ANAIS da XV SEMANA DE HISTÓRIA: HISTORIA REGIONAL COMO RECORTE DE ENSINO E PESQUISA - 2011 ISSN - 21773157 MEMÓRIA E FERROVIA: MODO DE PERSISTENCIA DE UM ABANDONO HISTÓRICO. Leonardo Góes MIRANDA * Nainôra Maria Barbosa de FREITAS** RESUMO: A comunicação visa reunir comentários acerca do estudo da memória, de modo a explanar discussões acerca desse tema. Assim sendo, serão apresentadas a seguir as definições de memória que compreendem as vertentes individual, coletiva e histórica. Com isso estabelecemos o intuito de propor um resgate da memória ferroviária com um recorte definido para o período do seu declínio e privatização, tendo em vista que esse é um período recente e que nos torna mais próxima e mais palpável as lembranças que poderemos estudar através de discursos, objetos, escritos, imagens e arquivos. Contudo, esse trabalho não visa expor respostas para essa discussão, apenas expor a ideia de uma pesquisa que está em fase de desenvolvimento. PALAVRAS-CHAVE: Memória; Transporte ferroviário; Identidade. Por mais que um determinado modo de vida, um determinado tipo de trabalho e uma determinada época fiquem recônditos aos livros de história e seja abandonado do mundo ao qual denominamos real, onde a natureza toma parte da paisagem e novas edificações sobrepõem-se ao “velho”, existem sempre algumas formas de manter vivos esses aspectos do passado. Quando toda essa geração (e ainda seus herdeiros) deixarem de viver, só os livros guardem essa trajetória, mas enquanto vivem podemos desfrutar dessa qualidade da história recente que nos permite manter uma relação ativa com o objeto de estudo e usar do método de pesquisa da memória para resgatar algo que pensamos estar abandonado. Contudo a análise de memória não é tão simples quanto podemos sugerir. É uma ferramenta complexa e de deveras de caminhos ambíguos, mas que pode ser realizado se entendermos qual é sua real faceta e auxilio para as ciências sociais. * Graduando em História – Centro Universitário Barão de Mauá **Licenciada, Mestre e Doutora em História pela UNESP Franca, professora do Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto e Centro Universitário Barão de Mauá Ribeirão Preto –SP. Assim como outros meios de pesquisa o conceito de memória não é uno e não seria justo tentar defender que o é, visto que esse termo abrange mais do que um ou dois aspectos. Segundo consta no dicionário memória é a “faculdade pela qual o espírito conserva ideias ou imagens, ou as readquire sem grande esforço. Lembrança. Monumento Comemorativo. Nome, fama (que sobrevive à pessoa ou ao fato). Recordação, presente. Dissertação literária ou científica” (PRIBERIAN, 2011). A palavra “memória” tem origem no idioma grego com "mnemis" ou no latim, "memoria". Em ambas as origens da palavra, temos um significado de conservação de lembranças. Memória é do individuo, faz parte de uma sociedade e ainda de uma história construída ao longo do tempo / espaço, sendo assim ela nunca será uma, será, por assim dizer, um ponto de vista dentre inúmeros pontos de vista. Os gregos acreditavam em uma memória em forma de divindade, pois referia-se à deusa Mnemosyne, mãe das Musas, guardiãs das artes e da história. Como definir memória? Se disséssemos que memória é aquilo que lembramos estaríamos sendo muito superficiais, pois muito do que se encontra no nosso inconsciente faz parte de nossa memória. Além do mais, pedaços de passado esquecidos podem ser evocados e relembrados, revisitando um lugar, revendo uma pessoa à muito tempo distante, olhando uma fotografia, assim sendo não só o que lembramos é memória. A memória pode ser de um indivíduo e apenas dele. Não que ele “crie” essa memória, mas ele as mantem (as várias memórias) e as conjuga de uma forma distinta. Usemos como exemplo um ferroviário, um maquinista, este sujeito nasceu em x localidade, foi educado por seus pais em uma escola com determinada filosofia, se tornou maquinista por herdar uma antiga paixão de seu avó e trabalhou até a privatização por amar a sua profissão, pois bem vários desses elementos fazem parte de uma memória que não é individual, é compartilhada a educação, a paixão do avó, a filosofia, mas a junção de todos esses elementos dizem respeito à esse ferroviário, que diferentemente da secretária da ferrovia que trabalhava para pagar a faculdade de pedagogia à época da privatização compõe a sua memória individual e ela a dela. Essa faceta individual