rediscover rome panamá panamá é o canal Uma gigantesca obra de engenharia resgatou o país do anonimato há quase cem anos. Agora os panamenhos querem mostrar ao mundo que são muito mais do que um mero atalho texto luis patriani | fotos victor andrade 86 Dezembro 2010 A ilha dos Pássaros fica em um rochedo cercado pelo Mar do Caribe e por tubarões Dezembro 2010 87 panamá 88 Dezembro 2010 D iante de um grupo de brasileiros, o guia Hernandez Flores solta a pérola. “Adoro o Brasil. Caipirinha! Mulatas! Futebol!” O panamenho de sorriso maroto parece querer provocar uma indagação nos visitantes e emenda: “Vocês têm também Antônio Carlos Jobim. Bossa Nova!”. Ele espreita a reação inerte do grupo e dá seu recado. “O Panamá não é apenas o canal, assim como muitos estrangeiros pensam.” Ironicamente, o discurso antibanalização do monitor acontece em frente às portas da eclusa de Miraflores, na entrada via oceano Pacífico do Canal do Panamá, o principal responsável pelo enriquecimento vertiginoso do país desde que seu controle saiu das mãos norte-americanas em 1999. Estereótipo à parte, é impossível falar desta pequena nação da América Central sem destacar a passagem de 80 quilômetros de extensão que corta o istmo do Panamá e liga os oceanos Pacifico e Atlântico. Em troca da sua construção, concluída em 1914, e do domínio da estratégica rota de navios, os Estados Unidos apoiaram um levante rebelde no até então território colombiano, cuja ocupação já durava quase um século. A consequência do acordo foi uma espécie de colonização em pleno século 20. Durante os 85 anos em que estiveram à frente do lucrativo pedágio (mais de 14 mil embarcações usam o atalho todos os anos), os militares ianques estabeleceram uma gigantesca zona ao longo do canal a que somente eles tinham acesso. A exploração não tinha prazo para acabar até que uma revolta popular, em 1964, fez com que se firmasse um acordo de devolução da passagem para entrar em vigor 35 anos depois. após 85 anos de domínio americano, o famoso canal finalmente é controlado pelo panamá foto: lonely planet images Na página ao lado: cerca de 14 mil embarcações cruzam o canal todos os anos. Acima, à direita: o tamborito é uma dança folclórica muito tradicional no Panamá. Ao lado: vista do bairro Casco Velho, na Cidade do Panamá Dezembro 2010 89 panamá 90 Dezembro 2010 Q uando finalmente assumiu o controle, o lucro em torno de 780 milhões de dólares (equivalente a cerca de 18% do PIB) passou a ir direto para os cofres do governo panamenho. Detalhe: em 2014, ano do centenário de sua construção, o canal terá capacidade para receber os maiores navios do mundo, como os superpetroleiros, dobrando seu faturamento. Com muito dinheiro no bolso, o acanhado país de apenas 75 mil quilômetros quadrados pôde investir em outras áreas da economia, como o turismo e serviços, e começar a fugir do malfadado estereótipo combatido por Hernandez Flores, o guia que adora o Brasil, suas mulatas, futebol, caipirinhas e, para salvar a pátria da mesmice, Tom Jobim. Os militares americanos se foram, mas a herança deixada por eles ficou. Basta olhar para a grande ferrovia, rodovias, duas hidrelétricas e uma base aérea, assim como as antigas zonas militares que viraram moradias, escolas e redes hoteleiras. Na cidade de Colón, por exemplo, famosa por abrigar uma zona livre de comércio e por ser a porta de entrada do canal pelo oceano Atlântico, uma área ocupada pelo exército norte-americano abriga hoje o sofisticado hotel Meliá de Colón. Do outro lado, na americanizada Panamá City, fica evidente o rápido enriquecimento desta nação de 3 milhões de habitantes, dos quais mais da metade vivem na capital. Na orla da Cinta Costeira, uma