Instituto de Ciências Jurídicas DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ESTATUTO DA CIDADE E NO NOVO CÓDIGO CIVIL Uma Abordagem Comparativa Leandro Mourão de Araújo Rio de Janeiro 2009 1 LEANDRO MOURÃO DE ARAÚJO DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ESTATUTO DA CIDADE E NO NOVO CÓDIGO CIVIL Uma Abordagem Comparativa Monografia de Conclusão de Curso apresentada ao Curso de Direito da Universidade Veiga de Almeida, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Professora Francesca Cosenza Rio de Janeiro 2009 2 LEANDRO MOURÃO DE ARAÚJO DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ESTATUTO DA CIDADE E NO NOVO CÓDIGO CIVIL Uma Abordagem Comparativa Monografia de Conclusão de Curso apresentada ao Curso de Direito da Universidade Veiga de Almeida, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Aprovada em: __________________________________________________________________ (Nome: ___________________,______________, Universidade Veiga de Almeida) __________________________________________________________________ (Nome: ___________________,______________, Universidade Veiga de Almeida) __________________________________________________________________ (Nome: ___________________,______________, Universidade Veiga de Almeida) 3 Aos meus pais Sandra e Lodevaldo, aos meus irmãos, Daniel e Luciana a minha noiva Danielle e a minha vó Lindaura, meus alicerces. 4 AGRADECIMENTOS Aos meus pais pelo apoio e constantes incentivos em direção a conclusão do curso, a minha noiva pela sua dedicação e por toda compreensão durante esse decurso de tempo, aos meus irmãos, pelos conselhos sempre úteis e precisos com que me presenteavam e a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram na execução deste trabalho. 5 “Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável.” - Provérbio Chinês – 6 RESUMO ARAUJO, Leandro Mourão de. Direito de Superfície no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil - Uma Abordagem Comparativa. Rio de Janeiro. 2009. Monografia (Graduação de Direito). Universidade Veiga de Almeida – Tijuca, Rio de Janeiro. Circunstâncias históricas levaram o direito de superfície a ser reintroduzido na legislação brasileira em dois textos diversos, porém cronologicamente muito próximos. O Estatuto da Cidade e o Novo Código Civil apresentam unidade estrutural próprias, contudo, possuem campos de incidência distintos, além de normas conflitantes, fato este que acaba gerando dificuldade na sua aplicação. Aduz que o direito real de superfície transparece relevância social na medida em que o instituto, a muito pouco reconhecido pela nossa legislação, desempenha um importante papel na busca pela função social da propriedade, bem como, instrumento de mudança e valorização das terras, pois, atendendo as exigências constitucionais da função social, poderá operar uma verdadeira inovação na política urbana e agrária. O objetivo deste trabalho consiste em proceder com uma análise critica ao instituto do direito de superfície, nos diplomas nos quais foram reconhecidos em nosso país, com o escopo de fornecer subsídios para que tal instrumento técnico-jurídico, semeador do estímulo a construção, seja, definitivamente efetivado. Os resultados desta pesquisa visam permitir aos profissionais do direito um melhor entendimento sobre o assunto para o atendimento das demandas com a qualidade que a sociedade necessita. Palavras-chave: Função Social. Política Urbana e Agrária. Conflito de Normas. Direito Real. Relevância Social. 7 RESUMÉ ARAUJO, Leandro Mourão de. Direito de Superfície no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil - Uma Abordagem Comparativa. Rio de Janeiro. 2009. Monografia (Graduação de Direito). Universidade Veiga de Almeida – Tijuca, Rio de Janeiro. Les circonstances historiques ont conduit à des droits de surface doit être retourné à la législation brésilienne en deux textes différents, mais chronologiquement proche. Le Statut de la Ville et le Nouveau Code civil ont l'unité de structure elle-même, cependant, ont des champs d'incidence différents, et conlits des normes, un fait qui a généré des difficultés dans son application. Elle précise que la surface de droite real se reflète la pertinence sociale réelle en ce que l'institut, un peu reconnue par nos lois, joue un rôle important dans la quête de la fonction sociale de la propriété, ainsi que l'instrument du changement et du développement de la terre, en conséquence répondant aux exigences constitutionnelles propres à la fonction sociale, vous pouvez opérer une véritable innovation dans la politique urbaine et agraire. L'objectif de ce travail est de procéder à une analyse critique de l'Office des droits de surface, dans laquelle les diplômes ont été reconnus dans notre pays, avec le champ d'application des subventions à ces techniques et juridiques, le semeur de la construction de relance, c'est-à définitivement réalisée. Les résultats de cette recherche est de permettre aux praticiens une meilleure compréhension du sujet pour répondre aux exigences de la qualité que les besoins de la société. Cosntitution-Citoyenne: Fonction Sociale. Politique Urbaine et Agraire. Conlits des Normes. Droit Real. La Pertinence Sociale. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 09 CAPÍTULO 1 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE SOB A PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL ............................................................................................ 11 CAPÍTULO 2 PROJEÇÃO HISTÓRICA E OS SISTEMAS LEGISLATIVOS ....... 21 CAPÍTULO 3 TEORIA GERAL DO DIREITO DE SUPERFÍCIE ........................... 28 3.1 CONCEITO ................................................................................................................... 28 3.2 ESTRUTURA DO DIREITO SUPERFICIÁRIO ......................................................... 29 3.3 DIREITO DE SUPERFÍCIE COMO DIREITO REAL AUTONÔMO ........................ 30 3.4 FORMAS DE CONSTITUIÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE............................. 32 3.4.1 A polêmica do direito de superfície constituído por usucapião ............................ 33 3.5 NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE SUPERFÍCIE ......................................... 36 3.6 ESPÉCIES DO DIREITO DE SUPERFÍCIE ................................................................ 38 3.7 ELEMENTOS DO DIREITO DE SUPERFÍCIE .......................................................... 38 3.8 DIREITO E DEVERES DO CONCEDENTE E SUPERFICIÁRIO ............................ 39 3.9 FORMANS DE EXTINÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE E SEUS EFEITOS .... 41 3.9.1 A questão dos efeitos da extinção do direito de superfície no tocante aos ônus reais que gravam o solo e a propriedade superficiária separada .................................. 43 3.9.2 A polêmica questão da expropriação de terrenos utlizados para o plantio ilegal de plantas psicotrópicas, pelo proprietário suferficiário, sendo o proprietário do solo terceiro de boa-fé................................................................................................... 44 CAPÍTULO 4 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ...................................................... 45 CAPÍTULO 5 CONFLITOS DE LEIS NO TEMPO: O ESTATUTO DA CIDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL COEXISTEM? ............................................................... 48 CAPÍTULO 6 ANÁLISE COMPARADA DO INSTITUTO NO ESTATUTO DA CIDADE E NO NOVO CÓDIGO CIVIL ................................................................. 51 7 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 61 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 62 9 INTRODUÇÃO Fotografando o contínuo e incessante pulsar do mundo atual, observa-se que as mudanças sociais, políticas e jurídicas têm ocorrido em ritmo cada vez mais enlouquecedor. Mudanças essas, no Brasil pós-88, realizadas sob a inspiração de novos paradigmas estabelecidos na Constituição-Cidadã. Graças ao reconhecimento de que o exercício da propriedade, através do seu direito, se submete à função social, é que o legislador infraconstitucional preocupou-se em resgatar do exílio a que estava confinado, desde 1864, o direito de superfície. Ele retornou através do Estatuto da Cidade (Lei Federal n.o 10.257, de 10 de julho de 2001) como instrumento jurídico de realização da política urbana, carregando a bagagem ideológica daquele diploma, que convida, na esteira da Constituição, à releitura do papel do Estado, qual seja: densificar o direito fundamental social à moradia, a partir de uma noção democrática e funcionalizada do direito de propriedade. Posteriormente, o direito de superfície foi reintroduzido no Novo Código Civil, cuja vigência iniciou em janeiro de 2003. Infelizmente, esta última regulamentação lançou dúvidas sobre a utilização do direito de superfície como instrumento de política urbana. Fala-se, inclusive, na revogação do Estatuto da Cidade visando resolver o conflito de normas, a despeito do prejuízo social que causaria tal revogação. É objetivo do presente trabalho demonstrar que o retorno do instituto em comento ao ordenamento jurídico pátrio não se deveu a obra de saudosistas, mas que é categoria jurídica relevante, a ser utilizada tanto na racionalização do solo urbano como no âmbito das das relações sob o manto do Código Civil, dado o interesse econômico que alberga. Assim, propomo-nos a desenvolver análise comparativa do instituto em ambos os diplomas legais, que acreditamos coexistirem no direito brasileiro. Para tanto, dividimos o estudo em duas partes. Na primeira parte, depois de estabelecida a premissa metodológica de análise do instituto sobre a perspectiva civil-constitucional e feita a clivagem do processo histórico, analisamos os sistemas legislativos para, enfim, aprofundarmos a teoria geral do direito de superfície com suas respectivas polêmicas. Na segunda parte, merece destaque a análise comparada do instituto no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil Brasileiro, levada a efeito depois de estudados os antecedentes históricos do direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro e de desmistificada a questão do conflito temporal de leis. 10 A pesquisa foi desenvolvida se baseando no método dedutivo, privilegiando-se a pesquisa bibliográfica e documental, cuja remissão se encontra relacionada ao final do presente trabalho, tendo em vista a necessidade de aprofundarmos a terioa geral do direito de superfície, estudando os antecedentes históricos do instituto no ordenamento jurídico brasileiro e desmistificando a questão do conflito temporal de leis. 11 1 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE SOB A PERSPECTIVA CIVILCONSTITUCIONAL. Impossível compreender contemporaneamente a categoria do direito de superfície, fora do paradigma do Estado Democrático de Direito que veio a lume com a Constituição de 1988, vez que sob a perspectiva e a influência dos valores democráticos é que o conceito de propriedade, dentro do qual se insere o estudo, sofreu alterações.1 Nesse contexto, “não há mais lugar para um direito de propriedade absoluto e sagrado, tampouco individualista e de gozo irrestrito.”2 Daí, iniciarmos a abordagem do direito de superfície pela análise do princípio jurídicoconstitucional vetor de sua disciplina, qual seja: o princípio da função social da propriedade, já que a perspectiva de interpretação civil-constitucional é a premissa metodológica diretriz deste trabalho. A releitura do direito civil à luz da Constituição atualiza institutos defasados da realidade contemporânea, repotencializando-os, de molde a torná-los compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual.3 A dialética fato-norma tem dinâmica própria que reconstitui, incessantemente, o Direito, de modo que tanto o dado normativo como o dado fático são elementos indispensáveis ao processo interpretativo, sendo certo que o predomínio de um em detrimento do outro representaria a perda de contato com a chamada norma viva.4 Nesse sentido, desponta a necessidade em buscar na Constituição o fundamento de validade e o ponto de partida para a interpretação de todas as demais normas infraconstitucionais, a fim de preservar o ordenamento jurídico como sistema dotado de unidade, coerência, harmonia e completude.5 A interpretação civil-constitucional parte sempre da Constituição, aqui entendida como norma fundamental. Essa atividade interpretativa, contudo, não é isenta de dificuldades. Gustavo Tepedino6 enumera quatro preconceitos a serem debelados pelo intérprete. Vejamos: Em primeiro lugar, diz ser preciso compreender que a Constituição não é uma carta de intenções. Todas as suas normas (sejam regras e princípios) são cogentes, de molde que todas 1 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 48. MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003. p. 35 et seq. 3 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 21. 4 TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 285. 5 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 5. ed.. Tradução. Maria Celeste Cordeiro Leito dos Santos. Brasília: Universidade de Brasília, 1996, p. 78 et seq. 6 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 17 et seq. 2 12 as categorias reguladas pela lei infraconstitucional são redimensionadas pela normativa fundamental. Sem o temor da redundância, há que ser sublinhada a aplicabilidade direta dos princípios constitucionais. Eles não necessitam de regulamentação infraconstitucional para se fazerem valer no ordenamento jurídico. No dizer de Vladimir da Rocha França, Constituem os pontos de direção, sistematização e controle do processo de concretização do texto constitucional, que tornam viáveis a determinação objetiva dos conceitos, fundamentos e diretrizes diante do caso concreto posto à apreciação do operador jurídico. [...] Os princípios não foram feitos para serem apenas contemplados, mas sim aplicados e concretizados na realidade social, determinando objetivamente as diretrizes e os fundamentos que devem ser efetivamente obedecidos no processo de concretização do ordenamento jurídico posto. 7 Também não há que confundir os princípios constitucionais com os princípios gerais do direito. Estes incidem quando há lacuna a ser integrada. Aqueles inspiram e guiam sempre a atividade de interpretação e aplicação do Direito. Sobre este ponto, Ricardo Pereira Lira esclarece que os “princípios fundamentais estão acima dos próprios princípios gerais de direito de que cuida a Lei de Instrução ao Código Civil, como processos de integração e suprimento das lacunas do ordenamento.” 8 O terceiro preconceito que merece superação diz respeito à técnica interpretativa. Após a consagração da nova tábua axiológica na Constituição de 88, notam-se mudanças na técnica legislativa. Somam-se os diplomas legais elaborados mediante a técnica das cláusulas gerais9, inconfundíveis com meras cláusulas de intenção, porque rompem as amarras casuísticas enclausurantes de inúmeras categorias do direito, além de permitir sua atualização constante pelas demandas sociais. O último preconceito a ser abandonado na releitura do direito civil à luz da Constituição relaciona-se à summa divisio do direito público e do direito privado. A interpenetração das esferas caracteriza a sociedade contemporânea, trazendo enorme significado hermenêutico, vez que já não mais se opera com diferença qualitativa entre tais categorias, mas sim, meramente quantitativa, conforme o critério da prevalência. 7 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=676>. Acesso em: 5 mar. 2008. 8 LIRA, Ricardo Pereira. A aplicação do direito e a lei injusta. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro: Renovar, n. 5, 1997, p. 95. 9 PERLINGIERI, Pietro. Normas constitucionais nas relações privadas. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro: Renovar, v. 6 e 7, 1999, p. 69. 