Origem Anômala da Artéria Coronária Esquerda do

Propaganda
Jacob & Salis
Origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar
Arq Bras
Relato
de Cardiol
Caso
2003; 81: 196-8.
Origem Anômala da Artéria Coronária Esquerda do Tronco
Pulmonar em Mulher de 45 Anos
José Luiz Balthazar Jacob, Fernando Vilela Salis
São José do Rio Preto, SP
É relatado um raro caso de origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar, em uma mulher branca de 45 anos de idade. É descrita a técnica utilizada para a cateterização seletiva da coronária esquerda,
nascendo anomalamente da artéria pulmonar. Seis anos
após o diagnóstico, o ecocardiograma mostrou disfunção
ventricular esquerda e o tratamento cirúrgico foi indicado novamente. A origem da artéria coronária esquerda do
tronco pulmonar foi fechada cirurgicamente e o pós-operatório não teve intercorrências, havendo recuperação
da função ventricular esquerda e desaparecimento dos
achados de isquemia miocárdica através da realização da
cintilografia de perfusão miocárdica com Sestamibi, realizada quatro semanas após a cirurgia.
A origem da artéria coronária esquerda, a partir do
tronco pulmonar, é uma rara anomalia congênita, normalmente detectada na infância devido a sinais de isquemia
miocárdica 1. A mortalidade é de 85% durante os primeiros
anos de vida, mas alguns pacientes podem ter o seu diagnóstico feito apenas na vida adulta 2,3. O diagnóstico é suspeitado em geral pela história clínica, achados eletrocardiográficos, evidência de isquemia ao teste de esforço ou pela cintilografia. No entanto, é definitivamente estabelecido pela
cineangiocoronariografia. Atualmente o mapeamento com
Doppler colorido pode fazer ou simplificar o diagnóstico em
alguns pacientes. Relatamos o caso desta anomalia em mulher de 45 anos de idade, diagnosticada pela cineangiocoronariografia, incluindo a cateterização seletiva da artéria coronária esquerda anômala.
Relato do Caso
Mulher branca de 45 anos de idade, sem manifestaInstituto de Moléstias Cardiovasculares - IMC
Correspondência: José Luiz Balthazar Jacob – IMC - Rua Castelo D’Água, 3030
15015-210 - São José do Rio Preto, São Paulo – E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 30/4/02
Aceito em 5/8/02
ções sintomáticas, foi inicialmente avaliada, em 1972, devido
a palpitação. Nessa época, o exame físico e a radiografia de
tórax eram normais, e o eletrocardiograma revelava ausência
de onda R em V1 e uma pequena onda R em V2. Após 7 anos,
durante uma gravidez, a paciente apresentou dor torácica
atípica e discreta dispnéia. O eletrocardiograma mostrou os
mesmos achados, e o ecocardiograma revelou prolapso de
válvula mitral sem regurgitação. Os sintomas desapareceram espontaneamente. Em 1981, surgiu linfedema de ambas
as pernas, seguido até hoje por um angiologista. A paciente
não apresentou qualquer outra manifestação cardíaca até
1991, quando novamente queixou-se de palpitações. O eletrocardiograma e o ecocardiograma mostravam os mesmos
aspectos já descritos, mas o teste de esforço (protocolo de
Bruce) revelou um infradesnível de ST de 2mm após 9min de
exercício, e extra-sístoles supraventriculares esparsas. A
paciente negava dor torácica e esses achados foram atribuídos ao prolapso da valva mitral. Foi introduzido propanolol
40mg duas vezes ao dia.
Em 1994, mantinha-se assintomática, mas um novo
teste de esforço mostrou os mesmos aspectos já mencionados. A função ventricular esquerda era normal ao ecocardiograma, sem evidências de qualquer ecogenicidade anormal das paredes do ventrículo esquerdo ou dos músculos
papilares. Não era detectável nenhum fluxo anormal para o
tronco da artéria pulmonar pelo mapeamento com Doppler
colorido. A cintilografia de perfusão miocárdica com 99 mTc
Sestamibi, em repouso e ao esforço (em esteira, protocolo de
Bruce) foi realizada e revelou um defeito fixo de captação na
área apical e uma importante área de isquemia na parede anterior (fig. 1A e B), com discreta redução da contratilidade da
parede apical. Embora assintomática a paciente foi submetida ao cateterismo cardíaco que mostrou ausência da artéria
coronária esquerda nascendo da aorta. A coronária direita
enormemente dilatada, tortuosa e dominante, nascia do seio
aórtico direito, com um grande número de vasos colaterais
nutrindo o sistema coronariano esquerdo. Os vasos colaterais mostravam-se bastante dilatados e tortuosos e notavase um pequeno shunt para o tronco da artéria pulmonar (fig.
