proteção social e serviço social no brasil

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PROTEÇÃO SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE A
RELAÇÃO ENTRE PROTEÇÃO SOCIAL E PRÁXIS DO ASSISTENTE SOCIAL
Ana Carolina Becker Nisiide1
Maria Isabel Formoso Cardoso e Silva Batista2
RESUMO: Este texto bibliográfico objetiva discutir criticamente a inter-relação entre a proteção
social primária e secundária e, a práxis do assistente social no Brasil a elas relacionada. É perceptível
um processo de fragilização da proteção social devido à precarização da política social, à instabilidade
dos vínculos de sociabilidade cotidiana e à responsabilização da sociedade civil como fonte privada de
proteção social, fatores decorrentes do modo de estruturação da sociedade capitalista. Frente a este
quadro, a práxis do assistente social deve ser orientada pelas categorias trabalho e “questão social”,
embasada no método, na teoria e na história para responder qualificadamente às demandas do usuário,
atuando para construção de um novo projeto societário.
PALAVRAS-CHAVE: Política social; proteção social; “questão social”; trabalho.
INTRODUÇÃO
Entendendo que, sob diferentes formas de expressão, não existiu sociedade humana
que não desenvolveu algum tipo de proteção social aos seus membros; seja em termos de
vínculos de solidariedade ou através de práticas institucionalizadas, a prática protetiva faz
parte da história da humanidade. Da mesma forma a práxis do assistente social perpassa
historicamente a proteção social, tendo-se diferentes interpretações sobre esta relação. A
primeira, toma a proteção social como campo inerente da prática profissional na atuação de
situações de vitimização; a segunda, toma-a como campo de ampliação dos direitos humanos
e sociais; e a terceira, coloca-a no campo das contradições entre capital e trabalho na
sociedade de mercado (SPOSATI, 2013).
É necessária a compreensão da dupla face da proteção social, seja como prática
vinculada à sociabilidade cotidiana, seja como prática institucionalizada através de políticas
sociais, ambas para amparo e proteção dos sujeitos. Todavia, com a atual política econômica
neoliberal, os sistemas de proteção social encontram-se cada vez
1
2
Assistente Social, mestranda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE). E-mail: [email protected].
Psicóloga, Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
1
mais fragilizados, devido à privatização, à sobreposição do econômico sobre o social e
à omissão do Estado na consolidação de direitos. Frente a esse contexto, Viana e
Levcovitz (2005) afirmam a importância da rediscussão da proteção social para que se possa
avançar e superar uma visão apenas caritativa e paliativa da mesma.
Destarte, propõe-se analisar, aqui, o processo sócio-histórico que caracteriza a
proteção
social,
delimitando-se
a
base
interpretativa
que
será
utilizada
para
compreendê-la e dando maior ênfase à realidade brasileira. A partir do entendimento da
proteção social é possível inscrever a atuação do assistente social tanto no olhar para
sociabilidade cotidiana dos trabalhadores, quanto na conquista de Direitos Humanos e sociais
universais e na garantia de direitos por meio das políticas sociais.
Para tanto será utilizada a análise crítica, fundamentada no método materialista
histórico dialético, que tendo como norte a categoria totalidade visa a partir do entendimento
da realidade refletir sobre ela para que possa ser modificada.
CONTEXTUALIZANDO A PROTEÇÃO SOCIAL
A tarefa de conceituar e delimitar a proteção social não se faz sem dificuldades, e nem
é possível chegar a uma única definição ou sentido ideológico. Viana e Levcovitz (2005, p.
17) apontam que a proteção social consiste “na ação coletiva de proteger indivíduos contra os
riscos inerentes à vida humana e/ou assistir necessidades geradas em diferentes momentos
históricos e relacionadas com múltiplas situações de dependência”. Os mesmos autores,
tomando por base Girotti afirmam que a proteção social
e
a
política
social
estão
relacionadas historicamente às necessidades de “segurança individuais e familiares que
podem ser satisfeitas pela intervenção de uma pluralidade de atores públicos e privados,
capazes de prover sob títulos diversos e graus variados de eficácia, a tutela e o sustento dos
sujeitos mais débeis” (GIROTTI, 2000 apud VIANA; LEVCOVITZ, 2005, p. 15).
