade evidente.
A contribuição teórica de Margaret Lock e Nancy Scheper-Huges se insere precisamente neste
ponto.
No ensaio Un approccio critico-interpretativo in antropologia medica (2006) e na versão
revisitada e ampliada do já mencionado artigo de 1987, as autoras propõem uma tripartição do
corpo e da vida corpórea. A partir da tripartição, combinando abordagem simbólica e
fenomenológica, elas explicitam os conceitos de “incorporação” (embodiment) e de “corpo dotado
de memória” (mindful body).
A ideia central é: por trás da que se oferece como sendo a dimensão objetiva e biologicamente
dada por excelência, isso é, o corpo de cada um, vislumbra-se a vida entrelaçada de três corpos, de
três esferas de existência do corpo.
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Existe um corpo objeto de representações, simbolizações e usos sociais (corpo social), um
corpo politicamente regrado e vigiado em suas funções reprodutivas, produtiva e em seu estado de
saúde ou patologia (corpo político) e, por último, em nível de vivência imediata, existe a esfera do
corpo individual (body-self), subjetivamente percebido. A reflexão inovadora se concentra
justamente no estatuto epistemológico do último, do corpo por meio do qual o “eu” sujeito tem vida
no mundo e com o qual do mundo faz experiência: da presença daquele nosso corpo capaz de sentir
todos compartilhamos, pelo menos, um senso intuitivo; enquanto as partes que, imaginamos, o
compõem recebem uma série de categorizações variamente determinadas do ponto de vista histórico
e cultural. A elaboração de definições, de conceitos a propósito da constituição de corpos
individuais não fica restringida apenas à esfera da representação. Mas, estas incidem no plano
ontológico, operando de forma visível sobre os modos de existir dentro de nosso próprio corpo 
ou, melhor, em nossos corpos.
Margaret Lock e Nancy Scheper-Huges exortam a olhar em termos constitutivos para a relação
existente entre representações socioculturais e experiência. O fato é que não temos simplesmente
corpos culturalmente forjados. Nós somos corpos, corpos que lembram e pensam, que habitam o
mundo segundo os dispositivos da elaboração cultural que os investem.
Alma, psique, espírito, corpo, matéria: são as componentes  ou os termos com os quais, por
habito, traduzimos conceitos alheios que julgamos afins aos nossos  que diferentes tradições de
pensamento, em modos e proporções variáveis, põem “em existência”. Elas constituem categorias
reais, aptas não apenas para pensar a existência corpórea, mas também para vivê-la.
Pelo que concerne o pensamento ocidental, o grande conjunto de dicotomias do tipo alma/corpo,
espírito/matéria, supranatural/natural, ilusório/real é dominante já a partir da filosofia grega, com
Aristóteles e, sobretudo, Platão. Mas, de forma emblemática, isto se afirma com Descartes (15961690). A distinção entre res cogitans e res extensa resume em si a afirmação do pensamento
científico moderno, o qual vai fundamentando sua autoridade na veracidade do dado científico 
cuja existência é inopinável porque demonstrável, mensurável por meio dos cincos sentidos e
regulada por leis certas, consagráveis como leis físicas e matemáticas.
A transição para a ciência ocidental moderna se cumpre por meio do confinamento no âmbito
das meras falsidade e superstição de todos aqueles sistemas filosóficos, médicos, químicos e físicos
que ecoam o legado mágico-religioso do pensamento precedente.
A herança cartesiana para a medicina clínica e as ciências naturais e sociais consiste na noção
mecanicista do corpo e de suas funções, na incapacidade de cogitar uma causalidade “sensível” para
os estados somáticos (QUARANTA, 2006).
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A separação entre mente e corpo permitiu à medicina moderna de alimentar o pensamento
radicalmente materialista  e, por isso, universalmente exportável  que, ainda hoje, a caracteriza:
esta reduz inteiramente a vida do corpo à “verdade” da esfera orgânica, tida como autônoma
(genética, química, lesões, disfunções, etc.), desatendendo a procura de qualquer causalidade
extracorpórea, no que tem a ver com os estados somáticos.