13 Michele Giorgianni10, em valioso estudo sobre os atuais confins do direito privado, no qual aprofunda as razões da “socialização do Direito Privado, que tem sido atraído para o Direito Público”, registra que foi inserida, “na disciplina da atividade privada, a consideração do interesse coletivo. Mas a evolução – já não mais recente – que se operou no significado da summa divisio do direito afasta certamente a consideração que o interesse coletivo constitua uma nota exclusiva do Direito Público”. Norberto Bobbio, apesar de sustentar a importância da dicotomia público-privado, que é composta por “categorias fundamentais e tradicionais”11, reconhece a interpenetração das esferas e a mudança de significado operada. Os dois processos, de publicização do privado e de privatização do público, não são de fato incompatíveis, e realmente compenetram-se um no outro. O primeiro reflete o processo de subordinação dos interesses do privado aos interesses da coletividade representada pelo Estado que invade e engloba progressivamente a sociedade civil; o segundo representa a revanche dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos. O Estado pode ser corretamente representado como o lugar onde se desenvolvem e se compõem, para novamente decompor-se e recompor-se, estes conflitos, através do instrumento jurídico de um acordo continuamente renovado, representação moderna da tradicional figura do contrato social. 12 Maria Celina Bodin de Moraes Tepedino, ao enfrentar o tema, sublinha que não se trata de mera invasão da esfera pública sobre a privada13. O fenômeno não é simplesmente uma “publicização do direito privado14”, mas sim estrutural transformação do conteúdo do direito civil15, que impõe a aplicação direta das normas constitucionais às relações de caráter privatístico. Se a Constituição permite a construção de unidade do sistema escalonadamente estruturado, através dos valores albergados em princípios superiores e cogentes, que permeiam todo o tecido normativo, a rígida contraposição direito público-direito privado é inaceitável.16 Assim, aumentam os pontos de confluência entre o público e o privado, em relação aos quais não há uma delimitação precisa fundindo-se, ao contrário, o interesse 10 GIORGIANNI, Michele. O direito privado e suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, Separata, ano 87, v. 747, jan. 1998, p. 50 et seq. 11 BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: público/privado. Estado, Governo, Sociedade – para uma teoria geral da política. Tradução. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 31. 12 BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: público/privado. Estado, Governo, Sociedade – para uma teoria geral da política. Tradução. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 27. 13 TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil – Imobiliário, Agrário e Empresarial ano 17, n. 65, jul./set. 1993, p. 21 et seq. 14 GIORGIANNI, Michele. O direito privado e suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, Separata, ano 87, v. 747, jan. 1998, p. 35 et seq. 15 TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil – Imobiliário, Agrário e Empresarial, ano 17, n. 65, jul./set. 1993, p. 23. 16 TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil – Imobiliário, Agrário e Empresarial, ano. 17, n. 65, jul./set. 1993, p. 24. 14 público e o interesse privado. Tal convergência se faz notar em todos os campos do ordenamento como, por exemplo, “na atribuição de função social à propriedade.”17 Gustavo Tepedino, na mesma linha, assevera que: A propriedade com a sua função social, as limitações do solo urbano e as restrições ao domínio dão um novo conteúdo à senhoria, limitando internamente o conteúdo do direito de propriedade. Não se trata, à evidência, de deslocamento para o direito público de certos tipos de propriedade, como se ao direito civil coubesse a disciplina de uma propriedade sem limites, no espaço que lhe restou, onde fosse possível expandir o mesmo individualismo pré-constitucional, podendo, então, finalmente, o titular, exercer a senhoria livremente, sem intervenção estatal. Ao contrário, todo o conteúdo do direito subjetivo de propriedade encontra-se redesenhado. 18 Portanto, a proteção da propriedade como bem em si não está conforme os ditames constitucionais. Ela é tutelada somente enquanto “destinada a efetivar os valores existenciais, realizadores da justiça social.”19 Desde os primórdios da humanidade, a propriedade tem sido foco de constantes tensões sociais e econômicas, instabilizadora de relações jurídicas e provocadora de acirrados conflitos com repercussão em todas as esferas sociais.20 Ao passear pelas raízes históricas do direito de propriedade, Liana Portilho Mattos enuncia que: [...] a noção de uma propriedade funcionalizada, que atendesse não somente o interesse de seu detentor, mas cujo exercício se desse também em benefício da coletividade, evoluiu com o passar do tempo. [...] A evolução da propriedade deu-se, portanto, no sentido de uma propriedade-direito para uma propriedade-função. 21 No Brasil pós-88, a noção de propriedade impregnada de função social está enunciada como fundamento de nossa ordem econômica, assim como, ineditamente, passou a integrar também o rol dos direitos fundamentais, de modo que o princípio da função social da propriedade deve instrumentalizar todo o tecido constitucional, criando um parâmetro interpretativo do ordenamento jurídico.22 17 TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil – Imobiliário, Agrário e Empresarial, ano 17, n. 65, jul./set. 1993, p. 24-25. 18 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 20. 19 TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil – Imobiliário, Agrário e Empresarial, ano 17, n. 65, jul./set. 1993, p. 28. 20 BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: público/privado. Estado, Governo, Sociedade – para uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 23. 21 MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 37. 22 GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 414. 15 Apenas é garantido o direito de propriedade, que estiver vinculado ao exercício de sua função social. Trata-se da “razão de ser do direito”, no sentir de Pietro Perlingieri.23 Registra o professor italiano que, em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa, tal qual o brasileiro, [...] o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção “em ódio” à propriedade privada, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada pelo intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular. Na sistemática adotada na Constituição de 1988, a função social da propriedade é princípio normativo de conteúdo certo e determinado pela Constituição Federal24, parte integrante e inseparável da estrutura do direito de propriedade.25 A função social da propriedade passa a integrar o conceito jurídico-positivo de propriedade26, de modo a determinar profundas alterações estruturais na sua interioridade. Não pode ser confundida com mera limitação administrativa, já que não é condição para o exercício de direito, tratando-se do próprio dever de exercitar o direito de propriedade. Tem que ver com seu conteúdo, sendo intrínseca à propriedade privada.27 Há ainda que se analisar o espectro de incidência do princípio da função social da propriedade. Na doutrina, não há harmonia sobre este aspecto. Eros Roberto Grau28 distingue uma propriedade dotada de função individual, que seria a dos bens de consumo e entende que o princípio da função social da propriedade incidiria apenas sobre os bens de produção. Contudo, melhor entendimento é o de Pietro Perlingieri29, 23 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Tradução. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 226. 24 TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 280. 25 GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 398. No mesmo sentido, FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=676>. Acesso em: 27 abr. 2008. 26 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 207 et seq. 27 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=676>. Acesso em: 7 nov. 2008. 28 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 207 et seq. 29 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Tradução. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 230. 16 também esposado por André Osório Gondinho30 e por Vladimir da Rocha França.31 Pregam que a função social da propriedade não está adstrita aos bens de produção, vez que contamina os estatutos jurídicos de todas as situações proprietárias. Gondinho, ao criticar a posição adotada por Eros Grau, é muito feliz ao conectar a função social da propriedade como reação do ordenamento contra os desperdícios de potencialidade da coisa, para satisfazer as necessidades humanas, sejam materiais sejam pessoais. Salienta: Em que pese à autoridade dos ilustres doutrinadores, não podemos concordar com a restrição imposta à incidência do princípio da função social da propriedade nos bens de consumo. O fato de um bem ser utilizado para a subsistência individual não lhe exclui do campo de incidência do princípio da função social. Isso porque a função social da propriedade não se justifica apenas pela destinação econômica de determinado bem. Assim, se determinado bem, dada a sua natureza, se destina apenas a utilização individual ou familiar, mas é efetivamente assim utilizado, este bem não representa um desperdício de potencialidade para a sociedade. Desta forma, esse bem cumpre a sua função social, pois torna a sociedade mais rica, apesar de, quantitativamente, a sua contribuição para a riqueza nacional ser pequena ou mesmo insignificante. 32 (grifos no original). Nesse diapasão, será socialmente funcional a propriedade que, respeitando a dignidade da pessoa humana, contribuir para o desenvolvimento nacional e para a diminuição da pobreza e da desigualdade social, sendo instrumento de realização dos valores existenciais, em superação do individualismo tão marcante em nosso ordenamento anterior. Os direitos patrimoniais devem se adequar à nova realidade, pois a pessoa prevalece sobre qualquer valor.33 A dignidade da pessoa humana é norma-princípio chave do ordenamento jurídico brasileiro34 que orienta e dá fundamento a todas as suas demais normas. Nos termos da lição de Liana Portilho Mattos, o princípio da dignidade da pessoa humana é considerado como o fundamento do princípio da função social da propriedade em razão de sua profunda vinculação com o direito humano de moradia e outros direitos fundamentais. O direito social fundamental à moradia digna foi expressamente consagrado pelo texto constitucional por intermédio da Emenda Constitucional nº. 26/2000. 30 GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 397 et seq. 31 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=676>. Acesso em: 7 nov. 2008. 32 GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 429. 33 GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 430. 34 MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 47. 17 Antes da alteração provocada pelo poder constituinte derivado, a doutrina já proclamava que o direito à moradia digna era direito fundamental individual. Nesse sentido, é a lição de Ricardo Pereira Lira, em estudo sobre o direito à habitação e o direito de propriedade apresentado em Macerata, na Itália, em 1991: O direito de habitação, o direito à moradia, o direito ao mínimo de abrigo, o ‘shelter’ (como dizem os anglo-saxônicos) é um direito individual assegurado na Constituição da nossa República, por isso que é instrumento indispensável à formação elementar da consciência de cidadania, instrumento indescartável na realização dos fundamentos da República, pois só com essa salvaguarda mínima se pode preservar a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988), se pode erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais (Art. 3º, inciso III, da Constituição da República). Se todos são iguais perante a lei (Art. 5º, caput, da Constituição), se a casa é asilo inviolável do indivíduo (Art. 5º, inciso XI, da Constituição), é evidente que todos têm direito a esse asilo e a essa inviolabilidade.35 A EC 26/2000 apenas consagrou o que a doutrina já proclamava, mas provocou profundas mudanças na relação entre o poder público e os administrados. Historicamente, a moradia no Brasil era encarada como problema social a ser solucionado através de programas estatais de financiamento e construção.36 Com a emenda constitucional, um novo paradigma foi fixado. A moradia é direito humano, cuja aplicabilidade e eficácia pressupõe a ação positiva do Estado. A obrigação de fazer estatal abraça dois aspectos distintos. Um de caráter imediato de impedir a regressividade do direito à moradia37, isto é, medidas e ações que dificultem ou impossibilitem seu exercício, tais como, um sistema e uma política habitacional que acarrete a exclusão e medidas discriminatórias de impedimento de acesso ao direito à moradia para uma grande parcela da população. O outro aspecto diz respeito à reformulação da intervenção estatal nas atividades privadas, a fim de reformular a política habitacional. Nelson Saule Júnior e Maria Elena Rodriguez38 enumeram ações indispensáveis para a efetividade do direito humano à moradia, tais como: aprimoramento da regulamentação do uso e acesso à propriedade imobiliária urbana e rural, regulamentação do mercado de terra, previsão de sistemas de financiamento habitacional de interesse social, promoção de programas de urbanização e regularização fundiária nos 35 LIRA, Ricardo Pereira. Direito à habitação e direito de propriedade. Revista da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 81. 36 SAULE JÚNIOR, Nelson. RODRIGUEZ, Maria Elena. O Direito à moradia. Disponível em: <http://www.gajop.org.br/portugueses/mora>. Acesso em: 15 jun. 2008. 37 SAULE JÚNIOR, Nelson. RODRIGUEZ, Maria Elena. O Direito à moradia. Disponível em: <http://www.gajop.org.br/portugueses/mora>. Acesso em: 15 jun. 2008. 38 SAULE JÚNIOR, Nelson. RODRIGUEZ, Maria Elena. O Direito à moradia. Disponível em: <http://www.gajop.org.br/portugueses/mora>. Acesso em: 15 jun. 2008. 18 assentamentos informais de modo a proporcionar a integração social e territorial das comunidades carentes que vivem nestes assentamentos. Para Pietro Perlingieri, o direito à moradia tem duas acepções diferentes. Uma conotação quando se tem em foco as relações econômicas e outra ao ser evidenciado o aspecto da tutela da pessoa: O direito à moradia é da pessoa e da família; isso tem conseqüências notáveis no plano das relações mesmo civilísticas, por exemplo, em tema de locação, de equo canone, e, nas de construção civil, de subingresso ao sócio defunto. O direito à moradia como direito ao acesso à propriedade da moradia é um dos instrumentos, mas não o único, para realizar o gozo e a utilização da casa. Como direito existencial pode-se satisfazer também prescindindo da propriedade da moradia; por isso incide, em maneira decisiva, sobre as relações de uso, de moradia e de aluguel.39 No sentido de densificar o direito social à moradia, sob seu aspecto de instrumento de tutela da personalidade, veio a lume a Lei Federal nº. 10.257/2001, auto-nominada Estatuto da Cidade, que trouxe, dentre os instrumentos de política urbana, o direito de superfície. Naquele diploma, o objeto direto do nosso estudo, ganha contornos inegavelmente urbanísticos, destinando-se a contribuir para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Pouco depois, foi promulgada a Lei Federal n.º 10.406/2002, o Novo Código Civil Brasileiro, que repristinou o direito de superfície, tratando-o dentro do Direito das Coisas. Nesse diploma, a finalidade do instituto, que constitui uma maior possibilidade de aproveitamento do solo urbano, está contaminada por interesse predominantemente privado, sem – por óbvio – perder-se do fundamento constitucional da propriedade. Antonio Ventura-Travesset y González assegura que: [...] o direito de superfície adquire importância como regulador das relações que se estabelecem entre os diferentes agentes que aportam os diferentes insumos da habitação, estabelecendo-se entre particulares como forma de dividir os custos de uma construção. 40 Letícia Marques Osório acrescenta que: [...] este instrumento é também um aliado aos esforços para efetivar o cumprimento da função social da propriedade, já que, da ótica dos que atuam no mercado imobiliário, o proprietário manterá a reserva do aumento do valor do solo para si após a transferência do direito de superfície para terceiro. O poder público, 39 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 198. 40 OSORIO, Letícia Marques. Direito de superfície. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 174. 