2A). Opacificação do sistema coronariano revelava densa
Arq Bras Cardiol, volume 81 (nº 1), 196-8, 2003
196
Arq Bras Cardiol
2003; 81: 196-8.
Jacob & Salis
Origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar
Fig. 1 - A e B) Imagens da cintilografia de perfusão miocárdica em exercício e em repouso realizadas com 99 mTc Sestamibi. Nota-se nos cortes no longo eixo horizontal e no
curto eixo, uma extensa zona de defeito da perfusão na parede anterior durante o exercício, com mínima reversidade em repouso; C e D) Imagens da cintilografia miocárdica
em repouso e exercício com 99 mTc – Sestamibi após o tratamento cirúrgico, mostrando a distribuição normal do 99 mTc – Sestamibi tanto no longo eixo horizontal como
no curto eixo.
A
irrigação das paredes do ventrículo esquerdo. A cineangioventriculografia esquerda não mostrava anormalidades
regionais da contração e nem regurgitação valvar mitral. Cateterização seletiva da artéria coronária esquerda anômala,
nascendo do tronco pulmonar, era feita da seguinte forma:
um introdutor Hemaquet 8F era inserido percutaneamente
na veia femoral direita, permitindo a introdução de um cateter de Judkin de coronária direita, avançado através do átrio
e ventrículo direitos, atingindo o tronco pulmonar através
da valva pulmonar. A ponta do cateter era ancorada na parede posterior do tronco pulmonar, logo acima da valva. O
cateter era forçado dentro do tronco pulmonar, fazendo uma
larga alça e aumentando a curvatura da ponta. Em seguida,
era lentamente puxado e girado no sentido anti-horário, permitindo a cateterização seletiva da artéria coronária esquerda. A injeção de contraste na artéria coronária esquerda,
mostrava dilatação de tronco coronariano, um pequeno
ramo marginal da artéria circunflexa esquerda, e uma porção
proximal dilatada da artéria descendente anterior, seguida
por um seguimento estreito e curto, onde havia parada da
progressão do contraste, dada em decorrência do grande
suprimento através da circulação colateral, que era maior do
que o fluxo coronariano real pela coronária esquerda (fig.
2B). Foi indicado tratamento cirúrgico, mas a paciente se
negou a submeter-se à cirurgia.
Seis anos após o diagnóstico, a fração de ejeção do
ventrículo esquerdo mostrava-se diminuída ao ecocardiograma, e o tratamento cirúrgico foi novamente indicado. A
origem da artéria coronária esquerda, a partir do tronco pulmonar, foi fechada cirurgicamente e o pós-operatório não
teve intercorrências. Quatro semanas após a cirurgia, a função ventricular esquerda era normal e a cintilografia miocárdica, realizada com a mesma técnica anteriormente descrita e
o mesmo grau de esforço, mostrava desaparecimento dos
achados isquêmicos (fig. 1 C e D).
Discussão
A origem da artéria coronária esquerda a partir do tronco pulmonar, ou síndrome de Bland-White-Garland é uma
rara anomalia que representa 0,5% das malformações congênitas 2 . Ela é freqüentemente fatal nos primeiros meses ou
B
Fig. 2 - A) - Arteriografia seletiva de coronária direita, mostrando uma artéria enormemente dilatada, tortuosa e dominante, nascendo da aorta (seta preta). Vasos colaterais
tortuosos e dilatados são visíveis (cabeças de setas pretas). Nota-se densa irrigação
das paredes do ventrículo esquerdo através da opacifição do sistema coronariano; B)
arteriografia seletiva em projeção oblíqua anterior direita, mostrando a artéria
coronária esquerda nascendo do tronco da artéria pulmonar. O tronco coronariano é
curto e dilatado (cabeças de setas pretas), o ramo marginal esquerdo da artéria circunflexa é curta (seta preta), e a porção proximal da artéria descendente anterior é dilatada
(seta branca) existe uma parada do trânsito do contraste no seguimento estreitado da
artéria descendente anterior (cabeças setas brancas).