importante avenida da cidade, cujas pistas foram feitas sobre um aterro, centenas de prédios modernos (os valores de cada imóvel ultrapassam 200 mil dólares) estão sendo erguidos ao mesmo tempo. A impressão é de estar em um gigantesco canteiro de obras. o rápido crescimento da economia tem feito o país investir cada vez mais no turismo Acima, da esquerda para a direita: o tranquilo e colorido Mar do Caribe; os Emberá são um dos principais grupos indígenas do país; o pacato cotidiano de Bocas del Toro; o tradicional chapéu do Panamá; o colorido ônibus diablo rojo é o principal meio de transporte na Cidade do Panamá Dezembro 2010 91 panamá O hotel Méredien (primeiro da rede na América Central) está pronto há pouco mais de um ano e representa bem a aposta dos investidores estrangeiros no auspicioso mercado turístico do Panamá. Tudo aqui reveste-se de luxo, sofisticação e doses fartas de bom gosto. Logo na entrada, chama a atenção o pé direito duplo com uma pirâmide de vidro invertida que reflete as cores do elegante saguão em granito preto. Os quartos têm quadros do famoso artista plástico panamenho Igor Kourany, conhecido por aliar a cultura tradicional do país com uma estética contemporânea e arrojada. Para abri-los, cartões-chave estilizados, criados pelo artista norte-americano Sam Samore, dão acesso também ao Museu de Arte Contemporânea (MAC), uma das maiores instituições de cultura e design do Panamá. Na ponta da Baía do Panamá, o Casco Antigo, centro histórico da capital, contrasta com a modernidade da Cinta Costeira. Restaurado há cinco anos, este recanto de praças, ruas estreitas e prédios coloniais tombados pela Unesco como Patrimônio da Humanidade tornou-se um dos lugares mais charmosos da Cidade do Panamá. Desde que foi revitalizada, a histórica península atraiu muitos restaurantes, bares e cafés, transformando o Casco Antigo em um dos pontos culturais e boêmios mais procurados. Na Praça da Independência, também conhecida como Plaza Catedral, onde um grupo de padres iniciou o movimento de independência do Panamá no século 19, o levante deu lugar a festivais de música, como o Festival Internacional de Jazz, que acontece todos os anos, ao lado da catedral de Nossa Senhora da Assunção, erguida em 1688. o arquipélago de bocas del toro é a joia caribenha ainda em estado bruto Acima: as paláfitas estão por todas as partes e são o único jeito de domar o onipresente Mar do Caribe, em Bocas del Toro. Ao lado: a micro rã endêmica deu nome a praia de Red Frog Beach 92 Dezembro 2010 O Caribe é aqui Um arquipélago no oeste do Panamá é a prova inconteste de que este país vai muito além de seu famoso canal. Bocas del Toro e suas nove ilhas vibram no ritmo do som e das cores do Mar do Caribe. “Descobertos” por mochileiros no final dos anos 1990, os povoados da região resguardam ainda o estilo de vida simples e pacato de quem está em descompasso com o relógio e a pressa dos grandes centros urbanos. A fala mansa e o olhar tranquilo do guia e professor de educação física, Luis Lopez, revelam o jeitão sereno dos habitantes daqui. Enquanto arruma o chapéu, Luis comenta que os furacões – tão comuns e temidos no Caribe – não passam pelo arquipélago. “Bocas del Toro está abrigada numa grande baía. Os furacões passam no mar lá fora e não nos atingem”, comenta, com o mesmo ar de calmaria que caracteriza essa região do Panamá. Depois de contar que tem o sonho de viajar ao Brasil em 2014 para assistir a Copa do Mundo e conhecer a Amazônia, o simpático guia diz que cada ilha tem uma atração diferente. Basta navegar pelas calmas e quentes águas caribenhas para perceber que ele está certo. Logo na saída do passeio, a Baía dos Golfinhos mostra a razão de ter