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Artigos
edição 100 - Setembro 2010
Vida Sintética e Ética
Técnicas de manipulação genética estimulam novas discussões jurídicas
por FÁBIO ULHOA COELHO
A experiência de criação em laboratório de “vida sintética” inevitavelmente iniciou discussões sobre
desdobramentos éticos e jurídicos. A equipe de Craig Venter, partindo do arquivo eletrônico com a
descrição do sequenciamento do genoma de uma bactéria, reproduziu-o com bases químicas,
inserindo-o numa célula de outra bactéria, da qual extraíram previamente o DNA. O ser assim gerado
se desenvolveu e se reproduziu.
Essa experiência deve se repetir com animais mais complexos, como mamíferos e, evidentemente, o
ser humano. Conhecido o sequenciamento do genoma de uma pessoa qualquer – digamos, Albert
Einstein –, será possível aglutinar em laboratório timinas, adeninas, guaninas e citosinas
rigorosamente na mesma ordem, implantá-las numa célula reprodutiva humana sem DNA, transpô-las
ao útero de uma mulher e aguardar que o ciclo natural da gestação cuide do resto.
Einstein renascerá? Não é possível ter certeza disso, pois ainda são inconclusas as discussões sobre a
extensão da influência do meio sobre o desenvolvimento da personalidade. Quer dizer, se o bebê não
for amado ou desamado na mesma forma que foi o pequeno Albert, na Alemanha do último quarto do
século 19, é quase certo que terá perfil psicológico diferente. Além disso, será uma pessoa nascida em
outro tempo e lugar, com outra história. É provável, assim, que se frustrem as expectativas
depositadas no futuro desempenho intelectual do rebento.
O temor dessa variante de clonagem é injustificado. Se certa memória da história de cada um de nós
se imprime, de algum modo, em nossas timinas e demais bases químicas do DNA, a pessoa gerada a
partir da reprodução do mesmo esquema de sequenciamento de genoma de outra não transportará
essa memória, as a eventualmente contida nas bases empregadas pelos cientistas.
Outro uso da técnica objeto do experimento é que deve preocupar as discussões éticas e jurídicas. Se
com as pesquisas genômicas descobrirmos como desenhar em computador um ser humano ideal,
inapto a desenvolver as doenças conhecidas de origem genética, será possível à medicina curar esses
males desde o início. O casal com propensão a gerar filhos com determinada doença poderia contratar
os serviços de uma clínica de fertilização que ajustaria o sequenciamento das células reprodutivas ao
projeto ideal de ser humano, eliminando o risco.
Aqui reside a questão crucial, de ordem ética e jurídica. Deve a lei reconhecer aos casais que desejam
ter apenas filhos saudáveis o direito de utilizar essa técnica? Sendo a saúde apenas uma de muitas
características portáveis por nós, a questão se abre igualmente a uma gama imensa de possibilidades
– tipo de inteligência, compleição física etc.
Essa discussão interessa apenas a quem não crê num Deus criador e ordenador. Aqueles que
acreditam ter o homem, com essa conquista científica, definitivamente avançado o sinal e afrontado a
vontade divina não necessitam do aclaramento da dúvida ética ou jurídica. Basta-lhes a crença para
inibi-los a utilizar a técnica, ao gerarem seus filhos. A discussão deve ser contextualizada, assim,
numa questão filosófica altamente complexa e, por isso mesmo, constantemente evitada: a de quanto
a atual sociedade democrática enfraquece a espécie humana.
A seleção natural é, evidentemente, o processo de supremacia do mais forte, do mais apto a
relacionar-se com o meio ambiente. A cultura liberta o ser humano dessa cruel imposição da seleção
natural. Permite à espécie humana, após longo processo civilizatório, integrar também membros
desafortunados, portadores de limitações físicas ou mentais. Mas, ao desafiar o princípio básico da
seleção natural, dando chance de viver e se reproduzir a todos os homens e mulheres, e não somente
aos mais aptos, a cultura acaba envolvendo a espécie humana numa estratégia arriscada.
26/08/2010 14:45
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A discussão é altamente complexa e constantemente evitada, porque pode resvalar em execráveis
postulações de controle da “pureza” da espécie humana. Não é disso que se trata. A sociedade
democrática deve continuar a abrigar todos os homens e mulheres, sem qualquer distinção, em vista
da plena igualdade de dignidade que cada um de nós carrega. Mas, sem abrir mão desse valor
fundamental, conquistado a duras penas, talvez não devamos deixar de nos preocupar com a
pertinência das estratégias adotadas enquanto espécie em evolução. A técnica prometida por aquele
experimento pode atender à delicadíssima questão evitando-se as limitações na origem.
O ser humano caminha para ter nas mãos o controle da evolução. Assim como deverá, um dia, de
controlar a evolução da própria espécie, poderá também submeter à mesma lógica a das demais. Os
dois vetores tendem a se desenvolver simultaneamente. O processo de evolução das espécies, que
hoje designamos como “seleção natural”, corre o risco de se transformar em algo próximo ao que
poderíamos deduzir da expressão “seleção cultural”. Isto só aumenta a já enorme responsabilidade do
Homo sapiens.
FÁBIO ULHOA COELHO Fábio Ulhoa Coelho é jurista e professor da PUC-SP.
© Duetto Editorial. Todos os direitos reservados.
26/08/2010 14:45
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