anos de vida e também na vida adulta 3. Nos primeiros meses
de vida a criança desenvolve insuficiência cardíaca congestiva, devido a isquemia miocárdica, o que leva a morte 4. Os
raros pacientes que sobrevivem até a vida adulta, podem
ser assintomáticos se a circulação colateral for adequada.
Em crianças maiores ou adultos assintomáticos, sinais de
infarto ou isquemia miocárdica podem estar ausentes no
eletrocardiograma 4. Em nosso caso o aspecto da onda R em
V1 e V2 era sinal da lesão isquêmica no passado. O diagnóstico ecocardiográfico de prolapso da válvula mitral, confundiu a interpretação do primeiro teste de esforço realizado em
nossa paciente. Embora um mínimo shunt fosse demonstrado pela cineangiocoronariografia, existiu um erro na interpretação do estudo ecocardiográfico com Doppler colorido,
pois existem relatos na literatura descrevendo a acurácia
desse método para detecção de fluxos anormais para o
tronco pulmonar, e para a correta avaliação da direção do
fluxo na coronária esquerda 5. A cintilografia miocárdica,
mostrando os achados isquêmicos relatados, foi o que indicou realmente o estudo das artérias coronarianas, que é o
197
Jacob & Salis
Origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar
mais adequado método para o diagnóstico dessa anomalia 6.
Em nosso paciente os aspectos cineangiocoronariográficos
da grande artéria coronária direita e do suprimento colateral
para artéria coronária esquerda, eram semelhantes a descritos em outros relatos 1-3. A ventriculografia esquerda, mostrando contratilidade normal da parede apical, e os achados
de um ventrículo esquerdo normal ao ecocardiograma, estavam em desacordo com a hipocaptação fixa na região apical,
demonstrada pela cintilografia, sugerindo que ainda existia
miocárdio viável nessa região.
A maioria dos clínicos reconhece a necessidade do
tratamento cirúrgico desta anomalia, devido aos relatos de
arritmias freqüentes, insuficiência cardíaca ou morte súbita3,7. Várias técnicas cirúrgicas são descritas 1,3,5,8. Freqüentemente, os estudos angiográficos convencionais (injeção
na artéria coronária direita ou angiografia do tronco pulmonar) não mostram a anatomia correta da artéria coronária esquerda, devido a opacificação de grandes vasos colaterais.
Por essa razão, freqüentemente a técnica cirúrgica é decidida durante o ato operatório, aumentando a mortalidade e a
morbidade. São relatados casos de pacientes que morrem
subitamente após serem submetidos a diferentes técnicas
cirúrgicas. Muitos autores sugerem que as mortes pós-operatórias são causadas por disfunção miocárdica pré-existente 3. Entre sete pacientes revistos por Purut e cols.1, apenas um morreu subitamente. Raramente um adolescente ou
adulto com esta anomalia, que seja assintomático e, presumivelmente, tenha uma adequada circulação colateral, falece
subitamente 5. Maioria dos pacientes operada na vida adulta apresenta sintomas, arritmias ou sinais isquêmicos ao
eletrocardiograma, disfunção miocárdica ou dano dos músculos papilares com regurgitação mitral 2,3,7. Acreditamos
que a cateterização seletiva da coronária esquerda seja útil,
porque permite a análise da anatomia dos ramos principais;
Arq Bras Cardiol
2003; 81: 196-8.
pode-se, também, ter noção direta do balanceamento do fluxo pela coronária esquerda e pelos vasos colaterais e, assim,
um mais correto planejamento da técnica cirúrgica.
A cateterização seletiva das artérias coronárias nascendo da aorta, em crianças com cardiopatias congênitas,
usando-se o acesso pela veia femoral já foi previamente
descrita 9 e é um procedimento simples, pois a aorta tem um
pequeno diâmetro na criança. No entanto, existem dificuldades para a cateterização seletiva da artéria coronária
esquerda, nascendo anomalamente do tronco pulmonar em
adultos, devido ao largo diâmetro do tronco pulmonar e a
curvatura sofrida pelo cateter ao nível da válvula tricúspide.