Todavia, Castel (1999) sistematiza e delimita no espaço e no tempo a proteção social,
trazendo uma visão ampla a partir dos atores sociais envolvidos neste processo sejam estes
públicos ou privados. Desse modo, toma-se de empréstimo nesse texto, a conceituação de
Castel (1999) para balizar o entendimento da proteção social.
2
De acordo com esse autor , na sociedade feudal as redes de solidariedade e proteção
eram reguladas pelas interdependências tradicionais. Os desfiliados3, que por algum motivo
como a orfandade ou a doença se desatrelavam dessa coesão grupal, com a ausência de
instituições especializadas tinham sua proteção assegurada pelos próprios recursos da
comunidade. Estas redes de interdependência, que não são mediadas por instituições, mas
pelo pertencimento do indivíduo a um grupo familiar, de vizinhança e de trabalho são
caracterizadas como sociabilidade primária ou como proteção social primária.
Neste período histórico, os feudos eram compreendidos como espaços de proteção e
de dependência, estabilizados por relações de horizontalidade quando compreende a
comunidade rural e de verticalidade quando compreende a sujeição ao senhor feudal. É a
partir desta forma de organização que o indivíduo se inscreve em seu território, como
pertencente a este sistema autorregulado pela solidariedade e pela coerção de linhagem e
vizinhança. Marcada pela guerra e pela fome a precariedade é generalizada, mas não chega a
caracterizar uma “questão social”4, pois os mais carentes não eram fator de desestabilização
frente à rígida organização desta estrutura e a resolução da desfiliação dá-se a partir do
pertencimento comunitário (CASTEL, 1999).
Com a decomposição da sociedade feudal surge a moderna problematização do social.
Esta transformação é demarcada por Cambi (1999, p196) como o declínio da Idade Média
enquanto “sociedade estática, autoritária, tendencialmente imodificável mesmo nas suas
profundas, e constantes, convulsões internas” e a entrada na modernidade. A entrada na
modernidade é caracterizada por Cambi (1999) como período de revolução no âmbito
geográfico (com as grandes navegações ocorrem descobrimentos e colonização novas terras);
econômico (nasce o sistema capitalista, baseado no cálculo econômico, no dinheiro e na
mercadoria, na exploração de recursos e na produtividade); político (nascimento do Estadonação e um Estado-patrimônio nas mão de um soberano); social (nasce a burguesia que
promove um novo processo econômico e uma nova concepção de mundo) e ideológico3
4
Castel não utiliza o termo exclusão social por considerá-la banalizada, não mais representando o
movimento sócio-histórico. Assim, se vale do termo desfiliado para se dirigir aos indivíduos
vulneráveis, que vivem situações limites.
Para Netto (2001, p.45) “a ‘questão social’ está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar da
relação capital/trabalho – a exploração”. Compreendendo a importância deste fundamento para o Serviço
Social, essa discussão será melhor desenvolvida no capítulo seguinte.
3
cultural (com a laicização emancipa-se a mentalidade e com a racionalização aprofunda-se
saberes baseados no livre uso da razão; o iluminismo caracterizará este novo modelo de
mentalidade e de cultura).
Estas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais exigem “o atendimento
aos carentes, o que constitui objeto de práticas especializadas” (CASTEL, 1999, p.57). A este
desatrelamento da função protetiva do pertencimento familiar, da vizinhança e do trabalho
para um atendimento assistencial cada vez mais sofisticado, especializado, tecnicista,
discriminatório e institucionalizado, Castel (1999) denominou sociabilidade secundária ou
proteção social secundária, reforçando que até hoje estes pontos organizam o campo sócio
assistencial.
Portanto, é clara a relação da proteção social secundária com o surgimento do
capitalismo. Esta assunção da proteção social secundária é definida por Viana e Levcovitz
(2005, p.18) como função clássica da proteção social e a coloca historicamente
entre os séculos XIX e XX como um “compartilhamento dos riscos gerados pelas situações de
dependência entre Sociedade, Mercado e Estado”, ou seja, pelas intervenções estatais na área
da política social, para dar respostas às demandas sociais fruto da contradição entre capital e
trabalho.