O reducionismo biológico da ciência ocidental, embora difusamente dominante, não é o único
capaz de plasmar os corpos vividos e imaginados, nem é um parâmetro universal. Para além do
específico precipitado histórico e cultural que nos cabe, como sociedade ocidental, existem
representações que contemplam inter-relações espirituais e materiais substanciais entre as partes
singulares e o “todo” supra-individual. Lock e Scheper-Huges trazem o exemplo da visão holística
da cosmologia chinesa antiga, segundo a qual as relações entre yin e yang permeiam o universo
inteiro, até chegar a suas componentes menores. As autoras mencionam a cosmologia islâmica e o
conceito unificador de Towhid, a tradição filosófica e religiosa budista, que procura a fusão
originaria e “iluminante” da mente individual com a mente-cosmo.
Em sistemas holísticos, as relações ontológicas que unem micro e macrocosmo se refletem nas
relações entre a totalidade supra-individual e as partes  inclusive os indivíduos, com seus corpos 
assim como entre estas e o corpo social coletivo. Quando se rompe a harmonia do mundo superior,
desequilíbrios espirituais, sociais ou familiares se manifestam nos desequilíbrios físicos e somáticos
dos corpos individuais.
A difusão ampla, em sociedades ocidentais, e o sucesso alcançado pelas assim chamadas
“medicinas alternativas” representam um fenômeno significativo. Enquanto a biomedicina começa
a se questionar a propósito de suas próprias deficiências, as praticas médicas alternativas ganham
terreno, justamente por causa de sua abordagem holística e devido à consolidação, no campo
biomédico, da medicina psicossomática.
Quando os antropólogos médicos e os clínicos se esforçam para observar os seres humanos e a experiência de
doença e de sofrimento desde uma perspectiva integrada, frequentemente, se encontram limitados pela herança
cartesiana. Não temos um vocabulário específico ao qual recorrer para falar de interações mente-corpo. Por
isso, geralmente, ficamos suspensos entre os hífens, testemunhas da desconexão de nossos pensamentos (2006,
p.158, trad. nossa).
As experiências emotiva, mental e social, tradicionalmente, são pensadas como separadas de
sintomas e condições somáticas. O organismo, considerado como um conjunto integrado de corpo,
mente e sociedade, é um paradigma que nossa medicina abandonou há séculos. E que só agora
começa a ser resgatado. Isso se deu pela desatenção para com a procura das interconexões
possíveis: tudo foi reduzido ao dado orgânico, pelo qual não se contempla o espaço de expressão da
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“variedade de formas em que a mente fala através do corpo e a sociedade está incisa na carne de
nossos corpos” (ibid.).
Contudo, a hipótese do “mundo incorporado”, isso é, de uma experiência de existência que,
desde a dimensão exterior ao corpo, se inscreve nas funções fisiológicas e perceptivas do substrato
material do mesmo, implica a existência de um traço de união, capaz de anular a dicotomia e de
legitimar a ideia do mindful body.
Pressupostos e contribuições teóricas à incorporação
A inovação trazida pelo paradigma da incorporação consiste num translação epistemológica
fundamental: a razão básica do objeto de estudo antropológico, da dimensão da representação da
doença, suas causas e sua vivência subjetiva, passou para a dimensão da experiência. Da narração
expressada por metáforas culturalmente determinadas, o foco da atenção passou para a indagação da
experiência imediatamente cultural do mundo, isso é, culturalmente definida já a partir de suas
modalidades de produzir, de “fazer” a doença, e não apenas na fase de representação do evento.
A chave para tramitar de una noção de corpo como objeto à ideia do corpo sujeito (de
experiência, história e cultura) está na adoção da perspectiva fenomenológica.
A referência é a corrente filosófica homônima (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, em
especial), a qual proporciona as bases teóricas para pensar em termos de “corpos pensantes”,
“mundo incorporado” e “incorporação”. Em realidade, devemos a elaboração teórica específica
desta última expressão a outro autor fundamental, Thomas Csordas.