poder-se-ia confundir com um discurso autobiográfico. Sobre as tendências biográficas Bourdieu adverte, “[...] um encaminhamento, isto é, um caminho que percorremos e que deve ser percorrido, um trajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, urna viagem, um percurso orientado, um deslocamento linear, unidirecional (a “mobilidade"), que tem um começo (“uma estreia na vida"), etapas e um fim, no duplo sentido, de término e de finalidade (“ele fará seu caminho" significa ele terá êxito, fará urna bela carreira), um fim da história.” (BOURDIEU, 1996, p.183) esse modo de encarar uma biografia nos leva a um abismo teórico, mas, como tudo, a biografia é um importante documento histórico, ou pode se valer de ser, se usada com o vigor de um historiador para drenar dela o que de mais valioso ela se põe a oferecer, que são seus relatos de um passado vivido, ou melhor dizendo, um sentimento de passado que a memória transforma em discurso de uma forma romântica, sua relação com a sociedade e a ponte que a memória é capaz de traçar entre o passado e o presente. Le Goff vai à favor do homem enquanto “criador” da memória individual e não como “recipiente” da mesma, para ele “A memória, distinguindo-se do hábito, representa uma difícil invenção11, a conquista progressiva pelo homem do seu passado individual, como a história constitui para o grupo social a conquista do seu passado coletivo”. (Le Goff, 1996, p.436) Podemos discutir sobre o trecho supracitado que a memória individual é levada por uma certa paixão do homem pelo seu passado, pelo que foi, ou ainda que despreze o seu passado, uma paixão pelo seu presente, pelo que se tornou em função do passado. O homem então constrói uma memória para si, envolvendo seus interesses particulares, suas adorações, suas expectativas, esse tipo de lembrança envolve a possibilidade de anexo / descarte, ou seja, construção com base em um final previsto. Halbwachs vai de encontro à luz de que toda memória individual só existe a partir de uma memória coletiva: 11 Grifos do autor. “Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível” (HALBWACHS, 2006, p.41). Para ele o indivíduo recebe uma carga de memória coletiva e tem a capacidade de transformá-la para assim se criar uma memória individual, o que também valeria de criação / construção de memória. Nesse aspecto, acreditamos que as entrevistas com ferroviários têm muito a dizer sobre as personalidades de cada um e o passado de cada um. A memória de ferroviários (cada indivíduo que compõe esse grupo) tem que ser diferenciada da memória dos ferroviários (memória que dá unidade ao grupo), que é mais ampla, e a nossa expectativa é que as entrevistas nos ajudem a captar alguns resquícios dessa memória que serão confrontados com outros documentos. A memória dos ferroviários é o que chamaremos de memória coletiva. São as lembranças recônditas à um grupo, agindo em um tempo / espaço definidos. Pessoas se reconhecem enquanto membros de um grupo, se aceitam como membros e se veem ligadas à outras pessoas por essa definição. Cria-se um elo, mas esse sentido de pertencia não é o único elo que marca o grupo, lembranças desse grupo também os marcam e essas lembranças são a memória coletiva dessas pessoas. Por qual objetivo estabelecido pela ferrovia os ferroviários trabalhavam? Qual eram os seus prazeres dentro da ferrovia? O cotidiano de cada um para a manutenção de um bem maior, que é o sucesso da funcionalidade diária? Essas são algumas questões que, se respondidas, nos leva de encontro à memória coletiva de um grupo. Ela (a memória) está no discurso, está em arquivos oficiais da empresa, em estatística de funcionários, em antigos lugares de trabalho, em objetos de apego. Todos esses elementos são fontes que levam à obtenção de uma memória coletiva / social. Outros fatores são levados em consideração para a análise da memória coletiva, como por exemplo, o lugar em que esse grupo vive (aspectos próprios daquela região que serve de teatro para o desenrolar de uma época) e o tempo em que essas pessoas vivem (política da época, economia da época, acontecimentos recônditos àquele período), em suma são fatores que unem um dado número de pessoas e os tornam membros de uma coletividade. Como vemos não é só através de um discurso que captamos a memória, ela está impregnada e enxertada nas tendências de uma época, nos modelos arquitetônicos de um período, na “pose” de fotografias