No Brasil, onde se estrutura o capitalismo tardiamente, o primeiro processo de garantia
de direitos data da década de 1930 com o governo populista de Getúlio Vargas, que
centralizava o poder político e administrativo, favorecendo o processo de industrialização e
acumulação capitalista. Consequentemente, a luta de classes e as expressões da “questão
social”, em especial a pauperização e as precárias condições de vida, são expostas e tornam-se
questões políticas. O Estado é convocado a intervir proporcionando condições para produção
e reprodução social, antecipa as demandas dos trabalhadores instituindo os primeiros direitos
trabalhistas.
Ao fazer um resgate histórico da legislação social, Rizotti (2014) mostra que no Brasil
houve muitos fluxos e refluxos no reconhecimento de direitos sociais e no campo da proteção
social; além disso o poder executivo caminhou em descompasso na efetivação destes direitos,
dificultando a concretização dos avanços conquistados.
4
Apenas com a Constituição de 1988, a partir de intensos movimentos sociais para
garantia de direitos e redemocratização do país, é que o Estado ampliou seu sistema de
proteção social, passando a contemplar também os desempregados. A constituição do Estado
Democrático de Direito que afirma ter como um de seus
fundamentos a dignidade humana e que no Art. 3. da Constituição Federal de 1988
coloca como objetivos a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o
bem estar para todos e a erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das
desigualdades; institui o sistema de seguridade social como importante instrumento de
proteção social.
A seguridade social, fundada no tripé da previdência, saúde e assistência social,
conforme Pierdoná (2007), é garantia e condição de vida a todos através da união destes três
direitos sociais, os quais, dentro de sua área de atuação, protegem os seus destinatários e
assim, no conjunto, todos serão protegidos.
Contudo, não é possível compreender a seguridade social apenas conforme se expressa
em lei, ou seja, saúde, assistência social e previdência. A proteção social do usuário
compreende a garantia efetiva de direitos através de políticas sociais de qualidade que
englobem os mais diversos âmbitos como habitação, educação, cultura, igualdade racial e de
gênero, entre outros, que garantam mais do que a mera manutenção da produção e
reprodução da vida cotidiana.
Outro ponto a ser destacado refere-se aos objetivos para o estabelecimento da
sociedade proposta na Constituição Federal de 1988. Fala-se em redução das desigualdades e
não em sua erradicação; promete-se o fim da pobreza através de uma sociedade “mais” justa,
livre e solidária. Todavia, é claro que esse processo não é possível na sociedade capitalista
fundada na exploração do trabalho, que necessita do exército de reserva, pautada no consumo
exacerbado, na alienação e repleta de contradições e de embates entre capital e trabalho
expressas na “questão social”.
Neste sentido, “o capital não tem, por isso, a menor
consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela
sociedade a ter consideração" (MARX, 1996, p. 383), sendo necessária a constituição de uma
nova sociedade comum, onde seja possível a efetiva divisão da riqueza.
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Além disto, enquanto o Brasil estava no processo de implantação do Estado
democrático de direito, a ordem econômica internacional já declinava na manutenção do
Estado de Bem-Estar Social. Destarte, o Brasil, que não chegou a implantar o Estado de BemEstar Social, passa a gerir e ser gerido pela política neoliberal,
pelas estratégias de mundialização e financeirização do capital, com a sua direção
privatizadora e focalizadora das políticas sociais, enfrentando a “rearticulação do bloco
conservador” com a eleição de Fernando Collor que busca de diversas formas obstruir
a realização dos novos direitos constitucionais. (YAZBEK, 2014, p.17).
Este processo de desresponsabilização do Estado se reflete diretamente no
sistema de proteção social que, “subordinado às instituições políticas e econômicas nacionais,
desenvolveu-se marcado pelo papel hegemônico que o modelo de desenvolvimento
conservador desempenhou na trajetória brasileira” (RIZOTTI, 2014), com políticas sociais
enviesadas pelo controle e pela repressão dos movimentos sociais e por uma perspectiva de
privatização e de retomada da filantropia, colocando na sociedade civil a responsabilidade
pelas ações de garantia de direitos que são do Estado.