No artigo Embodiment as a Paradigm for Anthropology (1990), ele se vale precisamente da
obra de Maurice Merleau-Ponty e a apresenta em paralelo com a teoria da prática de Pierre
Bourdieu, com o objetivo de sustentar a proposta de uma visão inovadora.
Reunificar mente e corpo dentro de uma abordagem metodológica significa deixar o estudo do
corpo como sendo apenas objeto de cultura, para passar a assumi-lo como subjeito de cultura. Isso
é, transpô-lo para a posição que abordagens pré-dicotômicas e holísticas usualmente lhe atribuem.
Para fazer isso, a dualidade, mais do que conciliada, tem que ser “colapsada”. Isso, na opinião de
Csordas, foi o que Merleau-Ponty e Bourdieu conseguiram, o primeiro com a análise acerca da
percepção, o segundo pelo estudo da relação entre teoria e prática da ação.
Para o Merleau-Ponty à origem de tudo está o corpo: ele é um conjunto complexo em contato
com o mundo, percebendo o mundo. A percepção, portanto, não reside nos estímulos externos que o
corpo, em principio, registraria passivamente, mas sim no próprio corpo. Ela é indeterminada, até
colidir com um objeto.
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A ideia se funda na afirmação segundo a qual nada existe antes do corpo que sente. Nenhum
objeto pode ser percebido objetivamente, ao não ser pela operação perceptiva de objetivação e
abstração, que é, desde já e sempre, culturalmente organizada. O corpo no mundo abstrai e se
representa, dá significado à indeterminação do mundo, projetando para dentro de sua consciência a
significação cultural da realidade circunstante. Essas ações só podem ser realizadas com base em
modalidades e valores culturais específicos: por intermédio deles, o corpo orienta a percepção e a
experiência que ele faz do mundo em volta. Experiência e percepção são, em si, desprovidas de
qualquer sentido.
É o corpo, desde o começo, quem está em relação direta com o mundo, como sujeito de
experiência e de cultura: está aberto para o mundo e condenado a atribuir-lhe sentido, a dar
respostas dotadas de senso a estímulos indeterminados, desprovidos de significado.
O intuito de Merleau-Ponty é inaugurar a “fenomenologia genética”, um cogito não abstrato,
mas sim pensável apenas e sempre “em situação”. O ser humano é tal enquanto está no mundo  o
être au monde de Merleau-Ponty evoca o Dasein heideggeriano  e está no mundo dotado de um
corpo. O corpo é Leib, corpo animado do ser vivente, não Körper, isso é, o objeto mudo descrito
pelas ciências sociais.
O corpo está no mundo como o coração no organismo: mantém continuamente em vida o espetáculo visível, o
anima e alimenta desde seu interior, junto com ele forma um sistema único (MERLEAU-PONTY, 1945, apud
CIOFFI et al., 1993, p.202, trad. nossa).
Ao ser objeto de elaborações culturais que orientam suas ações perceptivas, o corpo subjeito de
cultura é agente e, ao mesmo tempo, agido. Bourdieu expressa de forma ainda mais perspícua esse
estado liminar do corpo, entre instância criadora de cultura e produto cultural. Guiado pelo intuito
de superar a análise do fato social como opus operatum, o autor leva a reflexão para o nível do
modus operandi graças ao conceito de habitus1, para o qual Csordas reporta a definição: a system of
perduring dispositions wich is the unconscious, collectively inculcated principle for the generation
and structuring of practices and representations (1990, p.11).
Assim sendo, o foco é representado pelos processos de interiorização individual de pattern, de
modalidades contextuais. Um corpo socialmente plasmado no que diz respeito a cada um de seus
sentidos introjeta, incorpora de forma inelutável o habitus. Mas, além de ser “estruturado”
culturalmente por este, o corpo se torna, por sua vez, culturalmente “estruturante”. Os corpos que as
culturas produzem são os mesmos corpos que vivem no mundo, criando, praticando e reproduzindo
cultura, de maneiras subjetivas. Introjetar quer dizer se apoderar profundamente, até fazê-las
próprias, de capacidades que, destarte, se tornam poieticas, isso é, artífices criadoras. Uma vez
1
Conceito introduzido por Marcel Mauss em Les techniques du corp, obra de 1934.