e na disposição de objetos em um lugar. Eis a memória coletiva de Maurice Habwachs (2006), “[...] nós e as testemunhas fazíamos parte de um mesmo grupo e pensávamos em comum com relação a certos aspectos, permanecemos em contato com esse grupo e ainda somos capazes de nos identificar com ele e de confundir o nosso passado com o dele”. (HALBWACHS, 2006, p.33) Podemos dizer que, assim como a memória solitária, a memória coletiva é passível de ser inventada, digamos que ela é até mais fácil de ser manipulada do que o pensamento individual, tendo em vista que é exercido um controle sobre um grupo de pessoas, assimila-se a vivencia dessas pessoas e compila esses pensamentos coletivos em um todo denominado memória coletiva. Le Goff (1996) também faz seus apontamentos sobre a memória coletiva, segundo ele, “Os fenômenos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos, mais não são do que os resultados de sistemas dinâmicos de organização e apenas existem “na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui””. (Le Goff, 1996, p.424) com essa frase o historiador francês nos transmite a ideia de que as sociedades utilizam de ferramentas para incorporar a sua memória na memória de cada indivíduo que à sociedade pertence. Resgatar uma memória coletiva deve sempre observar aspectos do presente que facilitam o diagnostico de “alterações” dos fatos. A memória não é estática, como percebemos, ela é mutável e moldável e o tempo é o seu maior escultor. “[...] ela (a memória coletiva) se desenrolou num contexto temporal e espacial, no meio de circunstancias em que nossas preocupações de então projetavam sua sombra – mas que, de sua parte, modificavam seu curso e seu aspecto [...]”. (HALBWACHS, 2006, p.50) Resta-nos por última instancia realizar apontamentos acerca da memória histórica que compõe o grupo de estudo da memória formulada por Halbwachs e que resultará na análise da memória ferroviária de Ribeirão Preto no período de 1971 a 1998 que resgata uma parte do passado e da identidade desses ferroviários. Muitas vezes tem-se na memória fatos que nem sequer estivemos presentes. Um manchete de jornal, como diz Halbwachs (2006) pode marcar nossa memória por muito tempo. Não só os jornais, mas os meios de comunicação, os livros didáticos, as literaturas (a fantasia também compõe a memória). Nesses aspecto poder-se-ia falar de uma hierarquia da memória social, onde determinados membros de um grupo maior “seleciona” e “transmite” o que ficará na memória de indivíduos e grupos menores. Halbwachs (2006) discuti que uma parcela da memória é formada por simulação ou reconstrução de recordações de outros que não aquele que “lembra”, ou seja, imaginamos algo que possa ter acontecido ou internalizamos acontecimentos e representações de tempos históricos. São imagens que não nos pertencem ou passam a pertencer mesmo sem termos vivenciado as mesmas. A memória histórica é composta definitivamente de “fatos históricos” e é manipulada por um ou mais indivíduos que atuam sobre uma maioria. Podemos ilustrar essa vertente da memória da seguinte forma, se um ferroviário alega ter orgulho de poder fazer parte do grupo que compôs a ferrovia de Ribeirão Preto no ano de 1995 por que a ferrovia foi importante para a economia do Brasil, principalmente no ciclo do café, então estamos falando de uma memória histórica, uma memória induzida e “aprendida”, pois em 1995 a ferrovia entrava em declínio e esse ferroviário não viveu ativamente do ciclo cafeeiro, só lhe restou resquícios e fragmentos de uma época que ficou simplesmente na memória de um, de alguns ou de uma nação. BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. Paris: 1986. In: AMADO, J.; FERREIRA, M.M. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 183-191. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. 224p. LE GOFF, Jacques. Memoria. Campinas, SP: 1996. In: ___________. História e Memória. Campinas, SP: editora da UNICAMP, 1996. p.423-483. MATOS, Odilon Nogueira de. Café e ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: Alfa-ômega. 1974. MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1841 – 1889 Urbanização e Urbanismo em um Império Escravista. In: Viagem incompleta (1500 - 2000): a grande transação. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p.93-117. ZAMBELLO, M.H. A memória ferroviária: Luta e identidade operárias. In: Anais do 33º Encontro do Ceru, 2009, p.75-113.