Concomitantemente às dificuldades apresentadas para efetivação da proteção social
secundária, devido à precariedade de acesso à política social além da regulamentação jurídica,
o capitalismo e as determinações neoliberais também incidem diretamente na proteção social
primária.
De acordo com Teixeira (2010) a família, constituindo-se locus essencial da proteção
primária, é resgatada e se torna foco das políticas sociais. Fato que não necessariamente
representa a superação das fragilidades dos serviços ou o efetivo acesso e garantia de
direitos, mas que coloca a família como “parceira” do Estado na proteção social, diminuindo
as responsabilidades estatais e as colocando no âmbito privado. Isso incide no aumento das
responsabilidades familiares, reafirmando obrigações femininas de proteção social primária e
dispensando ou retardando a montagem da proteção social secundária (COSTA, 2002).
Ao discutir o lugar que a família ocupa na política social, Carvalho (2002, p.16)
retoma que com o Estado de Bem-Estar Social a família “pareceu ser descartável”, na medida
em que o Estado de direito e o mercado promoviam a ideologia do pleno emprego e de
políticas sociais de qualidade, que garantissem a partilha mais equitativa da riqueza. Em 1990,
com a reforma do Estado, esta ilusão cai por terra e o cenário das redes de sociabilidade e
6
solidariedade embasadas na família são convocadas como parceiras na partilha da
responsabilidade da proteção social.
No Brasil, o cenário tem suas peculiaridades devido à implantação de um pluralismo
de bem-estar e não de um Estado de bem-estar. Este modelo plural de bem- estar deriva de
uma partilha de responsabilidades entre o Estado, o mercado, e a sociedade civil,
especialmente as organizações voluntárias e caritativas e a rede familiar. Essa partilha de
responsabilidades coloca o Estado como setor oficial da proteção social, que oferece o recurso
de poder e de coação; o mercado como setor comercial com o recurso do capital; e a
sociedade como setor voluntário e recurso de solidariedade, tanto formal através das
organizações não governamentais (ONGs) quanto informal através de redes de solidariedade
e dos vínculos de pertença como a família e a vizinhança (ABRAHAMSON, 1992 apud
PEREIRA, 2010, p.32).
Com esta partilha o Estado cada vez mais se afasta de suas responsabilidades com as
políticas sociais. O mercado quando pratica a filantropia é em busca de marketing, preferindo
investir na sua especialidade de incentivo ao consumo e aumento de lucro e não em
necessidades sociais. Cada vez mais fica a cargo da sociedade e da família um papel
voluntarista ou de fonte privada de proteção social (PEREIRA, 2010).
Dentro de um contexto de idealização social espera-se que a família seja espaço de
produção de “cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção de identidades e
vínculos relacionais de pertencimento, capaz de promover melhor qualidade de vida a seus
membros e efetiva inclusão na comunidade e sociedade em que vivem” (CARVALHO, 2002,
p. 15). Todavia, estas funções atribuídas à família podem ou não ser efetivadas, afinal, a
família pode ser espaço de proteção ou desproteção; de fortalecimento ou esfacelamento do
sujeito.
A família é dinâmica, espaço de organização – desorganização – reorganização. Está
perpassada por hierarquias de poder, por diversidades de tipos de famílias. A família não é
uma ilha, sobre ela incidem determinações públicas, exigências sociais, sendo complexo
delimitar uma linha rígida entre Estado, mercado e família, pois essa divisão é porosa.
Portanto, “o objetivo da política social em relação à família, ou ao chamado setor informal,
não deve ser o de pressionar as pessoas para que elas assumam responsabilidades além de
7
suas forças e de sua alçada, mas o de oferecer-lhes alternativas realistas de participação
cidadã” (JOHNSON, 1990 apud PEREIRA, 2010, p.40). Para tanto, o Estado deve assumir a
sua prioridade na garantia de direitos, reinstitucionalizando e reprofissionalizando as políticas
de proteção social e levando-as a sério (PEREIRA, 2002).
Com isso, não se desconsidera a importância dos vínculos de solidariedade. Torna-se
tarefa complexa, mas nem por isso menos cara, o sugerido por Costa (1995b) como prática do
Serviço Social, ou seja, o resgate no interior dos processos sociais dos vínculos de
solidariedade, que fortaleçam as relações humanas, sociais e comunitárias.