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adquiridas e exercitadas de forma inconsciente, o corpo deixa de repetir mecanicamente: a atuação
de saberes implícitos se torna, de alguma forma, livre e criativa (adquire-se a “arte” de saber fazer
algo).
Nesse mesmo sentido, a visão ecológica de organismo-pessoa proposta pelo antropólogo
britânico Tim Ingold tem como referência o pensamento de Bourdieu (INGOLD, 2001). A proposta
consiste na superação de paradigmas complementaristas  no específico, biologia evolucionista,
psicologia cognitivista e teorias cultura listas – baseados em modelos consequenciais do tipo:
hardware em dotação→ programa→ execução.
Tanto no que diz respeito às relações entre genótipo e expressão fenotípica, como também na
esfera das faculdades cognitivas mentais, dos modos e conteúdos da aprendizagem, e pelo que
concerne os processos de transmissão de competências culturais, Ingold recusa substancialmente
uma ideia: que o homem nasça já dotado de estruturas de base inatas  uma espécie de
potencialidades virtuais  que, após o nascimento, absorveriam conteúdos específicos. Em primeiro
lugar, afirma Ingold, os estímulos externos do ambiente que nos circunda intervêm já durante a vida
intrauterina. Este ambiente não è fonte de inputs variáveis devido a um “mecanismo préconstituído”, mas, mais propriamente, ele proporciona condições variáveis para o crescimento e a
montagem operada, por cada um, durante a fase do primeiro desenvolvimento, pelas estruturas
neurofisiológicas subjacentes à capacidade da criança. Não se trata de adquirir representações do
ambiente, mas sim é uma questão de formação em um determinado ambiente, formação das
conexões neurológicas necessárias e das características musculares e anatômicas à base da cada
habilidade. Em substância, os sistemas que geram a atividade experiente não são circuitados como
num hardware, mas são montados de forma flexível (ibid.).
Tais conclusões, sufragadas por teorias científicas, liquidam a ideia segundo a qual a
aprendizagem funciona à maneira de um recipiente universal, geneticamente definido, e enchido
com conteúdos culturais específicos.
A faculdade abstrata de andar em posição ereta, por exemplo, não existe real e concretamente. O
que existe são formas reais e concretas de locomoção bípede, as quais nunca prescindem de
características climáticas, dos terrenos, dos membros inferiores (realmente existentes), nem dos
corpos educados a um jeito de andar específico. Os caratéres que o organismo humano vai
assumindo durante seu desenvolvimento ontogenético estão, já e desde logo, em relação com o
ambiente circunstante2.
Os dados registrados pela antropologia física e as neurociências confirmam estas aquisições.
2
Ver, a esse propósito, o conceito de incompletude biológica de Clifford Geertz e de antropopoiesis de Francesco
Remotti (1999; 2000).
9
A qualidade e a quantidade de matéria cerebral, que faz do homem o ser mais “inteligente”, ao
longo do tempo, evoluíram graças a dois processos principais: incremento no volume do órgão e
encefalização, isso é, aumento conspícuo e complexo  não volumétrico, mas sim em termos de
número de circunvoluções  da superfície neocortical, com desenvolvimento proporcional e
diferenciado das várias regiões encefálicas e com incremento dos neurônios de associação
(interneurônios).
O que diferencia um peixe de um homem, portanto, não é o plano estrutural do encéfalo (as
partes que o compõem), nem a existência de neurônios humanos específicos. O que os diferenciam
é: o incremento do número total de neurônios, o progressivo desenvolvimento quantitativo e
qualitativo do neocórtex à custa de outras partes e o nível de articulação das conexões.
Entretanto, o acréscimo quantitativo e qualitativo de nosso cérebro se deve também a outro fator
evolutivo: a locomoção bípede3.