19 por sua vez, poderá, por meio de regras disciplinadoras do uso e da ocupação do território das cidades, definir as áreas consideradas subutilizadas ou não utilizadas, que deverão atender às exigências do desenvolvimento urbano, sob pena de ficarem sujeitas à aplicação de sanções para que a propriedade urbana cumpra uma função social. No caso da função social do imóvel ser a edificação, os respectivos proprietários privados poderão alienar o direito de superfície de seus terrenos para que outra pessoa ou empresa construa, contribuindo, inclusive, para a diminuição dos custos da produção das unidades habitacionais ou comerciais. 41 Portanto é grande o desafio dos estudiosos do Direito, eternos conciliadores de forças antagônicas, que devem primar por construir um sistema viabilizador da efetividade do princípio da função social da propriedade, princípio densificador de direitos humanos elementares, dentre os quais, destaca-se o direito social à moradia, que é um dos fundamentos constitucionais inspiradores da reintrodução do direito de superfície no direito brasileiro. CONCEITOS IMPORTANTES: SOLO – SUPERFÍCIE – ACESSÂO A guisa de instrumentalizar o estudo do direito de superfície, mister se faz estabelecer o sentido e alcance das seguintes categorias: solo, superfície e acessão. Solo e superfície são noções juridicamente relevantes, uma vez que sofrem a incidência da ação humana. Assim, fixemos o alcance de seu conteúdo. Solo abrange a coluna aérea sobrejacente, a coluna subjacente e o plano que as separa42. Sem ser confundida com o direito de superfície, nem tomada por acessório do solo (porque dele é parte integrante), superficie é o plano que idealmente separa as colunas que, relativamente a ele, se colocam em posição superior e inferior ao longo de toda a sua extensão e largura43. Finalmente, há que se aduzir que a noção de direito de superfície é construída conexamente à de acessão. No dizer da mais balizada doutrina sobre o assunto, “o direito de superfície é substancialmente uma suspensão ou interrupção da eficácia do princípio da acessão”44. 41 OSORIO, Letícia Marques. Direito de superfície. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 174-175. 42 LIRA, Ricardo Pereira. O moderno direito de superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. (Coord.). Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 2. 43 LIRA, Ricardo Pereira. O moderno direito de superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. (Coord.). Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 12. 44 LIRA, Ricardo Pereira. O moderno direito de superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. (Coord.). Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 9. 20 Da importância que se atribuía ao solo surgiu a doutrina romana da acessão enunciada no princípio superficies solo cedit, segundo o qual acede ao solo tudo o que sobre ele ou sob ele se construa, ou, em princípio, se plante. Seja a natureza jurídica da acessão, modo de aquisição da propriedade ou fenômeno de expansão do direito de propriedade à coisa acedida, Ricardo Pereira Lira45 define-a como “união física entre duas coisas, formando, de maneira indissolúvel, um conjunto, em que uma das partes, embora possa ser reconhecível, não guarda autonomia, sendo subordinada, dependente do todo, seguindo-lhe o destino jurídico”. A idéia da acessão sempre foi tão enraizada como a idéia do direito de propriedade46, de modo que compreender o alcance do princípio superficies solo cedit é a chave para dissecar o direito de superfície, uma vez que este tem aquele como pressuposto, real ou virtualmente. 45 LIRA, Ricardo Pereira. O moderno direito de superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. (Coord.). Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 3. 46 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicações/diversos/malcino.html>. Acesso em: 18 set. 2008. 21 2 PROJEÇÃO HISTÓRICA E OS SISTEMAS LEGISLATIVOS O longo percurso histórico do direito de superfície, cujo itinerário não se poderia aqui palmilhar, teve início no Direito Romano, no período romano-helênico, quando passou a ser admitida a possibilidade da separação do solo da propriedade superficiária como exceção ao princípio da acessão, até então vigente. Vigorou, portanto, no direito clássico, bem como no direito pré-clássico romano47; a regra superfícies solo cedit, conseqüência natural e necessária do direito de propriedade, por força da qual o proprietário adquiria o domínio de tudo que viesse a integrar o solo, englobando-se, assim, tanto as plantações quanto as construções. Por conseguinte, dado o conceito rigidamente individualista de propriedade em Roma, imperava o critério da absoluta senhoria sobre a coisa, segundo o qual a edificação erigida sobre o solo não poderia ser de outrem que não o seu dono. Vale destacar que, em época mais remota, os romanos sequer discerniam as coisas corpóreas, não distinguindo a coisa do direito existente sobre ela48. Assim sendo, somente a partir do momento em que os romanos admitiram a existência de coisas incorpóreas é que o domínio passou a sofrer certas limitações. A despeito da evolução do pensamento sobre a propriedade, Roma resistiu em não admitir a existência, em separado, da propriedade do solo da propriedade da construção ou da plantação. Contudo, registra Ricardo Pereira Lira49, o nascimento do direito de superfície adveio da “necessidade de adaptação às condições sociais dos novos tempos, dando-se paliativo às conseqüências antieconômicas do conceito romano de domínio”. Ora, à medida que surgiam as cidades e se desenvolviam as obras públicas, a rigidez do direito de acessão tornou-se inconveniente; a deterioração das condições sociais no Império Romano influenciou a atenuação do rigor dos princípios reguladores do direito de propriedade50. Efetivamente o direito de superfície só passou a ter aplicação no período pós-clássico e principalmente durante a fase justinianéia. Em um primeiro momento, assim como a 47 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. O Direito de Superfície no Direito Romano. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro: Renovar, n. 5, 1997. p. 284. 48 DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em 03 jun. 2008. 49 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 20. 50 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 26. 22 enfiteuse, surgiu como forma de concessão de terrenos públicos, para só posteriormente ser utilizado para a concessão de terrenos privados51. Posteriormente, portanto, em época que não se pode precisar com absoluta certeza, tornou-se comum a concessão inclusive entre particulares, fato que demonstra a migração desse instituto do direito público para o direito privado52. Assim, cedeu-se, lugar aos direitos de quem produzia sobre o solo de outrem com os seus esforços e trabalho. Mister se faz destacar que, no Direito Romano, a natureza da relação entre o concedente e o concessionário nasceu obrigacional, porque o primeiro pagava ao segundo um solarium. Apenas com o trabalho dos pretores é que a natureza jurídica da relação passou a ser real. Bruno Albuquerque Baptista explica que, em relação ao direito de superfície no Direito Romano a natureza jurídica do instituto não era, inicialmente, real e sim obrigacional. “Foi somente a ação dos pretores que permitiu o uso da superfície como direito real, conferindolhes defesa possessória por intermédio de um instituto próprio denominado interditum de superficiebus”. 53 Nesse sentido, esse direito era inicialmente de natureza obrigacional, já que assegurava ao arrendatário apenas o direito de usar e fruir. Marcos Alcino Azevedo Torres54 afirma que somente no período pós-clássico é que foi conferida ao superficiário uma ação real contra o dono do solo, “transformando então o direito de superfície em um direito real, alienável e transmissível aos herdeiros”. Destaca, inclusive que, posteriormente, com Justiniano, o direito de superfície é quase absoluto, não tendo o superficiário obrigações perante o proprietário e, o pagamento do solarium deixa de integrar a essência do direito. O direito bárbaro, por sua vez, não prestigiava o princípio superfícies solo cedit; ao revés: foi por sua influência que se começou a admitir a separação entre a propriedade do solo e a da plantação ou construção, como regra geral. 51 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 174. 52 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 25. 53 BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 15 jun. 2009. 54 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicações/diversos/malcino.html>. Acesso em: 03 jun. 2008. 23 Como bem ressalta Maria Sylvia Zanella Di Pietro55, os povos bárbaros, “sendo nômades e desconhecendo o princípio superficies solo cedit, valorizavam mais as construções e plantações do que o direito do proprietário do solo” . No mesmo diapasão, o direito germânico não acolhia o princípio da acessão, excepcionando-se os casos em que havia má-fé por parte de quem plantava ou construía em solo alheio. Já o Direito Intermédio, conforme citado por Rogério José Pereira Derbly56, sofreu influência do direito germânico, “que atribuía maior valor ao trabalho do construtor do que o direito de propriedade do solo, aliada ao interesse da igreja em legitimar as construções feitas sobre os terrenos de propriedade eclesiástica”, prevalecendo, assim, o direito do superficiário sobre o princípio da acessão. Houve, naquela época, a bifurcação da propriedade em domínio direto, que cabia ao senhor feudal, e em domínio útil, que, uma vez reconhecido ao possuidor ou cultivador da terra, definia sua posição de vassalo na hierarquia social57. Na era medieval, havia, inclusive, várias cidades italianas cujos estatutos isolavam a propriedade do que estava sobre o solo de outrem, concebida como propriedade separada do solo. Assim, pode-se apontar dois aspectos inovadores em relação ao direito de superfície no período intermédio, quais sejam: o reconhecimento da propriedade das construções e plantações separada da propriedade do solo, não sendo mais considerado o instituto como direito real sobre coisa alheia, e a utilização da superfície tanto para construções como plantações58. A constatação dos abusos sofridos durante a era medieval, por ocasião da instituição de verdadeira escravidão dos servos que exploravam a terra, abriu caminho para o retorno da concepção romana do direito de propriedade no século XVIII. Após a Revolução Francesa, a propriedade aparece, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como direito inviolável e sagrado; no Código Civil Francês, e posteriormente em muitos outros do século XIX, o direito de propriedade é definido como o 55 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 176. 56 DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Jus Navigandi, Teresina, a .6, n .53, jan. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em: 10 fev. 2008. 57 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 175. 58 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 176. 24 direito de gozar e de dispor das coisas de modo absoluto, contanto que isso não se torne uso proibido pela lei ou pelos regulamentos59. Feita uma clivagem do processo histórico, analisaremos as grandes codificações do século XIX, agrupando-as em três tipos de sistemas legislativos, conforme o tratamento dispensado ao direito de superfície. OS SISTEMAS LEGISLATIVOS São divididos, didaticamente, em três grupos. O primeiro abrange os sistemas legislativos que disciplinam expressamente o direito de superfície. Há os sistemas construídos sem o princípio da taxatividade dos direitos reais, de modo que admitem o instituto em razão de construção doutrinária. Por fim, podemos elencar os sistemas alicerçados no princípio da taxatividade dos direitos reais e que, por deixarem de prever o direito real de superfície, o excluem do ordenamento jurídico. Comecemos pelo último grupo de sistemas, dentro do qual, até pouco tempo incluíam-se o ordenamento jurídico brasileiro, bem como o argentino. Ambos não admitiam a existência do direito de superfície, passando a fazê-lo posteriormente. O primeiro deixou de pertencer ao grupo em virtude da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) e o segundo, passou a admitir “el derecho real de superfície forestal”60, com o advento da Lei 25.509, promulgada em 11 de dezembro de 2001. Luis O. Andorno61 salienta que a referida lei, no seu art. 14, ao complementar o Código Civil argentino, incorpora na legislação civil uma variante do direito real de superfície, que é o direito real de superfície florestal. Assim, não somente se tende à promoção de uma atividade econômica singular, como também se cria a possibilidade de melhorar as condições ambientais das regiões em que este regime pode se desenvolver. Dentre os sistemas legislativos que admitem a superfície por força da doutrina e interpretação dos tribunais, alinham-se: o francês, o inglês e o italiano até 1942. 59 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 176. 60 ANDORNO, Luis O. El derecho real de superficie forestal en el ordenamiento juridico positivo Argentino. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito- PPGDir/UFRGS. Coleção Direito Comparado. Homenagem a Clóvis do Couto e Silva - Argentina e a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. v. 1, set. 2003. p.161. 61 ANDORNO, Luis O. El derecho real de superficie forestal en el ordenamiento juridico positivo Argentino. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito- PPGDir/UFRGS. Coleção Direito Comparado. Homenagem a Clóvis do Couto e Silva - Argentina e a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. v. 1, set. 2003. p. 162. 25 No Direito Francês, o instituto é admitido por interpretação do art. 553 do seu Código Civil, em decorrência, portanto, de elaboração doutrinária. Tal dispositivo estabelece que todas as construções, plantações e obras realizadas em um terreno presumem-se feitas pelo proprietário, às suas custas, e lhe pertencem, se o contrário não for comprovado. Assim, a ressalva feita no referido artigo representaria o direito de superfície, que é exceção à regra da acessão. No Direito Inglês há um conjunto de contratos superficiários, denominados de buildinglease, criados pela prática, que continuam existindo. O building-lease pode assumir duas formas: a mais comum é a consistente na entrega do terreno a um empresário, que realiza as obras de infra-estrutura, e os contratos, próximos do tipo superficiário, assumem forma diversificada; já a forma mais rara implica no parcelamento, arruamento, canalização feita pelo proprietário do terreno, para em seguida construir e alienar as casas62. Com o advento do Código Civil de 1942, o Direito Italiano passou a prever expressamente o instituto; anteriormente, assim como no Direito Francês, era resultado da interpretação doutrinária (art. 448 do Código Civil de 1865). Da mesma forma que o Direito Alemão, só é possível no que tange às construções, excluindo-se as plantações. Dentre os ordenamentos jurídicos que expressamente disciplinam o direito de superfície, pode-se citar: o alemão, o austríaco, o italiano pós-1942, o espanhol, o holandês, o belga, o português e o suíço. O B.G.B, Código Civil alemão promulgado em 1896, foi um dos primeiros a disciplinar o instituto, tendo sido introduzidas algumas alterações por lei de 1919. Dentre suas várias características, destaca-se a admissibilidade do direito de superfície somente para fins de construção e não de plantação. Já o Direito austríaco reconhecia a divisão entre a propriedade do solo e a da superfície, havendo expressa menção nos artigos 1.125, 1.147 e 1.150 do Código Civil austríaco. Entretanto, tendo o instituto caído em desuso, somente com o advento da Lei de 26 de abril de 1912 é que uma nova modalidade de direito de superfície, de interesse maior, foi oferecida: trata-se de um direito real, alienável e hereditário, de ter acima ou abaixo da superfície de um 62 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 44. 26 terreno de outrem uma construção, que pode constituir em uma casa de moradia ou outra obra63. Com o advento do Código Civil de 1942, o Direito Italiano passou a prever expressamente o instituto; anteriormente, assim como no Direito Francês, era resultado da interpretação doutrinária (art. 448 do Código Civil de 1865). Da mesma forma que o Direito Alemão, só é possível no que tange às construções, excluindo-se as plantações. Através da Lei do Solo de 1956, complementada pelo Decreto de 17 de março de 1959, criou-se no Direito Espanhol, uma modalidade urbanística de direito de superfície, permitindo seu art. 157, n.