Em contraponto, Iamamoto (2007) reafirma a importância do olhar para sociabilidade
cotidiana dos trabalhadores, mas alerta que a práxis direcionada apenas para
experiências autogestionárias em tempo neoliberal serve aos interesse do poder, coadunando
para desresponsabilização do Estado, responsabilização da sociedade civil e privatização, ou
seja, colaboram com o desmantelamento da política social e com o reforço do pluralismo de
bem-estar.
É neste espaço de contradições que a atuação do assistente social se dá, perpassada
pelas inter-relações da proteção social primária e secundária, das contradições entre
o público e o privado, fruto do modo de estruturação social, político e econômico da
sociedade capitalista.
PROTEÇÃO SOCIAL, SERVIÇO SOCIAL E PRÁXIS PROFISSIONAL
O Serviço Social no Brasil surge para responder às expressões da “questão social” que
o início da industrialização coloca. É visto como vocação, prática caridosa das senhoras
burguesas, embasada nos ideais da Igreja Católica. Para Iamamoto (1997) além do exercício
da prática caridosa, o assistente social intervia ideologicamente na vida da classe
trabalhadora, promovia ações organizativas e educativas à família trabalhadora, de adaptação
dos problemas individuais. Essa atuação produzia efeitos políticos de enquadramento dos
trabalhadores e reforçava as relações de colaboração entre capital e trabalho. É neste sentido
que Costa (1995b) inscreve a proteção social na origem da profissão, enquanto ocupação
histórica dos assistentes sociais, prática cuidadora e de organização da vida individual e
coletiva no campo da reprodução social.
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Na década de 1930, o Serviço Social surge e em 1949 é regulamentado e responde
como profissão especializada. No princípio, a formação se embasava em teorias
positivistas e conservadoras de origem franco-belga e, a partir de 1940 se funda na sociologia
conservadora norte-americana. O conservadorismo tem como alguns traços o retorno ao
passado experimentado como virtualmente presente; o incentivo a força da comunidade
fundada na ideia de “boa sociedade”, como forma de legitimar as relações sociais vigentes; a
valorização de elementos sagrados e irracionais em detrimento da razão; a radicalização da
individualidade afirmando os homens enquanto essencialmente desiguais; o pensamento
imediatista que valoriza os detalhes, os casos particulares, os dados qualitativos em
detrimentos
da
visão
totalitária;
entre
outras características
que
embasaram
teoricamente o Serviço Social na sua origem (IAMAMOTO, 1997).
Somente na década de 1960, o Serviço Social brasileiro, em consonância com o
movimento Latino Americano, passa a questionar essas bases teóricas a partir da observação
das mudanças societárias e de sua prática, movidos pela luta contra o Serviço Social
tradicional. Este questionar leva, de acordo com Netto (2004), a três perspectivas para o
Serviço Social: a perspectiva modernizadora, que tinha como fundamento o funcionalismo e o
estruturalismo e baseava-se num reformismo conservador de viés desenvolvimentista; a
reatualização do conservadorismo que tinha por fundamento a fenomenologia e centralizavase nas dinâmicas individuais sob um viés psicologizante; e a intenção de ruptura que
tinha como fundamento a teoria marxista, baseava-se na leitura crítica da sociedade
capitalista e remete a profissão à consciência da luta de classes.
Portanto, é a partir desse movimento que o Serviço Social se compromete com a
ruptura com o conservadorismo e com as antigas bases profissionais e, mesmo com bases
teóricas da linha histórico crítica ainda incipientes, se posiciona politicamente e se aproxima
dos movimentos sociais. A renovação do Serviço Social no Brasil levou a um Serviço Social
laico, sintonizado com a realidade sociopolítica e ideoculturais brasileiras (NETTO,
2004). A partir de muitos debates, a profissão se apropria da teoria marxista e propõe uma
nova vertente balizadora da formação e atuação profissional, a teoria social crítica baseada no
método do materialismo histórico dialético.
