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Catequese no Tempo do Advento
Deus é “Palavra” I
Pe. Márcio Pimentel
No princípio era a Palavra,
e a Palavra estava com Deus
e a Palavra era Deus.
(...) A Palavra se tronou um ser humano
E viveu entre nós,
e vimos sua Sh’khinah,
a Sh’khinah do Filho único do Pai,
repleto de graça e de verdade.
(Jo 1,1.14)
O que se quer dizer quando as Sagradas Escrituras e demais
afirmam que Deus é Palavra? Nas celebrações litúrgicas,
proclamação dos textos bíblicos, costuma-se dizer: “Palavra
“Palavra da Salvação”; a que realidade estas expressões se
Jesus é a Palavra de Deus! Como assim?
autores cristãos
ao concluir a
do Senhor” ou
referem? Cristo
Antes de tudo, vamos ser mais precisos quanto aos termos que utilizamos
para falar da “Palavra” de Deus. Uma vez que a fé cristã nasce do veio da fé
judaica, devemos buscar aí seu primeiro sentido. Nas Sagradas Escrituras
hebraicas (Antigo Testamento), a palavra “Palavra” se escreve: DABAR. Ela é
traduzida para outras línguas de maneiras muito diferentes (mais de cem!) 1 No
entanto, todas se referem ao processo comunicativo. Assim, aparecem os
sentidos mais usados que se relacionam com “outras palavras”: dizer, palavra,
expressar, boca, lei, edito, estatuto, mandamento, incumbência vereda,
caminho, juízo, testemunho, assunto, ação, evento, história, relato, negócio,
tudo, nada, causa, motivo. O contexto em que DABAR se apresenta será
crucial para compreender bem seu sentido exato.
Uma referência importante para aprofundarmos o uso de DABAR em nosso
meio no será dado por uma tradução da Bíblia chamada “Septuaginta” ou
“Dos Setenta”, que é a versão das Sagradas Escrituras em língua grega. Nela,
comumente se traduz “DABAR” e seus sinônimos por “LOGOS”. Até hoje temos
palavras em português que trazem este termo: diaLOGO, monóLOGO,
teoLOGIA, teóLOGO. Também se traduz por RHEMA que significa expressão
1
HARRIS, R. Laird. ARCHER, Gleason L. WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento. Verbete Dabar. São Paulo: Edições Vida Nova, 1998, p. 293.
vocal, assunto, evento (coisas ditas e feitas), caso.2 Com o passar do tempo,
no entanto, a palavra LOGOS começou a ter uma importância cada vez
maior. Para nós, importa o seguinte: quando se queria falar de Deus
revelando-se, comunicando-se, usando uma “linguagem” se utilizava a palavra
LOGOS. Quando se desejava falar em termos precisos de certos aspectos
destas revelação de Deus (ou de outros atos comunicativos) se utilizava
RHEMA.
O uso cristão da palavra LOGOS, que mais tarde passou para o latim
VERBUM, pode ser compreendida a partir do uso que o evangelho de João
faz. Enquanto nos evangelhos e outros escritos do Novo Testamento a palavra
LOGOS é usada para falar do evangelho de Jesus e mesmo da ação de Deus
se revelando no mundo e na Igreja3 João, no entanto, no seu prólogo usa
LOGOS como sinônimo de pessoa. Uma pessoa, na verdade: Jesus de Nazaré.
Neste ponto, João faz algo parecido com aquilo que o autor do livro dos
Provérbios faz com a SABEDORIA (em grego se diz SOFIA). Ela aparece como
um personagem, como uma pessoa. É “personificada” a gente diz: “A
sabedoria faz seu próprio elogio, no meio do seu povo ela mostra o seu
prestígio”.4 Este lindíssimo poema está na base do Prólogo de João que
proclamamos no dia 25 de dezembro em nossas assembleias. Proponho,
então, uma análise deste texto para que compreendamos em profundidade o
sentido mais genuíno de falar de Jesus como Palavra de Deus para nós.