° 1, que o Estado, as entidades locais e demais pessoas públicas, dentro do âmbito de sua competência, assim como os particulares, podem constituir o direito de superfície em solo de sua propriedade com destino a construção de casas e outras edificações determinadas pelos Planos de Ordenação, pertencendo o domínio ao superficiário64. Tanto a legislação belga quanto a holandesa disciplinam a superfície expressamente, sendo que em ambos países os doutrinadores discutem se compõe direito real sobre coisa alheia ou propriedade superficiária, já que a natureza do instituto não é tratada de forma expressa65. Já no Direito Português, o direito de superfície é tratado por uma lei de 1948, que só admite a superfície em terrenos privados do Estado, autarquias locais e pessoas coletivas de utilidade pública administrativa. O Código Civil Suíço de 1907, não obstante discipline o instituto, possui a peculiaridade de considerá-lo como servidão. Maria Sylvia Di Pietro destaca que: [...] o direito de superfície é sempre tratado como direito real; porém não há uniformidade de tratamento quanto à sua natureza; alguns o consideram apenas um direito real sobre coisa alheia (como ocorre na Bélgica e na Holanda, com divergências doutrinárias em relação aos que o consideram como propriedade autônoma); outros o tratam expressamente como propriedade 66 autônoma distinta da propriedade do dono do solo, como ocorre na Alemanha e Suíça (...). 63 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 46. 64 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicações/diversos/malcino.html>. Acesso em: 22 nov. 2007. p. 11. 65 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 178. 66 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 179. 27 Sem a intenção de fazer um estudo de direito comparado, o que não é a finalidade deste trabalho, foi simplificadamente examinado o direito de superfície em alguns sistemas alienígenas, a fim de ser fixada a base na qual assentaremos a teoria geral do direito de superfície. 28 3 TEORIA GERAL DO DIREITO DE SUPERFÍCIE 3.1 CONCEITO Ricardo Pereira Lira67 define direito de superfície como “o direito real autônomo, temporário ou perpétuo, de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob terreno alheio; é a propriedade – separada do solo – dessa construção ou plantação, bem como é a propriedade decorrente da aquisição feita ao dono do solo de construção ou plantação nele já existente.”. Essa definição tem em mira sublinhar o aspecto dinâmico da relação superficiária, assim como evidenciar as características mais fortes do instituto, sem se preocupar com os sistemas jurídicos que o consagram, face à variação decorrente de cada um, como é natural. Neste conceito são evidenciadas as características mais importantes do direito de superfície, quais sejam: sua autonomia diante dos outros direitos reais limitados, a concessão para construir ou plantar em solo alheio como causa da propriedade separada superficiária e a propriedade separada superficiária gerada por cisão, derivada de negócio jurídico. A doutrina é farta de definições. Em que pese à autoridade de Marco Aurélio Bezerra de Melo, o conceito que adota para direito de superfície confunde a categoria objeto de nosso estudo, que é direito real plasticamente transformável em propriedade separada do solo, com mero desdobramento dos poderes inerentes à propriedade. Não exerce o superficiário apenas alguns dos poderes inerentes à propriedade. Exerce-os todos. Ipis literis: A superfície é um direito real sobre a coisa alheia que permite o desdobramento dos poderes inerentes à propriedade, na medida em que uma pessoa, chamada de superficiário ou concessionário exerce os poderes de uso e fruição no tocante à edificação ou plantação em terreno alheio e ainda a propriedade plena sobre a coisa incorporada em solo de outrem que se chama fundieiro ou concedente.68 Há que se ressaltar a possibilidade de duas propriedades coexistirem: uma dentro da outra. Essa é a nota distintiva do direito de superfície e a razão da confusão do autor. 67 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 14. 68 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. O Direito Real de Superfície como Instrumento de Reforma Urbana e Agrária – análise do Projeto de Código Civil. Temas de Direito Privado. p. 139. 29 3.2 ESTRUTURA DO DIREITO SUPERFICIÁRIO: PLÁSTICA A estrutura da relação superficiária é plástica, porque pode sofrer mutações. A propriedade pode partir de uma relação simples, evoluindo para uma relação complexa. Ou, pode já nascer complexa, no caso de propriedade separada superficiária gerada por cisão. Lançando luzes sobre a plasticidade do direito de superfície, Ricardo Pereira Lira69 aponta que existem três momentos possíveis na relação superficiária, quais sejam: (a) o direito real de construir ou plantar em solo alheio, nascido de concessão ad aedificandum ou ad plantandum; (b) a propriedade separada superficiária, efeito da concreção do direito real de construir ou plantar em solo alheio; (c) a propriedade separada superficiária, gerada por cisão, quando é efeito da alienação que o dominus soli separadamente faz: (c.1) a outrem de construção já existente, reservando-se o solo; (c.2) a outrem do solo, reservando-se a construção; (c.3) a duas pessoas, transferindo a uma o solo, a outra a construção já existente. Portanto, o direito de superfície pode nascer simples e continuar simples até sua extinção, quando o único direito que se visualiza é o direito real de construir ou plantar em solo alheio, decorrente de concessão para plantar ou edificar que permaneceu latente, sem realizar-se na coisa superficiária. A hipótese de não-exercício do direito real de construir ou plantar em solo alheio é admissível sob o ponto de vista didático, mas de efetividade questionável, à luz do princípio constitucional da função social da propriedade, cujo conteúdo veda o desperdício da potencialidade da coisa70. Pode, também, nascer simples, tornando-se relação jurídica complexa, na hipótese de concreção do direito real de construir ou plantar em solo alheio em coisa superficiária. Isto é, o exercício da concessão (direito real) gera o aparecimento da propriedade separada superficiária, dentro da propriedade do solo. A concessão para construir ou plantar em solo alheio é direito real sobre coisa alheia, de aquisição derivada, que contém um poder de transformação71. O exercício desse poder cria 69 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 56-61. 70 GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 397-433. 71 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 60. 30 um direito de propriedade, qual seja: a propriedade separada superficiária, que estará embutida em outro direito de propriedade (a propriedade sobre o solo). Quando a propriedade separada superficiária, que tem a natureza jurídica de propriedade imobiliária, for adquirida pelo exercício do direito de construir ou plantar, a hipótese é de aquisição originária72. É, ainda, possível, que o direito de superfície nasça complexo e permaneça complexo, na hipótese de propriedade superficiária separada gerada por cisão. Neste caso, aquisição da propriedade separada superficiária também é derivada, tendo como causa o negócio jurídico em que o proprietário do solo deu em superfície plantação ou edificação já existente. 3.3 DIREITO DE SUPERFÍCIE COMO DIREITO REAL AUTÔNOMO A fim de evidenciar a autonomia do direito real de superfície, trataremos – sem o compromisso de sermos exaustivos – dos direitos reais limitados e institutos afins, cujos contornos aproximam-se do direito de superfície sem com ele confundirem-se. O direito de superfície se afasta da enfiteuse porque pode ser ou não perpétuo (enquanto a enfiteuse é perpétua), porque pode ser objeto de alienação, independentemente de consulta prévia ao concedente (ao passo que a enfiteuse não pode ser alienada sem anuência do dominus), porque é em regra gratuita, não sendo essencial a cobrança do solarium (já na enfiteuse, que é essencialmente onerosa, cobra-se o laudêmio), finalmente, porque a finalidade do direito de superfície pode consistir em plantio, construção ou moradia (e a finalidade da enfiteuse, historicamente, resumia-se à exploração para cultivo).73 Afasta-se o direito de superfície do usufruto, tanto no tocante ao objeto de incidência (o direito de superfície recai sobre imóveis, enquanto o usufruto pode recair também sobre móveis), quanto no que diz respeito à transmissibilidade (o direito de superfície é transmissível por ato inter vivos ou causa mortis, enquanto o usufruto é personalíssimo, não podendo ser transferido sequer hereditariamente) e ainda no que refere ao prazo de duração (se o usufruto é, no máximo, vitalício, o direito de superfície pode ser temporário ou perpétuo). No que toca às servidões, não há confusão. O direito de superfície é, em regra, gratuito; ao passo que a constituição de servidões implica em indenização. Além disso, no direito de 72 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 61. 73 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 185. 31 superfície não é possível identificar dois imóveis em que um deles seja dominante e o outro serviente74. Salientando o aspecto real do direito de superfície, não encontramos dificuldade em distingui-lo de outros institutos afins, mas de natureza jurídica obrigacional, como a locação, o arrendamento e a parceria. Interessante os efeitos da diferença entre o direito de superfície e a concessão de direito real de uso, que é decorrente do princípio superfícies solo cedit. Enquanto o direito de superfície implica em quebra ou suspensão do princípio superfícies solo cedit, na concessão de direito real de uso há incidência daquele princípio. Daqui se infere que no caso de desapropriação, a indenização será dividida entre o proprietário superficiário ou titular do direito real de construir ou plantar em solo alheio e o proprietário do solo, enquanto que na hipótese de concessão de direito real de uso, a indenização caberá apenas ao dominusconcedente. A despeito da inconteste autonomia entre direito de superfície e concessão de direito real de uso, a confusão entre os institutos não é nova. Na Mensagem n.o 160, de 10 de junho de 1975 que encaminhou o Projeto de Código Civil, hoje convertido na Lei n.o 10.406, o relator da Comissão Revisora, Miguel Reale, sustenta a repristinação do direito de superfície, porque ele seria a versão privada da concessão de direito real de uso do Decreto-lei 271/67. Bruno de Albuquerque Baptista75 noticia que a 2ª Turma do Egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no julgamento de Apelação em Mandado de segurança n.º 103.161, de relatoria de Carlos Fernando Mathias, publicado no D.O no dia 06.05.1997, sobre a concessão de direito real de uso, entende que ela se consistiria em moderna concepção do direito de superfície. O trecho seguinte foi extraído da ementa do acórdão: “II- A concessão de uso, em epígrafe, traduz uma concepção moderna do direito de superfície, onde o domínio da acessão se destaca da propriedade do solo.” Vale salientar que a concessão de direito real de uso não tem a plasticidade do direito de superfície, de modo que não gera uma propriedade imobiliária separada. Além disso, a lei a trata como direito resolúvel, enquanto o direito de superfície é direito real. 74 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicações/diversos/malcino.html>. Acesso em: 08 mar. 2008. 75 BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 15 mar. 2008 32 Distingue-se do direito de superfície, inclusive, pelo fato de, na concessão de direito real de uso, o direito do concessionário não poder ser hipotecado.76 Sem nos alongarmos mais neste ponto, posto que já restou inconteste a autonomia do direito de superfície, caminhemos na análise de sua teoria geral. 3.4 FORMAS DE CONSTITUIÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE O direito de superfície constitui-se (a) mediante registro no Registro de Imóveis de contrato que consubstancia negócio jurídico solene, de conteúdo relevante, que pode ser puro, condicional, a termo ou modal, oneroso – com previsão de solarium – ou gratuito, temporário ou perpétuo; (b) por disposição de última vontade, que institua legado ad hoc. Há polêmica sobre a constituição do direito de superfície (c) por usucapião; (d) por expropriação (desapropriação) mediante justa indenização ao proprietário superficiário, como também (e) através de lei. Para Ricardo Pereira Lira77 apenas o titular do direito de propriedade pode constituir o direito de superfície, porque a ninguém é lícito transferir mais do que seu patrimônio. Já Marcos Alcino Azevedo Torres78 ressalva a hipótese de admissão de sobrelevação, que seria o direito de superfície constituído sobre a propriedade superficiária pelo titular do direito de superfície, ou até mesmo pelo proprietário sobre o edifício. Ricardo Pereira Lira79 critica a eficácia da expropriação da superfície, uma vez que a indenização deverá abranger também o valor do solo em que assente a coisa superficiária, tornando despropositado o ato administrativo, que – em tese – seria possível. Tal possibilidade, porém, no Estado Democrático de Direito precisa enfrentar o crivo do princípio da moralidade administrativa, inserido no caput, do art. 37, da CRFB. Quanto à constituição do direito de superfície através de lei de efeitos concretos (que é uma excrescência dentro do sistema de pesos e contrapesos típico das repúblicas federativas), Ricardo Pereira Lira80 admite a hipótese no caso de concessão pelo poder público do direito 76 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 184. 77 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 71. 78 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 25 mar. 2009. 79 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 71. 80 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 71-72. 33 real de construir ou plantar, isto é, quando o poder público é o dominus soli e o dá em superfície. Trataremos no item seguinte da constituição por usucapião. 3.4.1 A Polêmica do Direito de Superfície Constituído por Usucapião Este é delicado tópico dentro do estudo da superfície. Alguns sistemas alienígenas o consagram expressamente, como o português e o alemão, enquanto a doutrina oscila entre sua admissibilidade ou não, prevalecendo à primeira hipótese81. Para compreendermos as razões da polêmica, se faz necessário retomar as observações concernentes à estrutura plástica do direito de superfície, que pode estar representado em (a) direito real de construir ou plantar sobre coisa alheia; em (b) propriedade superficiária separada (seja gerada pelo exercício da concessão, seja gerada por cisão): (b.1.) construída sobre solo de particular ou (b.2.) construída sobre solo público. Importante, também, sublinhar que a análise da questão está intimamente conectada aos requisitos do usucapião, que são diversos em cada espécie de usucapião (ordinário e extraordinário). Fixadas essas premissas iniciais, percebe-se que o exame do assunto reclama do observador o enfoque de dois aspectos, a saber: (1º.) o usucapião – ordinário ou extraordinário – do direito de construir ou plantar e (2º.) o usucapião – ordinário ou extraordinário – da propriedade separada superficiária. Ricardo Pereira Lira82 não admite a constituição do direito de superfície por usucapião ordinário do direito real de construir ou plantar sobre coisa alheia, visto que não seria possível a posse exercida sobre direito real incorpóreo. Quanto à constituição do direito de superfície por usucapião (ordinário ou extraordinário) da propriedade superficiária separada construída em terreno particular, o Professor supõe impossível a posse exercida apenas sobre o direito de superfície, sem abranger o solo. Apenas admite a constituição da superfície por usucapião (em qualquer das modalidades) da propriedade superficiária separada construída em terra pública, dada a impossibilidade jurídica da usucapião operar-se também sobre o solo, tornando inócua a projeção da posse sobre esse solo. 81 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 16 jan. 2009. 82 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 70-71. 