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Com o Movimento de Reconceituação e o novo projeto ético-político profissional,
discutia-se a base que fundamentaria e explicaria o trabalho do assistente social e,
consequentemente, sua formação. Na década de 1990 a discussão sobre a reformulação das
Diretrizes Curriculares do curso de Serviço Social é colocada em pauta. A categoria trabalho,
enquanto fundante do humano e demonstrativo de sua relação natural e eterna com a natureza
é considerada central na práxis do assistente social. Afinal, conforme Luckács (2010, p.46), o
trabalho deve ser tomado enquanto “base fundadora de socialização humana, mesmo da mais
primitiva – destaca tendencialmente o ser humano da esfera das necessidades biológicas [...]
tornando determinantes, em seu lugar, os pores teológicos”, portanto compreender a ontologia
do ser social pressupõe compreender sua relação íntima com o trabalho.
Porém, o embate se dava em relação à segunda categoria central. De um lado, a
discussão tinha por fundamento a “questão social” como produto das contradições entre
capital e trabalho. Para Iamamoto (2001, p.16),
a questão social diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais
engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado.
Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada
da própria atividade humana – o trabalho – das condições necessárias à sua realização,
assim como de seus frutos
Todavia, essa expressão surge sob uma perspectiva conservadora, como expressão de
“disfunções sociais” e de ameaças a “coesão social”. É por isso, que Netto (2001) afirma que
o movimento revolucionário passa a identificar nessa expressão uma transfiguração
conservadora e quando a usa o faz indicando esse traço mistificador. O autor passa a usá-la
com aspas, indicando que a “questão social” que o Serviço Social vem tratar remete a luta de
classes relacionada ao modo de produção da sociedade capitalista, desnaturalizando-a a
inserindo-a em um contexto sócio-histórico. Destarte, o assistente social historicamente é
convocado para atuar nas suas expressões, portanto fundamento básico de sua existência
enquanto profissão interventiva na realidade social.
De outro lado do debate, Costa (1995b) sustentava a proteção social como fundante do
Serviço Social e referência para atuação profissional. Para esta autora a proteção social é voltada
para famílias em situação de perda da autonomia em relação à sua sobrevivência, sendo
fundamentais iniciativas que resgatem os processos de ajuda mútua, de solidariedade e de
10
autonomia dos sujeitos. Afirma a proteção social como fio condutor para compreender a história e a
cultura da profissão. Critica a imprecisão no campo teórico das habilidades profissionais, baseados
em um legado marxista economicista, afirmando que o “curso de Serviço Social tem por objetivo
conhecer e compreender a experiência humana da proteção social com parte da realidade. Isso
imprime ao curso uma certa marca, delimita bastante mais seu campo” (COSTA, 1995a, p.61).
Quanto a esta tese da proteção social, Iamamoto (2007) tece críticas à autora, que
afirmou que o Serviço Social se baseia em concepções genéricas de um dado legado
economicista. Refuta esta afirmação que, ao restringir a teoria marxista ao econômico
expressa uma visão restrita de sua teoria e alastra reações neoconservadoras. Afinal, esta vai
além do legado econômico englobando a produção e a reprodução das relações sociais.
Portanto, Costa (1995a) imprime uma conotação de cuidado à prática protetiva. Da
mesma forma, Faleiros (2013) reafirma o cuidado na prática histórica do Serviço Social, em
um primeiro momento sob uma perspectiva funcionalista e adaptativa do sujeito e após o
Movimento de Reconceituação de uma forma crítica na estrutura e história do capitalismo.
Para o autor “o Serviço Social tem na sua dimensão relacional uma dimensão política geral de
defesa dos direitos e da justiça, e uma dimensão de cuidado, inclusive por estar em mais
interação com os mais explorados e dominados” (FALEIROS, 2013, p. 88).
Apesar de o cuidado ser parte da prática profissional e estar relacionado à proteção
social, não podemos perder de vista que este não explica a natureza profissional, a qual
deve ser vista além da caridade e da solidariedade para que possa dar conta das contradições
da realidade e do movimento capitalista, a partir de uma prática crítica.
O que vem explicar a natureza da profissão e dar fundamentos à sua práxis e à sua
formação, inclusive no que se compreende por proteção social, é o trabalho e a “questão social”.
A análise da “questão social” é indissociável do modo de produção e das relações
de trabalho. De acordo com Marx (1996, p. 210) a produção da miséria é correspondente à
acumulação do capital, onde “a acumulação da riqueza num pólo, é, portanto, ao mesmo tempo à
acumulação da miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação
moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital”.