Antes de tudo, é preciso lembrar das palavras de Bento XVI sobre a fé cristã:
A novidade da revelação bíblica consiste no fato de Deus Se dar a
conhecer no diáLOGO que deseja ter conosco (...) Deus dá-Se-nos a
conhecer como mistério de amor infinito, no qual, desde toda a
eternidade, o Pai exprime a sua Palavra no Espírito Santo (...). Portanto,
feitos à imagem e semelhança de Deus-Amor, só nos podemos
compreender a nós mesmos no acolhimento do Verbo e na docilidade
à obra do Espírito Santo.5
Neste sentido, a Palavra de Deus está na origem de tudo e de todos. João
em seu Prólogo afirma muito bem isto: No princípio era a Palavra...6. Este “no
princípio” é bem mais do que uma locução adverbial de “tempo”. Quer dizer,
não significa um “quando” que a gente pode marcar no calendário. Antes,
2
COENEM, Lothar. BROWN Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Verbetes logos e
rhema. São Paulo: Edições Vida Nova, 1998, p. 1535.
3
Cf. LEÓN-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João I. Palavra de Deus. São Paulo: Loyola, 1996, p.49.
4
Pr 24,1. Itinerário da Saberdoria.
5
BENTO XVI. Verbum Domini. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 15-16.
6
Cf. Jo 1,1.
significa que nossa fonte é a Palavra divina. Sobre isto fala a tradição da
Igreja pela boca dos Santos Padres: “Se o céu tem princípio, Deus não tem,
já que ‘no princípio fez Deus o céu e a terra. Fazer e Ser são coisas
diferentes: aquilo que se faz tem um começo; o que era não tem princípio
(começo), vem antes de tudo.”7
Logo, Deus está “na origem” de tudo e de todos ontem, hoje e sempre. Não
apenas “quando” o mundo foi criado. Mas hoje, “enquanto ainda” somos
criados. A consequência deste pensamento é que tudo e todos são
comunicação de Deus, são “fala” de Nosso Senhor, pois é a sua Palavra que
está na origem do mundo e das pessoas.
Uma vez que estamos falando em “origem” do ser humano e do universo
inteiro a partir da Palavra de Deus, faz-se necessário dirigir nosso olhar para
o livro das Origens, o Gênesis. Aí podemos encontrar algumas referências
importantíssimas sobre a Palavra de Deus, que depois serão de grande valia
para compreendermos o pensamento de São João, bem como a teologia da
Igreja sobre o LOGOS ou o VERBUM DEI.8
1. “Deus disse: façamos o ser humano.”9
Num primeiro momento a
Palavra de Deus não comunica absolutamente nada a ninguém. Ela cria.
Não há uma “mensagem” a ser dita. Deus “fala” / “pronuncia” o ser
humano. Era nada e passou a ser algo.
2. “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança.” O ato
comunicativo de Deus se dá mediante o ser humano criado. Ele mesmo
“é” a mensagem divina. Deus “fala no” ser humano.
3. “Deus os abençoou e lhes disse.” Agora existe para além de um EU
(Deus) um TU (o homem e a mulher). Deus “fala ao” ser humano.
Dialoga com ele. Divide sua Palavra. Entra em cena um relacionamento
que se estabelece entre Criador e criatura. Deus busca o ser humano e
este se deixa encontrar.
4. “A Palavra se fez ser humano”. Todos os três aspectos anteriores são
assumidos, potencializados e mostrados plenamente na pessoa concreta,
real (datável, palpável...) de Jesus de Nazaré. Ele foi “concebido” no
seio da Virgem (Deus pronuncia o ser humano); Ele revela Deus em sua
pessoa (Deus fala no ser humano); Ele manifesta em si mesmo o
diálogo entre o divino e o humano, pois Jesus é Deus e Homem
verdadeiramente (Deus fala ao ser humano).10
7
AMBROSIO DE MILÁN. El misterIo de la encarnación del Señor. Biblioteca de Patrística. Madrid: Cidad Nueva,
2005, p. 33.
8
Verbo de Deus/Palavra de Deus.
9
Os três pontos que seguem são apresentados por Bruno Marin em seu livro Celebrare la Parola.
10
Esta reflexão continuará.
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