34 Os obstáculos pragmáticos para admitir-se a constituição da usucapião não afastam a possibilidade de sua ocorrência. Apesar da dificuldade de ser configurada a posse (entendida, nos moldes do art. 1196, do NCCB, como o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade) sobre direito real incorpóreo, sendo rara alguma hipótese de usucapião do direito real de construir ou plantar sobre coisa alheia, sua ocorrência não é impossível. A guisa de ilustração, podemos trazer à colação entendimento do STJ sobre a admissibilidade de usucapião de direito real incorpóreo, que, no caso sob comento, está sumulado no enunciado n.o 193, conforme o qual, o direito real de uso de linha telefônica pode ser adquirido por usucapião ordinário. Dentre os acórdãos precedentes da súmula, destaca-se, no voto do relator Min. Dias Trindade, no RESP 24410-SP, 3ª. Turma STJ, j. 04/05/1993, o seguinte trecho: É sabido que os direitos reais podem ser objeto de usucapião como o direito de utilização de linha telefônica, que se exerce sobre a coisa, cuja tradição se efetivou, como acima indicado, se apresenta como daqueles que ensejam extinção por desuso e, em conseqüência, sua aquisição pela posse durante o tempo que a lei prevê como suficiente para usucapir . Exemplificando o caso, temos o sistema alemão, no qual se admite o usucapião ordinário do direito de superfície, tanto no aspecto de direito real de construir ou plantar sobre coisa alheia, como no aspecto de propriedade imobiliária separada. Temos, ainda, que abordar a posse exercida sobre a propriedade separada superficiária sem animus de aquisição da propriedade do solo. Nesse caso, temos tanto a possibilidade de vislumbrar o usucapião ordinário, como o extraordinário. Alerta Marcos Alcino Azevedo Torres que [...] o exame do caso concreto dirá se a hipótese cuida-se de usucapião que representa aquisição do direito de superfície, em qualquer de suas possibilidades ou, se de usucapião de todo bem (do solo e da propriedade superficiária). A intenção do possuidor será de fundamental relevância, embora se saiba de todos os aspectos que envolvem a produção de tal prova). 83 A doutrina admite84, quando a propriedade superficiária separada for construída sobre terreno particular, apenas a prescrição aquisitiva ordinária, porque os efeitos aquisitivos da acessão fariam com que a posse da superfície operasse os mesmos efeitos também sobre o solo, subsolo e espaço aéreo. 83 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 03 jun. 2008. 84 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em 05 jul. 2008. 35 Apenas é admitido o usucapião na modalidade extraordinária, quando se tratar de propriedade separada superficiária sobre terreno público, a despeito do entendimento de que esta hipótese configuraria fraude à vedação constitucional de usucapião de bens públicos. Marcos Alcino Azevedo Torres registra que: [...] em havendo possibilidade de aquisição do direito de superfície, seja por força de lei, seja por posição doutrinária, poder-se-ia admiti-lo para os terrenos públicos, ciente de sua inusucapibilidade, diante da constante invasão e posse por pessoas, que terminam por construir sua moradia no local, isto, se a administração pública deixá-lo ocioso, ao invés de ceder por contrato às populações carentes. 85 Roseane Gonzáles, que não trata da hipótese de usucapião extraordinário de propriedade separada superficiária construída sobre bem público, também não a exclui e assevera que, [...] a superfície pode ser adquirida via usucapião, sendo essa modalidade rara e difícil de ocorrer. Principalmente o usucapião extraordinário, em razão do efeito aquisitivo da acessão, por força do qual a plantação ou construção feita no solo pertence ao proprietário deste, o que só a superfície concedida pelo proprietário do solo poderia impedir. Por outro lado, pelo mesmo prazo, o superficiário adquiriria a propriedade do imóvel. Já via usucapião ordinário, em razão da concessão anterior a non domino, pode o concessionário adquirir o direito de superfície, contra o proprietário do solo, se permanecer na posse pelo decurso do prazo, desde que não careça de boa-fé. 86 José Guilherme Braga Teixeira87 sustenta a possibilidade de aquisição da superfície por usucapião ordinário, em razão de concessão anterior a non domino, visto que “nesta hipótese, o concessionário adquire o direito de superfície contra o senhor do solo, se conserva a posse pelo tempo necessário, na qualidade de superficiário, desde que não careça de boa-fé”. Forçoso é observar que a aquisição não se opera “contra o senhor do solo”. Ela se dá em face de quem alienou por meio de justo título que carecia de algum elemento. Se o alienante for o dominus soli, a prescrição corre contra ele. Mas se o alienante for o cessionário do direito de superfície, que nunca foi o senhor da terra, será contra este que correrá a prescrição aquisitiva. Assim, a título de regra geral, não é possível admitir que o usucapião se dê contra o senhor do solo, mas contra o alienante, que constituiu o justo título. 85 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 05 jun. 2008. 86 Apud DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em: 10 jul. 2008. 87 Apud DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em 10 jul. 2008. e também apud TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 10 jul. 2008., igualmente apud BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 10 jul. 2008, por fim, apud CASTRO, Mônica. Direito de superfície na Lei 10.257/01 (uma primeira leitura). Jus Navigandi. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2244>. 10 jul. 2008. 36 Marcos Alcino Azevedo Torres elaborou excelentes exemplos de usucapião ordinário da propriedade separada superficiária: Pode-se imaginar, e.g., que alguém conheça que outrem tenha a propriedade superficiária, reconhecendo que a propriedade do solo pertença outrem, e se aposse, por ausência do proprietário superficiário do bem objeto de propriedade superficiária, sem que tenha a intenção de adquirir a propriedade do solo. Ou ainda, se a propriedade é superficiária e alguém dela toma posse, ciente o proprietário do solo, pode ele notificar o intruso, dando-lhe ciência de que a propriedade do solo é sua, interrompendo eventual prescrição, embora seja fácil imaginar que ele teria legitimidade para notificar o intruso, interrompendo a prescrição, de propriedade superficiária, porque teria ele, um direito eventual (art. 121 do C. Civil)88, à construção ou a plantação, com a extinção da relação superficiária em qualquer de suas modalidades. 89 Portanto, temos o seguinte quadro: (a) os que inadmitem qualquer modalidade de usucapião sobre qualquer das manifestações do direito de superfície; (b) dentre os que admitem o usucapião, temos: (b.1.) usucapião extraordinário, só da propriedade superficiária separada construída ou plantada sobre solo público; (b.2.) usucapião ordinário da propriedade superficiária separada construída ou plantada sobre solo particular e; (b.3.) usucapião ordinário do direito real de construir ou plantar sobre coisa alheia. Está com a razão aqueles que admitem o usucapião – ordinário e extraordinário – em todas as três hipóteses. 3.5 NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE SUPERFÍCIE Trata-se de direito real. Contudo, aponta Marcos Alcino Azevedo Torres 90, a identificação da natureza jurídica do direito de superfície não se resume em qualificá-lo como real ou pessoal. Do exame do instituto, em razão de sua plasticidade, percebe-se que carece de identificação a natureza da relação superficiária, tendo como ângulo de visão, (a) a relação do superficiário com a coisa, resultante do exercício de direito de superfície; (b) a relação entre o direito concedido ao superficiário e o proprietário e (c) a relação decorrente da edificação ou plantação assentada em solo de outrem. 88 Esta referência é feita ao artigo 121, do Código Civil de 1916. O dispositivo correspondente no NCCB é o artigo 130, cuja redação é a seguinte: “Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo”. 89 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 15 ago. 2008. 90 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 15 ago. 2008. 37 Há inúmeras teorias destinadas a explicar a natureza jurídica do direito de superfície. Ricardo Pereira Lira91 as organizou em dois grupos92. O primeiro grupo reúne as teorias que prestigiam a concepção unitária da relação superficiária (projeção concessionário-bem superficiário e vínculo concessionário-dono do solo) e vêem no direito de superfície uma relação simples. Seus defensores conferem à superfície natureza idêntica a de outros direitos reais limitados como o arrendamento, o usufruto, a enfiteuse e a servidão predial93. Já o segundo grupo evidencia a concepção binária da relação superficiária (concessionário-bem superficiário e concessionário-dono do solo) e enxerga o direito de superfície de modo analítico. A tese dualista atribui ao superficiário a qualidade de titular do domínio útil, assumindo o proprietário do solo a condição de titular do domínio direto ou eminente. Esta posição sofreu críticas por se entender que a propriedade do superficiário não sofre limitações que procedam dos direitos do dono do solo.94 Ricardo Pereira Lira95 posiciona-se, dentro das concepções binárias, que divide as propriedades, a favor de uma visão diferente do direito de superfície, a partir da idéia de autonomia da relação superficiária, enquanto direito real de construir acima ou abaixo do solo de outrem, ou nele plantar, dando plasticidade à estrutura do direito de superfície. Rogério José Pereira Derbly96 anota a distonia doutrinária quanto à natureza jurídica do direito de superfície. Ainda que os autores não se mostrem concordes, apresentando diversas teorias que pretendem explicá-lo, o mais importante é o seu aspecto de direito real autônomo. 91 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 53-68. 92 BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 22 ago. 2008. 93 BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 22 ago. 2008. 94 BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 22 ago. 2008. 95 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 53-68. 96 DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em 15 jul. 2008. 38 3.6 ESPÉCIES DO DIREITO DE SUPERFÍCIE Pode referir-se a: (1) construções e (2) plantações. No primeiro caso, admitiria tanto construções não-residenciais (como por exemplo, um galpão) quanto edifícios com finalidade de moradia, nitidamente, urbanística. O direito de superfície pode abranger a concessão para construir ou plantar tanto em (i) solo, como em (ii) subsolo alheios. Neste último caso, haveria uma espécie de direito de “subfície” e não de superfície. Também poderíamos ter uma classificação quanto à abrangência do direito, de molde a vislumbrar um direito de superfície (a) total, de modo a abranger todas as coisas que se encontrem na superfície e outro (b) parcial, que abrangeria apenas algumas delas. Marcos Alcino Azevedo Torres 97 destaca, ainda, outras três espécies do direito de superfície, quais sejam: (a) simples, que seria aquele desprovido de qualquer peculiaridade que o especialize; (b) social, que seria aquele destinado a solucionar problemas de escassez de moradia das classes menos favorecidas; e (c) por cisão, que é o direito de superfície constituído sobre terreno já edificado ou plantado, quando o proprietário cede a edificação ou plantação a outrem, que se torna o proprietário da coisa superficiária. 3.7 ELEMENTOS DO DIREITO DE SUPERFÍCIE Há duas ordens de elementos do direito de superfície. Uma, subjetiva e outra, objetiva. Vislumbram-se dois sujeitos certos na relação superficiária: o concedente e o concessionário do direito real de construir ou plantar em solo alheio, mas também o proprietário do solo e o proprietário separado superficiário. Como regra geral, pode-se dizer que será objeto do direito de superfície tudo o que for suscetível de acessão98, porque a propriedade superficiária pressupõe a suspensão ou interrupção da eficácia do princípio superficies solo cedit. Enfim, qualquer construção (direito de superfície ad aedificandum) ou plantação (direito de superfície ad plantandum)99. No tocante ao direito de superfície agrícola, Bruno de Albuquerque Baptista reporta-se a: 97 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 06 out. 2008. 98 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 74 99 Alguns sistemas legislativos limitam o objeto do direito de superfície, a uma ou outra espécie. Já foi, no item 3 desta monografia, analisado o sistema argentino que, recentemente, repristinou o direito de superfície agrícola, ou seja, admite-se tão só a concessão ad plantandum. A limitação também pode se dar quanto ao subsolo e espaço aéreo, como é exemplo o nosso Novo Código Civil. 39 grande discussão doutrinária para estabelecer se a plantação a que se refere significa qualquer cobertura vegetal sobre o terreno ou somente árvores. José de Oliveira Ascensão, em artigo específico sobre o tema, se posiciona no sentido de que o direito de superfície agrícola só poderá ser concedido se seu objeto não for culturas efêmeras, como o milho, por exemplo. Além disso, ensina o professor português que a superfície também pode ser concedida quando o objeto for árvore isoladamente considerada. 100 3.8 DIREITOS E DEVERES DO CONCEDENTE E SUPERFICIÁRIO Os direitos e deveres do concedente e do concessionário decorrentes da relação superficiária devem ser exercidos conforme o ajustado no contrato, a par da liberdade no estabelecimento de obrigações entre os sujeitos da relação, decorrência natural do princípio da autonomia da vontade, ou estabelecido em testamento, desde que não atentem contra a ordem pública, os bons costumes e os princípios da relação superficiária101. Há, portanto, direitos e deveres explicitados no documento que constituir o direito de superfície, assim como há direitos e deveres implícitos, defluentes da teoria geral do direito de superfície, a terem incidência na omissão contratual ou testamentária, sempre sob os auspícios do princípio da função social da propriedade (seja no seu aspecto de função social do contrato, seja na sua faceta densificadora do direito social à moradia). Seguiremos à análise, num primeiro momento, dos direitos e obrigações do proprietário, passando, em seguida, aos do superficiário. Ainda que constituído o direito de superfície, é importante destacar a possibilidade de o concedente exercer os seus direitos de proprietário no subsolo, no espaço aéreo e na parte remanescente do solo de sua propriedade. Desde que não pratique atos impeditivos ou prejudiciais à concretização, seja do exercício, seja do objeto do direito de superfície do concessionário-superficiário. Ademais, ainda que não seja da essência do negócio superficiário, é possível que a concessão se dê a título oneroso. Nesse caso, as partes devem ajustar o pagamento de um solarium (renda ânua) ou pensão superficiária, que deverá ser entregue ao concedente. Vale dizer que no direito de superfície temporária, o proprietário tem o direito à reversão, isto é, ver a coisa superficiária ingressar no seu patrimônio, com ou sem indenização, por força do princípio da acessão, afastado em razão da constituição do direito de superfície e que, no momento da extinção do direito, recupera todo seu potencial. 100 BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 22 ago. 2008. 101 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 15 set. 2008. 40 De extrema relevância é, ainda, a existência de um direito de preferência do proprietário (dominus solis), em igualdade de condições com terceiros, no caso de venda ou dação em pagamento do direito de superfície, que deve ser entendido nas suas duas acepções: como direito de construir ou plantar ou, ainda, como propriedade superficiária102. Há casos em que o concedente tem o direito de promover a resolução do direito de superfície antes do advento do termo, se temporária a superfície, quais sejam: quando o superficiário der ao solo destinação diversa da prevista no título, bem como quando edificar ou plantar em desacordo com o convencionado ou, ainda, se não edificar ou plantar no tempo aprazado103. Já no que concerne aos direitos e deveres do superficiário, deve-se destacar o seu direito de gozo do solo alheio e a propriedade da coisa superficiária, sendo o primeiro relativo ao direito de superfície de construir ou plantar em solo alheio. Além disso, respeitadas as estipulações da relação superficiária, o concessionário tem a prerrogativa de transferir o seu direito de superfície inter vivos ou causa mortis, seja a propriedade sobre a coisa superficiária, seja a concessão para realizar construção ou plantação. Outra faculdade do concessionário é a de hipotecar o direito de superfície de maneira ampla, isto é, nas suas duas acepções (superfície temporária e perpétua). Assim, quando for o direito superficiário temporário, pode o concessionário constituir, sobre a propriedade superficiária, ônus reais que se extinguirão com o termo da superfície. Pode, portanto, constituir direitos reais de gozo dando a coisa em usufruto, em uso ou habitação. Também pode constituir direitos reais de garantia, como a hipoteca e a anticrese104. No caso de concessão a título oneroso, estará o superficiário obrigado a pagar o solarium105 ou a pensão superficiária nos prazos e formas acordada. Contudo, nada impede que a contraprestação seja diversa do dinheiro, como, por exemplo, frutos, na plantação e cessão de espaço, na construção106. 