Neste sentido, as expressões da “questão social” são reflexos da apropriação privada da riqueza
11
socialmente produzida, em uma sociedade onde poucos detêm os meios de produção e a maioria
sobrevive da venda de sua força de trabalho.
A “questão social” é reconhecida a partir da emergência da classe trabalhadora no
cenário político, reivindicando direitos. Foram as lutas sociais que extrapolaram “a questão
social para a esfera pública, exigindo a interferência do Estado para o reconhecimento e a
legalização dos direitos e deveres” (IAMAMOTO, 2001, p.17).
Portanto, são as contradições inerentes ao sistema capitalista, como resultado da
exploração do trabalho, que colocam a demanda e a necessidade de intervenção do Estado
com políticas protetivas.
Destarte, pensar a práxis do assistente social, enquanto relação teoria e prática, que
aspira mudanças societárias e um melhor porvir humano, é compreender que o Serviço Social
tem sua razão de existir na “questão social” e que, para construção de uma nova forma de
sociabilidade é necessário a extinção da propriedade privada. Só com a derrota do capital e
com a divisão equitativa da riqueza socialmente produzida, que se terá condição de suprimir a
escassez e superar a “questão social” (NETTO, 2001, p.49).
Desta forma, de acordo com a Lei das Diretrizes Curriculares aprovadas pela ABEPSS
(1996, p. 5)
O processo de trabalho do Serviço Social é determinado pelas configurações estruturais e
conjunturais da questão social e pelas formas históricas de seu enfrentamento, permeadas
pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado, através das políticas e lutas sociais.
Portanto, a práxis do assistente social deve ter sempre em vista as categorias trabalho e
“questão social”, fundados em uma formação em que a história, o método e a teoria são
indissociáveis. Desta maneira, haverá o embasamento necessário a uma práxis crítica e
qualificada, que possibilite o assistente social intervir nas expressões da “questão social” na
direção de construção de um novo projeto societário.
Este embasamento lhe possibilitará a leitura desse imbricado entre proteção
social primária e secundária, que como antes explicitado, se encontram fragilizados devido às
conformações da sociedade capitalista, em especial do Estado neoliberal. O assistente social
poderá, a partir do fundamento teórico metodológico, elaborar leituras de realidade que
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ampliem seu olhar sobre a proteção social para além da prática do cuidado e, que o permitam
atuar na conquista e efetivação de Direitos Humanos e sociais universais.
CONCLUSÃO
No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, é possível observar significativo
avanço na regulamentação de direitos sociais, ampliando a proteção social a partir de um
sistema abrangente de seguridade social.
Apesar dos avanços conquistados no sistema protetivo, é mister salientar que em
tempos de política neoliberal a precarização das políticas sociais e da proteção social é fato. É
necessária mobilização e controle social pressionando o Estado no cumprimento de seus
deveres, na real aplicação das leis e na efetiva garantia de direitos.
Assiste-se na sociedade contemporânea um declínio dos sistemas de proteção baseados
em direitos, com uma tentativa de desresponsabilização do Estado e responsabilização da
sociedade civil, e do mercado. A família enquanto lugar privilegiado de proteção social passa
a ser tomada como “parceira” do Estado e foco das políticas sociais.
Exige-se que a família cumpra determinadas funções de reprodução, de formação
do indivíduo, de proteção e de socialização. Todavia, para que ela possa ser espaço de
proteção ela precisa ser protegida, precisa acessar seus direitos.
A família continua sendo
espaço de conformação ou de crítica, de pertencimento a um grupo e um lugar social, porém,
ela não pode ser um substituto do Estado e nem eximi-lo de suas responsabilidades.
Frente este contexto e, compreendendo a importância da proteção social na práxis do
assistente social, faz-se necessário uma prática orientada pelas categorias trabalho e “questão
social”, embasada no método, na teoria e na história. Apenas com uma base teórica consistente, o
assistente social poderá perceber o caráter contraditório da profissão e responder qualificadamente
ao usuário, que no contexto do capitalismo encontra-se cada vez mais desprotegido.
REFERÊNCIAS
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13
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