este nome. Em pouco tempo, o barco já está rodeado por golfinhos que parecem querer se apresentar em um espetáculo de acrobacias. Na ilha de Caio Sapatilha Norte, o mergulho de snorkel revela por que a vida marinha aqui é tão exuberante. São 58 tipos de coral (é a maior quantidade de corais vivos do Caribe) que servem de morada e fonte de alimento para inúmeras espécies de peixes, além lagostas, mexilhões, ostras, aranhas do mar e por aí vai. A lancha desliza sobre a água e aproxima-se da Ilha dos Pássaros, um rochedo com uma fenda no meio, onde gaivotas e albatrozes dividem a área com tubarões. Um pouco adiante, e a praia das estrelas-do-mar mostra-se autoexplicativa. Sob a água translúcida e sobre a areia branca, centenas de estrelas-do-mar parecem refletir o céu. Fora do mar, a vida selvagem também se destaca. A praia Red Frog Beach abriga na preservada mata a sua volta uma pequenina rã endêmica do tamanho de uma unha da mão. Aqui elas dão as cartas, a ponto de causarem polêmica com os ambientalistas quando os nativos as retiram da floresta para serem fotografadas pelos turistas. Já na ilha de Carenero, a atração fica por conta dos surfistas que se aproveitam da hola gorila, uma forte onda formada pelos ventos que sopram do norte para o sul. Ao final do dia, o som que vem de uma palafita na Ilha de Bastimento chama a atenção. Ali, um grupo de adultos e crianças ensaia passos de uma dança haitiana para apresentar-se depois na Festa de Lunes, que celebra a colheita de bananas. A alegria deles revela como um ambiente tão colorido e harmônico reflete-se na cultura e no jeito de ser das pessoas. 93 panamá A biodiversidade do pequeno país da américa central é uma de suas maiores riquezas D e fato, assim como apregoa o guia Hernandez Flores, o Panamá não é só o canal. Mas a existência dele garantiu outro belo estereótipo do país: sua exuberante natureza. A explicação é simples: é preciso evitar a qualquer custo o assoreamento da rota de navios e também faz-se necessário manter os altos índices pluviométricos que sustentam o funcionamento das eclusas (elevadores) do canal, uma vez que a passagem fica a 26 metros acima do nível do mar. O desafio é grande e para isto é preciso preservar as matas tropicais. Quem agradece a parcimônia das serras elétricas são os vários parques nacionais, como o Soberanía, o Chagres e o Porto Belo, onde vivem mais de 800 espécies de aves, muitos mamíferos, répteis, além de índios. Não só a fauna e flora comemoram. O ecoturismo também beneficia-se muito da grande cobertura vegetal do país e, claro, da onipresente rota internacional de navios. O Gamboa Rainforest Resort é um ótimo exemplo. Localizado no meio do Parque Nacional Soberanía, às margens do rio Chagres, que, por sua vez, desemboca no Canal do Panamá, tem na generosidade da natureza seu principal atrativo. Em meio aos seus 340 acres de terra, o que equivale a 1.375 km², os programas vão desde a visita à tribo indígena dos Ella Puru Embera, até a observação dos crocodilos no Lago Gatun (o reservatório de água que garante o funcionamento do canal), e os micos-leões brancos que vivem na ilha dos Macacos. Enquanto o país pulsa no forte ritmo de sua economia e mostra para o resto do mundo que não se reduz apenas à famosa e importante passagem, os navios continuam a cortar caminho pelo atalho e cruzar de um oceano ao outro em apenas oito horas. É certo que os estereótipos banalizam e simplificam demais a imagem de uma nação. Mas o Canal do Panamá é um dos estereótipos mais invejados, cobiçados e lucrativos do planeta. LP As lagostas são abundantes nos recifes de coral em Bocas del Toro. Suas grandes antenas fazem do crustáceo uma preza fácil 94 Dezembro 2010