102 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 15 set. 2008. 103 DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em 03 jun. 2008. 104 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 03 jun. 2008. 105 LIRA, Ricardo Pereira. O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. 106 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 03 jun. 2008. 41 Outra obrigação que, se não cumprida, dá ensejo à resolução do direito de superfície é a de construir ou plantar ou ainda exercer o direito sobre a propriedade superficiária, exatamente conforme o acordado, hipótese já abordada anteriormente. Ademais, quando constituir a contraprestação do concessionário o ingresso gratuito da coisa superficiária no patrimônio do concedente, terá ele, em princípio, a obrigação de conservá-la. Sendo assim, não haverá o direito de demoli-la, salvo se houver expressa pactuação em contrário. Nesse ponto, vale abrir um parêntesis. Após o advento da Constituição de 1988, o direito de demolição da coisa deve ser confrontado com o princípio da função social da propriedade. Caso constitua desperdício da potencialidade da coisa superficiária, a cláusula que preveja a demolição será inconstitucional. No caso de perecimento da coisa superficiária, poderá ele reconstruí-la, enquanto viger o direito de superfície. O superficiário responde, inclusive, pelos encargos e tributos que incidirem tanto sobre a obra superficiária como sobre o solo, enquanto durar o direito de superfície107. Vale ressaltar que, na hipótese de alienação do solo, seja através de venda ou dação em pagamento do solo, o dominus solis deve dar preferência ao superficiário em igualdade de condições com terceiros108. Este é, via de regra, o quadro de direitos e deveres decorrentes do direito de superfície plasticamente entendido. 3.9 FORMAS DE EXTINÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE E SEUS EFEITOS Considerando que o direito de superfície pode ser temporário, ele extinguir-se-á, nesta hipótese, pelo advento do termo, que põe fim à suspensão da eficácia do princípio superficies solo cedit, operando a reversão da coisa superficiária para o dominus soli, ou – simplesmente – cessando a eficácia do direito real limitado de construir ou plantar sobre coisa alheia. Para Ricardo Pereira Lira109 a coisa superficiária não reverteria para o patrimônio do dono do solo, mas nele ingressa ex novo, pois lá nunca estivera antes. Há que se acrescentar a esta crítica 107 BAPTISTA, Bruno de Albuquerque. Direito Real de Superfície. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2360>. Acesso em: 03 jun. 2008. 108 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 03 jun. 2008. 109 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 82. 42 nominativa, que a expressão é fidedigna quando se trata de direito de superfície gerado por cisão e o dono do solo já foi o dono da coisa superficiária. Neste caso, há verdadeira reversão. Alinha-se o abandono da coisa superficiária, à qual se aplicam os princípios de propriedade imobiliária, e o não-uso/não-exercício dentro do prazo decadencial assinalado pelas partes, do direito real de construir ou plantar sobre coisa alheia como causas de extinção do direito de superfície. Mas, neste ponto, há que se questionar se a causa extintiva não residiria no desrespeito ao princípio da função social da propriedade, que veda o desperdício de utilidade da coisa. Assim, o não-uso, após a Constituição de 1988, não é mais uma das faculdades do dono. Pelo contrário, tem como efeito retirar o conteúdo do direito de propriedade, que só merece tutela do ordenamento jurídico, desde que exercida conforme sua função social. A destruição da coisa é causa extintiva do direito de superfície a ser cuidadosamente analisada. Se tiver sido pactuada, em tese, não ensejaria nenhuma dúvida. Contudo, se o contrato for omisso, como resolver a questão? Devemos, para ambas as hipóteses, tomar o princípio constitucional da função social da propriedade como parâmetro para a solução do caso, pois o critério da absoluta senhoria sobre a coisa não coaduna com os valores democráticos preconizados na Constituição de 1988. Desse modo, se a destruição da coisa implicar em desperdício de sua utilidade, ela será cláusula nula, caso prevista contratualmente, ou, na omissão do contrato, conduta juridicamente reprovável. Marcos Alcino de Azevedo Torres, sobre a possibilidade de previsão contratual de levantamento da coisa superficiária, pelo superficiário, para entregar o solo no estado que recebera, entende que a previsão deve ser clara, pois não é econômico-social destruir-se uma riqueza.110 Como causa extintiva do direito de superfície, pode, ainda, ser enumerada a renúncia da propriedade separada superficiária ou do direito de construir ou plantar, quando o direito de superfície consistir em legado (deixado em declaração de última vontade). Na mesma linha, teríamos o distrato, quando a superfície tiver sido constituída por contrato. Uma vez que no negócio jurídico bilateral ou na declaração unilateral de vontade mortis causa instituidores do direito de superfície pode ser previsto o dever de pagamento de solarium pelo superficiário, o descumprimento dessa obrigação dá ensejo ao comisso, podendo impor a extinção da superfície. 110 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 03 jun. 2008. 43 Há que se perfilar outras causas extintivas da superfície, como a expropriação, hipótese em que a extinção opera não só em face da propriedade do solo, mas também do direito de superfície111 e a confusão dos titulares112 (que pode ocorrer em três hipóteses distintas, quais sejam: a aquisição da superfície pelo senhor do solo, aquisição do solo pelo superficiário e a aquisição do solo e da superfície por terceira pessoa). Quanto à confusão, Marcos Alcino Azevedo Torres113 alerta que pode haver declaração formal do adquirente no sentido da manutenção do direito de superfície em estado de quiescência para possibilidade de posterior restabelecimento da relação superficiária. Ainda, a usucapião, desde que se a admita como forma de constituição do direito de superfície. 3.9.1 A questão dos efeitos da extinção do Direito de Superfície no tocante ao Ônus Reais que gravam o solo e a propriedade superficiária separada. A hipotecabilidade do direito de superfície é uma das grandes vantagens econômicas que o instituto apresenta. Mas, é da natureza do direito de superfície sua transitoriedade (a despeito de também poder ser estabelecido por prazo indeterminado), porque, sob certo ponto de vista, a perpetuidade implicaria na transferência da propriedade. Uma vez que os direitos reais são hipotecáveis, inclusive o direito real de construir ou plantar sobre solo alheio, em termos de teoria geral114, pode-se registrar que os direitos reais incidentes sobre o direito de superfície extinguem-se com o advento do termo, subrogando-se a garantia na indenização – se houver. Se a extinção do direito de superfície for por outra causa, continua a gravar o solo ou a propriedade superficiária, desde que especificamente constituída sobre cada uma dessas propriedades. 111 DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em 03 jun. 2008. 112 DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de Superfície. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2543>. Acesso em 03 jun. 2008. 113 TORRES, Marcos Alcino Azevedo. Direito de Superfície. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/diversos/malcino.html>. Acesso em: 03 jun. 2008. 114 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 82 e O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. p. 251-266. 44 3.9.2 A polêmica questão da expropriação de glebas utilizadas para o plantio ilegal de plantas psicotrópicas, pelo proprietário superficiário, sendo o proprietário do solo terceiro de boa-fé. O artigo 243, da Constituição brasileira, tem a seguinte redação: As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Na hipótese sob comento, há dois proprietários: um dominus soli e outro proprietário superficiário, sendo certo que o proprietário do solo é terceiro de boa-fé, enquanto o proprietário superficiário explora o terreno dado em superfície para o plantio ilegal de plantas psicotrópicas. Como solucionar a questão, se a expropriação da gleba face o dono implicaria em ofensa ao postulado de Justiça que determina a proteção do terceiro de boa-fé. Se se admite, a fim de proteger o dominus soli (terceiro de boa-fé), a possibilidade da expropriação apenas da propriedade superficiária prevista contratualmente como temporária, qual a conseqüência do advento do termo? A propriedade sofreria reversão para o patrimônio do proprietário do solo independente de anterior procedimento de desafetação? O artigo 5º, XXII e XXIII, da Constituição protege o proprietário que dê função social ao seu domínio. Enquanto isso, o artigo 243, daquele mesmo diploma, vincula o destino da terra expropriada, qual seja: o assentamento de colonos para cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. Se a Constituição deve ser interpretada sistematica e axiologicamente, de molde a não admitir contradições, entendemos que o interesse público tem primazia, mas o dono do solo de boa-fé deve ser protegido. A propriedade superficiária utilizada ilicitamente sofrerá expropriação, sem nenhuma indenização para o dono da plantação. A gleba será afetada ao assentamento de colonos que cultivarão produtos alimentícios e medicamentosos. Assim, não poderá a propriedade superficiária sofrer reversão após o advento do termo. Mas, caberá ao dono do solo pleitear indenização, no bojo do processo expropriatório, já que nos moldes do artigo 17, da Lei 8.257, de 26 de novembro de 1991 (que regulamenta o artigo 243, da CRFB), só não cabem embargos de terceiro fundados em dívida hipotecária, pignoratícias ou anticrética. 45 4 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO DIREITO DE SUPERFÍCIE NO No período colonial, admitia-se no ordenamento jurídico brasileiro o direito de superfície pela aplicação das Ordenações do Reino. O instituto deixou de ser adotado somente com o advento da Lei n.° 1.237, de 24 de setembro de 1864, que, ao enumerar os direitos reais, deixou de mencioná-lo enquanto modalidade de direito real115. Cabe destacar que, desde aqueles tempos, vigia no direito brasileiro a teoria numerus clausus em matéria de enunciação legal dos direitos reais, em outras palavras, o direito real só poderia existir ministerio legis, não sendo possível convenção das partes para a configuração de outras espécies. Ora, se o direito de superfície não mais constava no rol dos direitos reais é porque não podia mais ser caracterizado como tal. Daí concluir-se pela abolição do instituto, uma vez que é da sua essência a qualidade de direito real. O Código Civil de 1916, por sua vez, não enumerou o de superfície como direito real, sendo então inadmissível a utilização do instituto. Maria Sylvia Zanella Di Pietro116 faz alusão às tentativas de reinclusão do direito de superfície no direito brasileiro: a primeira, sem sucesso, foi o Anteprojeto de Código Civil elaborado por Orlando Gomes, que inseria o instituto no rol dos direitos reais. Esse movimento de reforma do Código Civil foi abandonado. O segundo movimento de reforma do Código Civil, conforme noticia Ricardo Pereira Lira117, foi iniciado por ato ministerial de 1969, que instituiu Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil. No anteprojeto inicial do relator Erbert Vianna Chamoun, não era previsto o direito de superfície. Mas, na versão da Comissão, o direito de superfície estava previsto no anteprojeto inicial, que, sob a supervisão de Miguel Reale, foi transformado em Projeto de Código Civil, sob n.° 634/1975, na ocasião em que foi enviado ao Congresso, junto com a Mensagem n.o 160, de 10 de junho de 1975 (sua Exposição de Motivos). No item 27, letra “h”, do Livro III (Do Direito das Coisas), da Exposição de Motivos do Projeto 634/75, o Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil, o jurista Miguel Reale, consigna que: 115 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 87. 116 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 179-180 117 LIRA, Ricardo Pereira. O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. p. 260-261. 46 h) Tendo sido firmado o princípio da enumeração taxativa dos direitos reais foi mister atender à chamada “concessão de uso”, tal como já se acha em vigor, ‘ex vi’ do Decreto-lei n.o 271, de 28 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre loteamento urbano. Trata-se de inovação recente de legislação pátria, mas com larga e benéfica aplicação. Como a lei estende a “concessão de uso” às relações entre particulares, não pode o Projeto deixar de contemplar a espécie. Consoante justa ponderação de JOSÉ CARLOS DE MOREIRA ALVES, a ‘migração’ desse modelo jurídico, que passou da esfera do Direito Administrativo para a do Direito Privado, veio restabelecer, sob novo enfoque, o antigo instituto da superficie. Ricardo Pereira Lira118 sustentou, na defesa da tese para titularidade da cadeira de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ, em junho de 1979, a conveniência da repristinação do direito de superfície, no direito positivo brasileiro, através de lei extravagante, sem aguardar a conclusão da revisão do Código Civil. Todavia, antes mesmo de o novo Código Civil ser sancionado, o Estatuto da Cidade (Lei Federal n.o 10.257, de 10 de julho de 2001), antecipando-se, incluiu o instituto entre os instrumentos de realização da política urbana, regulamentando-os nos artigos 21 a 24. Posteriormente, veio a lume nova regulamentação da categoria jurídica sob análise, no Novo Código Civil (Lei Federal n.o 10.406, de 10 de janeiro de 2002), nos artigos 1.369 a 1.377. Letícia Marques Osório119 noticia que, no âmbito do direito urbanístico, “o instituto constou apenas na primeira Lei de Terras de 1850, tendo constado no projeto de Lei do Solo n.o 775/83 e, atualmente, no Estatuto da Cidade”. Sobre o Projeto de Lei do Solo n.o 775/83, de iniciativa do Poder Executivo, Ricardo Pereira Lira120 aponta que ele foi a primeira tentativa para o estabelecimento de princípios federais regulando o desenvolvimento urbano e prevendo instrumentos vários, inclusive jurídicos, que procuravam organizar de maneira justa e regular os assentamentos urbanos. Isso em época em que a Constituição de 69 não previa expressamente competência da União para estabelecer diretrizes federais sobre o desenvolvimento urbano. Alguns autores121 – equivocadamente – sustentam que o direito de superfície já teria sido reintroduzido em nosso ordenamento jurídico sob a forma de concessão de direito real de uso, instituída pelo Decreto-lei 271, de 28 de fevereiro de 1967, contudo, tratam-se de categorias autônomas. 118 LIRA, Ricardo Pereira. O Moderno Direito de Superfície. In: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 100. 119 OSORIO, Letícia Marques. Direito de Superfície .In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 176. 120 LIRA, Ricardo Pereira. O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. p. 262. 