Ao momento do nascimento o cérebro humano é imaturo, no que diz respeito a suas
potencialidades máximas: os neurônios chamados “de primeira classe” já estão prontos para
funcionar segundo comportamentos estereotipados (instintuais e geneticamente codificados).
Enquanto isso, os neurônios de segunda classe, constituídos por interneurônios (conexões
interneuronais) são continuamente enriquecidos, durante o intero ciclo de crescimento ontogenético
(durante o crescimento, as sinapses aumentam, incrementando assim o número de interconexões;
SPEDINI, 2005). Os neurônios de segunda classe, portanto, apresentam esquemas de
desenvolvimento plásticos, mudáveis, determinados por experiências individuais e aprendizagem.
A antecipação do nascimento e o prolongamento dos tempos de crescimento somático e
psíquico e da dependência infantil são vantagens que favorecem o indivíduo. Mas, também o grupo.
Ter a possibilidade de continuar aprendendo durante um tempo longo favorece o máximo
desenvolvimento das conexões interneuronais, que, por sua vez, permitem a maturação completa do
neocórtex, o qual é responsável por nossas atividades discriminativas, integrativas e adaptativas.
Isso é, das atividades novas e “inovadoras” que caracterizam a plasticidade da inteligência de nossa
espécie (ibid.).
3
A postura ereta se afirmou a partir da fixação de um caráter que entrou em conflito com o processo da encefalização: a
largura reduzida do quadril e, por conseguinte, do canal do parto, era funcional à locomoção bípede, mas conflitante
com a dimensão do crânio do feto. Plausivelmente, o compromisso adaptativo que ganhou foi a flexibilização máxima
do crânio do nascituro, graças à protelação da calcificação da sutura metópica (fechamento da assim chamada moleira)
e, sobretudo, a definição da conclusão do tempo de gestação em uma fase durante a qual o feto ainda não alcançou o
desenvolvimento encefálico completo. Nascer com um cérebro maduro, para o homem, implicaria um tempo de
gravidez de 18 meses e dimensões craniais bem mais problemáticas, do ponto de vista do parto. Além disso, significaria
cuidados parentais muito mais curtos, em comparação com os que nos caracterizam como espécie e distinguem
amplamente de todos os demais mamíferos.
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Voltando à reflexão proposta por Ingold, a formação de um ser humano  como organismo e
como pessoa  está situada decididamente em e por o que ele chama de “campo morfogenético”,
isso é, o ambiente circunstante que se desdobra (unfold) nas histórias de vida dos organismos.
Ambiente e histórias que os indivíduos projetam para dentro de si (enfold; ibid. p.79).
Mesmo quando não explicitadas, a referência às teorizações elaboradas por Bourdieu, MerleauPonty e Csordas são evidentes:
Tal tese [a tese complementarista a ser superada, N.d.A] separa artificialmente as atividades da mente no corpo
da reatividade do corpo no mundo. E, desta maneira, reproduz aquela dicotomia entre mente e corpo que
confunde nosso pensamento desde o tempo de Descartes. A abordagem ecológica, pelo contrário, assume
como ponto de partida a condição de conjunto do organismo-pessoa em sua inteireza, o qual é,
indivisivelmente, corpo e mente [...]. Os seres humanos, assim como os outros animais, conhecem o mundo
diretamente, ao se movimentar pelo ambiente, descobrindo as atividades que o ambiente, concretamente, pode
acolher. Não fazem isso apenas representando o ambiente na mente deles (INGOLD, pp. 69-70, trad. nossa).
Assim sendo, afirma Csordas, não tem mais justificativa válida que sustente a distinção entre
corpo e organismo. E Ingold concorda:
Certamente, o corpo – com suas faculdades de movimento autônomo, ativo e vivo no mundo  é o organismo.