A técnica de cateterização seletiva acima citada foi previamente relatada por Jacob 10.
O tratamento cirúrgico é sempre indicado diante da
presença da origem anômala da artéria coronária esquerda,
a partir do tronco pulmonar, embora exista suspeita de que
nos portadores desta anomalia, propensos a morte súbita, a
cirurgia possa não prevenir essa ocorrência. A cirurgia foi
indicada para nossa paciente, mas não realizada logo após o
diagnóstico, uma vez que a mesma negou-se a ser submetida à operação. Em pacientes que não aceitam a cirurgia, um
acompanhamento bastante rígido e próximo é necessário.
Nesses casos, se surge disfunção ventricular esquerda ou
arritmias ventriculares importantes, o tratamento cirúrgico
deve ser reforçado. Dados de literatura mostram a eficácia
do reimplante da coronária esquerda na aorta 8, ou de anastomose de artéria mamária esquerda para artéria descendente anterior com ligadura da coronária esquerda 11. Em nossa
paciente a eficácia da cirurgia, apenas com fechamento da
origem da coronária esquerda, foi confirmada, pelo desaparecimento dos achados de isquemia regional, através da
cintilografia miocárdica realizada quatro semanas após o
ato operatório.
Referências
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Purut CM, Sabiston DC. Origin of the coronary artery from the pulmonary artery
in older adults. J Thorac Cardiovasc Surg 1991; 102: 566-70.
Saeed BT, Rosin MD, Murray RG. Successful operation in an old survivor of
anomalous origin of the left coronary artery from the pulmonary trunk (BlandWhite-Garland Syndrome). Br Heart J 1994; 71: 193-5.
Moodie DS, Fyfe D, Gill CC, et al. Anomalous origin of the left coronary artery
from the pulmonary artery (Bland-White-Garland Syndrome) in adult patients:
Long-term follow-up after surgery. Am Heart J 1983; 106: 381-8.
Takahashi M, Lurie PR. Abnormalities and diseases of the coronary vessels. In:
Adams FH, Emmanouilides GC, Reimenschneider TA, eds. Heart Disease in
Infants, Children and Adolescents, 4th ed. Baltimore: Williams and Wilkins,
1989: 627-35.
Houston AB, Pollock JCS, Doig WB, et al. Anomalous origin of the left coronary
artery from the pulmonary trunk: elucidation with colour Doppler flow mapping.
Br Heart J 1990; 63: 50-4.
Freedom RM, Culhem JAG, Moes CAF. Anomalies of the coronary arteries. In:
198
Freedom RM, Culhem JAG, Moes CAF, eds. Angiocardiography of Congenital
Heart Diseases. New York: Macmillan, 1984: 405-11.
7. Wesselhoeft H, Fawcett JS, Johnson AL. Anomalous origin of the left coronary artery
from the pulmonary trunk. its clinical spectrum, pathology, and pathophysiology.
Based on a review of 140 cases with seven further cases. Circulation 1968; 38: 403-25.
8. Oliveira SA, Diament J, Carvalho VB, Arie S, Macruz R, Zerbini EJ. Anomalous
origin of the left coronary artery from the pulmonary artery. Surgical repair of on
unused form. J Cardiovasc Surg 1977; 18: 599-605.
9. Loya YS, Pinto RJ, Desai DM, Sundaram U, Bhagwat AR, Sharma S. Selective
coronary angiography via antegrade venous route in congenital cyanotic heart
disease. Cathet Cardiovasc Diagn 1993; 28: 179-82.
10. Jacob JLB. Selective catheterization of the anomalous left coronary artery arising
from the pulmonary trunk. Cathet Cardiovasc Diagn 1996; 38: 102.
11. Vigneron M, Ninet J, Bernard Y, Nony P, Beaune J, Champsaur G. Abnormal
origin of the left coronary artery in the adult. Scintigraphic and surgical
correlations. Arch Mal Coeur Vaiss 1991; 84: 113-16.
Download