121 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 180 47 Outros autores122 têm criticado a adoção do novo instituto, acusando-o de obsoleto e de sementeira de litígios. Porém, é inegável a importância jurídica e social do direito de superfície, cuja finalidade visa a densificar o princípio da função social da propriedade. As palavras de Ricardo Pereira Lira, ditas 1979, ao concluir sua tese O Moderno Direito de Superfície, nunca foram tão atuais: [...] o direito de superfície não é uma categoria morta, condenável ou supérflua, que se estaria pretendendo renascida, para construir sementeira de litígios; o direito de superfície é categoria jurídica relevante do ponto de vista jurídico e social, a ser reentronizada em nosso direito positivo, como indispensável instrumento a ser adotado na implantação de uma política racional de utilização do solo urbano e de uma reforma agrária efetivamente estrutural. Se foram proféticas essas concludentes palavras, apenas a aplicabilidade, sem temor do direito de superfície, seja como instrumento de política urbana, seja como categoria do direito civil, de finalidade não-urbanística, poderá demonstrar. 122 LEITE, Carlos Kennedy da Costa. Direito real de superfície: a ressurreição. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3616>. Acesso em 03 nov.. 2009. 48 5 CONFLITOS DE LEIS NO TEMPO: O ESTATUTO DA CIDADE E NOVO CÓDIGO CIVIL COEXISTEM? No Brasil, o direito de superfície ressurge tanto no âmbito do direito civil como do direito urbanístico, deixando de ser considerado como simples figura do direito romano. Dentre seus principais objetivos, ensina Letícia Marques Osório: [...] está o de democratizar o acesso à terra urbana e o de dinamizar o mercado imobiliário, permitindo a separação do direito de construir do direito de propriedade, barateando o processo de 123 construção civil e fomentando a produção habitacional. O conflito temporal se dá, especificamente, entre os arts. 21 a 24, da Lei Federal n.o. 10.257, de 10 de julho de 2001 e os arts. 1.369 a 1.377, da Lei Federal n.o. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, uma vez que ambos os diplomas legais regularam de forma completa o instituto do direito de superfície. Na Lei de Introdução ao Código Civil, a regra defluente do art. 2º, § 1º124, prega a revogação da lei anterior quando lei posterior regular integralmente a mesma matéria de que tratava a lei anterior. Daí, a razão de alguns autores sustentarem a revogação da disciplina do direito de superfície no Estatuto da Cidade, pelo Novo Código Civil. Carlos Kennedy da Costa Leite, comentando a situação antes do Novo Código Civil entrar em vigor, tece severas críticas contra a regulamentação no Estatuto da Cidade. Assevera que: [...] sendo o Direito de Superfície um instituto de feição eminentemente civil, só deveria ele ser instituído por legislação de natureza civil, como o fez o Código Civil prestes a entrar em vigor. É um atentado ao senso jurídico de qualquer pessoa que tenha um mínimo envolvimento com o direito, vislumbrar o ‘Estatuto da Cidade’, lei de cunho estritamente administrativo, instituindo e 125 disciplinando – porque o texto legal realmente institui e disciplina – o Direito Real de Superfície. Em sentido diverso alinham-se os que entendem que o Estatuto da Cidade não é uma legislação de cunho estritamente administrativo. Trata-se de lei que incorporou o direito constitucional à moradia126, porque, ao regulamentar os arts. 182 e 183 da CRFB, densificou 123 OSORIO, Letícia Marques. Direito de Superfície. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 176. 124 “Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. 125 LEITE, Carlos Kennedy da Costa. Direito Real de Superfície: a ressureição. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3616>. Acesso em: 03 jul.2008. 126 WOLFF, Simone. Estatuto da Cidade: A Construção da Sustentabilidade. Revista Jurídica, n. 45, v. 4, fev. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_45>. Acesso em: 13 dez. 2008. 49 o princípio da função social da propriedade, não merecendo ter seu espectro de abrangência tão limitado. O Estatuto da Cidade, instrumento de excelência, assinala Simone Wolff127, tem a inédita proposta de agregar valores impregnados de justiça, democracia e solidariedade, inserindose [...] em um contexto de barreira à imobilidade e à inércia, representando um marco fundamental de conscientização e mudanças de comportamento a médio e a longo prazos à disposição de todo cidadão brasileiro. Aliando a busca permanente do desenvolvimento urbano em bases sustentáveis ao esforço contínuo de instauração da justiça social e ambiental nas cidades, o Estatuto opõe-se à destruição do ambiente e ao aviltamento do homem, o que representa um imenso desafio para o País e suas instituições. No mesmo diapasão é a lição de Ricardo Pereira Lira128, para quem a entrada em vigor do Novo Código Civil em janeiro de 2003 não revogou as disposições relativas ao direito de superfície editadas com o Estatuto da Cidade. Apesar de ser o mesmo instituto, ele tem vocações diversas em cada um dos diplomas legais. O Estatuto da Cidade: [...] está voltado para as necessidades do desenvolvimento urbano, editado como categoria necessária à organização regular e equânime dos assentamentos urbanos, como fator de institucionalização eventual da função social da cidade. No novo Código Civil, o direito de superfície será um instrumento destinado a atender interesses e necessidades privados Ricardo Pereira Lira129 exemplifica a coexistência de ambas as regulamentações: Se uma municipalidade, por exemplo, desqualifica o espaço público correspondente a uma praça, convolando-o em bem patrimonial, e concede a terceiro, a título de superfície, o subsolo, para instituição de um estacionamento, concedendo o solo a outrem, também a título de superfície, para construção e exploração de um estádio poliesportivo, estará utilizando o direito de superfície urbanístico, previsto no Estatuto da Cidade. Se um particular, dono de um imóvel residencial, pretende estabelecer no lote contíguo, de propriedade de outrem, um campo de futebol, nele construindo uma pequena sede desportiva, com vestiário, sauna, etc..., para tanto contratando com seu vizinho o direito de construir, a título de superfície, sobre o lote dele, estará constituindo um direito de superfície que será regulado pelo novo Código Civil, pois o negócio jurídico em tela estará penetrado inteiramente pelo interesse particular, sem qualquer viés urbanístico. Por fim, elegemos como derradeiro argumento o fato do art. 1.377130, do Novo Código Civil, referir-se a lei especial. O dispositivo sob comento trata da constituição do direito de 127 WOLFF, Simone. Estatuto da Cidade: A Construção da Sustentabilidade. Revista Jurídica, n. 45, v. 4, fev. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_45>. Acesso em: 13 dez. 2008. 128 LIRA, Ricardo Pereira. O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. p. 263-264. 129 LIRA, Ricardo Pereira. O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. p. 264. 130 NCCB, “Art. 1.377. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversamente disciplinado em lei especial”. 50 superfície por pessoa de direito público interno. Enuncia que a hipótese será regida pelo diploma privatístico, apenas se não houver disciplina diversa em outro estatuto. Ora, se o Novo Código Civil, lei posterior, remete a disciplina do direito de superfície para outro diploma que contenha regras sobre a mesma matéria; e se esse outro diploma só pode ser o Estatuto da Cidade, vez que foi através dele que o instituto foi reintroduzido no ordenamento jurídico pátrio; isso já constitui fundamento razoável para sustentar-se que o direito de superfície civil coexiste com o direito de superfície urbanístico. A utilização de um ou de outro diploma, portanto, será definida pela finalidade almejada com o direito de superfície. Não é outra a conclusão a que chegaram os juristas reunidos na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ. O enunciado aprovado sob o n.. º 93 refere-se ao art. 1.369 do NCCB e professa o seguinte: 93 – Art. 1.369: As normas previstas no Código Civil sobre direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes no Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) por ser instrumento de política de desenvolvimento urbano. 51 6 ANÁLISE COMPARADA DO INSTITUTO NO ESTATUTO DA CIDADE E NO NOVO CÓDIGO CIVIL Uma vez estabelecida à coexistência de regulamentação do direito de superfície no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil Brasileiro, visto que têm objetos distintos, passemos à análise comparada do direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro. Cuidando para que o estudo ganhasse em acurácia, elaboramos dois quadros que auxiliarão nossas observações. O primeiro quadro perfila as normas do Estatuto da Cidade e suas correspondentes previsões no Novo Código Civil. O segundo quadro expressa metodologia de análise dos aspectos relevantes e dos divergentes no Estatuto da Cidade e no NCCB. ANÁLISE COMPARATIVA DA LEGISLAÇÃO SOBRE DIREITO DE SUPERFÍCIE ESTATUTO DA CIDADE Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis. NCCB Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Art. 21. (...) § 1o O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística. Art. 1.369. (...) Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão. Art. 21. (...) § 2o A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa. Art. 1.370. A concessão da superfície será gratuita ou onerosa; se onerosa, estipularão as partes se o pagamento será feito de uma só vez, ou parceladamente. Art. 21. (...) § 3o O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo. Art. 21. (...) § 4o O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato respectivo. Art. 21. (...) § 5o Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros. Art. 22. Em caso de alienação do terreno, ou do direito de superfície, o superficiário e o proprietário, respectivamente, terão direito de preferência, em igualdade de condições à oferta de terceiros. Art. 23. Extingue-se o direito de superfície: I – pelo advento do termo; II – pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário. Art. 24. Extinto o direito de superfície, o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário no respectivo contrato. Art. 24. (...) Art. 1.371. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel. Art. 1.372. O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do superficiário, aos seus herdeiros. Parágrafo único. Não poderá ser estipulado pelo concedente, a nenhum título, qualquer pagamento pela transferência. Art. 1.373. Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições. Sem correspondente Art. 1.375. Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário. Art. 1.374. Antes do termo final, resolver-se-á a 52 § 1o Antes do termo final do contrato, extinguir-se-á o direito de superfície se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para a qual for concedida. Art. 24. (...) § 2o A extinção do direito de superfície será averbada no cartório de registro de imóveis. Sem correspondente Sem correspondente\ PONTUANDO AS DIFERENÇAS... Natureza Jurídica Sem correspondente Art. 1.376. No caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um. Art. 1.377. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversamente disciplinado em lei especial. ESTATUTO DA CIDADE NCCB Direito real (NCCB, 1.225, II) Aplicação Formas de constituição Prazo Objeto Concessão Tributos Modos de transmissão Na transferência Formas de extinção Efeitos da extinção Hipoteca concessão se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida. Finalidade urbanística = Finalidade lícita nãoinstrumento de política urbanística. o urbana (E.C.art. 4 .,V,“l”) Contrato solene + RGI; não veda disposição de última vontade; não veda usucapião, nem expropriação pelo poder público Por tempo indeterminado Por tempo determinado ou determinado Solo; polêmica do Solo, subsolo e espaço espaço aéreo; não aéreo; não havendo direito havendo superfície por de superfície por cisão; cisão; polêmica da polêmica da sobrelevação. sobrelevação. Gratuita ou onerosa Há expressa previsão de Não há previsão que as partes podem expressa, o que não pactuar sobre o pagamento inviabiliza eventual de tributos sobre o imóvel. acerto. Inter vivos ou causa mortis Pode ser estipulado um Não pode ser estipulado quantum, porque a lei é nenhum valor em razão omissa. da transferência. Advento do termo; pelo descumprimento das Prevê expressamente o obrigações assumidas no advento do termo e o contrato; pelo desvio de desvio de finalidade. finalidade. Reversão, em regra, independente de indenização O Estatuto da Cidade não O NCCB não é se refere a ela, que é – expresso, mas se a contudo – da essência do admite. instituto. Proprietário urbano x proprietário Quanto ao elemento subjetivo do direito de superfície, há questão que merece enfrentamento. Se o art. 21, do Estatuto da Cidade refere-se a proprietário urbano, o art. 1.369, do NCCB não o faz, limitando-se a enunciar que o proprietário do solo pode constituir o direito de superfície. 53 A interpretação que a doutrina131 faz é no sentido de que o direito de superfície urbanístico não abrange os imóveis rurais, ao passo que o direito de superfície do Código Civil pode ser indistintamente utilizado pelo proprietário rural e urbano. Em que pese a autoridade da argumentação, está com razão Simone Wolff132 que não afasta a incidência do Estatuto da Cidade do campo. Para ela, deve ser, a lei que incorporou o direito constitucional à moradia, efetivamente implementada, no campo ou na cidade. Sublinha que o ambiente rural não foi desprezado pelo instrumento normativo urbanístico que é a Lei 10257/01. Não se pode confundir área urbana com cidade. Há cidades nas zonas rurais, assim como são encontradas economias tipicamente rurais no perímetro urbano. O dinamismo do contexto urbano e as imbricadas relações que alberga afastam a idéia de que a cidade seja apenas a soma de propriedades individuais. Todos têm direito à cidade e não só aqueles que são proprietários. Simone Wolff fala em direito a cidades sustentáveis, cujo comando remete à eqüidade intergeracional, garantido-se a terra urbana, a moradia, o saneamento ambiental, a infraestrutura urbana, o transporte e serviços públicos, bem como o trabalho e o lazer para todos os que habitam – e deverão habitar – as cidades brasileiras. 133 Sustenta-se, portanto, a possibilidade de incidência do Estatuto da Cidade tanto nas cidades localizadas no campo, como naquelas que estão no perímetro urbano. Não se pode limitar a incidência do direito de superfície urbanístico apenas à zona urbana, porque a lei deve ser sistematicamente interpretada e os arts. 1º. e 2º., do Estatuto da Cidade, que desenham o conteúdo do princípio da função social da propriedade urbana134, têm a missão densificadora do direito social à moradia, que não pode ser excluído dos habitantes de zonas rurais. O fato de a lei referir-se a proprietário urbano deve ser entendido conforme o fim urbanístico do direito de superfície disciplinado no Estatuto da Cidade, como instrumento de política urbana. 131 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 180. 132 WOLFF, Simone. Estatuto da Cidade: A Construção da Sustentabilidade. Revista Jurídica, n. 45, v. 4, fev. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_45>. Acesso em: 13 dez. 2008 133 WOLFF, Simone. Estatuto da Cidade: A Construção da Sustentabilidade. Revista Jurídica, n. 45, v. 4, fev. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_45>. Acesso em: 13 dez. 2008 134 MATTOS, Liana Portilho. A Efetividade da Função Social da Propriedade Urbana à Luz do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias Editora, 2003. 