Mas a mente também é isso. Com efeito, seria possível falar tanto de “incorporação” (embodiment) como de
“in-menta-mento” (en-mind-ment), porque desenvolver certas rotinas de ação no mundo significa, ao mesmo
tempo, desenvolver certas modalidades de atenção para o mundo. Se a mente, conforme Gregory Bateson
enfatizou, “não está limitada pela pele”, mas se estende pelo ambiente através das inúmeras trilhas do
envolvimento sensorial, assim o corpo, por sua vez, não é uma entidade estática e isolada, mas se dá em
movimento. Ele vivência crescimento e desenvolvimento contínuos, segundo relações ambientais multíplices
(ibid., trad. nossa).
Conclusões
Nosso percurso argumentativo teve como objetivo definir e aprofundar o conceito de
incorporação, desde mais e cada vez mais complexos pontos de vistas, todos substancialmente
concordes com os assuntos básicos do paradigma inovador.
Hoje em dia, a superação da abordagem fragmentaria, reducionista e objetivante em relação ao
paciente, que é típica da biomedicina, parece estar propiciada por todos aquelas correntes de estudos
que visam o alargamento dos horizontes cognitivo e operativo além dos limites do biologismo.
Seppilli cita a pluralidade de escolas de medicina holística, a descoberta dos processos de
somatização, dos efeitos placebo e nocebo, o desenvolvimento da medicina psicossomática e a
construção da assim chamada neuropsicoimunologia, isso é, de uma disciplina inteiramente voltada
para o estudo da relação entre sistema nervoso central e mecanismos de defesa imunológica.
O avançamento nesses campos de estudo representaria, para a medicina futura: (i) uma forma de
“autocorreção” contrastando alguns dos problemas que atualmente a atingem (reducionismo
excessivo, desumanização etc.); (ii) uma contribuição útil à recomposição do objeto de estudo (o
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homem holisticamente pensado); e (iii) “a possibilidade de dominar um leque mais amplo de
percursos terapêuticos, dentro de um quadro interpretativo coerente, segundo uma perspectiva
unitária e plenamente científica” (SEPPILLI, 1996). Além disso, tais aquisições legitimariam
colaborações  igualmente coerentes e profícuas, do ponto de vista da compreensão holística 
entre ciências médicas e pesquisa antropológica, a qual, desde sempre, trabalha o terreno do ritual,
do simbólico, do mágico e do religioso, isso é, das dimensões envolvidas na incorporação.
Ao considerar o itinerário da antropologia médica a partir da separação entre a fase anterior à
introdução do conceito de incorporação e a fase posterior, evidenciamos que a mudança principal
consiste na mudança do objeto de estudo, do plano das representações para o da dimensão vivida.
A partir da análise em chave fenomenológica do percurso apresentado, podemos descrever de
forma muito esquemática algumas correspondências entre o legado de Merleau-Ponty, Csordas,
Ingold e, principalmente, Bourdieu e as perspectivas de algumas das principais escolas
contemporâneas da antropologia médica crítica e, por assim dizer, militante.
Autores como Paul Farmer e Didier Fassin, por exemplo, enfatizam a natureza culturalmente
estruturada da experiência humana. Ao sublinear as consequencias biofísicas de fatores de
influência socioculturais, econômicos e políticos, eles ressaltam os mecanismos silenciosos e
“externos” (miséria, discriminação, exclusão, exploração etc.) que agem produzindo corpos que
sofrem socialmente: limitações e privações são incorporadas na experiência individual, se tornam
um sofrimento quase “conatural” e são padecidas sob forma de “violência estrutural” (a expressão é
de Paul Farmer).
Quando, por outro lado, o acento é colocado sobre a ideia de “corpo pensante” e da faculdade
estruturante que este possui, surgem leituras da doença em termos de “ritual de resistência”, “jogo
latente” e “imaginação crítica”: Margaret Lock, Nancy Scheper-Huges, Andras Zempléni, Jean e
John Comaroff  os autores desses conceitos  destacam a linguagem corpórea por sua componente
de liberdade criativa (SCHIRRIPA, 2005). Mais do que os aspectos corpóreos produzidos, eles
elegem o aspecto produtivo, isso é, a capacidade do corpo que faz e fala expressando cultura  mais
especificadamente, cultura de protesto  por meio do idioma dos sinais somáticos.
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