54 Aplicabilidade: delimitação segundo o critério da finalidade Conforme desenvolvido no item 5 desta monografia, coexistem duas regulamentações diferentes para o direito de superfície, devendo uma ou outra ser aplicada conforme a finalidade da constituição daquele direito real. Se o direito de superfície for instituído como instrumento de política urbana, incide o Estatuto da Cidade. Se for constituído para fim não-urbanístico, aplica-se o Novo Código Civil. Interessante questão é trabalhada na doutrina, quando se enfoca o direito de superfície urbanístico como instrumento de política urbana (art. 4º, V, “l”), que visa a garantir o direito constitucional à moradia digna, funcionalizador da propriedade urbana. Marise Pessôa Cavalcanti135 preconiza a possível constituição do direito de superfície compulsoriamente, mediante oponibilidade do direito de superfície a particular, a fim de garantir o direito à moradia. A autora sustenta136 a “possibilidade de se estabelecer a superfície de forma compulsória, como ‘obrigação de contratar’, decorrente da não-utilização ou subutilização do solo urbano ou rural, que deixar de cumprir a função social intrínseca ao direito de propriedade.” Seria uma espécie de ‘superfície-sanção’, vez que determinaria o uso a ser dado ao solo, independente de indenização ao dominus soli137. Defende que a superfície compulsória seria instrumento mais eficaz que a edificação compulsória. Mas para sua aplicabilidade, seria necessária Emenda Constitucional. Letícia Marques Osório138, apesar de reconhecer a autonomia do direito de superfície, prega que um de seus empregos “mais propício ao interesse urbanístico consiste na possibilidade de utilização de terrenos públicos por particulares”. Para fundamentar essa outra forma de ‘superfície compulsória’, oponível ao poder público, busca inspiração na concessão de direito real de uso tratada no Decreto-Lei n.o 271/67 e depois, no Estatuto da Cidade vetado e finalmente na Medida Provisória 2.220/02, como concessão de direito real de uso para fins de moradia. A autora assevera que: 135 CAVALCANTI, Marise Pessôa. Superfície Compulsória: instrumento de efetivação da função social da propriedade. Biblioteca de Teses. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 72-81. 136 CAVALCANTI, Marise Pessôa. Superfície Compulsória: instrumento de efetivação da função social da propriedade. Biblioteca de Teses. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 77. 137 CAVALCANTI, Marise Pessôa. Superfície Compulsória: instrumento de efetivação da função social da propriedade. Biblioteca de Teses. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 79-80. 138 OSORIO, Letícia Marques. Direito de Superfície.In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 184-186. 55 [...] a nova legislação federal prevê um direito subjetivo público ao direito de superfície de áreas de propriedade pública. É direito subjetivo público porque tutelada constitucionalmente, sendo passível de obtenção inclusive contra a vontade do Poder Público proprietário, desde que o beneficiário atenda aos requisitos de tamanho de terreno, tempo e finalidade de ocupação previstos em lei. O exercício do direito de superfície em área de domínio público é previsto no novo Código Civil, artigo 139 1.376. Assim, elencam-se dois tipos de ‘superfície compulsória’: (a) oponível pelo Poder Público ao particular, como superfície-sanção, independente de indenização, desde que efetivada por Emenda à Constituição; (b) oponível pelo particular ao Poder Público, utilizando por empréstimo os requisitos da concessão de uso especial para fins de moradia, regrada na Medida Provisória 2.220/02, vez que se trata de direito subjetivo público ao direito de superfície de áreas de propriedade pública. Objeto do Direito de Superfície A superfície urbanística abrange o direito de utilizar o solo, subsolo e espaço aéreo correspondente, nos moldes do art. 21, § 1º, do Estatuto da Cidade. A superfície civil (art. 1.369, parágrafo único, NCCB) só abrange o solo, podendo ser utilizado o subsolo, no caso em que a obra nele seja inerente ao objeto da concessão, como por exemplo, uma piscina ou garagem subterrânea de casa construídas em solo dado em superfície para particular construir sua casa de veraneio. Na superfície urbanística, a despeito da omissão legislativa, a utilização do solo, subsolo e espaço aéreo, ‘pode abranger qualquer construção, obra ou plantação’. Como o direito de superfície no Estatuto da Cidade é previsto apenas como instrumento de política urbana, alerta Maria Sylvia Zanella Di Pietro140, “fica evidente que sua utilização se dará mais especificamente para construção. Nada veda, no entanto, o uso para plantações, ainda que estas não sejam muito usuais na área urbana”. O NCCB, art. 1.369 refere-se expressamente ao “direito de construir ou plantar em seu terreno”, de modo que não pairam dúvidas sobre a incidência do direito de superfície. 139 OSORIO, Letícia Marques. Direito de Superfície. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 185 (original grifado). 140 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 171-190. 56 Em nenhum dos dois diplomas está prevista a possibilidade do direito de superfície incidir sobre construções já existentes na data da concessão, configurando a chamada superfície por cisão. A despeito de a doutrina preconizar que sua possibilidade há de vir expressa em lei, entendemos que o direito de sobrelevação não pode mais tardar para ser admitido no nosso ordenamento jurídico. Assim, há que ser interpretada extensivamente a expressão ‘terreno’ constante nos artigos 21, caput, do Estatuto da Cidade e 1.369, caput, do NCCB, para tanto o terreno construído como o terreno sem construções, de molde a admitir-se a superfície por sobrelevação. Eficácia Temporal No Estatuto da Cidade (art. 21, caput), o direito de superfície pode ser previsto por prazo determinado ou por prazo indeterminado. No Novo Código Civil (art. 1.369, caput), o direito de superfície só admite previsão por tempo determinado. A lei, contudo, não estabeleceu teto máximo. Assim, podem as partes constituir o direito de superfície por qualquer tempo. Ainda sobre o tempo, uma observação importante há de ser feita. Questiona-se se seria possível a instituição de superfície perpétua. Ricardo Pereira Lira já enfrentou a problemática ao proferir parecer nos autos de processo administrativo municipal n.o. 02/335789/00. Para o professor, [...] a perpetuidade não deixa de ser uma assinação de prazo determinado, certus an incertus quando. Como dicionariza Aurélio determinado é o que é fixo, definido, estabelecido. E para Caldas Aulete determinado é o que é demarcado, definido, decidido, certo, estabelecido. Ora, nada mais 141 certo, definido, demarcado, decidido e estabelecido que a perpetuidade. Portanto, tanto o direito de superfície civil, como o urbanístico poderão ser instituídos perpetuamente, porque admitem a forma do prazo determinado. Pontos de coincidência Os perfis do direito de superfície urbanístico e do direito de superfície civil coincidem em alguns pontos. Ambos têm a natureza jurídica de direito real (nos moldes do art. 1.225, II, do 141 LIRA, Ricardo Pereira. Parecer. Disponível para xerox na pasta do Professor no Mestrado em Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. p. 15. 57 NCCB), submetendo-se aos mesmos modos de constituição, quais sejam: contrato solene inscrito no Registro Geral de Imóveis, por declaração de última vontade, por expropriação pelo poder público. Na doutrina, nos moldes da teoria geral do direito de superfície, admite-se a constituição por usucapião. Maria Sylvia Zanella Di Pietro142, contudo, só admite a constituição do direito de superfície através de contrato celebrado por escritura pública registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Para a autora, “está afastada, implicitamente, a aquisição por testamento ou por usucapião”. A omissão legislativa – entretanto – não pode ser compreendida como silêncio eloqüente. Se o direito de superfície pode ser transmissível a terceiros por sucessão hereditária (Estatuto da Cidade, art. 21, § 5º e NCCB, art. 1372, caput), nada impede que possa ser instituído por testamento. O direito de superfície pode, ainda, ser transferido inter vivos, hipótese em que é assegurado ao dominus soli direito de preferência em igualdade de condições a oferta de terceiros (Estatuto da Cidade, art. 22 e NCCB, art. 1.373). Se ele for o adquirente, operar-se-á a extinção da superfície por confusão entre os titulares do direito. Ricardo Pereira Lira critica os textos do Estatuto da Cidade e do NCCB que não explicitam as regras para o exercício do direito de preferência, seja pelo dono do solo, no caso de alienação da superfície, seja pelo superficiário, no caso de alienação do solo, nem explicitam as conseqüências da não afronta do titular para o eventual exercício da preleção: perdas e danos ou nulidade do negócio jurídico praticado sem a abertura da oportunidade da prática da preferência.143 Em ambos os casos, a extinção do direito de superfície deverá ser levada a registro, a fim de operar efeitos erga omnes, uma vez que o efeito da extinção do direito de superfície operará a reversão da coisa superficiária para o dominus soli, em ambas as espécies (Estatuto da Cidade, art. 24 e NCCB, art. 1.375). 142 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 188. 143 LIRA, Ricardo Pereira. O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. p. 264. 58 Transferência do Direito – incidência de regras diferentes no que tange à possibilidade de pagamento pela transmissibilidade Não há previsão no Estatuto da Cidade de pagamento de qualquer importância ao proprietário do solo na hipótese de transmissão do direito a terceiro. Já o NCCB, art. 1.372, parágrafo único, eiva de nulidade a cláusula contratual que previr o pagamento de valor ao concedente pela transferência do direito de superfície a terceiro. Considerando que a omissão do Estatuto da Cidade pode ser integrada pela autonomia de vontade das partes na celebração do negócio jurídico, nada obsta que estabeleçam um quantum a ser pago na hipótese de transmissibilidade do direito. Teríamos regras diferentes para cada uma das espécies de direito de superfície. Maria Sylvia Zanella Di Pietro144, contudo, sustenta que o tratamento diverso sofreu uniformização com a entrada em vigor do NCCB. A vedação nele constante alcançou o direito de superfície urbanístico. Direito de superfície – razões de sua hipotecabilidade O Estatuto da Cidade nem o NCCB deixam de explicitar [...] a existência de uma propriedade superficiária, a sua hipotecabilidade e a possibilidade de constituição de outros direitos reais de gozo relativamente à área objeto da concessão, e o destino 145 desses direitos quando da extinção da superfície. Contudo, a omissão legislativa não constitui óbice à constituição de hipoteca, uma vez que o operador do direito deve socorrer-se da teoria geral146. Quanto à hipotecabilidade da propriedade separada superficiária, não há dúvidas que é aplicável o art. 1.473, inciso I, do NCCB, que trata dos bens imóveis. Sobre a hipotecabilidade do direito real de construir ou plantar sobre coisa alheia, o fundamento legal – enquanto não vier a necessária mudança legislativa – será o art. 1.473, inciso III, do NCCB, que trata do domínio útil. Maria Sylvia Zanella Di Pietro é categória ao pontuar que: 144 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 188. 145 LIRA, Ricardo Pereira. O Direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense, Separata, v. 364. p. 264. 146 OSORIO, Letícia Marques. Direito de Superfície. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 180. 59 [...] a grande vantagem de se inserir o direito de superfície como propriedade autônoma está na possibilidade de a hipoteca incidir sobre o mesmo, em face do art. 1473 do Código Civil, que, ao indicar os bens hipotecáveis, inclui, no inciso IV, o domínio útil; nesse conceito pode ser inserido o direito que o superficiário exerce sobre o imóvel alheio. Sem a possibilidade de hipoteca o direito de uso do terreno poderia ficar dificultado, pois dificilmente alguma instituição financeira se disporia a financiar a realização de obras, construções ou plantações sem uma garantia hipotecária. Aliás, essa 147 tem sido uma das dificuldades da utilização do instituto da concessão de direito real de uso. Sobre o destino dos direitos reais incidentes sobre o direito de superfície, extinguir-se-ão junto com a extinção do direito. Letícia Marques Osório148 sublinha que “no caso de haver a instituição de hipoteca sobre a propriedade superficiária, sua duração não será maior do que o tempo estipulado para a própria concessão da superfície. Responsabilidade pelo pagamento de tributos Tanto o Estatuto da Cidade, art. 21, § 3º, como o NCCB, art. 1.371 enunciam que o sujeito passivo da relação tributária será o superficiário quando os tributos incidirem sobre a propriedade superficiária. Mas, apenas o Estatuto da Cidade professa que o superficiário, na omissão do instrumento do negócio jurídico, também será o responsável tributário pelos encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície proporcionalmente à sua parcela de ocupação, sendo silente o NCCB. Como se trata de negócio jurídico bilateral, a vontade das partes pode sanar a omissão legislativa. Não é outra a conclusão a que chegaram os juristas reunidos na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ. O enunciado aprovado sob o n.o 94 refere-se ao art. 1.371 do NCCB e professa o seguinte: 94 – Art. 1.371: As partes têm plena liberdade para deliberar, no contrato respectivo, sobre o rateio dos encargos e tributos que incidirão sobre a área objeto da concessão do direito de superfície. 147 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 183. 148 OSORIO, Letícia Marques. Direito de Superfície. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 182. 60 Formas de Extinção do Direito de Superfície O Estatuto da Cidade no seu artigo 23 preconiza a extinção do direito de superfície pelo advento do termo e pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário. No art. 24, § 1º, daquele diploma está prevista a extinção, antes do termo final, causada pelo superficiário que der ao imóvel destinação diversa daquela para a qual foi concedida a superfície. No NCCB, art. 1.374 estão enumeradas como causas extintivas, apenas: o advento do termo e o desvio de finalidade da superfície. 61 7 CONCLUSÃO Ao final desse estudo, espera-se ter contribuído para o avanço da compreensão sistematizada do direito de superfície no nosso ordenamento jurídico, que ressurgiu tanto na seara urbanística como no meio das relações privadas, sempre sob os auspícios do princípio da função social da propriedade, subprincípio densificador do direito constitucional à moradia digna. Pode-se afirmar que o direito de superfície, plasticamente moldado às exigências contemporâneas, dinamiza o conteúdo do direito de propriedade, revelando-se valioso instrumento para que ela cumpra sua função social. As vantagens de utilização do direito de superfície anunciadas como alternativa para combater a exclusão territorial e social, que estão na raiz da crise habitacional e de aparato urbano (armazéns, escolas, hospitais, teatros, museus, policlínicas, sanatórios, conjuntos poliesportivos, hotéis, dentre outros), já estão sofrendo o confronto com a realidade, como noticia a Prefeitura de Pontão, o primeiro município brasileiro a utilizar o direito de superfície na regularização fundiária. Dentre as razões que motivaram a eleição do direito de superfície para solver as demandas por moradia que se somavam ao longo dos anos naquele município, enumeram-se as seguintes: (a) a concessão pode ser gratuita: fato que possibilitou conceder os terrenos aos seus legítimos ocupantes, que os haviam comprado ou recebido do Município de Passo Fundo. A concessão gratuita diminuiu também os custos com tabelionato e registro de imóveis onde foram cobradas as taxas mínimas (R$29,50 no tabelionato e R$51,50 no registro de imóveis); (b) a concessão é feita por escritura pública: contemplando uma antiga reivindicação da comunidade; que passou a ser proprietária das benfeitorias; (c) incidência de ITBI nas próximas transferências. A primeira concessão foi imune a tributos; sendo que nas próximas incidirá ITBI aumentando a arrecadação do Município que, desde sua emancipação, nunca arrecadou nada de ITBI destes 165 lotes (por estarem 149 irregulares). O instigante e sedutor desafio de harmonizar a coexistência do direito de superfície urbanístico com categoria idêntica, regulada de forma parônima, pelo NCCB foi desenvolvido sob inspiração constitucional, não podendo ser, o instituto, apartado de sua verdadeira missão, qual seja: a de viabilizar a efetividade da função social da cidade (mais abrangente que a função social da propriedade), no sentido de construir uma sociedade mais justa, solidária e eqüânime. 149 PONTÃO: Primeiro Minicípio do Brasil a utilizar o Direito de Superfície na regularização fundiária. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/banco%20de%20experiencias.htm>. Acesso em: 08 nov. 2009. 62 REFERÊNCIAS AKIYAMA, Yuko. Valor do direito de superfície: orientação para construção dos contratos de concessão. 109 p. Dissertação (Mestrado)-Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2006. ANDORNO, Luis O. El derecho real de superficie forestal en el ordenamiento juridico positivo Argentino. 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